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sexta-feira, 7 de junho de 2019

Fundamentos socioculturais da educação – Alessandro de Melo

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-8212-230-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 280
Sinopse: Ao discutir as especificidades do universo escolar, o livro apresenta uma análise inteligente e integradora de temas contemporâneos, como multiculturalismo, interculturalidade, etnocentrismo, diversidade e pluralidade cultural. Os conteúdos trabalhados pelo autor demonstram que a prática pedagógica é capaz de gerar consequências amplas em termos sociais e antropológicos em uma estrutura educacional.



“O processo educativo é a ação socialmente construída de transmissão dos conhecimentos de uma geração às demais que surgem. (...) Educação é processo humano, essencial para a perpetuação da humanidade e veículo de humanização. Educar é humanizar, ou seja, é um processo em que cada indivíduo se apropria daquilo que é produto do trabalho humano e expresso nos conteúdos da cultura, da arte, da linguagem, da técnica e tecnologia, assim como da história, da política, da economia etc.”


“Em primeiro lugar, é interessante entendermos o conceito fundamental do sociólogo Émile Durkheim: o “fato social”. Este integra todo o seu conjunto de reflexões sobre a sociedade, entendida como um conjunto dos fatos sociais, imersos numa totalidade que lhes dá organicidade. (...)
A primeira característica do fato social* é existir exteriormente ao indivíduo, ou seja, não ser um fato individual ou psicológico, mas sim social.
Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios, sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação. Assim também o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele. (Durkheim, As regras do método sociológico, 1984, p. 1-2)
Neste trecho há o que é essencial no pensamento de Durkheim com relação ao fato social: é objetivo, exterior ao indivíduo e transmitido pela educação. Mas a esse conjunto de características é somado ainda outro aspecto importante do fato social: é que ele não somente existe fora do indivíduo, mas também se impõe a ele como forma de ser na sociedade. Para Durkheim, o indivíduo, ao nascer, encontra prontas as regras sociais, as normas de convivência, as tradições e as relações sociais, assim como os valores e as crenças. Estas, por existirem anteriormente aos indivíduos, são lhes impostas como algo superior, e, portanto, a única alternativa é que se adaptem a essas regras, valores, crenças, normas e relações sociais.
Tal imposição, ou “coerção”, nas palavras de Durkheim, gera como consequência reações para todos os que se encontram fora dessas regras sociais. A coerção existe como mecanismo controlador e de manutenção por meio de sanções sociais que podem ser implícitas — como o desprezo, por exemplo —, ou explícitas, nas reações de adversidade dos outros diante de uma situação diferente, ou mesmo pela legislação, cabendo, nesse caso, sansões violentas, como a retirada da liberdade.
*: “Durkheim (1984, p. 11) conceitua fato social como “toda maneira de agir, fixa ou não, toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior”; ou então, ainda, que “é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter”.


