Editora: Visão
Tradução: Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 522
Sinopse: Este
livro é uma daquelas obras notáveis que se pode ler começando da primeira
página ou que pode ser compulsada como se faz com um bom dicionário ou com a
própria Bíblia, abrindo-se para lê-la em qualquer parte. O título do original
em inglês, The Constitution of Liberty, poderia ser literalmente
traduzido para o português como A Constituição da Liberdade ou então
como Os Fundamentos da Liberdade.
“As obras de Hayek, principalmente as que se
referem à filosofia política, constituem essencialmente um só bloco de grande
coerência conceitual. Elas apresentam, de forma honesta, bem temperada,
penetrante e abrangente, quatro propostas básicas.
Em primeiro lugar, que as instituições que
constituem a base da sociedade brotam da ação humana, mas não dos planos ou da
ação deliberada dos homens; e portanto as tentativas de planejamento ou
‘organização’ da sociedade são fatais para seu sucesso.
Em segundo lugar, que numa sociedade livre a
lei é fundamentalmente natural, não é fabricada; de modo que, normalmente, ela
não constitui a projeção da simples vontade dos governantes, sejam eles reis ou
maiorias democráticas. A lei é uma norma geral de conduta, igual para todos e
aplicável a número desconhecido de casos futuros, abstraídos, portanto, de
quaisquer circunstâncias específicas de tempo e de lugar e referindo-se apenas
a condições que possam ocorrer em qualquer lugar ou a qualquer tempo.
Em terceiro lugar, que o Estado de Direito
não somente constitui o primeiro e mais importante princípio da sociedade
livre, mas também depende das duas condições acima citadas. O Estado de Direito
é não só um ‘estado de legalidade’, mas, muito mais que isso, pressupõe o princípio
da liberdade individual e exige que a lei possua esses atributos de norma
geral, igual para todos, abstrata e prospectiva.
Em quarto lugar, que o Estado de Direito
exige que os homens sejam tratados com igualdade, mas o Estado de Direito, além
de não exigir que os homens sejam igualados, também será minado por qualquer
tentativa neste sentido.”
(Henry Maksoud)
“Mais do que outros especialistas, o
economista sabe que a mente humana não consegue apreender todo o conhecimento
que orienta as ações da sociedade e está consciente, portanto, da consequente
necessidade de um mecanismo impessoal, independente de julgamentos humanos
individuais, que coordene os esforços de cada um.”
“É certo que ser livre pode significar
liberdade de morrer de fome, de cometer erros que redundarão em perdas ou,
ainda, de correr riscos mortais. No sentido em que empregamos a palavra, o mendigo
sem vintém que leva uma vida precária, baseada na constante improvisação, é,
realmente, mais livre que o conscrito com toda sua segurança e relativo
conforto.”
“Poder-se-ia dizer que a civilização começa
quando o indivíduo, na busca de seus objetivos, utiliza um volume de
conhecimentos muito maior do que o adquirido por ele próprio, podendo
transcender os limites de sua ignorância recorrendo a um conhecimento que não
possui.”
“O funcionamento do processo exige que cada
indivíduo possa agir conforme seu conhecimento pessoal, sempre inimitável, pelo
menos no que se refere a certas circunstâncias específicas, e que seja capaz de
utilizar suas aptidões e oportunidades, dentro dos limites que conhece e
visando a seus próprios objetivos individuais.”
“O homem aprende pela frustração de suas
esperanças. É óbvio que não devemos aumentar a imprevisibilidade dos
acontecimentos com a criação de tolas instituições humanas. Na medida do possível,
deveríamos eleger como objetivo a melhoria das instituições humanas, a fim de
aumentar as possibilidades de previsão correta. Todavia, acima de tudo,
deveríamos proporcionar o máximo de oportunidades para que indivíduos que não
conhecemos aprendessem fatos que nós mesmos ainda desconhecemos e utilizassem
este conhecimento em suas ações.
