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quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Réquiem para o sonho americano: os dez princípios de concentração de renda e poder (Parte I) – Noam Chomsky

Editora: Bertran Russell
ISBN: 978-85-2862-194-5
Tradução: Milton Chaves de Almeida
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192

“O sonho americano, assim como a maioria dos sonhos, tem em si grandes componentes mitológicos. No século XIX, esse sonho era parcialmente descrito nas histórias de Horatio Alger: “Somos muito pobres, mas trabalharemos duro e acharemos uma saída”, o que, até certo ponto, reflete uma verdade. Tomemos o meu pai como exemplo. Ele chegou aqui em 1913, oriundo de um povoado muito pobre da Europa oriental. Conseguiu um emprego braçal numa loja em Baltimore e, aos poucos e com muito trabalho, conseguiu ingressar numa universidade, graduar-se e até mesmo chegar a um doutorado. E acabou alcançando um estilo de vida de “classe média”. Muitas pessoas conseguiram o mesmo. No passado, imigrantes vindos da Europa tinham chances de atingir um nível de riqueza, privilégios, liberdade e independência que não teria sido imaginável em seus países de origem.
Atualmente, nós sabemos que simplesmente isso não é mais possível. Aliás, atualmente o nível de mobilidade social é mais baixo aqui do que na Europa. Porém, o sonho perdura, alimentado por propaganda política. É algo que a gente ouve em todos os discursos políticos: “Vote em mim, traremos o sonho de volta.” Todo mundo reitera isso com palavras semelhantes — chegamos a ouvir essa promessa de pessoas que estão destruindo o sonho, quer saibam ou não. Ainda assim, o sonho tem que continuar, pois, do contrário, como eles conseguiriam atrair pessoas para o país mais rico e poderoso da história, com vantagens extraordinárias para elas enfrentarem a realidade que as rodeia?
É realmente sem precedentes a desigualdade dos dias atuais. Se examinarmos a desigualdade total de hoje, veremos que atravessamos o pior período da história americana. No entanto, se analisarmos a questão mais profundamente, constataremos que a desigualdade se origina da situação de extrema riqueza, concentrada numa parcela minúscula correspondente a um por cento da população americana.
Tivemos períodos, como a Era Dourada da década de 1890, os Loucos Anos 20, e outros mais, quando a progressão dos fatos foi parecida com o que vemos hoje, mas o momento atual é extremo. Porque, se analisamos a distribuição de riquezas, veremos que a desigualdade é causada, principalmente, pelos extremamente ricos — literalmente, os dez mais endinheirados desse um por cento são simplesmente super-ricos. Isso é o resultado de mais de trinta anos de uma mudança nas políticas sociais e econômicas. Se investigarmos, descobriremos que, ao longo desses anos, as políticas governamentais foram modificadas de forma totalmente contrária aos anseios da população, com vistas a proporcionar enormes benefícios aos muito ricos. Consequentemente, para a maior parte da população, a renda real está praticamente estagnada há mais de trinta anos. Nesse sentido, no sentido ímpar do povo americano, a classe média está sob ataque.
Uma parte significativa do Sonho Americano tem a ver com mobilidade social: a pessoa nasce pobre, trabalha muito e enriquece. É a ideia de que é possível, para qualquer um, conseguir um bom emprego, comprar uma casa e um carro, bancar a educação dos filhos...
Tudo desmoronou.”


“Nos Estados Unidos, pregam-se valores como a democracia. Numa democracia, a opinião pública influencia as políticas governamentais e depois o governo executa medidas e programas determinados pela vontade da população. Esse é o verdadeiro significado de democracia.
É importante compreender que setores poderosos e privilegiados da sociedade nunca gostaram de democracia por uma razão muito simples: a democracia põe o poder nas mãos da população e o tira dos privilegiados e poderosos.
Esse é um princípio da concentração de riqueza e poder.

O círculo vicioso
Concentração de riqueza proporciona concentração de poder, principalmente porque faz com que o custo das campanhas eleitorais aumente muito, o que força os partidos políticos a ficarem ainda mais dependentes e controlados pelas grandes empresas. Esse poder político logo se transforma em leis que aumentam a concentração de riqueza. Desse modo, políticas fiscais, assim como as tributárias, desregulamentação governamental, normas favorecedoras da atividade empresarial e toda uma série de medidas — medidas políticas destinadas a aumentar a concentração de riqueza e poder — propiciam mais poder político para se fazer a mesma coisa. E é isso o que temos visto. Portanto, estamos vivendo essa espécie de “círculo vicioso”.”