“Para Durkheim, o estudo da sociedade é demarcado pelos fatos sociais entendidos como “coisas”, ou seja, fatos exteriores aos indivíduos, de caráter objetivo (ao contrário dos fatos psíquicos) e que obedecem a leis positivas, gerais e, no limite, invariáveis, o que denota a sua concepção positivista de sociedade, para a qual os indivíduos deveriam se moldar e não transformar.
Para Durkheim, não interessam as manifestações individuais dos fatos sociais, mas apenas as coletivas. As ações individuais são engajadas conforme os costumes de cada período, como, por exemplo, o impulso ao casamento, ao suicídio, à natalidade etc. A estatística reforça, para Durkheim, a constatação de que o fato social não é explicável pelas manifestações particulares:
Como cada um destes números compreende todos os casos particulares indistintamente, as circunstâncias individuais que podem desempenhar qualquer papel social na produção dos fenômenos se neutralizam mutuamente e, por conseguinte, não contribuem para determiná-lo. O que cada número exprime é um certo estado de alma coletiva. (Durkheim, 1984, p. 7)
Apreende-se em Durkheim, portanto, a distância entre os indivíduos e a sociedade como um todo. Para esse autor, não é possível dizer que a sociedade se constitui da soma das individualidades, mas, sim, que é algo totalmente estranho às manifestações individuais. No entanto, como a educação constitui-se como um fato social?
O fato social, como vimos, constitui-se como imposição de valores, hábitos crenças, hábitos, normas e regras sociais constituídas independentemente da ocorrência e da vontade individual.
Mas, se é assim, como cada indivíduo pode seguir essa herança social que lhe é imposta? Como cada indivíduo pode vir a conhecer esta herança para, então, praticá-la e conservá-la? Eis aí o papel da educação na sociedade.
A educação não deixa de ser, para Durkheim, um motor da coerção social, ou seja, um mecanismo de imposição da herança social que cada indivíduo deve assimilar e reproduzir em sociedade. E, portanto, uma instituição fundamental, devido ao seu papel conservador da coesão social, concretizado pela função de transmitir essa herança para as novas gerações. Conheça um dos conceitos de educação para o autor:
Toda educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente [...] Desde os primeiros anos de vida, são as crianças forçadas a comer, beber, dormir em horas regulares; são constrangidos a terem hábitos higiênicos, a serem calmas e obedientes; mais tarde obrigamo-las a aprender a pensar nos demais, a respeitar usos e conveniências, forçamo-las ao trabalho etc. (Durkheim, 1984, p. 5)
O autor, portanto, concebe a educação num duplo movimento: de um lado, como impositora de valores e regras sociais a serem assimiladas pelas novas gerações; por outro, a necessidade intrínseca dessa “imposição” para a perpetuação da sociedade coesa, como um organismo em bom estado de funcionamento.
Para Durkheim, a educação é um mecanismo transmissor da cultura herdada pelas antigas gerações, fazendo com que sua assimilação seja o principal índice de socialização das novas gerações. A educação é, portanto, uma instituição socializadora, sendo esta ação, contrariamente, conservadora da sociedade.
A sociedade tende, segundo o autor, a formar à sua imagem e semelhança cada indivíduo, desde criança: “A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão de que tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e intermediários.” (Durkheim, 1984, p. 5).
Para esse sociólogo, a educação era a saída para a crise social pela qual passava a sociedade, pois ela é um mecanismo de integração social, de manutenção dos valores morais, que formam a “consciência coletiva”*.
Essa relação de imposição do social sobre os indivíduos, para Durkheim, não tem outro sentido que lançá-los para fora de si, ou seja, inserir os indivíduos na vida coletiva, levando cada um a considerar os outros na relação social e, dessa forma, auxiliando na coesão social.”
*: Segundo Durkheim (2004, Da divisão do trabalho social, p. 50), a consciência coletiva pode ser definida como o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade que forma um sistema determinado com vida própria.


“Todo projeto educativo vincula-se a um projeto social e de homem, visando à manutenção da existência humana, como também ao desenvolvimento das formas de existência e também das necessárias transformações sociais que visam maior justiça social.”


“Para Saviani (Pedagogia histórico-crítica, 2000, p. 11):
a natureza humana não é dada ao homem mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.
Podemos inferir, a partir dessa citação, algumas questões importantes para a discussão. Admite-se como certo, por exemplo, que não existe uma “natureza humana” abstrata, inata, a priori, ou seja, não nascemos “humanizados” simplesmente por sermos seres humanos.
Humanizar-se é um processo concreto que ocorre no interior das relações humanas, que são por excelência relações sociais. Humanizar-se em sociedade é a única condição para que isso ocorra.”


“O objetivo da educação é reproduzir, individualmente, a humanidade produzida coletivamente, ou seja, o processo humanizador passa pela necessidade de que cada um de nós nos apropriemos dos elementos constitutivos da humanidade, que, por sua vez, são produtos coletivos e históricos.
Simplificando: Em síntese, humanizar-se é um processo de apropriação individual do produto coletivo dos homens, o que significa dizer que o homem, ser genérico, somente existe pelos resultados e processos da sua própria constituição. O ser humano é o que ele produz e o resultado dessa produção nas condições em que ela ocorre. Humanizar-se, portanto, é apropriar-se das produções humanas, as chamadas objetivações, que podem ser desde o conjunto das obras literárias ou arquitetônicas, até as obras de arte, poesia, teatro, como também os produtos tecnológicos e seus resultados: os alimentos, as máquinas, os recursos médicos, de saneamento etc.
Resta, a partir disso, uma questão: Se a humanização passa pela apropriação dos produtos sociais existentes, é possível afirmar que, em nossa sociedade, todos os indivíduos são igualmente humanizados?
Para que essa resposta fosse positiva, seria preciso admitir que existe um equilíbrio social no acesso aos produtos sociais, o que não é um fato concreto.”


Simplificando: Podemos resumir a cultura como um elemento diferenciador da prática humana em relação aos animais, prática esta que produz o que chamamos de cultura material, mas também que produz as tradições do grupo, as regras sociais e, inclusive, a influência na configuração dos indivíduos pertencentes a determinada sociedade; é também algo identitário, no sentido de que ela define uma certa homogeneidade de grupo, no interior do qual se reconhece; mas também é identitária no sentido justamente do oposto a isso, ou seja, a cultura se caracteriza, se conforma, como diferenciadora, como aquilo que produz contraste entre o “eu” e o “outro”.”