É graças aos esforços harmônicos de muitas
pessoas que se pode utilizar uma quantidade de conhecimento maior do que aquela
que um indivíduo isolado pode acumular ou do que seria possível sintetizar
intelectualmente. E graças a essa utilização do conhecimento disperso é que se
tornam possíveis realizações superiores às que uma mente isolada poderia
prever. É justamente porque liberdade significa renúncia ao controle direto dos
esforços individuais que uma sociedade livre pode fazer uso de um volume muito
maior de conhecimentos do que aquele que a mente do mais sábio governante
poderia abranger.”
“A liberdade utilizada apenas por um homem
entre um milhão pode ser mais importante para a sociedade e mais benéfica para
a maioria do que qualquer grau de liberdade que todos nós poderíamos
desfrutar.”
“É absurda a ideia de que nosso conhecimento
nos permite deduzir leis necessárias de evolução às quais deveríamos obedecer.
A razão humana não pode predizer nem moldar seu próprio futuro. Suas conquistas
consistem em descobrir seus erros.”
“Das convenções e costumes inerentes às
relações humanas, as normas morais são as mais importantes, mas não representam
absolutamente os únicos elementos significativos. Conseguimos comunicar-nos e
relacionar-nos uns com os outros, somos capazes de executar nossos planos com
êxito, porque, quase sempre, os membros de nossa civilização se atêm a padrões
inconscientes de conduta e mostram em suas ações uma regularidade que não é
resultado de ordens ou coerção – frequentemente, nem mesmo de observância
consciente a normas conhecidas – mas de hábitos e tradições firmemente
arraigados. A observância geral de tais convenções é condição necessária para a
ordem do mundo em que vivemos, para que possamos encontrar nosso caminho,
embora não nos demos conta de sua importância e talvez nem estejamos
conscientes de sua existência. Em alguns casos, seria necessário, para o bom
funcionamento da sociedade, garantir uma uniformidade semelhante por meio da
coerção, sempre que tais convenções e regras não fossem obedecidas com a
frequência adequada. Às vezes, a coerção pode, então, ser evitada apenas porque
existe um alto grau de conformidade voluntária, o que significa que a
conformidade voluntária pode ser uma condição para que a liberdade possa
produzir resultados benéficos.”
“Uma sociedade que não reconhece a cada
indivíduo valores próprios pelos quais ele tem o direito de se pautar não terá
nenhum respeito pela dignidade do indivíduo e realmente não sabe o que é
liberdade. Mas também não é menos verdade que em uma sociedade livre um
indivíduo será respeitado de acordo com o uso que ele fizer de sua liberdade. O
apreço moral não teria sentido se não houvesse liberdade: “Se cada ação, boa ou
má, de um homem maduro, dependesse da permissão, da prescrição e da coerção, o
que seria a virtude senão uma palavra, que elogio caberia à boa ação, que honra
haveria em ser sensato, justo, ou continente?”146 Liberdade é uma
oportunidade de fazer o bem, mas isso só ocorre quando também é uma
oportunidade de fazer o mal. Uma sociedade livre se tornará viável somente se
os indivíduos se deixarem, de alguma maneira, pautar por valores comuns. É,
talvez, por isso que os filósofos definiram algumas vezes a liberdade como ação
em conformidade com normas morais. Mas essa definição de liberdade é a negação
daquela liberdade de que estamos tratando. A liberdade de ação que é condição
do mérito moral inclui a liberdade de errar: elogiamos ou criticamos o
indivíduo somente quando ele tem a possibilidade de escolher, quando ele cumpre
as normas por ser exortado e não compelido a fazê-lo.”
146: John Milton, Areopagitica (Edições “Everyman” [Londres, 1927]), página 18. O
conceito pelo qual o mérito moral depende da liberdade já foi assinalado por
alguns filósofos escolásticos e posteriormente, de modo especial, pela
literatura “clássica” alemã (ver por ex. F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man [New Haven: Yale University
Press, 1954], página 74: “Para ser capaz de ação, o homem deve ser antes
livre”).
