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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Mal-Estar da Pós-Modernidade (Parte II) – Zygmunt Bauman

Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-464-8
Tradução: Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272

“A crescente magnitude do comportamento classificado como criminoso não é um obstáculo no caminho para a sociedade consumista plenamente desenvolvida e universal. Ao contrário, é seu natural acompanhamento e pré-requisito. É assim, reconhecidamente, devido a várias razões, mas eu proponho que a principal razão, dentre elas, é o fato de que os “excluídos do jogo” (os consumidores falhos — os consumidores insatisfatórios, aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos, e aqueles que recusaram a oportunidade de vencer enquanto participavam do jogo de acordo com as regras oficiais) são exatamente a encarnação dos “demônios interiores” peculiares à vida do consumidor. Seu isolamento em guetos e sua incriminação, a severidade dos padecimentos que lhes são aplicados, a crueldade do destino que lhes é imposto, são — metaforicamente falando — todas as maneiras de exorcizar tais demônios interiores e queimá-los em efígie. As margens incriminadas servem de esgotos para onde os eflúvios inevitáveis, mas excessivos e venenosos, da sedução consumista são canalizados, de modo que as pessoas que conseguem permanecer no jogo do consumismo não se preocupem com o estado da própria saúde. Se, contudo, esse for, como sugiro ser, o estímulo primordial da atual exuberância do que o grande criminologista norueguês Nils Christie denominou “a indústria da prisão”, então a esperança de que o processo possa ter a marcha abrandada, para nem se falar em ser suspensa ou invertida, numa sociedade inteiramente desregulamentada e privatizada, animada e dirigida pelo mercado consumidor, é vaga — para se dizer o mínimo.”


“Todo ano, um milhão e meio de americanos povoam as prisões americanas. Cerca de quatro e meio milhões de americanos adultos estão sob alguma forma de controle judicial. Como o exprime Richard Freeman, economista de Harvard: “Se aos desempregados, na Europa, se paga compensação, nos Estados Unidos nós os colocamos nas prisões.” Cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o produto de predisposições ou intenções criminosas — abuso de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem ódio e condenação — como a própria encarnação do pecado. (...) Como o expressou o New York Herald Tribune, em 25 de dezembro de 1994, os americanos — conservadores, moderados, republicanos — consideram direito seu culpar os pobres pelo seu destino e, simultaneamente, condenar milhões de seus filhos à pobreza, fome e desespero. (...)
Creio que o sinal que envia é suficientemente claro: há provas esmagadoras da íntima vinculação da tendência universal para uma radical liberdade do mercado ao progressivo desmantelamento do estado de bem-estar, assim como entre a desintegração do estado de bem-estar e a tendência a incriminar a pobreza. Espero sinceramente que o testemunho americano nos sirva de advertência, não de exemplo.”


“A ética não é um derivado do Estado. A autoridade ética não deriva dos poderes do Estado para legislar e fazer cumprir a Lei. Ela precede o Estado, é a exclusiva fonte de legitimidade do Estado e o supremo juiz dessa legitimidade. O Estado, poder-se-ia dizer, só é justificável como veículo ou instrumento ética.”


“A justiça é um ponto notoriamente contencioso. Raras vezes a engenhosidade e imaginação humanas estenderam-se tanto e tão dolorosamente como ao idear os argumentos destinados a descrever como “justiça sendo feita” a situação que algumas outras pessoas consideraram injusta e, assim, um legítimo motivo de rebelião.”


Não é preciso mencionar que o problema da justiça não pode ser sequer postulado a menos que já haja um regime democrático de tolerância que assegure, em sua constituição e prática política, os “direitos humanos” — ou seja, o direito a conservar a própria identidade e singularidade sem risco de perseguição. Essa tolerância é uma condição necessária a toda justiça. O ponto principal, porém, é que não é a sua condição suficiente. Por si mesmo, o regime democrático não promove (e muito menos assegura) a transformação da tolerância em solidariedade — ou seja, o reconhecimento da penúria e sofrimentos de outras pessoas como responsabilidade própria de alguém, e o alívio, assim como, subsequentemente, a eliminação da penúria como a tarefa própria de alguém. Na maioria das vezes, dada a atual configuração do mecanismo político, os regimes democráticos interpretam tolerância como empedernimento e indiferença.”


