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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Mal-Estar da Pós-Modernidade (Parte I) – Zygmunt Bauman

Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-464-8
Tradução: Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272


“Só a sociedade moderna pensou em si mesma como uma atividade da “cultura” ou da “civilização” e agiu sobre esse autoconhecimento com os resultados que Freud passou a estudar; a expressão “civilização moderna” é, por essa razão, um pleonasmo.
Você ganha alguma coisa mas, habitualmente, perde em troca alguma coisa: partiu daí a mensagem de Freud. Assim como “cultura” ou “civilização”, modernidade é mais ou menos beleza (“essa coisa inútil que esperamos ser valorizada pela civilização”), limpeza (“a sujeira de qualquer espécie nos parece incompatível com a civilização”) e ordem (“Ordem é uma espécie de compulsão à repetição que, quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão”). A beleza (isto é, tudo o que dá o sublime prazer da harmonia e perfeição da forma), a pureza e a ordem são ganhos que não devem ser desprezados e que, certamente, se abandonados, irão provocar indignação, resistência e lamentação. Mas tampouco devem ser obtidos sem o pagamento de um alto preço. Nada predispõe “naturalmente” os seres humanos a procurar ou preservar a beleza, conservar-se limpo e observar a rotina chamada ordem. (Se eles parecem, aqui e ali, apresentar tal “instinto”, deve ser uma inclinação criada e adquirida, ensinada, o sinal mais certo de uma civilização em atividade.) Os seres humanos precisam ser obrigados a respeitar e apreciar a harmonia, a limpeza e a ordem. Sua liberdade de agir sobre seus próprios impulsos deve ser preparada. A coerção é dolorosa: a defesa contra o sofrimento gera seus próprios sofrimentos.
“A civilização se constrói sobre uma renúncia ao instinto.” Especialmente — assim Freud nos diz — a civilização (leia-se: a modernidade) “impõe grandes sacrifícios” à sexualidade e agressividade do homem. “O anseio de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências particulares da civilização ou contra a civilização como um todo.” E não pode ser de outra maneira. Os prazeres da vida civilizada, e Freud insiste nisso, vêm num pacote fechado com os sofrimentos, a satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião. A civilização — a ordem imposta a uma humanidade naturalmente desordenada — é um compromisso, uma troca continuamente reclamada e para sempre instigada a se renegociar. O princípio de prazer está aí reduzido à medida do princípio de realidade e as normas compreendem essa realidade que é a medida do realista. “O homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança.” Por mais justificadas e realistas que possam ser as nossas tentativas de superar defeitos específicos das soluções de hoje, “talvez possamos também familiarizar-nos com a ideia de que há dificuldades inerentes à natureza da civilização que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma”.”


“Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais.”


“Qualquer valor só é um valor (como Georg Simmel, há muito, observou) graças à perda de outros valores, que se tem de sofrer a fim de obtê-lo. Entretanto, você precisa mais do que mais falta. Os esplendores da liberdade estão em seu ponto mais brilhante quando a liberdade é sacrificada no altar da segurança. Quando é a vez de a segurança ser sacrificada no templo da liberdade individual, ela furta muito do brilho da antiga vítima. Se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos, a felicidade soçobra. Ouçamos Freud, novamente: “Estamos supondo, assim, que só podemos extrair intenso deleite de um contraste, e muito pouco de um estado de coisas.” Por quê? Porque “o que chamamos felicidade (...) vem da (preferivelmente repentina) satisfação de necessidades represadas até um alto grau e, por sua natureza, só é possível como fenômeno episódico”. Sem dúvida: liberdade sem segurança não assegura mais firmemente uma provisão de felicidade do que segurança sem liberdade. Uma disposição diferente das questões humanas não é necessariamente um passo adiante no caminho da maior felicidade: só parece ser tal no momento em que se está fazendo. A reavaliação de todos os valores é um momento feliz, estimulante, mas os valores reavaliados não garantem necessariamente um estado de satisfação.
Não há nenhum ganho sem perda, e a esperança de uma purificação admirável dos ganhos a partir das perdas é tão fútil quanto o sonho proverbial de um almoço de graça — mas os ganhos e perdas próprios a qualquer disposição da coabitação humana precisam ser cuidadosamente levados em conta, de modo que o ótimo equilíbrio entre os dois possa ser procurado, mesmo se (ou, antes, porque) a sobriedade e sabedoria duramente conquistadas nos impedem, aos homens e mulheres pós-modernos, de nos entregar a uma fantasia sobre um balanço financeiro que tenha apenas a coluna de créditos.”