“A igualdade estabelecida pelas normas legais
e de conduta gerais é, todavia, a única forma de igualdade que conduz à
liberdade e a única que podemos obter sem destruir a liberdade. A liberdade não
só não tem relação alguma com qualquer outro tipo de igualdade como também
tende, em muitos casos, a produzir desigualdade. Isto constitui a consequência
necessária e, em parte, a justificativa da liberdade individual; se os efeitos
da liberdade individual não demonstrassem que certos modos de vida levam a
resultados melhores do que outros, provavelmente seria impossível
justificá-la.”
“Não é correto afirmar, no sentido factual,
que “todos os homens nascem iguais”. Podemos continuar usando esta frase
consagrada para exprimir o ideal de que, de um ponto de vista legal e moral,
todos os homens deveriam ser tratados com igualdade. Mas, para compreender o
que esse ideal pode ou deve significar, devemos primeiramente libertar-nos da
crença em qualquer igualdade factual. (...)
A função da família, que consiste em
transmitir modelos e tradições, está estreitamente vinculada à possibilidade de
transmitir bens materiais. E é difícil entender como a limitação do progresso
material a uma única geração poderia servir aos verdadeiros interesses da
sociedade.”
“Seria irracional negar que uma sociedade
poderá criar uma elite melhor se a ascensão social não for limitada a uma
geração, se os indivíduos não forem obrigados a começar do mesmo patamar e se
as crianças não forem privadas da oportunidade de se beneficiar da melhor
educação e meios materiais que seus pais lhes possam proporcionar.”
“Num sistema livre não é nem conveniente nem
praticável que as recompensas materiais correspondam àquilo que os homens
entendem por mérito, e que uma sociedade livre se caracteriza pelo fato de que
a posição de um indivíduo não deve depender, necessariamente, da opinião que os
outros têm sobre o mérito por ele conquistado.”
“Na medida em que pretendemos que os
indivíduos orientem suas ações de acordo com seus próprios pontos de vista no
que concerne às suas expectativas e oportunidades, os resultados são
necessariamente imprevisíveis e a questão da justeza da consequente
distribuição da renda deixa de fazer qualquer sentido.168”
168: Ver a interessante análise em R. G.
Collingwood, “Economics as a Philosophical Science”, Ethics, Vol. XXXVI (1926), que conclui (página 174): “Um preço
justo, um salário justo, uma justa taxa de juro são uma contradição em termos.
A ideia de que uma pessoa deve
receber determinada quantia em troca de seus bens e trabalho é uma questão
totalmente desprovida de significado. As únicas questões realmente válidas são
o que ela pode obter em troca de seus bens ou trabalho, e se ela deveria
realmente vendê-los”.
“O oposto de democracia é governo
autoritário; o de liberalismo é totalitarismo. Nenhum dos dois sistemas exclui
necessariamente o oposto do outro: a democracia pode exercer poderes
totalitários, e um governo autoritário pode agir com base em princípios liberais.*”
*: Cf também H. Kelsen, “Foundations of
Democracy”, Ethics, LXVI (1955), 3:
“É importante ter em mente que os princípios da democracia e do liberalismo não
são idênticos e que há mesmo certo antagonismo entre os dois”.
“Enquanto o liberalismo é uma das doutrinas
referentes ao âmbito de ação e à finalidade do governo entre as quais a
democracia tem de escolher, a democracia, por ser um método, não diz respeito
aos objetivos do governo. Embora a palavra “democrático” seja frequentemente
usada, hoje, para definir determinados objetivos no campo da política que são
populares, particularmente certos objetivos igualitários, não existe uma
relação necessária entre democracia e uma teoria que diga como devem ser usados
os poderes da maioria. Para saber o que queremos que os outros aceitem,
precisamos de outros critérios, além da opinião corrente da maioria, que
constitui um fator irrelevante no processo de formação da opinião.”