A minoria dos opulentos
James Madison, o principal arquiteto da Constituição americana, uma pessoa que acreditava tanto nos princípios democráticos quanto qualquer outra pessoa do mundo naquela época, achou, no entanto, que a forma de governo dos Estados Unidos deveria ser moldada — e, por iniciativa dele, foi de fato o que aconteceu — de modo que o poder ficasse nas mãos dos ricos, porque os ricos seriam mais responsáveis, aqueles que se preocupariam com os interesses do povo em geral e não apenas com interesses locais.
Portanto, a estrutura formal do sistema constitucional pôs a maior parte do poder nas mãos do Senado, lembrando que o Senado americano não era eleito naquele tempo. Aliás, isso só aconteceu há cerca de um século. Seus membros eram escolhidos por assembleias legislativas, tinham longos mandatos e eram selecionados apenas entre os ricos. Homens mais responsáveis. Pessoas que, nas palavras de Madison, tinham simpatia pelos proprietários de terras e seus direitos. E isso tinha que ser protegido.
O Senado concentrava a maior parte do poder, mas também era o que se mantinha mais distanciado da população. A Câmara dos Representantes — cujos membros se conservavam mais perto do povo — exercia na política um papel bem mais fraco. Naquela época, o chefe do executivo — o presidente — estava mais para administrador, com alguma responsabilidade em relação à política externa e outros assuntos. Tudo muito diferente dos dias atuais.
Uma questão importante era: até que ponto devemos permitir a verdadeira democracia? Madison discutiu isso com muita seriedade, nem tanto em O federalista — obra reunindo uma coleção de ensaios que eram uma espécie de propaganda política —, mas nos debates da Convenção Constituinte da Filadélfia, os quais são a fonte de informação mais interessante. Se lermos as atas dos debates, veremos que Madison afirmou que a maior preocupação da sociedade — de toda sociedade decente — deve ser a de “proteger a minoria opulenta contra a maioria”. Palavras dele. E ele tinha argumentos.1
Madison observou que o modelo que ele tinha em mente — o da Inglaterra, logicamente — era o do país mais moderno e da sociedade politicamente organizada mais avançada da época. Ele propôs que supuséssemos uma situação em que, na Inglaterra, todas as pessoas tivessem o direito de votar. Ora, com isso a maior parte dos pobres se reuniria e se organizaria para tomar as propriedades dos ricos. Os pobres realizariam o que chamaríamos hoje de reforma agrária: a divisão das grandes propriedades, bem como a dos estados de tradição agrícola, e dar ao povo suas terras, retirando essas terras daquilo que, não muito tempo atrás, tinha sido imposto pelo sistema de cercamentos. Com isso, os pobres votariam para retomar aquelas que haviam sido outrora terras comunitárias e se apropriar delas.
E como, acrescentou Madison, obviamente isso seria injusto, não poderia ser permitido. Desse modo, o sistema constitucional tinha que ser estruturado de forma que impedisse a democracia — a “tirania da maioria”, tal como a denominavam às vezes — para assegurar que a propriedade dos opulentos não fosse atingida.”
1: Ver Atas e Debates Secretos da Convenção Realizada na Filadélfia, no Ano de 1787, na página 25.