“O criador da sociologia fenomenológica, Alfred Schütz, fez-nos conscientes das características da vida humana que parecem óbvias no momento em que são ressaltadas: de que, se nós, humanos, podemos “achar nossas posições dentro do nosso ambiente natural e sociocultural e chegamos a um acordo sobre isso”, é graças ao fato de que esse ambiente foi “pré-selecionado e pré-interpretado (...) por uma série de constructos de senso comum da realidade da vida diária”. Cada um de nós, em nossas atividades diárias, e sem muito pensar a esse respeito, utiliza um número tremendo de produtos dessa pré-seleção e pré-interpretação, que se unem para o que Schütz chama de “fundo de conhecimentos à mão”. Sem tal conhecimento, viver no mundo seria inconcebível. Nenhum de nós pode construir o mundo das significações e sentidos a partir do nada: cada um ingressa num mundo “pré-fabricado”, em que certas coisas são importantes e outras não o são; em que as conveniências estabelecidas trazem certas coisas para a luz e deixam outras na sombra. Acima de tudo, ingressamos num mundo em que uma terrível quantidade de aspectos são óbvios a ponto de já não serem conscientemente notados e não precisarem de nenhum esforço ativo, nem mesmo o de decifrá-los, para estarem invisivelmente, mas tangivelmente, presentes em tudo o que fazemos — dotando desse modo os nossos atos, e as coisas sobre as quais agimos, de uma solidez de “realidade”.


“De fato, pode-se definir a modernidade como a época, ou o estilo de vida, em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem “tradicional”, herdada e recebida; em que “ser” significa um novo começo permanente.”


“No mundo moderno, notoriamente instável e constante apenas em sua hostilidade a qualquer coisa constante, a tentação de interromper o movimento, de conduzir a perpétua mudança a uma pausa, de instalar uma ordem segura contra todos os desafios futuros, torna-se esmagadora e irresistível. Quase todas as fantasias modernas de um “mundo bom” foram em tudo profundamente antimodernas, visto que visualizaram o fim da história compreendida como um processo de mudança. Walter Benjamin disse, da modernidade, que ela nasceu sob o signo do suicídio; Sigmund Freud sugeriu que ela foi dirigida por Tanatos — o instinto da morte. As utopias modernas diferiam em muitas de suas pormenorizadas prescrições, mas todas elas concordavam em que o “mundo perfeito” seria um que permanecesse para sempre idêntico a si mesmo, um mundo em que a sabedoria hoje aprendida permaneceria sábia amanhã e depois de amanhã, e em que as habilidades adquiridas pela vida conservariam sua utilidade para sempre. O mundo retratado nas utopias era também, pelo que se esperava, um mundo transparente — em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada “fora do lugar”; um mundo sem “sujeira”; um mundo sem estranhos.
Não é surpreendente que em toda a idade moderna haja uma estrita correlação entre a proporção, a radicalidade da “ordem nova e final” imaginada, sonhada e experimentada na prática, e a paixão com que “o problema dos estranhos” foi abordado, assim como a severidade do tratamento dispensado aos estranhos. O que era “totalitário” nos programas políticos totalitários, eles próprios fenômenos totalmente modernos, era, mais do que algo além da abrangência da ordem que eles prometiam, a determinação de não deixar nada ao acaso, a simplicidade das prescrições de limpeza, e a meticulosidade com que eles atacaram a tarefa de remover qualquer coisa que colidisse com o postulado da pureza. As ideologias totalitárias foram notáveis pela propensão a condensar o difuso, localizar o indefinível, transformar o incontrolável num alvo a seu alcance e, por assim dizer, à distância de uma bala.”