“Há pelo menos dois aspectos em que é quase
sempre possível ampliar a democracia: a gama de indivíduos com direito ao voto
e a gama de questões decididas por processo democrático. Em nenhum dos dois
aspectos pode-se afirmar coerentemente que toda ampliação possível da
democracia implica uma conquista, ou que o princípio da democracia exige sua
ampliação indefinida.”
“Não se pode dizer que a igualdade perante a
lei exige necessariamente que todos os adultos tenham direito de votar; o
princípio continuaria vigorando se a mesma norma impessoal fosse aplicada a
todos. Se somente as pessoas acima de quarenta anos, ou só os que percebem
algum tipo de renda,176 ou só os chefes de família, ou as pessoas
com um nível mínimo de escolaridade tivessem direito ao voto, isto não
constituiria violação maior do princípio do que as restrições normalmente
aceitas.
As pessoas mais sensatas podem também
argumentar que seria mais coerente, do ponto de vista do ideal da democracia,
se aos funcionários do governo ou a todos os que vivem de subvenções
governamentais fosse vedado o voto. Ainda que o sufrágio universal pareça a
melhor solução no mundo ocidental, isto não prova que algum princípio básico o
imponha. (...)
Estas observações têm por fim exclusivo
mostrar como nem o mais dogmático dos democratas pode afirmar que toda e
qualquer ampliação da democracia é um bem. Independentemente do peso dos
argumentos a favor da democracia, ela não é um valor último, ou absoluto, e
deve ser julgada pelo que realizar. Ela constitui provavelmente o melhor método
para a consecução de certos fins, mas não é um fim em si mesma. Embora o método
democrático de decisão pareça o mais recomendável quando uma ação coletiva é
obviamente necessária, a decisão relativa à conveniência ou não de se ampliar o
controle coletivo deve ser tomada com base em outros princípios que não os da
democracia em si.”
176: É bom lembrar que na mais antiga e mais
estável democracia europeia, a Suíça, às mulheres ainda é vedado o voto,
aparentemente com a aprovação da maioria delas. Também parece plausível que, em
condições primitivas, somente o sufrágio limitado, por exemplo, aos
proprietários de terra, permitiria a constituição de um Legislativo
suficientemente independente do governo para exercer efetivo controle sobre
este.
“Se a democracia é antes um meio do que um
fim, seus limites devem ser determinados à luz do propósito ao qual queremos
que ela sirva. Há três argumentos principais pelos quais é possível justificar
a democracia, podendo-se considerar cada um deles definitivo. O primeiro é que,
quando se faz necessário que prevaleça uma entre várias opiniões discordantes,
mesmo que se tenha de recorrer à força, sempre causa menos dano determinar qual
das opiniões tem maior apoio pela contagem numérica do que pela luta. A
democracia é o único método de mudança pacífica que o homem descobriu até hoje.181
O segundo argumento, historicamente o mais
importante, e que, apesar das dúvidas acerca de sua atual validade, ainda tem
considerável relevância, é que a democracia representa uma valiosa garantia da
liberdade individual. Disse um escritor do século XVII que “o melhor aspecto da
democracia é a liberdade e a coragem e a capacidade de iniciativa que a liberdade
engendra”. 182 Tal concepção reconhece, é claro, que democracia
ainda não é liberdade; apenas afirma que é a forma de governo com maior
probabilidade de gerar liberdade do que outras. Pode-se considerar este ponto
de vista bastante válido quanto à prevenção da coerção exercida por certos
indivíduos sobre outros: não é benéfico para a maioria que alguns indivíduos
tenham o poder de coagir arbitrariamente. Entretanto, a proteção do indivíduo
contra a ação coletiva da própria maioria é outra questão. Mesmo neste caso,
pode-se argumentar que, como na realidade o poder coercitivo sempre será
exercido por poucos, é menos provável que se abuse dele se o poder delegado a
poucos sempre puder ser revogado por aqueles que a ele têm de se submeter. Mas,
embora a probabilidade de a liberdade individual sobreviver seja maior em uma
democracia do que em outras formas de governo, não quer dizer que esteja
automaticamente assegurada. A liberdade só se transformará em realidade se a
maioria decidir torná-la seu objetivo. A liberdade dificilmente sobreviveria se
confiássemos na mera existência da democracia para preservá-la. O terceiro
argumento fundamenta-se na possibilidade de as instituições democráticas
promoverem maior entendimento dos assuntos públicos pela população. Este me
parece o mais convincente.”
