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quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Os Fundamentos da Liberdade (Parte II) – Friedrich A. Hayek

Editora: Visão
Tradução: Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 522
Sinopse: Ver Parte I



“A coerção ocorre quando um indivíduo é obrigado a colocar suas ações a serviço da vontade de outro, não para alcançar seus próprios objetivos mas para buscar os da pessoa a quem serve. Não que o coagido não tenha nenhuma escolha; se fosse assim, não poderíamos falar em “ação” de sua parte. Se alguém, pela força física, conduz minha mão a assinar meu nome ou força meu dedo a pressionar o gatilho de uma arma, não sou eu que estou agindo. Tal violência, que faz de meu corpo o instrumento físico de outra pessoa, evidentemente é tão execrável quanto a coerção propriamente dita e deve ser impedida pelas mesmas razões. A coerção, todavia, implica ainda a existência de uma escolha de minha parte, embora minha mente se tenha transformado em mero instrumento da ação de outrem, pois as alternativas de que disponho foram tão manipuladas, que a conduta que o coator quer que eu adote se torna para mim a menos dolorosa.204 Apesar de coagido, sou ainda eu que decido qual o mal menor, dadas as circunstâncias.  (...)
A coerção implica não só a ameaça de infligir um mal como, também, a intenção de provocar com isso certa conduta.
Embora o coagido ainda possa escolher, as alternativas são-lhe impostas pelo coator de modo que ele escolha o que este pretende. Ele não é totalmente privado do uso de suas faculdades mentais, mas é privado da possibilidade de utilizar seus conhecimentos para alcançar seus próprios objetivos. O uso eficaz da inteligência e dos conhecimentos de um indivíduo na busca de seus próprios fins exige que ele tenha a possibilidade de prever certas condições de seu ambiente e de se ater a um plano de ação. A maioria dos objetivos humanos só pode ser alcançada por uma cadeia de ações interligadas, estabelecidas como um todo coerente e baseadas no pressuposto de que os fatos serão aquilo que se espera que sejam. Somente conseguimos realizar algo porque, e na medida em que, podemos prever os eventos ou pelo menos conhecemos as probabilidades. E, embora as circunstâncias físicas sejam muitas vezes imprevisíveis, elas não frustrarão intencionalmente nossos objetivos. Mas, na medida em que os fatos que determinam nossos planos estejam sob controle total de outrem, nossas ações estarão, igualmente, controladas.
A coerção, portanto, é indesejável porque impede o ser humano de utilizar plenamente seus poderes mentais e, consequentemente, de prestar a maior contribuição possível à comunidade. Embora o coagido ainda procure obter o melhor para si em dado momento, o único plano ao qual suas ações obedecem é o determinado pelo coator.”
204: Cf. F. H. Knight, “Conflict of Values: Freedom and Justice”, em Goals of Economic Life, ed. A. Dudley Ward (Nova Iorque, 1953), página 208: “A coerção é a manipulação ‘arbitrária’ exercida por uma pessoa em relação às condições ou às alternativas de escolha de outra pessoa – e deveríamos, normalmente, chamá-la interferência ‘injustificada’”. Ver também R. M. Mclver, Society: A Textbook of Sociology (Nova Iorque, 1937), página 342.


“A moralidade da ação praticada dentro da esfera privada de um indivíduo não pode constituir objeto de controle coercitivo do Estado. Talvez uma das mais importantes características que distinguem uma sociedade livre de uma não livre seja o fato de que, em questões de conduta que não afetam diretamente a esfera protegida do indivíduo, as normas realmente observadas pela maioria dos indivíduos são de caráter voluntário e não impostas pela coerção. A recente observação do que ocorre em regimes totalitários demonstra a importância do princípio que diz: “nunca [devemos] identificar a causa dos valores morais com a causa do Estado”.224 De fato, é provável que muito mais dano e sofrimento tenham sido causados por indivíduos que se propuseram utilizar a coerção para erradicar um mal moral do que por outros que tencionavam realmente fazer o mal.”
224: A frase foi atribuída a Ignazio Silone. (...)