“No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a “sujeira” da pureza pós-moderna.
Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados fora como um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida, são consumidores falhos — pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos requeridos, pessoas incapazes de ser “indivíduos livres” conforme o senso de “liberdade” definido em função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos “impuros”, que não se ajustam ao novo esquema de pureza. Encarados a partir da nova perspectiva do mercado consumidor, eles são redundantes — verdadeiramente “objetos fora do lugar”.
O serviço de separar e eliminar esse refugo do consumismo é, como tudo o mais no mundo pós-moderno, desregulamentado e privatizado. Os centros comerciais e os supermercados, templos do novo credo consumista, e os estádios, em que se disputa o jogo do consumismo, impedem a entrada dos consumidores falhos a suas próprias custas, cercando-se de câmeras de vigilância, alarmes eletrônicos e guardas fortemente armados; assim fazem as comunidades onde os consumidores afortunados e felizes vivem e desfrutam de suas novas liberdades; assim fazem os consumidores individuais, encarando suas casas e seus carros como muralhas de fortalezas permanentemente sitiadas.
Essas preocupações desregulamentadas, privatizadas e difusas com a preservação da pureza da vida consumista também aparecem juntamente em duas exigências políticas contraditórias, mas mutuamente corroboradoras, dirigidas para o estado. Uma é a exigência, por parte dos livres consumidores, de aumentar mais as liberdades do consumidor: privatizar-se o uso dos recursos, reduzindo toda intervenção coletiva nos negócios privados, desmantelando as coações politicamente impostas, cortando tributos e despesas públicas. Outra exigência é a de negociar mais energicamente com as consequências da primeira exigência: ao vir à tona, no discurso público, com o nome de “lei e ordem”, essa segunda exigência é sobre a prevenção do protesto igualmente desregulamentado e privatizado das vítimas da desregulamentação e privatização. Aqueles que a expansão da liberdade do consumidor privou das habilidades e poderes do consumidor precisam ser detidos e mantidos em xeque. Como são um sorvedouro dos fundos públicos e por isso, indiretamente, do “dinheiro dos contribuintes”, eles precisam ser detidos e mantidos em xeque ao menor custo possível. Se a remoção do refugo se mostra menos dispendiosa do que a reciclagem do refugo, deve ser-lhe dada a prioridade. Se é mais barato excluir e encarcerar os consumidores falhos para evitar-lhes o mal, isso é preferível ao restabelecimento de seu status de consumidores através de uma previdente política de emprego conjugada com provisões ramificadas de previdência. E mesmo os meios de exclusão e encarceramento precisam ser “racionalizados”, de preferência submetidos à severa disciplina da competição de mercado: que vença a oferta mais barata...”


“A preocupação dos nossos dias com a pureza do deleite pós-moderno expressa-se na tendência cada vez mais acentuada a incriminar seus problemas socialmente produzidos.
Que a ordem inteira tende a incriminar a resistência a ela própria e a pôr fora da lei seus supostos ou genuínos inimigos é evidente até o plano da trivialidade. O que é menos óbvio, conquanto pareça emergir do nosso breve exame das formas que a busca da pureza vem ganhando nos tempos modernos e pós-modernos, é que os objetos da excitação particularmente intensa e zelosa de pôr fora da lei são as consequências radicais dos próprios princípios constitutivos da ordem. A modernidade viveu num estado de permanente guerra à tradição, legitimada pelo anseio de coletivizar o destino humano num plano mais alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca irreverência contra os seus próprios princípios. Uma das mais inquietantes “impurezas” na versão moderna da pureza eram os revolucionários, que o espírito moderno tinha tudo para gerar: os revolucionários eram, afinal, nada mais do que entusiastas da modernidade, os mais fiéis entre os crentes da moderna revelação, ansiosos por extrair da mensagem as lições mais radicais e estender o esforço de colocar em ordem além da fronteira do que o mecanismo de colocar em ordem podia sustentar. A pós-modernidade, por outro lado, vive num estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar. Tende, pois, a fortalecer-se contra aqueles que — seguindo suas intrínsecas tendências ao descompromisso, à indiferença e livre competição — ameaçam exibir o potencial suicida da estratégia, ao estender sua implementação ao último grau da lógica. A mais odiosa impureza da versão pós-moderna da pureza não são os revolucionários, mas aqueles que ou desrespeitam a lei, ou fazem a lei com suas próprias mãos — assaltantes, gatunos, ladrões de carro e furtadores de loja, assim como seus alter egos — os grupos de punição sumária e os terroristas. Novamente, eles não são mais do que entusiastas da pós-modernidade, aprendizes vorazes e devotos crentes da revelação pós-moderna, ávidos por levar as receitas de vida sugeridas por aquela lição até sua conclusão radical.”


