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domingo, 2 de setembro de 2018

A crise do neoliberalismo (Parte II) – Gérard Duménil e Dominique Lévy

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-368-4
Tradução: Paulo Cesar Castanheira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 368
Sinopse: Ver Parte I



“Os defensores do neoliberalismo se opõem a excessiva intervenção do Estado sempre que os governos coloquem limites à liberdade dos negócios, protejam os direitos dos trabalhadores, imponham impostos sobre as altas rendas, e assim por diante. O neoliberalismo rejeitou o Estado do compromisso social-democrático, não o Estado em geral. Estados neoliberais como emanações e instrumentos das hegemonias e compromissos prevalentes no topo das hierarquias sociais negociaram deliberadamente acordos visando à liberdade de comércio e à livre movimentação de capital que limitavam sua capacidade política. Foi esse, em particular, o caso na Europa, com a formação da União Europeia, mas também nos Estados Unidos. A criação do novo contexto de globalização neoliberal foi parte dos objetivos deliberados dos Estados, que espelham os das classes que representam.
Em geral, o papel dos Estados é fundamental para o estabelecimento e preservação de sociedades de classe, fazendo uso de seu potencial legal e recorrendo à violência direta, antes ou durante o neoliberalismo, mas não menos sob o neoliberalismo. Estados são as instituições centrais em que se definem as hierarquias de classe e os compromissos de cada ordem social. Dependendo das características políticas das configurações de poder, mais ou menos espaço é liberado para a expressão das tensões entre os componentes do compromisso, mas os Estados são sempre as instituições em que esses compromissos são definidos e o instrumento que assegura sua prevalência.”


“A análise mostra a enorme expansão dos mecanismos financeiros e globais, às vezes num período muito curto, e as consequências dramáticas do neoliberalismo e da globalização neoliberal na sua configuração mais avançada. Todas as barreiras — regulamentos e fronteiras entre países — foram levantadas. A dinâmica selvagem de um mundo de livre comércio e movimentação livre de capitais alterou os mecanismos econômicos básicos. Macropolíticas perderam seu potencial estabilizador. O surto de expansão mais recente após 2000 marcou a última fase da construção de uma estrutura altamente frágil e pouco funcional.
A busca descontrolada dos altos níveis de renda
A raiz da expansão dos mecanismos financeiros e da globalização durante as décadas neoliberais é a busca de altos lucros e, de modo mais geral, de altos níveis de renda. Notadamente, a expansão financeira na década anterior à crise foi conduzida pelos segmentos mais avançados das classes altas e as instituições financeiras de ponta. Proprietários capitalistas, altos administradores e gerentes financeiros se envolveram em conjunto nas corporações financeiras, nas não financeiras e nas empresas de private equity. A busca foi levada ao extremo.
Julgado pelos seus próprios objetivos, esse esforço foi muito bem-sucedido, até a chegada da crise. A renda das faixas mais altas aumentou dramaticamente durante as décadas neoliberais. O aumento dos lucros e do valor das ações das empresas financeiras alimentou o crescimento acelerado dos ganhos. O único meio de avaliar os graus atingidos no mundo restrito dos hedge funds e empresas de private equity é ouvir os discursos orgulhosos dos administradores de fundos hedge sobre as suas altas taxas de retorno.
Mas existe uma distância entre a observação dos resultados e uma interpretação que segue a financeirização e globalização até a busca de altos níveis de renda. No centro da interpretação de classe do neoliberalismo está a afirmação de que tudo que o neoliberalismo fez em benefício de uma minoria é o que essa minoria — nas suas empresas, governos, instituições internacionais e assim por diante — lutou para conquistar. Esses resultados teriam sido impossíveis se não se tivesse suprimido a regulação, principalmente a regulação financeira, e as limitações ao comércio internacional e às movimentações de capital. Retrospectivamente, a crise demonstra que a lógica foi esticada além da razão, fato com o qual concorda a maioria dos analistas, exceção feita aos adoradores intransigentes da ideologia do mercado livre. (...)
Além dos fatores — a busca sem limites de níveis altos de renda, fluxos de renda real baseados em excedentes fictícios, tendências gerenciais tendenciosas, e desregulação discutidos anteriormente, as tendências inerentes à globalização neoliberal tiveram um forte impacto desestabilizador na estabilidade macroeconômica.
A política monetária do banco central, possivelmente suplementada quando necessário pela política fiscal, é um componente crucial do controle da macroeconomia. Isso foi verdade antes e durante as décadas neoliberais. A função da política monetária é ajustar os níveis de crédito de acordo com a situação da macroeconomia, tanto para cima quanto para baixo. A macroeconomia (produção e preços) se desorientaria na ausência dessas políticas.”