“Para invocar a famosa análise de Bakhtin da função do “carnaval”, de reafirmar as normas mediante a visualização periódica, todavia estritamente controlada, de sua inversão, podemos dizer que existe uma acentuada tendência na parte afluente do mundo a relegar a caridade, a compaixão e os sentimentos fraternais (que, segundo Levinas, estão subjacentes a nosso desejo de justiça) a eventos de carnaval — reafirmando desse modo, legitimando e “normalizando” sua ausência da cotidianidade. Impulsos morais despertados pela visão do infortúnio humano são seguramente canalizados para esporádicos ímpetos de caridade sob a forma de Live Aid, Comic Aid ou coletas de dinheiro para a mais recente maré de refugiados. A justiça transforma-se em um festivo e alegre acontecimento: isso ajuda a aplacar a consciência moral e a suportar o ausência de justiça durante os dias úteis. A falta de justiça torna-se a norma e a rotina diária...”


“Permitam-me repetir que a cena moral primordial, a reunião moral de dois, é o terreno em que se cultiva toda responsabilidade para com o Outro e o terreno de aprendizado para toda a ambivalência necessariamente contida na pressuposição dessa responsabilidade. Sendo assim, parece plausível que a chave para um problema tão vasto quanto a justiça social reside em um problema tão (ostensivamente) diminuto quanto o ato moral primordial de assumir responsabilidade para com o Outro próximo, a pequena distância — para com o Outro enquanto Rosto. É aqui que a sensibilidade moral nasce e ganha força, até se fortalecer o suficiente para suportar o fardo da responsabilidade por qualquer caso de sofrimento e infortúnio humano, seja o que for que as regras legais ou pesquisas empíricas possam revelar sobre os seus vínculos causais e a partilha “objetiva” de culpa.”


“Socialmente, a modernidade trata de padrões, esperança e culpa. Padrões — que acenam, fascinam ou incitam, mas sempre se estendendo, sempre um ou dois passos à frente dos perseguidores, sempre avançando adiante apenas um pouquinho mais rápido do que os que lhes vão no encalço. E sempre prometendo que o dia seguinte será melhor do que o momento atual. E sempre mantendo a promessa viva e imaculada, já que o dia seguinte será eternamente um dia depois. E sempre mesclando a esperança de alcançar a terra prometida com a culpa de não caminhar suficientemente depressa. A culpa protege a esperança da frustração; a esperança cuida para que a culpa nunca estanque. “O homem é culpado,” observou Camus, esse inigualavelmente perspicaz correspondente da terra da modernidade, “mas é culpado de não poder atirar em si mesmo.”1
Psiquicamente, a modernidade trata da identidade: da verdade de a existência ainda não se dar aqui, ser uma tarefa, uma missão, uma responsabilidade. Como o restante dos padrões, a identidade permanece obstinadamente à frente: é preciso correr esbaforidamente para alcançá-la. E, portanto, se corre, puxado pela esperança e impelido pela culpa, embora a corrida, por mais rápida que seja, pareça estranhamente arrastada. Precipitar-se para frente, em direção à identidade perpetuamente tentadora e perpetuamente inconsumada, assemelha-se a recuar da defeituosa e ilegítima realidade do presente.
Tanto social quanto psiquicamente, a modernidade é irremediavelmente autocrítica: um exercício infindável e, no fim, sem perspectivas, de autocancelamento e auto-invalidação. Verdadeiramente moderna não é a presteza em retardar o contentamento, mas a impossibilidade de ficar contente. Toda realização é meramente uma pálida cópia do seu modelo. “Hoje” é meramente uma incipiente premonição de amanhã; ou, antes, seu reflexo inferior e desfigurado. O que é é cancelado de antemão por o que virá. Mas extrai o seu alcance e o seu sentido — seu único sentido — desse cancelamento.
Em outras palavras, a modernidade é a impossibilidade de permanecer fixo. Ser moderno significa estar em movimento. Não se resolve necessariamente estar em movimento — como não se resolve ser moderno. É-se colocado em movimento ao se ser lançado na espécie de mundo dilacerado entre a beleza da visão e a feiura da realidade — realidade que se enfeiou pela beleza da visão. Nesse mundo, todos os habitantes são nômades, mas nômades que perambulam a fim de se fixar. Além da curva, existe, deve existir, tem de existir uma terra hospitaleira em que se fixar, mas depois de cada curva surgem novas curvas, com novas frustrações e novas esperanças ainda não destroçadas.”
1. Albert Camus. Carnets, janvier 1942 - mars 1951 (Paris, Gallimard, 1964, p.lll).