“Ordem não é uma pressão exercida sobre a sociedade de fora para dentro, mas um equilíbrio gerado em seu interior.” (J. Ortega y Gasset – Mirabeau o elpolítico )


“A importância de um sistema no qual toda ação coercitiva do governo se restringe à aplicação de normas gerais abstratas é frequentemente citada nas palavras de um dos grandes historiadores do direito: “A evolução das sociedades progressistas tem sido, até o momento, a evolução de uma sociedade de ‘status’ para uma sociedade de contrato'”.235 A concepção de status, a posição predeterminada que cada indivíduo ocupa na sociedade, corresponde, de fato, a um estado no qual as normas não são totalmente gerais, mas distinguem grupos ou indivíduos particulares, conferindo-lhes direitos e deveres específicos. A ênfase dada a contrato em contraposição a status é, entretanto, de certa forma enganadora, na medida em que distingue apenas um, embora o mais importante, dos instrumentos que a lei oferece ao indivíduo para que este possa determinar sua posição. O que realmente se contrapõe ao império do status é o império das leis gerais e aplicáveis igualmente a todos, ou, como poderíamos dizer, a supremacia das leges, no sentido original da palavra latina correspondente a leis - ou seja, em contraposição a privi-leges.
A exigência de que as normas da verdadeira lei sejam gerais não significa que, em certas ocasiões, normas especiais não se apliquem a diferentes classes de indivíduos, quando se referem a certas propriedades que somente alguns possuem. Podem existir leis que se aplicam somente a mulheres, cegos ou mesmo pessoas acima de determinada idade (em muitos desses casos sequer é necessário indicar a classe de indivíduos aos quais a lei se aplica: somente uma mulher, por exemplo, pode ser estuprada ou engravidar). Essas distinções não serão arbitrárias, nem sujeitarão um grupo à vontade de outros, se forem reconhecidas como justificadas tanto pelos indivíduos pertencentes ao grupo quanto por aqueles que não pertencem a ele. Isto não significa que deva existir unanimidade quanto à conveniência da distinção, mas apenas que as opiniões individuais não dependerão do fato de o indivíduo pertencer ou não ao grupo. Na medida em que, por exemplo, a distinção é apoiada pela maioria dentro e fora do grupo, quase certamente ela servirá aos objetivos de ambas. Quando, porém, a distinção é apoiada somente por aqueles que fazem parte do grupo, trata-se evidentemente de privilégio; ao passo que, se for apoiada só por aqueles que estão fora do grupo, tratar-se-á de discriminação *. Aquilo que é privilégio para alguns sempre será, obviamente, discriminação para os outros.
235: Sir Henry Maine, Ancient Law (Londres, 1861), página 151. Cf. R. H. Graveson, “The Movement from Status to Contract”, Modern Law Review, Vol. IV (1940-41).
* N. T.: No sentido de ação discriminatória positiva.


“A finalidade da lei não é abolir ou restringir, mas preservar e ampliar a liberdade. Porque onde não há lei não há liberdade, como se vê nas sociedades em que existem seres humanos capazes de fazer leis. Pois liberdade significa estar livre de coerção e da violência dos outros, o que não pode ocorrer onde não há lei; e não significa, como dizem alguns, liberdade de cada um fazer o que lhe apraz (pois quem poderia ser livre se estivesse sujeito aos humores de algum outro?), mas liberdade de dispor a seu bel-prazer de sua pessoa, suas ações, bens e todas as suas propriedades com a limitação apenas das leis às quais está sujeito. Significa, portanto, não ser o escravo da vontade arbitrária de outro, mas seguir livremente sua própria.”
(John Locke – Second Treatrise, Sec. 57, página 29)


“Os homens que se pautaram pelos ideais da Revolução Francesa não conseguiram aprender os princípios tradicionais da liberdade venerados na Inglaterra, como claramente mostra um dos primeiros apóstolos da Revolução naquele país, o Dr. Richard Price. Já em 1778, ele argumentava que “a liberdade é definida de forma demasiado imperfeita quando se diz que ela é ‘o governo de leis e não o governo de homens'. Se as leis são feitas por um homem ou por uma facção dentro de um Estado e não pelo consenso comum, esse governo não é diferente da escravidão”.348
348: Richard Price, Two Tracts on Civil Liberty, etc, (Londres, 1778), página 7.