O papel das instituições financeiras
Na década de 1950, tal como acontecera anteriormente durante muito tempo, a economia dos Estados Unidos se baseava, em grande parte, na produção industrial. Os Estados Unidos eram o grande centro industrial do mundo. Instituições financeiras constituíam uma parcela relativamente pequena da economia e sua tarefa era distribuir ativos não utilizados, como depósitos de poupança, para fomentar a produção. Era um incentivo à economia. Implantou-se, pois, um sistema regulamentador. Bancos foram regulamentados. Bancos comerciais e de investimento foram separados e reduziu-se o número de investimentos de risco que pudessem prejudicar individualmente os cidadãos. Devemos considerar que não houve nenhuma crise financeira durante o período de regulamentação do New Deal. Na década de 1970, esse sistema mudou.
Até o início dos anos de 1970, havia no mundo um sistema de gerenciamento econômico internacional, estabelecido pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha — Harry Dexter White pelo lado americano e John Maynard Keynes pelo lado britânico. Era conhecido pelo nome de Sistema Bretton Woods, amplamente baseado na regulamentação do uso e distribuição de capitais, de forma que as moedas dos países fossem reguladas com base no dólar, que, por sua vez, era atrelado ao ouro. Havia muito pouca especulação cambial, pois não havia espaço para isso. O Fundo Monetário Internacional vinha autorizando, e até apoiando, controles governamentais sobre a exportação de capitais. Ademais, o Banco Mundial andou financiando projetos de desenvolvimento estatais. Isso foi nas décadas de 1950 e 1960, mas, nos anos 1970, esse sistema foi desmantelado. Totalmente desmantelado. Os mecanismos de controle cambial foram revogados, ocasionando, tal como seria de se prever, um acentuado aumento da especulação cambial.



FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA
Simultaneamente, os lucros da produção industrial — embora ainda grandes — diminuíam e as taxas estavam em declínio. Ao mesmo tempo, começou a ocorrer um aumento gigantesco nos fluxos de capitais especulativos — um aumento realmente astronômico — assim como enormes transformações no setor financeiro, abrangendo desde bancos a investimentos de risco, instrumentos financeiros complexos, manipulações cambiais e assim por diante.
Cada vez mais, o negócio do país não era a produção fabril e industrial, pelo menos no que diz respeito à produção industrial dentro dos Estados Unidos. Podia-se ver isso até na escolha de diretores de empresas. Nas décadas de 1950 e 1960, era grande a probabilidade de que o executivo-chefe escolhido para comandar uma grande empresa americana fosse um engenheiro, alguém diplomado por uma instituição como o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), talvez em engenharia industrial. Havia a sensação na classe dos gestores e donos de empresas de que esse era o perfil ideal para lidar com a mentalidade e a natureza da sociedade — que representava, por assim dizer, a mão de obra, o mercado e que iria encarar com entusiasmo o futuro de suas respectivas corporações. Com o tempo, essa sensação foi se revelando cada vez menos verdadeira.

Já mais recentemente, cúpulas diretoras e altas gestões de empresas passaram a ser formadas por pessoas oriundas de faculdades de administração, versadas e tarimbadas em artificiosos esquemas financeiros de várias espécies e assim por diante. E isso modificou a atitude, não só das empresas, mas também de seus dirigentes para com elas. Há menos lealdade com a empresa e mais lealdade a si mesmo. Hoje em dia, a forma pela qual se pode progredir nas corporações é mostrando bons resultados no trimestre seguinte. Não é mais o futuro de longo prazo da empresa — e sim aquilo que o executivo pode fazer no trimestre seguinte. Além do mais, isso é determinante para o seu salário, suas gratificações etc. Portanto, se agora as práticas empresariais podem ser concebidas visando à obtenção de lucros de curto prazo e, com isso, o executivo consegue ganhar rios de dinheiro mesmo que quebre a empresa — ele simplesmente leva o dinheiro e uma rescisão milionária. Esse tipo de coisa provocou uma mudança considerável na forma pela qual as empresas passaram a ser conduzidas.1
Na década de 1980, a General Electric, por exemplo, conseguiu obter mais lucros praticando especulação financeira do que se dedicando à produção industrial nos Estados Unidos. Devemos considerar também que uma parte significativa da General Electric é hoje, substancialmente, uma instituição financeira. Metade de seus lucros é obtida com a movimentação de dinheiro envolvendo esquemas complexos. Não se sabe ao certo se o que seus executivos estão fazendo tem algum valor para a economia. Portanto, o que ocorreu foi um acentuado aumento no papel do setor financeiro na economia e um correspondente declínio na produção interna. É um fenômeno a que se deu o nome de “financeirização” da economia. Com ele, veio a terceirização internacional da produção.”
1: Ver “Um Apelo para o Fim da Ênfase na Obtenção de Lucros a Curto Prazo”, The Wall Street Journal, Justin Lahart, 9 de setembro de 2009, na página 61.