“A fragilidade da estrutura financeira global e o caráter insustentável da trajetória da economia dos Estados Unidos são as duas classes de determinantes que levaram à crise (1: a globalização e a financeirização liberais; 2: a macrotrajetória insustentável da economia dos Estados unidos). De um lado, a ausência da restrição à preservação do equilíbrio da conta corrente do país tornou possível a continuação da busca pelo aumento de renda por parte das classes altas por meio do avanço ousado da financeirização e da globalização. Simultaneamente, somente a expansão ao extremo dos mecanismos financeiros tornou possível o aumento da dívida das famílias, condição básica para a continuação da trajetória da economia norte-americana, sem a qual ela teria estagnado (sendo a alternativa o aumento da dívida do governo).
Com relação à estabilidade da estrutura geral, o financiamento crescente por parte do resto do mundo e a dívida interna, considerados intrinsecamente, representaram desenvolvimentos perigosos. Sob esse aspecto, a ameaça citada com mais frequência são as possíveis consequências dos déficits norte-americanos na taxa de câmbio do dólar. Os estrangeiros estarão dispostos a continuar emprestando para um país cuja dívida externa cresce continuamente? Embora o setor privado esteja na origem do grosso do financiamento externo da economia norte-americana, muitos comentaristas apontam para a dívida do governo. A China vai continuar a comprar títulos do Tesouro dos Estados Unidos? Entretanto, o gatilho da crise não foi o colapso do dólar. O neoliberalismo sob a hegemonia norte-americana foi desestabilizado pela onda sísmica da crise dos mercados de hipotecas, indicando a fraqueza da dívida das famílias, um componente básico da trajetória da economia norte-americana. É aí que se torna crucial a relação entre as duas classes de determinantes. A fraqueza inerente à dívida das famílias pode ser imputada separadamente a cada uma das classes de determinantes:
1. O aumento da dívida das famílias pode ser abordado como um componente das tendências à financeirização e globalização próprias do neoliberalismo. Foi motivado pela busca de altos níveis de renda, tornada possível pelas audaciosas inovações financeiras, e levado ao extremo pela capacidade de financiamento do resto do mundo. O suficiente para desestabilizar uma frágil estrutura financeira.
2. O aumento da dívida das famílias foi produto direto da trajetória da economia norte-americana e dos dois desvios neoliberais. Ano após ano, mais crédito era necessário pela manutenção dessa trajetória. Mais, até o limite da sustentabilidade. Novamente, o suficiente para um grande colapso financeiro.
A dívida das famílias na verdade define a interseção entre as duas classes de determinantes, o seu ponto de convergência. Essa convergência não explica a crise em si. Ela define a modalidade exata, ou seja, como a crise chegou ao mundo.”