“Os homens, na busca de objetivos imediatos, estão mais ou menos inclinados, ou mesmo obrigados, pelas limitações de seu intelecto, a violar normas de conduta, que não obstante gostariam de ver observadas por todos. Dada a capacidade limitada de nossa inteligência, nossos objetivos imediatos sempre parecerão muito importantes e tenderemos a sacrificar a eles vantagens futuras. Tanto na conduta social como na individual, podemos, portanto, alcançar certo grau de racionalidade ou coerência ao tomar determinadas decisões somente se obedecermos a princípios gerais, independentemente de necessidades momentâneas. Assim como qualquer outra atividade humana, a legislação não poderá prescindir da orientação oferecida por certos princípios se pretender levar em conta as consequências globais.”


“Como as forças que regem a mente do indivíduo, as que contribuem para o estabelecimento da ordem social operam em diversos níveis; e as próprias constituições baseiam-se em um consenso básico (ou o pressupõem) em torno de princípios mais fundamentais, que podem não haver sido nunca expressados explicitamente e no entanto precedem e tornam possível este consenso e as leis fundamentais escritas. Não devemos crer que, pelo fato de termos aprendido a fazer leis, todas as leis devam ser produto deliberado de algum organismo. O que ocorre, ao contrário, é que um grupo de indivíduos pode formar uma sociedade capaz de elaborar leis, porque seus membros já compartilham de princípios comuns que possibilitam o debate e a persuasão, aos quais as normas expressas devem adaptar-se para que possam ser aceitas como legítimas.369
Segue-se que nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos tem completa liberdade de impor aos demais toda lei que lhe convier. O princípio contrário, sobre o qual assenta o conceito da soberania de Hobbes,370 bem como o positivismo legal que dele deriva, decorre de um falso racionalismo que concebe uma razão autônoma e autodeterminante e despreza o fato de que todo pensamento racional se move dentro de um arcabouço de princípios e instituições não racionais. Constitucionalismo significa que todo poder se fundamenta no pressuposto de que será exercido de acordo com princípios aceitos por todos e de que as pessoas às quais esses poderes são conferidos são escolhidas por se acreditar que provavelmente farão o que é justo, e não porque tudo que elas fizerem será necessariamente justo. Em última instância, o constitucionalismo repousa no pressuposto de. que o poder não é um fato físico, mas um clima de opinião que faz com que as pessoas obedeçam.371
369: Sobre a concepção de legitimidade, cf. G. Ferrero, The Principies of Power (Londres, 1942).
370: Isto não se aplica ao conceito original de soberania, tal como foi introduzido por Jean Bodin. Cf. C. H. Mcllwain, Constitutionalism and the Changing World, Cap. II.
371: Como salientaram D. Hume e um vasto número de teóricos até o completo desenvolvimento da ideia em F. Wieser, Das Gesetz der Macht (Viena, 1926).


“Como pode haver limites definidos ao poder supremo, se ele visa a uma felicidade geral indefinida, sempre sujeita à sua interpretação? Deverão os príncipes ser considerados os pais do povo, mesmo que seja grande o risco de se tornarem também seus déspotas?”
(G. H.von Berg, Handbuch des teutschen Policeyrechtes – Hannover, 1799-1804), II, p. 3.)


“O que não se admite não é a empresa estatal em si, mas o monopólio estatal.”


“É pura ilusão pensar que, quando certas necessidades do cidadão são controladas exclusivamente por uma única máquina burocrática, a fiscalização democrática dessa máquina possa então salvaguardar eficazmente a liberdade do cidadão.”


“Na verdade, longe de constituir uma calamidade pública, seria extremamente desejável que os trabalhadores não achassem necessário formar sindicatos.”