“A característica humana por excelência é a de ser um ser social, fadado, por assim dizer, a viver em sociedade, a depender dos outros e a aprender com os demais, especialmente com os mais velhos. (...)
De forma abrangente, podemos dizer que socializar o indivíduo é adaptá-lo à vida em sociedade, ensinando-o os hábitos, os costumes, a linguagem, os modos de vida, as regras sociais, o que é permitido e o que é proibido, a disciplina corporal e os conteúdos científicos, históricos, culturais etc., pertencentes ao arsenal dessa sociedade. Berger e Berger (1977, Sociologia e sociedade, p. 204) resumem a socialização como o “meio pelo qual o indivíduo aprende a ser membro da sociedade.”
É importante ressaltar que o processo de socialização, apesar de se constituir nitidamente como um processo adaptativo, somente tem sucesso quando ocorre sem que os indivíduos sintam “o peso dela sobre si”. Ou seja, quando ocorre naturalmente, como algo que, para o indivíduo, aparece como natural.
Se todo o processo de socialização fosse mediado pela dor e pela pressão, se cada indivíduo tivesse que encarar com terror cada etapa dele, então este seria degradante para a manutenção da sociedade, a qual é um dos objetivos precípuos da socialização.
Outro autor da sociologia define de forma mais específica esse processo:
é o processo pelo qual ao longo da vida a pessoa humana aprende e interioriza os elementos socioculturais do seu meio, integrando-os na estrutura de sua personalidade sob a influência de experiências de agentes sociais significativos, e adaptando-se assim ao ambiente social em que deve viver. (Rocher, Sociologia geral, 1971, p. 12)


“Podemos definir hegemonia em Gramsci, de forma sucinta, como o domínio e direção intelectual e moral de uma classe sobre outra ou sobre a sociedade como um todo. Os aparelhos de hegemonia contribuem para esse fim, como a mídia, a escola, a justiça, as forças armadas, a religião, os sindicatos, etc. Há, no entanto, nas sociedades, uma luta contra-hegemônica, ou seja, uma luta entre classes que querem tomar o domínio e a direção intelectual e moral, como, por exemplo, as lutas empreendidas pela classe trabalhadora. (Gramsci, Concepção dialética da história, 1978; Mochcovitch, Gramsci e a escola, 1992).
Rummert (Educação e identidade dos trabalhadores, 2000, p. 27, grifo nosso), resume essa concepção gramsciana:
O conceito de aparelho de hegemonia qualifica e precisa a hegemonia como a direção cultural e política que se procura imprimir à totalidade social através de permanente ação educativa... É por meio dessa ação educativa que são produzidas e valorizadas determinadas formas de representação da realidade, crenças e valores, padrões de relações e de comportamentos sociais e individuais que irão imprimir características particulares à cultura de uma dada sociedade.”


“Lévi-Strauss inicia o terceiro capítulo de seu livro Raça e história (1980) apontando a discussão sobre a diversidade das culturas e a reação a ela. Afirma que os homens raramente conviveram com as diversidades como elas são, ou seja, naturais, resultado das relações entre as sociedades. Ao contrário, sempre se referiram à diversidade de forma bruta, como se tratasse de uma monstruosidade, uma aberração.
O etnocentrismo, que estaria impresso nessa atitude, é, para o autor, a mais comum das atitudes, e a mais antiga. Nas suas palavras:
A atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida, sobre fundamentos psicológicos sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos. (Lévi-Strauss, 1980, p. 19-20)
Ao longo da história, formularam-se termos como bárbaros, que os greco-romanos indicavam como aqueles que não pertenciam ao seu império e civilização, ou selvagens, para os indígenas americanos, por exemplo.
Essa atitude, alerta o autor, é típica dos próprios selvagens. Em todos os tempos, os homens, nas mais diversas sociedades, construíram para si adjetivos que os qualificavam como “os homens”, “bons”, “excelentes”, sendo, portanto, uma característica comum que os homens esgotem a sua visão do mundo nas fronteiras das suas tribos.”


“Uma das estratégias características da categoria ideologia, é a abstração da realidade e, consequentemente, o ofuscamento da sua compreensão.”


Apesar de termos alcançado a capacidade de conduzir uma civilização baseada na fraternidade e no respeito, de constituirmo-nos social e historicamente e de criarmos as condições para garantir as condições de vida para todas as pessoas, ainda assim, contraditoriamente, vivemos ameaçados pela miséria e fome em muitos países e também pela violência e pela intolerância, que acaba por se reproduzir no nível micro, na escola, como reflexo do macro, ou seja, da violência e intolerância observadas na sociedade em geral.”