“Aliás, aquilo que muitos chamam de “acordos internacionais de livre comércio” não são nem um pouco livres. O sistema de comércio mundial foi reestruturado com a claríssima intenção de fazer com que os trabalhadores competissem uns com os outros em todo o mundo. A consequência disso é a redução do nível de renda dos trabalhadores. É um fenômeno que tem sido impressionante nos Estados Unidos, mas também está acontecendo no mundo inteiro. Significa que agora o trabalhador americano tem que competir com o superexplorado trabalhador chinês.
Por falar em China, lá a desigualdade aumentou muito. A China e os Estados Unidos são os dois exemplos mais extremos nesse aspecto. Naquele país, existem muitas campanhas de trabalhadores na tentativa de superação do problema, só que o governo chinês é muito rígido. É uma situação difícil, mas algo está sendo feito — e em todo o planeta. O que os Estados Unidos estão exportando são valores do empresariado — concentração de riqueza, tributação da classe operária, privação de direitos trabalhistas, exploração e por aí vai — é isso o que está sendo exportado no mundo real. É uma espécie de consequência automática da criação de sistemas de comércio feitos para proteger ricos e privilegiados.

Recentemente, nos Estados Unidos, o desemprego no setor industrial chegou ao mesmo nível daquele que os americanos tiveram na Grande Depressão, mas com uma diferença fundamental: os postos de trabalho perdidos não serão recuperados, pelo menos enquanto vigorarem os programas atuais. Esses postos na indústria só serão reabertos se houver modificação nas políticas sociais, pois aqueles que comandam e conduzem a sociedade, os “senhores da humanidade” — se me permitem usar a expressão de Adam Smith mais uma vez —, pensam de outra maneira. Eles não estão interessados em fazer com que indústrias de produção em larga escala voltem para os Estados Unidos, pois podem lucrar mais explorando mão de obra superbarata em outros lugares, onde não há nenhuma restrição ambiental.
Enquanto isso, profissionais com altos salários estão protegidos. Afinal, eles não são levados a competir com seus pares de outras partes do mundo — longe disso. E, logicamente, os capitais ficam livres para se movimentar pelo globo. Já os trabalhadores não têm essa liberdade; a mão de obra não pode dar-se esse luxo, mas o capital pode. Mais uma vez, voltando a autores clássicos, como Adam Smith, ele observou que “a livre circulação de mão de obra” é o fundamento de todo sistema de livre comércio. No entanto, os trabalhadores não têm essa mobilidade. Os ricos e os privilegiados estão protegidos, e as consequências desse estado de coisas são óbvias.”


A insegurança dos trabalhadores
Políticas são feitas para aumentar a insegurança. Alan Greenspan, quando foi sabatinado no Congresso, explicou que seu sucesso no comando da economia se devia ao fato de que ele se baseara no que chamou de necessidade de manter um grau de “insegurança maior entre os trabalhadores”.3 Ou seja, mantenha os trabalhadores em constante estado de insegurança, pois assim será fácil tê-los sob controle. Não farão mais reivindicações de salários dignos ou condições de trabalho decentes, tampouco de livre associação — em outras palavras, de se organizarem em sindicatos. Se os trabalhadores forem mantidos em constante estado de insegurança, não farão muitas reivindicações ou exigências. Ficarão contentes apenas pelo fato de terem emprego — sequer se importarão com tipos de trabalho horríveis ou insalubres, não reivindicarão salários dignos, não exigirão condições decentes de trabalho nem demandarão benefícios trabalhistas — e, por tal teoria, esse estado de coisas é o que se pode considerar uma economia saudável.
Nestes últimos trinta anos de estagnação econômica, foi principalmente pelo cumprimento de uma maior carga horária de trabalho que os cidadãos americanos conseguiram manter seus estilos de vida. Atualmente, a carga horária dos americanos é muito maior do que a dos europeus, os benefícios diminuíram e, para sobreviver, as pessoas estão contraindo dívidas. Quando impera uma situação de insegurança entre os trabalhadores, as pessoas se afundam cada vez mais em dívidas para continuar tentando levar uma vida normal. Estão tomando empréstimos, comprando bens desvalorizados, enfrentando preços de imóveis residenciais inflacionados, tudo isso dando a ilusão de uma riqueza que você poderia usar para o consumo, em reservas para o futuro e na educação dos filhos — é lógico que isso não pode continuar.
Atualmente, os americanos têm uma carga horária muito maior do que a de trabalhadores de outros países comparáveis ao nosso, e isso exerce sobre nossos cidadãos um efeito disciplinador — na forma de menos liberdade, menos tempo para o lazer e para pensar, mais necessidade de obedecer a ordens dos superiores e assim por diante. São grandes os efeitos suscitados por esse estado de coisas. Vemos hoje os dois membros adultos de várias famílias trabalhando, porém suas famílias estão entrando em colapso, pois não possuem a contraparte de serviços públicos como os das nações com condições econômicas semelhantes às nossas. Se as atuais tendências socioeconômicas continuarem, nossos netos se verão, em número cada vez maior, na condição de gerentes e executivos exportando empregos para o sudoeste da China — nessas áreas profissionais haverá oportunidades. Todavia, para grande parte da população, será principalmente prestação de serviços — vai todo mundo trabalhar no McDonald’s.
No entanto, para os donos do mundo, está tudo ótimo. Eles obtêm lucros enormes. Contudo, para a maior parte da população, a situação é desoladora. Esses dois sistemas, financeirização e terceirização internacional da produção, fazem parte dos processos que nos levaram ao círculo vicioso da concentração de riqueza e poder. Os industriais ainda continuam ganhando muito dinheiro, mas seus meios de produção estão em terras estrangeiras. A maior parte dos lucros das maiores empresas americanas vem do exterior, e isso cria todo tipo de oportunidades para se transferir para o restante da população o fardo de se manter em condições mínimas de sobrevivência.”