“O fim da modernidade? Não necessariamente. Sob outro aspecto, afinal, a modernidade está muito conosco. Está conosco na forma do mais definidor dos seus traços definidores: o da esperança, a esperança de tornar as coisas melhores do que são — já que elas, até então, não são suficientemente boas. De igual maneira, pregadores vulgares de tribalismo desadornado e elegantes filósofos das formas de vida comunalmente baseadas ensinam-nos o que fazem, em nome de mudar as coisas para melhor. “Qualquer benefício que as ideias de ‘objetividade’ e ‘transcendência’ tenham feito à nossa cultura poderia ser obtido igualmente bem pela ideia de comunidade”, afirma Rorty — e é precisamente isso que torna a última ideia atraente para os que procuravam ontem os caminhos universais para um mundo adequado à habitação humana. Projetos racionais de perfeição artificial, e as revoluções destinadas a imprimi-los na configuração do mundo, fracassaram abominavelmente em cumprir sua promessa. Talvez as comunidades, cordiais e hospitaleiras, cumpram o que elas, as frias abstrações, não puderam cumprir. Ainda queremos que o trabalho seja feito. Apenas deixamos cair as ferramentas que se revelaram inúteis e procuramos obter outras — que, quem sabe, ainda possam realizar a tarefa. Pode-se dizer que ainda concordamos em que a felicidade conjugai é uma coisa boa; somente já não apoiamos a opinião de Tolstoi de que todos os casamentos felizes são felizes da mesma forma.
Sabemos perfeitamente bem por que não gostamos das ferramentas que abandonamos. Durante mais ou menos dois séculos, pessoas que mereciam ou reclamavam ser ouvidas com atenção e respeito contaram a história de um hábitat humano que curiosamente coincidia com o do estado político e do domínio de seus poderes legislativos e ambições. O mundo humano era, na memorável expressão de Parsons, o espaço “principalmente coordenado” — o domínio sustentado, ou prestes a ser sustentado, por princípios uniformes, mantidos pelos esforços conjuntos dos legisladores e dos executantes, armados ou desarmados, da sua vontade. Era esse espaço artificial que era descrito como um hábitat que “supre naturalmente” as necessidades humanas e — de forma mais importante — supre a necessidade de satisfazer as necessidades. A sociedade “principalmente coordenada”, talvez racionalmente projetada e controlada, devia ser essa boa sociedade que a modernidade se pôs a construir. Dois séculos é um longo tempo — suficiente para todos nós aprendermos o que grandes mentes solitárias do tipo de Jeremy Bentham intuíram desde o princípio: que a “principal coordenação” racionalmente projetada se ajusta igualmente bem a uma escola e a um hospital, assim como se ajusta a uma prisão e a um asilo de pobres; e descobrirmos que tal universalidade de aplicação faz com que mesmo a escola e o hospital pareçam uma prisão ou um asilo de pobres. Esse período mostrou também que a parede que separa a espécie “benigna” de engenharia racional da sua variedade maligna e genocida é tão frágil, instável e porosa que — para parafrasear Bertrand Russell — não se sabe quando se deve começar a gritar...”