“Os efeitos psicológicos, porém, vão muito além das crescentes fileiras dos despojados e dos redundantes. Apenas os poucos poderosos para chantagear os outros poderosos na obrigação de um dourado aperto de mão podem estar certos de que sua casa, não obstante possa agora parecer imponente e próspera, não é assombrada pelo espectro da ruína de amanhã. Nenhum emprego é garantido, nenhuma posição é inteiramente segura, nenhuma perícia é de utilidade duradoura, a experiência e a prática se convertem em responsabilidade logo que se tornam haveres, carreiras sedutoras muito frequentemente se revelam vias suicidas. Em sua versão presente, os direitos humanos não trazem consigo a aquisição do direito a um emprego, por mais que bem desempenhado, ou — de um modo mais geral — o direito ao cuidado e à consideração por causa de méritos passados. Meio de vida, posição social, reconhecimento da utilidade e merecimento da autoestima podem todos desvanecer-se simultaneamente da noite para o dia e sem se perceber.”


“Na verdade, a mensagem hoje carregada de grande poder de persuasão pelos mais ubiquamente eficazes meios de comunicação cultural (e, vamos acrescentar, facilmente lida até o fim pelos receptores contra o pano de fundo de sua própria experiência, auxiliados e favorecidos pela lógica da liberdade do consumidor) é uma mensagem da indeterminação e maleabilidade do mundo: neste mundo, tudo pode acontecer e tudo pode ser feito, mas nada pode ser feito uma vez por todas — e o que quer que aconteça chega sem se anunciar e vai-se embora sem aviso. Neste mundo, os laços são dissimulados em encontros sucessivos, as identidades em máscaras sucessivamente usadas, a história da vida numa série de episódios cuja única consequência duradoura é a sua igualmente efêmera memória. Nada pode ser conhecido com segurança e qualquer coisa que seja conhecida pode ser conhecida de um modo diferente — um modo de conhecer é tão bom, ou tão ruim (e certamente tão volátil e precário) quanto qualquer outro. Apostar, agora, é a regra onde a certeza, outrora, era procurada, ao mesmo tempo que arriscar-se toma o lugar da teimosa busca de objetivos. Desse modo, há pouca coisa, no mundo, que se possa considerar sólida e digna de confiança, nada que lembre uma vigorosa tela em que se pudesse tecer o itinerário da vida de uma pessoa.
Como tudo o mais, a imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve evocar, transportar e exprimir seu próprio significado, mais frequentemente do que abstrair os instantâneos do outro. Em vez de construir sua identidade, gradual e pacientemente, como se constrói uma casa — mediante a adição de tetos, soalhos, aposentos, ou de corredores —, uma série de “novos começos”, que se experimentam com formas instantaneamente agrupadas mas facilmente demolidas, pintadas umas sobre as outras: uma identidade de palimpsesto. Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do que aprender, é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e pessoas entram e saem sem muita ou qualquer finalidade do campo de visão da inalterada câmara da atenção, e em que a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens, e alardeando uma garantia para toda a vida exclusivamente graças a essa admirável perícia de uma incessante auto-obliteração.”