“Falar de inclusão na escola sem discutir a própria autonomia do professor em definir coletiva e autonomamente o seu trabalho é enganar-se ou fazer ideologia da inclusão; ainda, falar sem pensar sobre o lugar da escola na sociedade é não compreender que esta, cada vez mais, está relegada a instrumento das políticas da hora e a mando dos senhores de plantão, especialmente a burguesia industrial e seu projeto de educação para o mercado de trabalho, à moda do capital humano.”


“Quanto à concepção sociológica de Weber, é frequente a comparação com a obra de Durkheim, justamente por se contrapor a esta de maneira incisiva, como em geral foi a sua luta contra os postulados positivistas na sociologia. Em relação ao pensador francês, que partia do pressuposto teórico de que o fato social era uma “coisa”, objetiva, exterior aos indivíduos e que lhes coagia a se modelar às normas e valores da sociedade, para Weber o ponto de partida está justamente no indivíduo, que passa a ser compreendido como o motor das relações sociais.
O objetivo da sociologia weberiana relaciona-se com o seu principal conceito, que é a ação social. Para o autor, a sociologia é o estudo da ação social, levando em conta a necessidade de compreendê-la e interpretá-la em suas complexas causalidades e efeitos. (...)

Simplificando: Portanto, para Weber, o que distingue a ação social das demais ações humanas é que esta é uma ação com sentido e orientada pelas ações de outras pessoas. Ainda, somente é ação social se esta for compartilhada, em sentido, por ambas as partes dessa ação, sendo tal sentido não objetivamente constituído, como acreditava Durkheim. Ao contrário, é um dado subjetivo, ou seja, é acionado por cada participante da ação, ou ainda, conforme afirma Souza (Introdução à sociologia da educação, 2007, p. 45), é “expressão da própria vontade” do agente.

O funcionamento da sociedade é motivado pelas ações dos indivíduos entre si, nas várias facetas que a vida social promove e exige. É na caracterização das motivações das ações sociais que reside o trabalho do sociólogo. (...)
Se é assim que Weber considera o conteúdo das ações sociais, a sociedade, para ele, só pode ser uma totalidade composta de uma infinidade de significados diferentes, ou, como diz Souza (2007, p. 46, grifo do original), “uma tessitura infinita de coisas dotadas de sentido, uma teia de significados culturalmente construída pelos indivíduos em ação.”


“Portanto, vemos em Weber uma descrença na escola com relação aos ideais depositados nela como transformadora da sociedade. Ao contrário, a escola aparece como locus de reprodução cultural e de domínio social, como uma instituição na qual uma determinada cultura, de um determinado grupo, impõe-se a grande parte dos membros das novas gerações.
Souza (2007) esclarece ainda que o papel da escola é a “administração dos bens culturais”, entendidos estes como os “códigos simbólicos disponíveis em determinado meio cultural”. Para o autor, “o sistema escolar contém um conjunto de funções, dentro do qual se destacam as funções de imposição da legitimidade de uma cultura, de inculcação sistemática dela, de legitimação da ordem social e, finalmente, de reprodução do sistema de dominação.”


“A primeira de todas as premissas materialistas, desenvolvidas por Marx e Engels em A ideologia alemã (Marx; Engels, 1984), obra de 1845-1846, é que, para existir a história, é necessário que haja seres humanos vivos e em condições de realizar essa história. As condições da vida humana dependem, em primeira instância, da manutenção do corpo vivo, o que pressupõe a relação dos homens com a natureza para a constituição das condições dessa existência. Parte-se, como afirmam os autores, do corpo físico, das condições físicas naturais etc. Advém, então, um dos grandes saltos no que se refere ao materialismo:
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião — por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua organização física. Ao produzirem os seus meios vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material. (Marx; Engels, 1984, grifo do original)
Os homens, na concepção materialista, não se distinguem dos animais por serem “racionais”, tese esta muito ensinada nas escolas ainda hoje. Os homens, na verdade, constituem-se como tais a partir do momento em que a sua existência passa a depender da sua própria ação para que se reproduza. Essa ação, bem entendido, ocorre por meio do trabalho, que é, portanto, em última instância, a ontologia do homem como ser social.
Mas um passo ainda é preciso ser dado aqui. A produção da vida física do homem em conjunto com outros homens não é suficiente para explicar a atividade humana.
Ao produzir sua existência, é a própria sociedade que o homem está construindo à sua imagem e semelhança, e nesse raciocínio surge mais uma questão de fundamental importância para o materialismo: “Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção.” (Marx, Engels, 1984, p. 27-28, grifo do original)