“A ação humana não se torna menos frágil e errática: é o mundo em que ela tenta inscrever-se e pelo qual procura orientar-se que parece ter-se tornado mais assim. Como pode alguém viver a sua vida como peregrinação se os relicários e santuários são mudados de um lado para o outro, são profanados, tornados sacrossantos e depois novamente ímpios num período de tempo mais curto do que levaria a jornada para alcançá-los? Como pode alguém investir numa realização de vida inteira, se hoje os valores são obrigados a se desvalorizar e, amanhã, a se dilatar? Como pode alguém se preparar para a vocação da vida, se habilidades laboriosamente adquiridas se tornam dívidas um dia depois de se tornarem bens? Quando profissões e empregos desaparecem sem deixar notícia e as especialidades de ontem são os antolhos de hoje? E como se pode fixar e separar um lugar no mundo se todos os direitos adquiridos não o são senão até segunda ordem, quando a cláusula da retirada à vontade está escrita em todo contrato de parceria, quando — como Anthony Giddens adequadamente o expressou — todo relacionamento não é senão um “simples” relacionamento, isto é, um relacionamento sem compromisso e com nenhuma obrigação contraída, e não é senão amor “confluente”, para durar não mais do que a satisfação derivada?
O significado da identidade, como o Christopher Lasch da última fase ressaltou, se refere tanto a pessoas como coisas. O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalho de construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre “mantendo as opções abertas”. Mas o horror e o fascínio, de igual modo, fazem a vida como peregrinação dificilmente factível como uma estratégia e improvável de ser escolhida como tal. Não por muitos, afinal de contas. E não com grande probabilidade de sucesso.
No jogo da vida dos homens e mulheres pós-modernos, as regras do jogo não param de mudar no curso da disputa. A estratégia sensível, portanto, é manter curto cada jogo — de modo que um jogo da vida sensatamente disputado requer a desintegração de um jogo que tudo abarca, com prêmios enormes e dispendiosos, numa série de jogos estreitos e breves, que só os tenha pequenos e não demasiadamente preciosos. Para novamente citar Christopher Lasch, a determinação de viver um dia de cada vez, e de retratar a vida diária como uma sucessão de emergências menores, se tornaram os princípios normativos de toda estratégia de vida racional.
Manter o jogo curto significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo. Recusar-se a “se fixar” de uma forma ou de outra. Não se prender a um lugar, por mais agradável que a escala presente possa parecer. Não se ligar a vida a uma vocação apenas. Não jurar coerência e lealdade a nada ou a ninguém. Não controlar o futuro, mas se recusar a empenhá-lo: tomar cuidado para que as consequências do jogo não sobrevivam ao próprio jogo e para renunciar à responsabilidade pelo que produzam tais consequências. Proibir o passado de se relacionar com o presente. Em suma, cortar o presente nas duas extremidades, separar o presente da história. Abolir o tempo em qualquer outra forma que não a de um ajuntamento solto, ou uma sequência arbitrária, de momentos presentes: aplanar o fluxo do tempo num presente contínuo.
Uma vez disfarçado e não mais um vetor, não mais uma seta com um indicador, ou um fluxo com uma direção, o tempo já não estrutura o espaço. Consequentemente, já não há “para a frente” ou “para atrás”; o que conta é exatamente a habilidade de se mover e não ficar parado. Adequação — a capacidade de se mover rapidamente onde a ação se acha e estar pronto a assimilar experiências quando elas chegam — tem precedência sobre saúde, essa ideia do padrão de normalidade e de conservar tal padrão estável, incólume. Toda demora, também a “demora da satisfação”, perde seu significado: não há nenhum tempo como seta legado para medi-la.
E desse modo a dificuldade já não é descobrir, inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma identidade, mas como impedi-la de ser demasiadamente firme e de aderir depressa demais ao corpo. A identidade durável e bem costurada já é uma vantagem; crescentemente, e de maneira cada vez mais clara, ela se torna uma responsabilidade. O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se — mas evitar que se fixe.


“O significado da obra de arte reside no espaço entre o artista e o espectador” (Maaretta Jaukkuri)


“Os artistas pós-modernos são, como os seus predecessores, uma “vanguarda”, mas num sentido inteiramente diverso de como os modernistas pensavam sobre seu papel e de como desejavam que este fosse considerado. Em poucas palavras, pode-se dizer que, se a vanguarda modernista se ocupava de marcar as trilhas que levavam a um consenso “novo e aperfeiçoado”, o vanguardismo pós-moderno consiste não exatamente em desafiar e debilitar a forma existente e reconhecidamente transitória de consenso, mas em solapar a própria possibilidade de qualquer acordo futuro, universal e, desse modo, sufocante.
Michel Foucault distinguiu duas espécies de estratégia crítica e potencialmente emancipadora: “Pode-se optar por uma filosofia crítica que se apresentará como uma filosofia analítica da verdade em geral, ou pode-se optar por um pensamento crítico que tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos, uma ontologia do presente.”8 Quero sugerir que os artistas pós-modernos, por força da situação cultural, se não necessariamente por sua própria escolha deliberada, se acham simultaneamente envolvidos nas duas estratégias críticas. Sua obra se situa no ponto de convergência em que a discussão da verdade e a discussão do presente subjetivamente vivido se encontram, se animam e se reforçam uma à outra. (...)
A arte pós-moderna é uma força crítica e emancipadora até compelir o artista, então despojado de esquemas enceguecedores e métodos infalíveis, e o espectador ou ouvinte, então deixado sem os cânones de ver e a consoladora uniformidade do gosto, a se empenharem no processo de compreensão, interpretação e elaboração de significado que inevitavelmente reúne as questões da verdade objetiva e os planos subjetivos da realidade. Mas, assim fazendo, ela liberta as possibilidades da vida, que são infinitas, da tirania do consenso, que é — deve ser, não pode senão ser — excludente e incapacitante. O significado da arte pós-moderna, sugiro eu, é abrir amplamente o portão às artes do significado.
Deixem-me concluir essa reflexão citando Foucault de novo:
Uma crítica não é uma questão de dizer que as coisas não estão certas como estão. É uma questão de ressaltar em que espécies de suposição, em que espécies de modo de pensar familiares, não discutidos, irrefletidos se baseiam as práticas que aceitamos. (...)
A crítica é uma questão de fazer jorrar esse pensar e tentar mudá-lo: mostrar que as coisas não são evidentes por si mesmas quanto se acreditava, perceber que o aceito como sendo por si mesmo já não será aceito como tal. Praticar a crítica é uma questão de fazer gestos difíceis se tomarem fáceis.9
8. Michel Foucault. “The art of telling the truth”, citado conforme a tradução de Alan Sheridan in Politcs, Philosophy, Culture, p.95.
9. Michel Foucault. “Practicing criticism”, citado conforme a tradução acima, de Alan Sheridan, p. 154-5. A nova compreensão da atividade crítica lança uma nova luz sobre o papel do “intelectual crítico” (um pleonasmo, por certo). Esse papel, na opinião de Foucault, é o de “ver até onde a liberação do pensamento pode fazer (...) transformações suficientemente urgentes para as pessoas quererem colocá-las em execução e suficientemente difíceis de executar por estarem profundamente enraizadas na realidade”.