“É bastante questionável a existência de um sistema único de seguro estatal; e parece ser extremamente desaconselhável um serviço médico gratuito para todos. (...)
A ideia de um serviço médico gratuito costuma basear-se em duas premissas fundamentalmente errôneas. Primeiro, o pressuposto de que os problemas de saúde são em geral objetivamente verificáveis e de natureza tal que podem e devem ser totalmente atendidos em todos os casos, não importando considerações de ordem econômica; segundo, que tal atendimento é economicamente viável porque um bom serviço médico normalmente resulta numa restauração da eficiência econômica ou da capacidade de trabalho, compensando assim seus próprios custos. Ambos os pressupostos interpretam erradamente a natureza desse problema na maioria das decisões concernentes à preservação da saúde e da vida. Não existe um padrão objetivo para se julgar em que medida um caso determinado exige cuidados médicos; por outro lado, com o avanço da medicina, torna-se cada vez mais claro que não há limite para a quantia que se poderia investir a fim de tomar todas as medidas objetivamente possíveis. Além disso, tampouco é verdade que, em nossa avaliação individual, tudo que ainda possa ser feito para garantir a saúde e a vida tenha absoluta prioridade sobre outras necessidades. Como em todas as outras decisões nas quais temos de levar em conta não certezas, mas probabilidades e eventualidades, constantemente corremos riscos e tomamos nossas resoluções com base em argumentos de ordem econômica no que diz respeito à validade de determinada medida, ou seja, pesando os riscos em relação a outras necessidades. Nem o mais rico dos homens recorreria normalmente a todos os meios que a medicina põe à sua disposição para preservar sua saúde, talvez porque outras preocupações disputam seu tempo e energia. Alguém terá sempre de decidir sobre a necessidade de um maior esforço e um emprego adicional de recursos. A verdadeira questão é se o indivíduo poderá decidir, obtendo, com um maior sacrifício, atendimento médico adicional, ou se essa decisão será tomada, em seu lugar, por outra pessoa. Embora não nos agrade a necessidade de pesar valores imateriais, como saúde e vida, em relação a vantagens materiais, e desejássemos que tal escolha fosse desnecessária, todos temos, entretanto, de fazê-la por força de fatos que não podemos alterar. (...)
Pode parecer cruel, mas provavelmente é do interesse de todos que, num sistema gratuito, os que gozam de plena capacidade de trabalho sejam frequentemente curados com mais rapidez de uma enfermidade temporária e não grave, em detrimento dos idosos e dos que sofrem de doenças sem cura.”


“Há outro problema que assumiu sérias proporções em alguns países europeus e do qual não nos devemos esquecer: o número excessivo de intelectuais em relação ao número de empregos. Poucas ameaças à estabilidade política são tão graves quanto a existência de uma intelectualidade proletarizada que não encontra meios de utilizar seu conhecimento.
O problema geral com que nos defrontamos em relação à educação superior é, portanto, o seguinte: certos jovens devem ser selecionados, segundo algum critério, numa idade em que não se pode saber ao certo quem tirará maior proveito, para receber uma educação que lhes permitirá obter renda maior que os outros; e, para justificar o investimento, eles devem ser selecionados de forma que, em geral, façam jus a uma renda maior. Finalmente, temos de aceitar o fato de que, como normalmente outras pessoas precisarão pagar pela educação, os que dela se beneficiam estarão usufruindo de uma vantagem “imerecida”.”


“Por mais louváveis que sejam os motivos das pessoas que desejam, por amor à justiça, que todos comecem a partir do mesmo patamar, esse ideal é literalmente impossível de se atingir. Além disso, pensar que ele foi realizado, mesmo parcialmente, só pode tomar a situação pior para os menos dotados. Embora seja plenamente justificável a eliminação de todos os obstáculos artificiais que as instituições existentes podem colocar no caminho de algumas pessoas, não é possível nem desejável compelir todos a começar no mesmo patamar, pois isto só pode ocorrer se privarmos algumas pessoas das possibilidades que não podem ser proporcionadas a todos. Embora queiramos que as oportunidades de todos sejam as maiores possíveis, certamente reduziríamos as da maioria se impedíssemos que elas fossem maiores que as dos menos dotados. Afirmar que todos os que vivem na mesma época em determinado país devem começar a partir do mesmo ponto é tão incompatível com uma civilização em desenvolvimento quanto afirmar que este tipo de igualdade deve ser garantido a pessoas que vivem em épocas e lugares diferentes.”