“Em nossos tempos pós-modernos, as fronteiras que tendem a ser ao mesmo tempo mais fortemente desejadas e mais agudamente despercebidas são as de uma justa e segura posição na sociedade, de um espaço inquestionavelmente da pessoa, onde possa planejar sua vida com o mínimo de interferência, desempenhar seu papel num jogo em que as regras não mudem da noite para o dia e sem aviso, agir razoavelmente e esperar pelo melhor. Como vimos, é característica muito difundida dos homens e mulheres contemporâneos, no nosso tipo de sociedade, eles viverem permanentemente com o “problema da identidade” não-resolvido. Eles sofrem, pode-se dizer, de uma crônica falta de recursos com os quais pudessem construir uma identidade verdadeiramente sólida e duradoura, ancorá-la e suspender-lhe a deriva.”


“O tumulto e o clamor chegam, não haja nenhum engano, de outras áreas da cidade, que os consumidores em busca de prazer jamais visitam, deixam viver em paz. Essas áreas são habitadas por pessoas incapazes de escolher com quem elas se encontram e por quanto tempo, ou de pagar para ter suas escolhas respeitadas; pessoas sem poder, experimentando o mundo como uma armadilha, não como um parque de diversões; encarceradas num território de que não há nenhuma saída para elas, mas em que outras podem entrar ou sair à vontade. Uma vez que as únicas senhas para defender a liberdade de escolha, moeda corrente na sociedade do consumidor, estão escassas em seu estoque ou lhes são inteiramente negadas, elas precisam recorrer aos únicos recursos que possuem em quantidade suficientemente grande para impressionar. Elas defendem o território sitiado através (para usar a expressiva descrição de Dick Hebdidge) de “rituais, vestindo-se estranhamente, inventando atitudes bizarras, quebrando normas, quebrando garrafas, janelas, cabeças, e lançando retóricos desafios à lei”.
As ideias, e as palavras que as transportam, mudam de significado quanto mais longe elas viajem — e viajar entre as casas dos consumidores satisfeitos e as moradas dos sem poder é uma travessia de longa distância. Se os contentes e seguros se tornam líricos a propósito da beleza da nacionalidade, da Nova Jerusalém, da glória de uma herança e da dignidade da tradição, os inseguros e perseguidos lamentam a corrupção e a humilhação da raça. Se os primeiros se deleitam com uma porção de convivas e se orgulham de suas mentes abertas e suas portas abertas, os últimos rangem os dentes ao pensar na pureza perdida.”