181 Ver J.F. Stephen, Liberty, Equality, Fraternity (Londres, 1873), página 27:
“Concordamos em medir forças contando cabeças, e não quebrando cabeças. (...)
Não é o lado mais sábio que vence, e sim aquele que, no momento, mostra a
superioridade de sua força (e um de seus elementos é, indubitavelmente, a
sabedoria) ao conquistar a maior solidariedade. A minoria não cede porque se
convence de que está equivocada, mas porque se convence de que é minoria”. Cf.
também L. von Mises, Human Action
(New Haven: Yale University Press, 1949), página 150: “Para assegurar a paz
interna, o liberalismo visa ao governo democrático. A democracia não é,
portanto, uma instituição revolucionária; ao contrário, ela é o único meio de
impedir as revoluções e guerras civis. Ela oferece um método de ajustamento
pacífico do governo à vontade da maioria”. Ver também K. R. Popper, “Prediction
and Prophecy and Their Significance for Social Theory”, Proceedings of the 10th International Congress of Philosophy, I
(Amsterdam, 1948), especialmente página 90: “Pessoalmente, chamo ao tipo de
governo que pode ser destituído, sem se recorrer à violência, ‘democracia’; ao
outro, ‘tirania’ ”.
182: Sir John Culpepper, An Exact
Collection of All the Remonstrances, etc. (Londres,
1643), página 266.
“Democracia é, acima de tudo, um processo de
formação da opinião. Sua principal vantagem não está no método de seleção dos
governantes, mas no fato de que, como a maioria dos habitantes toma parte ativa
na formação da opinião, consequentemente aqueles podem ser escolhidos entre
grande número de pessoas. É possível admitir que a democracia não confia o
poder aos mais sábios e mais bem informados e que as decisões de um governo de
elite seriam talvez mais benéficas à comunidade; mas não quer dizer que devemos
deixar de preferir a democracia. É em seus aspectos dinâmicos, e não em seus
aspectos estáticos, que se revela o valor da democracia. Os benefícios da
democracia, assim como os da liberdade, só transparecem a longo prazo, e seus
resultados imediatos podem até ser inferiores aos de outras formas de governo.”
“A ideia de que a democracia não proporciona
apenas um método para a solução das divergências de opinião quanto à linha de
ação a ser adotada, mas também um padrão para definir qual será a opinião
adotada, já alcançou repercussões de amplas consequências. Em particular,
contribuiu para criar graves equívocos em torno do que é uma verdadeira lei e
que leis deveremos adotar. Para que a democracia seja viável, dois pontos são
igualmente importantes: que o primeiro conceito possa ser sempre averiguado e
que o segundo possa sempre ser questionado. As decisões da maioria mostram o
que as pessoas querem em dado momento, mas não o que seria seu interesse
querer, se estivessem mais bem informadas; e, a menos que pudessem ser
modificadas pela persuasão, não teriam nenhum valor. Democracia pressupõe que
qualquer opinião minoritária possa tornar-se majoritária.
Nem seria preciso enfatizar esta ideia, se,
às vezes, não se apontasse como dever do democrata, e em especial do
intelectual democrático, aceitar os pontos de vista e os valores da maioria.