Política monetária
A política monetária se refere a um conjunto de mecanismos pelos quais o banco central, motivado por vários objetivos, modifica as condições segundo as quais os empréstimos são oferecidos aos agentes econômicos, impactando, assim, os níveis de demanda (consumo e investimento) e produção da economia. (“Política monetária” é, de certo modo, um nome incorreto para “política de crédito”.) Os objetivos da política monetária são a estabilização da macroeconomia (a limitação dos aquecimentos e recessões, e a luta contra o desemprego) e o controle da inflação. No neoliberalismo a prioridade é dada à estabilidade de preços1.
O instrumento básico é a taxa de juro cobrada pelo banco central nos seus empréstimos às instituições financeiras. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve ajusta uma “taxa alvo” e as transações são finalmente executadas pelo que é conhecido como taxa dos Fundos Federais. A manipulação dessa taxa altera a capacidade dos bancos de emprestar aos agentes que estão na origem da produção e da demanda.
A diferença entre taxas de juro de longo e de curto prazo é importante. Nos Estados Unidos, o impacto das políticas do Federal Reserve sobre as taxas de juro de curto prazo que os bancos cobram dos tomadores de empréstimos é imediato2 e intrinsecamente impacta as decisões tomadas pelos agentes econômicos (geralmente empresas em busca de liquidez). Uma alavanca da política monetária é, entretanto, a capacidade de influenciar diretamente as taxas de juro de longo prazo, principalmente as que são cobradas nos empréstimos hipotecários, o principal canal pelo qual a política monetária afeta a demanda final (com efeitos sobre os investimentos residenciais e sobre o consumo em sentido estrito).
Existem duas condições básicas para a eficácia da política monetária. Primeiro, deve haver uma demanda por empréstimos na economia. Sob condições normais esse requisito é cumprido. Se a busca por empréstimos é temporariamente muito baixa ou lenta, o governo deve intervir como “tomador último”, como se dá na política fiscal. Um segundo requisito é um sistema de crédito muito “saudável”. Na condução da política monetária, o sistema de crédito opera como uma “correia transmissora”, já que o banco central financia as instituições financeiras, principalmente os bancos, que por sua vez emprestam aos agentes econômicos na origem dos fluxos de demanda. Consequentemente, uma crise bancária pode tornar a política monetária ineficaz, como se deu no início da década de 1930 ou na crise atual. Quando a correia de transmissão está quebrada ou frouxa, os créditos se contraem no que é chamado de “arrocho de crédito”.”
1: Outra função do banco central (possivelmente suplementada por outras instituições) é o controle da atividade do setor financeiro.
2: Desde o final de 1992, as taxas de juro de curto prazo dos empréstimos bancários para as empresas (taxas preferenciais) são iguais à taxa de Fundos Federais mais três pontos percentuais.


“Outro instrumento nas mãos do Federal Reserve era a re-regulamentação, mas as tendências vigentes eram favoráveis à desregulamentação. A despeito do compromisso inabalável de Greenspan com a economia de livre mercado, o resultado final dessa política de juros puros por parte do Federal Reserve não foi a esperada aterrissagem suave, mas a explosão da crise do subprime3. Na crise, Greenspan reconheceu que, na realidade, estava errado: “Cometi o erro de admitir que o interesse próprio das organizações, especificamente os bancos, é tal que eles seriam os mais capazes de proteger os acionistas e o capital próprio nas empresas”4.
Uma defesa tardia e surpreendente da análise de Keynes.
3:  (...) Alan Greenspan preferiu sustentar a macroeconomia norte-americana no curto prazo. Se a taxa de Fundos Federais tivesse sido fortemente aumentada antes do que o foi, a economia dos Estados Unidos não teria se recuperado da recessão, ou a recuperação teria sido muito fraca. Não havia nenhuma saída direta. Uma opção seria uma política monetária de estímulo, acompanhada por certo grau de regulação dos mercados hipotecários e de securitização. É aí que estaria envolvida mais diretamente a responsabilidade de Greenspan, pois essas práticas estavam em desacordo com suas opiniões relativas à autodisciplina dos mercados. Mas o caminho era estreito.
4: Resposta ao congressista Henry Waxman, do Comitê de Supervisão e Reforma do Governo em 23 de outubro de 2008.”


“Apesar da crença profundamente enraizada na economia de livre mercado e na chamada disciplina dos mercados, a crise deu início a uma cadeia de intervenções por parte das instituições centrais. Não há nada de surpreendente nessa reversão súbita dos princípios básicos do credo neoliberal. O neoliberalismo não se trata de princípios ou ideologia, é uma ordem social que busca o poder e a renda das classes mais altas. Ideologia é um instrumento político. Considerado desse ângulo, não houve mudança de objetivos. No neoliberalismo, o Estado (tomado aqui no sentido mais amplo que inclui o banco central) sempre trabalhou a favor das classes altas. O tratamento da crise não é exceção, só diferem as circunstâncias e, consequentemente, os instrumentos. A possibilidade de uma crise estrutural profunda e duradoura gerar uma nova ordem social, expressão de compromissos e hierarquias de classe diferentes, é outra história.”