“Tudo que torna um indivíduo diferente do outro, em função de dons naturais ou de oportunidades, cria vantagens “injustas”. Mas, como a principal contribuição de qualquer indivíduo consiste em fazer o melhor uso dos acidentes com os quais se depara, o sucesso, em grande parte, será uma questão de sorte.”


“Direi agora o que considero a objeção decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua própria natureza, o conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos seguindo. Por resistir às tendências atuais poderá frear desdobramentos indesejáveis, mas, como não indica outro caminho, não pode impedir sua evolução. Por esta razão, o destino do conservadorismo tem sido invariavelmente deixar-se arrastar por um caminho que não escolheu. A luta pela supremacia entre conservadores e progressistas só afeta o ritmo, não o rumo dos acontecimentos contemporâneos, mas, embora seja necessário “frear o curso do progresso”, pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a puxar o freio. Antes de mais nada, os liberais devem perguntar não a que velocidade estamos avançando, nem até onde iremos, mas para onde iremos.”


“Com isso, chegamos ao primeiro ponto no qual as atitudes liberais e conservadoras diferem radicalmente. Como muitas vezes os escritores conservadores reconheceram, uma das principais características da atitude conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida em relação ao novo enquanto tal,813 ao passo que a posição liberal se baseia na coragem e na confiança, na disposição de permitir que as transformações sigam seu curso, mesmo quando não podemos prever aonde nos levarão. Não haveria por que contestar os conservadores se eles simplesmente não gostassem de mudanças muito rápidas nas instituições e na política de governo; de fato, neste caso, justifica-se o cuidado e o lento progresso. Mas os conservadores tendem a utilizar os poderes do governo para impedir as mudanças ou limitar seu âmbito àquilo que agrada às mentes mais tímidas. Ao contemplar o futuro, carecem de fé nas forças espontâneas de ajustamento, que levam os liberais a aceitar mudanças sem apreensão, mesmo sem saber como as adaptações necessárias se efetivarão. Com efeito, faz parte da atitude liberal supor que, especialmente no campo econômico, as forças auto-reguladoras do mercado de alguma maneira gerarão os necessários ajustamentos às novas condições, embora ninguém possa prever como farão isso no caso particular. Talvez não exista um fator que contribui mais para as pessoas frequentemente se mostrarem relutantes em deixar que o mercado funcione do que sua incapacidade de conceber como, sem controle deliberado, pode surgir o equilíbrio necessário entre a oferta e a procura, entre as importações e as exportações, e assim por diante. O conservador só se sente seguro e satisfeito quando tem a garantia de que alguma sabedoria superior observa e supervisiona as mudanças, somente quando sabe que há uma autoridade encarregada de verificar que elas se deem dentro da “ordem”.
Esse temor em confiar em forças sociais incontroladas está intimamente ligado a duas outras características do conservadorismo: sua paixão pela autoridade e sua falta de compreensão das forças econômicas. Como não confia nem em teorias abstratas nem em princípios gerais, não compreende as forças espontâneas nas quais se baseia uma política de liberdade nem dispõe de bases para formular princípios de política de governo. Para os conservadores, a ordem aparece como o resultado da atenção contínua da autoridade, à qual, para tanto, se deve permitir tomar qualquer medida necessária em circunstâncias específicas, sem que precise ater-se a uma norma rígida. A aceitação de princípios pressupõe uma compreensão das forças gerais que coordenam as ações humanas na sociedade; porém, é exatamente de tal teoria da sociedade e em especial da teoria do mecanismo econômico que o conservadorismo evidentemente carece. O conservadorismo foi completamente incapaz de elaborar um conceito geral sobre a maneira pela qual a ordem social consegue sustentar-se, e seus modernos defensores, ao tentar construir uma base teórica, quase sempre acabaram apelando quase exclusivamente para autores que se consideravam liberais.”
813: Ver Lord Hugh Cecil, Conservatism (“Home University Library” [Londres, 1912]), página 9: “O conservadorismo natural... é uma atitude contrária à mudança, que decorre em parte de certa desconfiança em relação ao desconhecido”.
814: Ver a reveladora descrição que o conservador K. Feilling faz de si mesmo em Sketches in Nineteenth Century Biography (Londres, 1930), página 174: “A direita, como um todo, tem horror a ideias, pois não é o homem prático, nas palavras de Disraeli, ‘aquele que põe em uso os erros de seus predecessores’? Por longos períodos de sua história, os direitistas indiscriminadamente resistiram a todos os avanços e, ao reclamar o respeito pelos antepassados, muitas vezes costumam reduzir a opinião ao preconceito individual do passado. Sua posição se tornará ainda mais fácil de ser defendida, porém mais complexa, se acrescentarmos que esta direita domina incessantemente a esquerda; que ela vive da constante inoculação de ideias liberais e desta forma sofre as consequências de uma situação de compromisso que nunca chega a ser definida.”