Sem dúvida, convencionou-se que os pontos de vista da maioria devem prevalecer
em termos de ação coletiva, mas isto não significa, de modo algum, que não se
deva fazer todo o esforço para mudá-los. Pode-se ter profundo respeito por essa
convenção e, ao mesmo tempo, muito pouco pela sabedoria da maioria. Nossos
conhecimentos e compreensão evoluem justamente porque alguns sempre discordam
da opinião da maioria. No processo de formação da opinião, é muito provável
que, quando uma opinião qualquer se torna majoritária, já não seja a melhor:
alguém já estará um passo adiante da posição que a maioria acabou de alcançar.185
É por não sabermos ainda qual das inúmeras opiniões provará ser a melhor que
esperamos até uma delas ganhar consenso suficiente.
A ideia de que as realizações de todos devem
guiar-se pela opinião da maioria, ou de que a sociedade é melhor ou pior
segundo seu grau de conformidade com os padrões majoritários, é, na verdade, o
inverso do princípio que tem regido a evolução da civilização. Adotá-la
levaria, provavelmente, à estagnação e até à decadência da civilização. O
progresso se dá quando a minoria convence a maioria. Antes de tornar-se comuns
à maioria, as novas opiniões surgem necessariamente da minoria, pois não há
experiência ao nível da sociedade como um todo que não tenha sido antes a
experiência de alguns indivíduos. Tampouco o processo de formação da opinião da
maioria, basicamente ou em sua totalidade, resulta de discussão, como a
concepção ultraintelectualizada daria a entender. É relativamente válido
afirmar que democracia é o governo por meio do debate, mas isso só se aplica ao
último estágio do processo pelo qual são testados os méritos de posições e
tendências alternativas. Embora essencial, o debate não é o processo principal
pelo qual o povo aprende. As opiniões e desejos do povo são formados por
indivíduos que agem visando a seus próprios objetivos; e o povo se beneficia do
que outros aprenderam mediante a experiência individual. A opinião pública não
avançará a não ser que alguns indivíduos tenham um conhecimento maior e
melhores condições de convencer os demais. É justamente porque, em geral,
desconhecemos quem tem um conhecimento maior, que deixamos a decisão a um
processo que não controlamos. No entanto, a maioria acaba sempre se
aperfeiçoando graças a uma minoria que se comporta de maneira diferente daquela
que a maioria prescreveria.”
185 Hoje, a expressão “liberdade civil”
parece ser utilizada principalmente em relação aos exercícios de liberdade
individual, que são de importância essencial para o funcionamento da
democracia, como a liberdade de expressão, de reunião e de imprensa - e, nos
Estados Unidos, em particular com referência às oportunidades garantidas pela
Declaração de Direitos. O próprio termo “liberdade política” tem sido usado
ocasionalmente para definir, em particular em contraposição à expressão
“liberdade interior”, não a liberdade coletiva para a qual o empregaremos, mas
a liberdade pessoal. Embora, porém, este uso tenha a sanção de Montesquieu,
hoje só pode gerar equívocos.
“Se a política é a arte do possível, a
filosofia política é a arte de tornar politicamente possível o aparentemente
impossível.”
(H.
Schoeck, “What Is Meant by ‘Politically
Impossible’?”)
“Para o intelectual, dobrar-se a certas
convicções só porque são aceitas pela maioria constitui traição, não apenas à
sua missão peculiar, mas também aos valores da própria democracia.*”
*:Cf. a observação de A. Marshall (Memorials of Alfred Marshall, ed. por
A.C. Pigou [Londres, 1925], página 89) de que “os estudiosos das ciências
sociais devem ter receio do apoio popular: infeliz daquele de quem todos falam
bem! Se um jornal pode aumentar as vendas por defender certas opiniões, o
estudioso que ambiciona tornar o mundo, em geral, e seu país, em particular,
melhor do que seria se ele não tivesse nascido, deve apontar fatalmente as
limitações, defeitos e erros destas opiniões: e não deve nunca apoiá-las
incondicionalmente, nem mesmo em um debate sobre elas. É quase impossível que
um estudioso consiga ser um verdadeiro patriota e, ao mesmo tempo, ser
respeitado como tal, em sua própria época”.