Redução de impostos
Durante o período de grande crescimento de nossa economia — anos 1950 e 1960, embora, para ser mais exato, mesmo antes — a carga tributária incidente sobre os ricos era muito maior. E os impostos pagos pelas grandes empresas eram efetivamente mais altos — os tributos incidentes sobre dividendos eram substancialmente maiores. Mas isso mudou, e a tendência atual é de redução de impostos sobre os muito ricos. O sistema tributário sofreu uma reformulação, de modo que os impostos pagos pelos muito ricos caíram e, consequentemente, a carga tributária incidente sobre o restante da população aumentou. A tendência agora é tentar fazer com que os impostos recaiam apenas nos salários e no consumo — afinal, por uma questão de necessidade ou sobrevivência, consumir é algo que todo mundo tem de fazer —, em vez de, digamos, dos dividendos, que vão apenas para os ricos. Essa mudança provocou um enorme deslocamento da carga tributária. E os números são impressionantes.




Todavia, eles têm uma justificativa — sim, claro, eles sempre têm. Neste caso, a justificativa é a seguinte: “Ora, isso aumenta os investimentos e o número de empregos.” No entanto, não existem provas de que isso acontece. Se eles querem aumentar o número de empregos e ampliar os investimentos, o que precisam fazer é aumentar a demanda. Até porque, se houver demanda, investidores farão investimentos para satisfazê-la. Se quiserem aumentar os investimentos, deem dinheiro aos pobres e aos trabalhadores para que o gastem, não em iates e férias no Caribe, mas na compra de bens de consumo. Os pobres e trabalhadores gastam o que ganham por uma questão de sobrevivência. Isso estimula a produção, incentiva os investimentos, promove o emprego e por aí vai.
Porém, se a pessoa é uma ideóloga defensora dos interesses dos donos do mundo, segue uma linha de raciocínio diferente. Mesmo que não existam provas que justifiquem sua tese e mesmo que, economicamente, elas não façam nenhum sentido. Na verdade, o atual estado de coisas é quase um absurdo — as grandes empresas estão transbordando em dinheiro. Não é, pois, que elas disponham de pouco capital. A Goldman Sachs, por exemplo, um dos maiores perpetradores da última crise financeira, está agora tão rica — graças às operações de resgate financeiro do governo, a socorros na forma de isenção de impostos ou a perdão de dívidas tributárias — que está se preparando para a próxima crise. E, nas mãos de seus donos, o que não existe é escassez de capital. Desse modo, encher as mãos de seus executivos de mais dinheiro não tem por finalidade aumentar investimentos ou, no termo que costumam usar, gerar “empregos” — na verdade, o termo é apenas um artifício —, mas, simplesmente, aumentar a extraordinária concentração de riqueza e, com isso, consolidar a estagnação do restante da população. Acontece que isso é justamente o que se pode esperar quando se põe dinheiro nas mãos daqueles que seguem a máxima vil — aumentar os lucros e maximizar o poder. “Tudo para nós, e nada para os outros.”4
De fato, a General Electric não paga nenhum imposto, embora venha conseguindo lucros enormes. Isso permite que eles transfiram os lucros para outros lugares ou até adiem a aplicação deles, mas pagar impostos, de jeito nenhum — e isso é bastante comum. As grandes corporações americanas transferiram para o restante da população o fardo de manter a sociedade.