“Em termos gerais, poderíamos afirmar que o conservador não se opõe à coerção ou ao poder arbitrário, desde que utilizados para os fins que ele julga válidos. Ele acredita que, se o governo for confiado a homens probos, não deve ser limitado por normas demasiado rígidas. Como se trata de indivíduo essencialmente oportunista e desprovido de princípios, ele espera que os bons e os sábios governem, não meramente pelo exemplo, como todos queremos, mas por uma autoridade a eles conferida e por eles exercida. Como o socialista, o conservador preocupa-se menos com o problema de como deveriam ser limitados os poderes do governo do que com o de quem irá exercê-los; e, como o socialista, também se acha no direito de impor às outras pessoas os valores nos quais acredita. Quando digo que o conservador carece de princípios, não quero com isso afirmar que ele careça de convicção moral. O conservador típico é, de fato, geralmente um homem de convicções morais muito fortes. O que quero dizer é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam promover, junto com pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na qual todos possam seguir suas convicções. É o reconhecimento desses princípios que possibilita a coexistência de diferentes sistemas de valores, a qual, por sua vez, permite construir uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força. Sua aceitação significa que podemos tolerar muitas situações com as quais não concordamos. Há muitos valores conservadores que me atraem mais do que muitos valores socialistas, porém a importância que um liberal atribui a objetivos específicos não lhe serve de justificativa suficiente para obrigar outros a submeter-se a eles.”


“Para conviver com os outros é preciso muito mais do que fidelidade aos nossos objetivos concretos. É necessário um comprometimento intelectual com um tipo de ordem em que, até nas questões que um indivíduo considera fundamentais, os demais têm o direito de buscar objetivos diferentes.815 É por esse motivo que para o liberal os ideais morais, bem como os ideais religiosos, não podem ser objeto de coerção, enquanto conservadores e socialistas não reconhecem esses limites. Às vezes, penso que o atributo mais marcante do liberalismo, que o distingue tanto do conservadorismo quanto do socialismo, é a ideia de que convicções morais quanto a questões de conduta que não interferem diretamente com a esfera individual protegida pela lei não justificam a coerção dos demais. Isso também pode explicar por que parece muito mais fácil para o socialista arrependido encontrar um novo lar espiritual entre os conservadores do que entre os liberais. Em última análise, a posição conservadora baseia-se no princípio de que, em qualquer sociedade, há indivíduos reconhecidamente superiores, cujos valores, padrões e posições, sua herança espiritual, precisariam ser protegidos, e que deveriam exercer maior influência nos assuntos públicos do que os demais. Obviamente, o liberal não nega que existam pessoas superiores; ele não é um defensor do igualitarismo. O que ele nega é que qualquer um possa ter a autoridade de decidir quem são essas pessoas superiores. Enquanto os conservadores tendem a defender uma determinada hierarquia estabelecida e pretendem que a autoridade proteja o status daqueles que eles prezam, os liberais acreditam que não haja respeito por valores estabelecidos que justifique o recurso ao privilégio ou ao monopólio ou a qualquer poder coercitivo do Estado para proteger estas pessoas das forças da transformação econômica. Embora o liberal esteja plenamente cônscio do importante papel que as elites culturais e intelectuais representaram no avanço da civilização, também crê que essas elites devem dar provas da capacidade de manter sua posição obedecendo às mesmas normas aplicadas a todos os outros.”
815 Espero que me desculpem por estar repetindo aqui as palavras com as quais, em outra situação, defini uma importante questão: “O principal mérito do individualismo que [Adam Smith] e seus contemporâneos defenderam é aquele de constituir um sistema no qual os homens maus podem ocasionar um mínimo de prejuízo. Trata-se de um sistema social que não depende para seu funcionamento de encontrarmos bons homens para dirigi-lo, nem de que todos os homens se tomem melhores do que são, mas de um sistema que utiliza homens em toda a sua variedade e complexidade, algumas vezes bons e algumas vezes maus, algumas vezes inteligentes e muitas vezes imbecis” (Individualism and Economic Order [Londres e Chicago, 1948], página 11).