As melhorias econômicas já não anunciam o fim do desemprego. Atualmente, “racionalizar” significa cortar e não criar empregos, e o progresso tecnológico e administrativo é avaliado pelo “emagrecimento” da força de trabalho, fechamento de divisões e redução de funcionários. Modernizar a maneira como a empresa é dirigida consiste em tornar o trabalho “flexível” — desfazer-se da mão-de-obra e abandonar linhas e locais de produção de uma hora para outra, sempre que uma relva mais verde se divise em outra parte, sempre que possibilidades comerciais mais lucrativas, ou mão-de-obra mais submissa e menos dispendiosa, acenem ao longe. Outrora restrito a aço e concreto, a pesados prédios de fábricas e maquinaria difícil de manejar, o próprio capital já se tornou a encarnação da flexibilidade. Dominou os truques de se puxar a si mesmo, como um coelho, da cartola ou desaparecer sem vestígio — com a autoestrada da informação desempenhando o papel da varinha mágica. No entanto, como o que cura uns mata outros, as mudanças que significam racionalização e flexibilidade para o capital repercutem nas extremidades receptoras como catástrofes — como sendo inexplicáveis, como estando além da capacidade humana e como emperramento de oportunidades no sólido muro do destino. Empregos vitalícios já não existem. Na verdade, empregos como tais, da maneira como outrora os compreendíamos, já não existem. Sem estes, há pouco espaço para a vida vivida como um projeto, para planejamento de longo prazo e esperanças de longo alcance. Seja grato pelo pão que come hoje e não cogite demasiado do futuro... O símbolo da sabedoria já não é a conta de poupança. Atualmente, pelo menos para os que podem se dar ao luxo de ser sábios, passou a ser os cartões de crédito e uma carteira cheia deles.
Poucos de nós se lembram hoje de que o estado de bem-estar foi, originalmente, concebido como um instrumento manejado pelo estado a fim de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos a se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão no meio do processo... Os dispositivos da previdência eram então considerados uma rede de segurança, estendida pela comunidade como um todo, sob cada um dos seus membros — a todos fornecendo a coragem para enfrentar o desafio da vida, de modo que cada vez menos membros precisassem algum dia de utilizá-la e os que o fizessem a utilizassem com frequência cada vez menor. A comunidade assumia a responsabilidade de garantir que os desempregados tivessem saúde e habilidades suficientes para se reempregar e de resguardá-los dos temporários soluços e caprichos das vicissitudes da sorte. O estado de bem-estar não era concebido como uma caridade, mas como um direito do cidadão, e não como o fornecimento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro coletivo. (Quem considera o pagamento de uma companhia de seguros de vida, ou de imóveis, caridade ou um donativo?) Como afirmei, atualmente poucos de nós se lembram disso...
Isso era verdade — ou poderia ser — na época em que a indústria proporcionava trabalho, subsistência e segurança à maioria da população. O estado de bem-estar tinha de arcar com os custos marginais da corrida do capital pelo lucro, e tornar a mão-de-obra deixada para trás novamente empregável — um esforço que o próprio capital não empreenderia ou não poderia empreender. Hoje, com um crescente setor da população que provavelmente nunca reingressará na produção e que, portanto, não apresenta interesse presente ou futuro para os que dirigem a economia, a “margem” já não é marginal e o colapso das vantagens do capital ainda o faz parecer menos marginal — maior, mais inconveniente e embaraçoso — do que o é. A nova perspectiva se expressa na frase da moda: “Estado de bem-estar? Já não podemos custeá-lo”...
Como consequência, os dispositivos de previdência, antes um exercício dos direitos do cidadão, transformaram-se no estigma dos incapazes e imprevidentes. “Concentrados nos que necessitam deles”, sujeitos a verificações dos meios de subsistência cada vez mais estritas e cada vez mais humilhantes, difamados como sendo um sorvedouro do “dinheiro dos contribuintes”, associados no entendimento público a parasitismo, negligência censurável, promiscuidade sexual ou abuso de drogas — eles tornam-se cada vez mais a versão contemporânea da recompensa do pecado, e recompensa do pecado que nós não só já não podemos custear, como para a qual não existe razão moral por que deveríamos tentar fazê-lo. Os pecados pelos quais o estado de bem-estar original se destinava a pagar eram os da economia capitalista e da competição de mercado, do capital que não podia manter-se solvente sem enormes custos sociais em existências despedaçadas e vidas arruinadas — os custos que, no entanto, ele se recusava a pagar, ou não podia pagar sob a ameaça da insolvência. Era esse o prejuízo pelo qual o estado de bem-estar se comprometia a indenizar as vítimas presentes e a resguardar as vítimas possíveis. Se, atualmente, ouvimos dizer que nós, os “contribuintes”, “já não podemos custeá-lo”, isso significa apenas que o estado, a comunidade, já não considera conveniente ou desejável subscrever os custos sociais e humanos da solvência econômica (que, sob condições de mercado, é equivalente à lucratividade). Em vez disso, transfere o pagamento às próprias vítimas, presentes e futuras. Recusa a responsabilidade por sua má sorte — exatamente como abandonou a antiga tarefa da “reacomodação” da mão-de-obra. Não há mais seguro coletivo contra os riscos: a tarefa de lidar com os riscos coletivamente produzidos foi privatizada.