Transferindo de volta
De uma forma geral, a questão do aumento dos impostos dos ricos tem recebido forte apoio até de pessoas como as que votaram em Donald Trump em 2016 — eleitores que, quando analisamos, assumem atitudes socialdemocratas. Atitudes do tipo: “Abaixo o governo! Mais verbas para a educação, a saúde e mais ajuda para mulheres com filhos menores!” Não defendem o estado de bem-estar social, pois isso foi eficazmente demonizado — caso você se lembre das histórias de Ronald Reagan, bem-estar social significa um homem negro roubando o seu dinheiro num gabinete do governo. Mas defendem aquilo que o bem-estar pode proporcionar. De uma forma geral, o povo quer isso.
Tomemos o exemplo da campanha eleitoral de Bernie Sanders em 2016 — em toda parte, seus pontos de vista e suas posturas tiveram um apoio considerável do povo, ou talvez até um apoio majoritário, e eram bem comuns até pouco tempo atrás. De certa forma, a “revolução política” que Bernie Sanders pedia não teria surpreendido muito a Dwight Eisenhower. Nos últimos tempos, o espectro político dominante se deslocou de tal forma para a direita que o desejo majoritário da população e o que era o convencional soa agora radical ou extremista. Depende de nós fazer as coisas voltarem a ser como antes. Nos dias atuais, os democratas são muito parecidos com os que se costumava denominar de republicanos moderados, o tipo de republicanos partidários do pensamento de Nelson Rockefeller. Essa é hoje a posição predominante entre membros do Partido Democrata. Já os republicanos simplesmente estão fora desse âmbito — e nem sequer podemos dizer que ainda constituem um partido político de fato.
Os republicanos se deslocaram tanto para uma vertente de dedicação aos interesses dos ricos e do setor das grandes empresas que não podem alimentar a esperança de receber votos de eleitores que apoiem seus programas atuais. Por isso, passaram a mobilizar setores da população que sempre existiram, mas não como uma força de coesão política organizada: evangélicos, nativistas, racistas e vítimas de formas da globalização concebidas para fazer com que trabalhadores de todos os quadrantes do mundo resolvam competir entre si e, ao mesmo tempo, acabem protegendo os privilegiados. Esse modus operandi mina as medidas legais e outras mais que proporcionaram alguma proteção aos trabalhadores, além de outras formas de eles influenciarem tomadas de decisões em setores públicos e privados, principalmente quando estes últimos têm sindicatos eficazes.
Portanto, a grande questão é: é possível prosseguir com essa maciça mobilização popular e ampliá-la, de modo que se transforme numa força eficiente e capaz de inverter as tendências retrógadas que criaram uma situação horrível neste país?
4 Ver Pesquisa Econômica: Como a Crescente Desigualdade Está Prejudicando o Crescimento Econômico e Quais as Possíveis Soluções para Reverter Essa Tendência, Standard & Poor’s, 5 de agosto de 2014, na página 78.