“Na outra extremidade da era moderna, não resta muito da animada autoconfiança de Kant. A jovem ambição da filosofia moderna, de conquistar e seduzir mentes não-filosóficas com a própria racionalidade e extinguir completamente o tosco e caprichoso senso comum, deu lugar à triste e sensata reflexão acerca da surdez da mente comum, ou da consciência corrente, à voz da razão filosófica universal e sua sólida resistência à reforma. A filosofia pode ainda estar à procura da certeza, mas uma certeza que evidente e inexoravelmente lhe falta é a de vencer o debate. As apostas talvez até tenham sido invertidas. E, assim, Martin Heidegger pergunta:
Não é a questão da essência [da verdade] a mais não-essencial e supérflua que pode ser indagada? (...) Ninguém pode esquivar-se à evidente certeza dessas considerações. Ninguém pode levianamente negligenciar sua imperiosa seriedade. Mas o que é que fala nessas considerações? Senso comum “judicioso”. Ele repisa a exigência de utilidade tangível e invectiva contra o conhecimento da essência de seres, cujo conhecimento essencial há muito tem sido denominado “filosofia” (...)
(...) a filosofia não pode nunca refutar o senso comum, pois este é surdo à linguagem da filosofia. Nem pode sequer desejar fazê-lo, uma vez que o senso comum é cego ao que a filosofia expõe à sua visão essencial.6
6. Martin Heidegger. “On the essence of truth”, Basic Writings, org. David Farrell Krell (Londres, Routledge, 1978, p.117-8).


“O aspecto novo, caracteristicamente pós-moderno e possivelmente inaudito, da diversidade dos nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das diferenças e sua resultante intangibilidade, maleabilidade e curto período de vida. Se desde a época do “desencaixe” e ao longo da era moderna, dos “projetos de vida”, o “problema da identidade” era a questão de como construir a própria identidade, como construí-la coerentemente e como dotá-la de uma forma universalmente reconhecível — atualmente, o problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora para outra, se for preciso. Não é tanto a co-presença de muitas classes que é a fonte de confusão, mas sua fluidez, a notória dificuldade em apontá-las com precisão e defini-las — tudo isso revertendo à central e mais dolorosa das ansiedades: a que se relaciona com a instabilidade da identidade da própria pessoa e a ausência de pontos de referência duradouros, fidedignos e sólidos que contribuiriam para tornar a identidade mais estável e segura.”


“A vida é vivida por seus usuários (frase memorável de Georges Perec) como um fluxo de acontecimentos nem inevitáveis, nem inteiramente acidentais. O resultado depende exclusivamente do valor das cartas recebidas e da habilidade ou astúcia revelada na jogada seguinte.”