Quando o politicólogo americano Peter Drucker proclamou: “Não existe mais salvação pela sociedade”, essa foi uma declaração programática e ideológica, mas foi também, ainda que não conscientemente, a decorrência de um exame da situação, uma afirmação de neorrealismo. “Não existe mais salvação pela sociedade” significa que não existem órgãos conjuntos, coletivos e visíveis encarregados da ordem societária global. A responsabilidade pela situação humana foi privatizada e os instrumentos e métodos de responsabilidade foram desregulamentados. Uma rede de categorias abrangente e universal desintegrou-se. O auto-engrandecimento está tomando o lugar do aperfeiçoamento socialmente patrocinado e a autoafirmação ocupa o lugar da responsabilidade coletiva pela exclusão de classe. Agora, são a sagacidade e a força muscular individual que devem ser estirados no esforço diário pela sobrevivência e aperfeiçoamento.
Quando controlava a conduta disciplinada de seus membros por meio de seus papéis produtivos, a sociedade incitava forças combinadas e a busca de avanço mediante esforços coletivos. A sociedade que obtém padrões de comportamento para uma ordem mais estável daqueles seus integrantes que se viram expulsos, ou estão prestes a ser expulsos, de suas posições de produtores e definidos em vez disso, primordialmente, como consumidores, desencoraja a fundamentação da esperança em ações coletivas. Pensamentos que emergem dentro do horizonte cognitivo moldado pelas práticas diárias dos consumidores invariavelmente acentuam o agudo interesse pelo mercado consumidor e lhe ampliam os poderes de sedução. Ao contrário do processo produtivo, o consumo é uma atividade inteiramente individual. Ele também coloca os indivíduos em campos opostos, em que frequentemente se atacam.
Os “demônios interiores” desse tipo de sociedade nascem dos poderes de sedução do mercado consumidor. A sociedade de consumidores não pode dispensar essa sedução mais do que a sociedade de produtores a podia dispensar, graças à vigência da regulamentação normativa. Por essa mesma razão, não pode permitir-se declarar guerra, menos ainda combater, à tendência do mercado de elevar os sonhos e desejos dos consumidores a um estado de frenesi e alçá-los às nuvens — por mais prejudicial que essa tendência possa revelar-se à forma de ordem em que se radica.”


O que se tem registrado, em anos recentes, como criminalidade cada vez maior (um processo, observemos, paralelo ao decréscimo da associação ao partido comunista ou a outros partidos radicais da “ordem alternativa”) não é um produto de mau funcionamento ou negligência — muito menos de fatores externos à própria sociedade (embora assim seja descrito cada vez mais frequentemente —, quando, de forma típica, a correlação entre criminalidade e imigração, afluxo de pessoas estranhas, de raças ou culturas estrangeiras, se especula ou se declara). É, em vez disso, o próprio produto da sociedade de consumidores, logicamente (se não legalmente) legítimo; e, além disso — também um produto inevitável. Quanto mais elevada a “procura do consumidor” (isto é, quanto mais eficaz a sedução do mercado), mais a sociedade de consumidores é segura e próspera. Todavia, simultaneamente, mais amplo e mais profundo é o hiato entre os que desejam e os que podem satisfazer os seus desejos, ou entre os que foram seduzidos e passam a agir do modo como essa condição os leva a agir e os que foram seduzidos mas se mostram impossibilitados de agir do modo como se espera agirem os seduzidos. A sedução do mercado é, simultaneamente, a grande igualadora e a grande divisora. Os impulsos sedutores, para serem eficazes, devem ser transmitidos em todas as direções e dirigidos indiscriminadamente a todos aqueles que os ouvirão. No entanto, existem mais daqueles que podem ouvi-los do que daqueles que podem reagir do modo como a mensagem sedutora tinha em mira fazer aparecer. Os que não podem agir em conformidade com os desejos induzidos dessa forma são diariamente regalados com o deslumbrante espetáculo dos que podem fazê-lo. O consumo abundante, é-lhes dito e mostrado, é a marca do sucesso e a estrada que conduz diretamente ao aplauso público e à fama. Eles também aprendem que possuir e consumir determinados objetos, e adotar certos estilos de vida, é a condição necessária para a felicidade, talvez até para a dignidade humana.
Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da decência humana, então foi retirada a tampa dos desejos humanos: nenhuma quantidade de aquisições e sensações emocionantes tem qualquer probabilidade de trazer satisfação da maneira como o “manter-se ao nível dos padrões” outrora prometeu: não há padrões a cujo nível se manter — a linha de chegada avança junto com o corredor, e as metas permanecem continuamente distantes, enquanto se tenta alcançá-las.”

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