“A importância do proprietário individual de
considerável soma de recursos não está, entretanto, no simples fato de sua existência
ser condição essencial para a preservação da estrutura de iniciativas
competitivas. O indivíduo que dispõe de recursos próprios é uma figura ainda
mais importante para uma sociedade livre quando não se dedica exclusivamente a
utilizar seu capital com a intenção de obter ganhos materiais, mas usa-o em
favor de objetivos que não trazem retorno material. (...)
A liderança de indivíduos ou grupos que podem
dar respaldo financeiro a suas ideias é particularmente essencial no campo da
cultura, das artes, da educação e pesquisa, na preservação das belezas naturais
e dos tesouros históricos e, acima de tudo, na divulgação de novas ideias
políticas, morais e religiosas. Para que as opiniões da minoria possam
tornar-se as opiniões da maioria, é necessário não apenas que os homens já
detentores de prestígio junto à maioria possam tomar iniciativas, mas também
que os representantes de todas as posições e tendências divergentes tenham
condições de apoiar, com seus meios e sua energia, ideais ainda não compartilhados
pela maioria.
Se porventura não descobríssemos maneira mais
apropriada de apoiar financeiramente tais grupos, seria justificável que
escolhêssemos, ao acaso, um entre cem ou mil e lhe oferecêssemos os meios para
que pudesse perseguir o objetivo que ele se propusesse. Na medida em que gostos
e opiniões em geral fossem representados, e todo tipo de interesse tivesse sua
oportunidade, isso valeria a pena, ainda que, dessa pequena parcela da
população, apenas um em cem, ou em mil, utilizasse a oportunidade de forma que,
futuramente, fosse julgada benéfica. Na seleção permitida pelo processo de
herança, que em nossa sociedade produz de fato tal situação, há ao menos a
vantagem (mesmo que não levemos em conta a probabilidade da transmissão do
talento) de aqueles que receberam essa oportunidade especial terem, geralmente,
sido educados para isso, num ambiente em que os benefícios materiais da riqueza
são um dado corriqueiro e, por isso, deixaram de constituir a fonte principal
de satisfação. Os prazeres menos refinados com que os novos-ricos
frequentemente se satisfazem não costumam atrair aqueles que herdaram riqueza.
Se é válido afirmar que o processo de ascensão social deveria, em alguns casos,
estender-se por várias gerações, e se admitimos que algumas pessoas não
deveriam precisar dedicar a maior parte de seu tempo e energia ao seu sustento,
mas a um objetivo previamente escolhido, então não podemos negar que a herança
é, provavelmente, a melhor forma de seleção que conhecemos.
Entretanto, os ricos só podem desempenhar
esta função quando a comunidade não considera a única missão de indivíduos
abastados investir e aumentar seu capital, e quando a classe alta não se compõe
exclusivamente de homens que se preocupam apenas com o emprego lucrativo de
seus recursos. Em outras palavras: é absolutamente necessário tolerar a
existência de um grupo de ricos ociosos – ociosos não no sentido de que não
fazem nada de útil, mas no sentido de que seus objetivos não são inteiramente
pautados pelo interesse de ganho material. Se a maior parte das pessoas precisa
trabalhar para ganhar seu pão, disto não decorre ser menos recomendável que
algumas não devam ter de fazê-lo, que possam perseguir objetivos não apreciados
pelas demais. (...)
O fato de apenas alguns indivíduos terem essa
oportunidade não significa que deixe de ser recomendável.197
Por outro lado, também é verdade que, embora
os gastos extravagantes de alguns repugnem aos demais, dificilmente podemos ter
certeza de que, em determinadas circunstâncias, até a mais absurda experiência
de vida não possa produzir resultados benéficos em geral. Não deve surpreender
que a vida num novo contexto de possibilidades leve, a princípio, a uma
ostentação despropositada. No entanto, não tenho dúvidas – ainda que, ao dizer
isso, me esteja expondo a zombarias – de que a própria fruição do ócio exige
certo pioneirismo e de que devemos muitas das formas de vida, hoje comuns, a
pessoas que dedicaram todo o seu tempo à arte de viver;201 muitos
jogos e equipamentos esportivos que se tornaram posteriormente instrumentos de
recreação das massas foram inventados por playboys.”