Será que uma forte reação está ganhando forma?
[...] A concentração de riqueza e o controle de gastos públicos nas mãos de uns poucos talvez tenham limites. O que poderia fazer com que o elástico arrebentasse? [...]
A ameaça está em uma forte reação social [...] a mão invisível para de funcionar. Talvez uma das razões pelas quais as sociedades aceitam a existência de uma plutonomia esteja no fato de que boa parte do eleitorado acredita que pode se tornar um pluto-participante. Por que aniquilá-la se a pessoa pode ingressar nela? Em certo sentido, essa atitude é a encarnação do “sonho americano”. Porém, se os eleitores sentem que não podem participar, é bem provável que se vejam mais inclinados a repartir o bolo da riqueza do que tentar alimentar o sonho de ficarem muito ricos.
Poderiam as plutonomias findar porque o sonho está morto, pois grande parcela da sociedade não acredita que pode participar? A resposta, logicamente, é sim.
[...] Nossa conclusão é que uma forte reação contra a plutonomia poderá ocorrer algum dia. Contudo, esse dia não faz parte dos tempos atuais.”
(Plutonomia: Consumo de Artigos de Luxo, Explicação dos Desequilíbrios Globais, Citigroup, 16 de outubro de 2005)


“Somos o único país no mundo moderno que tem um sistema de saúde baseado, principalmente, num serviço de assistência médica privada que funciona quase sem controle de nenhuma norma legal, além de ser extremamente ineficiente e muito caro, com todo tipo de custos administrativos, burocracia, vigilância, esquema de cobrança rudimentar — coisas que simplesmente não existem em sistemas de saúde racionais. E não estou me referindo a nenhuma espécie de utopia — afinal, quase todas as outras sociedades industrializadas os têm e, aliás, eles são muito mais eficientes, tanto nos custos quanto nos resultados, do que este que temos nos Estados Unidos. Isso é um escândalo, sem falar nos milhões de pessoas que não têm nenhum seguro de saúde e vivem num estado de insegurança ainda maior.
Devo dizer que não são apenas as companhias de seguro e as instituições financeiras que estão por trás disso, mas também as grandes indústrias farmacêuticas. Acho que os Estados Unidos são o único país do mundo em que o governo é proibido, por lei, de negociar os preços de medicamentos. Assim, por exemplo, o Pentágono pode negociar os preços de lápis, mas o governo não pode negociar preços de medicamentos para o Medicare e o Medicaid. Aliás, existe uma exceção para isso, que é o da Veterans Administration, uma agência de amparo a ex-combatentes. Como ela tem permissão para negociar preços de medicamentos, eles saem bem mais baratos. São preços, por sinal, comparáveis aos do padrão mundial. Porém, uma lei foi criada para proibir que as pessoas em geral se beneficiassem de preços mais baixos em outros lugares, numa violação flagrante ao princípio de livre comércio. A retórica é de livre comércio, mas não as políticas públicas.
De fato, a Veterans Administration é muito mais eficiente, com custos de medicamentos mais baixos, despesas gerais menores e resultados superiores. Nos Estados Unidos, o Medicare em si é bastante eficiente — os custos administrativos do Medicare são muito menores do que os dos serviços de saúde privados. Lembrando que os dois são programas de saúde públicos. Porém, os custos do Medicare estão disparando porque ele tem de operar por intermédio do sistema de saúde privado e não regulado. Sabemos muito bem como podemos lidar com essas questões; aliás, estamos rodeados de exemplos que poderíamos usar para solucioná-las. Todavia, não podemos nem tocar nesses pontos, pois são fatores muito relevantes na economia. E é interessante ver o que acontece nos raros casos em que se fala nisso. Em matérias do The New York Times, elas têm sido classificadas às vezes como “politicamente impossíveis” ou “sem apoio político”, quando, na verdade, faz muito tempo que uma parcela majoritária da população quer a solução para elas.
Quando Obama sancionou a Lei de Proteção ao Paciente e do Programa de Assistência Médica Acessível, também conhecida como Obamacare, aventou-se a ideia da possível alternativa de um sistema público; em outras palavras, um sistema nacional de saúde pública. Ela tinha o apoio de dois terços da população. Mas a ideia foi abandonada — não houve nenhuma discussão. Se recuarmos ainda mais, aos últimos anos do governo Reagan, veremos que setenta por cento da população achavam que um sistema nacional de saúde pública deveria ser um direito garantido por lei constitucional. Aliás, cerca de quarenta por cento da população achavam que era uma garantia constitucional. Todavia, isso não é apoio político — afinal, apoio político só pode vir da Goldman Sachs, do JP Morgan Chase e de outros mais. Por fim, se tivéssemos um sistema nacional de saúde semelhante ao de outros países, não teríamos déficit, e sim, provavelmente, superávit.”

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