Portanto, a concepção de homem depende da forma como ele se organiza em sociedade para produzir a sua existência. Logo, a identidade humana é constituída nas relações de produção da vida material em sociedade, e essa identidade não pode ser resumida a uma só instância do homem, à sua reprodução material, mas, sim, a toda a vida humana.
Na concepção materialista de Marx e Engels, os homens são considerados não como eles se vem, mas como são realmente em suas relações sociais. E a forma como são pode ser conhecida pelo modo como se relacionam com a produção material da vida humana, “como são ativos sob determinados limites, pressupostos e condições materiais que independem do seu arbítrio” (Marx; Engels, 1983, p. 192). E, mais precisamente:
Os homens são os produtores das suas representações, ideias etc., mas os homens efetivos, atuantes, tal como são condicionados por um desenvolvimento determinado das suas forças produtivas e do intercâmbio correspondente às mesmas, até as suas formações mais amplas. A consciência nunca pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo efetivo de vida. (Marx; Engels, 1983, p. 192-193)
O trecho anterior ilustra com clareza a concepção materialista de Marx e Engels em relação à formação humana na sociedade. E mais, o materialismo marxiano concebe que os homens são aquilo que produzem e, portanto, queiram ou não, os homens reais são determinados por essa produção. Entende-se desse ponto a negação da representação individual. “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida determina a consciência” (Marx; Engels, 1983, p. 193). Eis a regra de ouro dessa concepção.”


“As relações produzidas no capitalismo são também permeadas por uma contradição fundamental, assim como foram as relações feudais de produção. Essa contradição diz respeito ao fato de que, ao ascender ao poder, a burguesia não veio sozinha, mas foi obrigada a trazer consigo uma outra classe social que lhe deu sustentação moral e material, o proletariado.
Essa contradição, afirmam Marx e Engels, pode levar à derrocada da burguesia e, junto com ela, do capitalismo. Isso porque, ao mesmo tempo em que o capitalismo cria condições para que os homens possam adquirir todas as condições materiais dignas de vida, presencia também o aumento desenfreado da miséria da população mundial. Ou seja, o trabalho realizado socialmente gera riquezas de proporções monstruosas e suficientes para todos, mas esta não é socializada na mesma proporção, o que pode vir a ser um fator de contradição e derrota desse sistema. É o que Tonet (Ética e capitalismo, 2009) denomina de decadência ideológica.
Este é exatamente o fundamento da decadência desta forma de sociabilidade. Uma ordem social que, tendo alcançado a possibilidade de criar riquezas capazes de satisfazer as necessidade de todos, vê-se impossibilitada de atender essa exigência. E que, para manter-se em funcionamento, precisa impedir, de maneira cada vez mais aberta e brutal, o acesso da maior parte da humanidade à riqueza social. Em vez de impulsionar a humanidade toda no sentido de uma elevação, cada vez mais ampla e profunda, do seu padrão de ser (ontológica e não apenas material e empiricamente entendido), o que se vê é uma intensa e crescente degradação da vida humana.


A ética na sociedade capitalista é impossível de ser concretizada em sua concepção como busca do bem comum, haja vista que ela é, essencialmente, uma sociedade de classes permeada pela contradição entre os interesses particulares, que, por sua vez, afetam toda a totalidade social, inclusive atingindo a subjetividade dos indivíduos e naturalizando relações sociais e históricas, como a da propriedade privada.”


“Em Gramsci, a relação entre trabalho e educação carrega a positividade de ser uma possibilidade revolucionária, pela superação da subalternidade da classe trabalhadora, vítima da hegemonia burguesa, que impõe a essa classe o senso comum como forma dominante de conhecimento. É justamente no quadro da hegemonia que o pensador italiano formula sua maior contribuição ao marxismo e aos estudos em educação nessa linha. Para fins de esclarecer sinteticamente o conceito de hegemonia, recorremos a Mochcovitch (1992, p. 20-21):
Hegemonia é o conjunto das funções de domínio e direção exercidos por uma classe social dominante, no decurso de um período histórico, sobre outra classe social e até sobre o conjunto das classes da sociedade. A hegemonia é composta de duas funções: função de domínio e função de direção intelectual moral, ou função própria da hegemonia.
A hegemonia burguesa, portanto, não reside apenas no poder econômico, que é central, mas na consolidação de uma visão de mundo difundida na sociedade, uma ética, uma moral que a legitimam no poder. Por outro lado, a hegemonia é também resultado das relações econômicas de poder da sociedade.”

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