“O habitual, o cotidiano, o familiar, o “mundo próximo”, o “conhecimento pré-reflexivo” — tudo o que não intriga e não requer indagação e exame minucioso — são simultaneamente o ponto de partida e o porto seguro de todo entendimento. “Entender” significa adaptar a percepção dos fenômenos experimentados a esse mundo comum, que é entendido sem o esforço para entendê-lo e sem o esforço para entender o que significa entender. Daí o papel cognitivo da metáfora: ela justapõe o obscuro ao óbvio; sugere assim uma afinidade (sempre eletiva!) entre os dois; salienta que, em certos aspectos, “lá” não é distinto de “aqui” e, desse modo, permite-nos empregar linguagem destinada ao transparente “aqui” (a que torna esse “aqui” transparente) para referir o opaco, e anteriormente inexprimível, “lá”.”


“A liberdade de escolha assenta na multiplicidade de possibilidades. No entanto, seria uma liberdade vazia que negasse o direito de colocar uma possibilidade acima das outras — de reduzir a multiplicidade de perspectivas, de bloquear e rejeitar as possibilidades indesejadas —; em outras palavras, de podar ou cancelar totalmente a escolha. Tal como no caso dos signos repletos de possibilidade enquanto permanecem livres de significados, a essência da livre escolha é o esforço para abolir a escolha.
Nisso, na minha opinião, pode ser encontrado o segredo da perpétua não-satisfação do desejo de mais ampla escolha dos consumidores (e, de modo mais geral, da eterna não-satisfação do desejo de liberdade). O ímpeto de consumo, exatamente como o impulso de liberdade, torna a própria satisfação impossível. Necessitamos sempre de mais liberdade do que temos — mesmo que a liberdade de que achamos que necessitamos seja liberdade para limitar e confinar a liberdade atual. A liberdade é sempre um postulado e expressa-se numa constante reprodução e reaguçamento de sua força postulativa. É nessa abertura em relação ao futuro, na ultrapassagem de toda situação encontrada e preparada de antemão ou recém-estabelecida, nesse entrelaçamento do sonho e do horror da satisfação, que se acham as raízes mais profundas do turbulento, refratário e autopropulsor dinamismo da cultura.”


“Atualmente, os indivíduos são “socialmente empenhados”, em primeiro lugar, através de seu papel como consumidores, não produtores: o estímulo de novos desejos toma o lugar da regulamentação normativa, a publicidade toma o lugar da coerção, e a sedução torna redundantes ou invisíveis as pressões da necessidade.”


“O sexo está sendo completamente purificado de todas as “poluições” e “corpos estranhos” tais como obrigações assumidas, laços protegidos, direitos adquiridos. Por outro lado, porém, todas as outras coisas das relações humanas são — afiadamente, vigilantemente, obsessivamente, às vezes de uma maneira atacada de pânico — purificadas mesmo das mais pálidas sugestões sexuais que permitam a mais leve possibilidade de condensar essas relações em permanência. As sugestões sexuais são pressentidas e farejadas em toda emoção que chegue além da escassa relação de sentimentos permitidos no arcabouço do desencontro (ou quase encontro, encontro fugaz, encontro inconsequente) em todo oferecimento de amizade e toda manifestação de um interesse mais profundo do que a média, por uma outra pessoa. (Muito antes de Oleanna ser escrita e apresentada, um amigo meu, sociólogo eminente, contou-me que havia resolvido manter a porta de seu escritório inteiramente aberta sempre que garotas estudantes viessem consultá-lo — para evitar acusações de assédio sexual. Como ele descobriu muito depressa, a porta tinha também de ser mantida aberta durante as visitas dos rapazes estudantes.) Saudar a beleza ou o encanto de um/a colega de trabalho é provavelmente censurado como provocação sexual, e o oferecimento de uma xícara de café como importunação sexual. O espectro do sexo, agora, assombra os escritórios das empresas e as salas dos grupos de estudo dos colégios: há uma ameaça encerrada em todo sorriso, olhar atento ou maneira de tratar. O resultado total é o rápido definhamento das relações humanas, despindo-as de intimidade e emotividade, e o esmorecimento do desejo de entrar nelas, conservá-las vivas.
O desvio do sexo, de cimentar a parceria para seu enfraquecimento, para garantir a transitoriedade de um relacionamento e sua disposição de se anular com uma pequena notícia ou sem notícia, está provavelmente no que tem de mais conspícuo e mais consequente: no reino da vida familiar. Afinal, era precisamente nesse reino que o sexo costumava proporcionar o tijolo e a argamassa essenciais para a construção da estrutura: quer em sua versão positiva, articulando os laços conjugais, quer negativamente (como a força elementar que precisa ser domada e controlada), ao articular a intimidade entre pais e filhos. Hoje, o sexo está se convertendo num poderoso instrumento de desagregação da estrutura da família, em todas as suas dimensões.”

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