197: (...) Ainda que a “mais generosa das
bênçãos terrestres, a independência” (como a chamou Edward Gibbon em sua Autobiography [Edição “World’s
Classics”), página 176), seja um “privilégio”, no sentido de que apenas alguns
podem possuí-la, não deixa de ser recomendável que outros possam gozá-la.
Esperamos apenas que esse dom tão raro não seja distribuído pelo arbítrio
humano, mas abençoe, por acidente do destino, alguns indivíduos de sorte.
201: Um estudo da evolução da arquitetura
doméstica e dos hábitos cotidianos ingleses levou um famoso arquiteto
dinamarquês a afirmar que, “na cultura inglesa, o ócio tem sido a origem de
tudo o que é bom” (S.E. Rasmussen, London,
the Unique City [Londres e Nova Iorque, 1937], página 294).
“É realmente trágico que as massas tenham
chegado a acreditar que devem seu alto padrão de bem-estar material ao fato de
terem eliminado os ricos, e que temam que a preservação ou o reaparecimento de tal
classe as privariam de algo que teriam (e a que julgam ter direito) se esta não
existisse. Já vimos por que, numa sociedade progressista, não há razões para
crer que a riqueza desfrutada por poucos existiria se estes não pudessem dela
usufruir. Esta riqueza não é algo que lhes foi tirado, tampouco é algo que lhes
era devido e lhes foi negado; ela é o primeiro sinal de um modo de vida
inaugurado pela vanguarda. De fato, os que têm o privilégio de apontar novos
caminhos que só os filhos, ou netos, de outros poderão palmilhar não são
geralmente os indivíduos mais merecedores, mas simplesmente os que a sorte
colocou nessa posição invejada. Este fato é, porém, inseparável do processo de
evolução, que ultrapassa tudo que qualquer indivíduo ou grupo pode prever. Ao
impedir, desde o início, que alguns gozem de certas vantagens, podemos acabar
privando delas todos os demais. Se, por inveja, tornamos impossível a
existência de certos estilos excepcionais de vida, terminaremos todos
condenados ao empobrecimento material e espiritual. Também não podemos eliminar
as manifestações desagradáveis do sucesso individual sem destruir, ao mesmo
tempo, as forças que tornam possível o progresso. Podemos desprezar a
ostentação, o mau gosto e o desperdício de muitos novos-ricos e, no entanto,
reconhecer que, se eliminássemos tudo o que nos desagrada, possivelmente
estaríamos suprimindo, desta forma, um número muito maior de benefícios que
ainda não conseguimos vislumbrar. Um mundo em que a maioria pudesse impedir o
surgimento de tudo que ela própria não aprovasse seria um mundo estagnado e,
provavelmente, em decadência.”
Acredito que você interpretou de forma equivocada a parte da ELITE MELHOR que você deu tanta ênfase. A elite a qual ele se refere na passagem citada por você não é um grupo privilegiado, mas sim toda sociedade. É fato que "se a ascensão social não for limitada a uma geração, se os indivíduos não forem obrigados a começar do mesmo patamar e se as crianças não forem privadas da oportunidade de se beneficiar da melhor educação e meios materiais que seus pais lhes possam proporcionar." a sociedade produzirá uma elite(sociedade como um todo) melhor.
ResponderExcluirQue bom que você adicionou uma nota mostrando que o conceito de meritocracia não é defendido pelos liberais como Hayek. Nesse ponto você está correto, logo sua crítica a meritocracia nada tem a ver com os liberais. É apenas uma forma de desviar a atenção e criticar algo que o autor não defende. Autores como Hayek sempre apresentaram a diferença entre meritocracia e criação de valor, esta segunda que é a defendida pelo autor. Vale ler esse texto sobre o assunto: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2054.