“Ao contrário do liberalismo e sua convicção fundamental no poder das ideias, o conservadorismo pauta seu comportamento pelo conjunto de ideias herdadas em dado momento. E, como realmente não acredita no poder do debate, seu último recurso é, em geral, alegar uma sabedoria superior, fundamentada em uma virtude elevada que ele próprio se atribui.
Este contraste se manifesta mais claramente nas diferentes atitudes de ambas as tradições em relação ao avanço do conhecimento. Embora o liberal não considere toda mudança um progresso, ele encara o avanço do conhecimento como uma das metas principais do esforço humano e confia em que lhe proporcione uma solução gradual para os problemas e dificuldades que esperamos poder resolver. Sem preferir o novo apenas por ser novo, o liberal está consciente de que é da essência da realização humana produzir o novo; e está preparado para conviver com o novo conhecimento, goste ou não de seus efeitos imediatos.
Pessoalmente, acho que o aspecto mais reprovável da atitude conservadora é sua tendência a rejeitar novos conhecimentos, ainda que bem fundamentados, porque desaprova algumas das consequências que aparentemente decorrem deles – ou, mais francamente, seu obscurantismo. Não nego que os cientistas, como qualquer pessoa, são dados a modismos e excentricidades e que devemos ser cautelosos em aceitar as conclusões às quais os levam suas teorias mais recentes. Mas os motivos de nossa relutância precisam ser racionais e não devem ser condicionados pela consternação que sentimos quando as novas teorias abalam nossas mais caras convicções. Sou pouco paciente com os que se opõem, por exemplo, à teoria da evolução ou às chamadas explicações “mecanicistas” dos fenômenos da vida, simplesmente por causa de algumas consequências morais que, a princípio, parecem decorrer dessas teorias, e ainda menos paciente com os que consideram irreverente e ímpio indagar a respeito de certas questões. Ao recusar-se a enfrentar os fatos, o conservador contribui para enfraquecer sua própria posição. Frequentemente, as conclusões que a mentalidade racionalista tira das novas interpretações científicas de modo algum decorrem delas. Contudo, somente se tomarmos parte da avaliação das consequências das novas descobertas saberemos se elas se adaptam ou não à nossa visão de mundo, e, em caso afirmativo, como se adaptam. Caso se comprove que nossas convicções morais dependem de pressupostos factuais errados, não seria moral defender tais convicções recusando-nos a reconhecer os fatos.
Aliada à desconfiança dos conservadores em relação a tudo que é novo e incomum está sua hostilidade ao internacionalismo e sua tendência a um nacionalismo exagerado. Isto também contribui para enfraquecer sua posição na luta das ideias, e não pode alterar o fato de as concepções que estão modificando nossa civilização não respeitarem fronteiras. Entretanto, a recusa de estudar novas ideias acaba simplesmente privando o indivíduo do poder de opor-se efetivamente a elas quando necessário.”


“Num mundo em que a necessidade básica se tomou, como no início do século XIX, libertar o processo de crescimento espontâneo dos obstáculos e das dificuldades criados pela insensatez humana, as esperanças do filósofo político devem concentrar-se na persuasão e na obtenção do apoio daqueles que por natureza são “progressistas”, aqueles que, embora atualmente busquem mudanças na direção errada, pelo menos estão dispostos a examinar criticamente o que existe e a modificá-lo sempre que necessário.”


“A tarefa do filósofo político é influenciar a opinião pública e não organizar o povo para a ação. E ele terá êxito somente se não se voltar para aquilo que é politicamente possível agora, mas defender com firmeza “os princípios gerais duradouros”.”

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