“Apesar das óbvias diferenças de contexto, os aspectos comuns entre a primeira metade do século XX e o capitalismo contemporâneo são impressionantes. Oitenta anos depois, a mesma lógica obstinada oculta atrás da busca do lucro e alto nível de renda levou o capitalismo ao longo de um caminho histórico insustentável, em que a regulamentação e o controle foram sacrificados no altar da liberdade sem limites para a ação de uma minoria privilegiada. Dinâmicas semelhantes levaram a resultados comparáveis.
Não existe acordo geral relativo à interpretação da Grande Depressão, um fenômeno multifacetado. Explicações alternativas são o excesso ou a falta de concorrência, uma falta estrutural de demanda provocada por um viés na distribuição de renda, um erro na condução das políticas, as consequências sobre a demanda da queda dos preços das ações, e assim por diante. Essa diversidade de diagnósticos é expressão das divergências mais básicas na interpretação ampla da história do capitalismo. (...)
Num nível mais alto de generalização, pode-se ser levado a interpretar a Depressão como o resultado da combinação por parte das classes capitalistas no início do século XX de, de um lado, uma enorme capacidade de estimular a inovação técnica, organizacional e financeira e, de outro, uma assustadora resistência a criar as instituições e mecanismos exigidos pela estabilização do setor financeiro e da macroeconomia. Houve uma forte resistência à criação de instituições centrais capazes de se contrapor ao potencial desestabilizador inerente à formação de uma estrutura monetária e de crédito moderna, e não se tentou moderar o avanço dos mecanismos financeiros durante os anos 1920.
Na análise dos processos sociais, é importante não fazer referência a motivações individuais em termos de mera “recusa” ou “vontades”, como expresso em esforços deliberados. Mas é igualmente necessário enfatizar a consciência geralmente clara das implicações das transformações sociais por parte das classes altas, de segmentos de classe ou de grupos de interesses estreitos. Há uma profunda percepção — ainda que por vezes mal orientada e com possíveis opções divergentes — dos interesses dessas comunidades por seus membros. Há uma visão tipicamente de direita dos interesses capitalistas básicos que está constantemente oculta sob as controvérsias correntes e a tomada de decisão (como no neoliberalismo). Ela manifesta uma forte aversão à excessiva intervenção do Estado (exceto quando exigido pela preservação dos interesses imediatos), a defesa dos livres mercados (ou seja, a busca ilimitada das rendas mais altas), a afirmação de que a “disciplina” do mercado é suficiente para assegurar a estabilidade do sistema, a necessária flexibilidade dos mercados (em particular o mercado de trabalho), os supostos efeitos negativos da organização dos trabalhadores, o medo da inflação, e assim por diante. Intelectuais importantes, politicamente orientados para a direita, dão a esses princípios a aparência de declarações científicas, congressos e think tanks contribuem para seu refinamento e renovação constantes. Lobistas agem para convencer funcionários do governo sempre que se fizer necessário.
A investigação histórica revela a percepção aguda das apostas sociais em torno da evolução da regulação financeira e das macropolíticas financeiras centralizadas. Houve nos Estados Unidos uma oposição forte e duradoura à criação de um banco central. Foi necessária toda a violência das crises recorrentes. E quando o banco foi criado, ele continuou a agir sobre princípios retrógrados, como a doutrina das notas reais, que ligava o nível adequado de crédito ao volume de comércio. Mesmo no capitalismo contemporâneo, antes da crise, existiu uma forte oposição nos níveis mais altos da administração (embora não se questionasse o papel central do Federal Reserve). Somente um punhado de pensadores ultradireitistas ainda se opõem ao Federal Reserve ou EPGs, em defesa da ausência da responsabilidade financeira quanto às consequências das decisões.”


“Do ponto de vista da sua gênese durante os anos 1930 e 1940, as principais características do novo capitalismo do pós-guerra podem ser resumidas da seguinte forma. O mercado existe, no sentido de que as empresas privadas decidem investimentos produção e preços. O Estado é grande. O setor financeiro é regulado. Limites sérios são impostos sobre o livre comércio e a livre movimentação internacional de capital. O controle da macroeconomia está nas mãos das instituições centrais. O direito de o trabalho se organizar é, até certo ponto, garantido. A concentração de salários e, de modo mais geral, de rendas em benefício das faixas mais altas de renda é reduzida. Uma fração limitada dos lucros é paga como dividendos, e o mercado de ações aumenta moderadamente. É garantido certo grau de bem-estar.
Além da correção da contração da produção, foi necessária cerca de uma década e meia – uma depressão e uma guerra – para a economia dos Estados Unidos e a sociedade em geral realizarem essa metamorfose. Uma forte liderança política e todos os músculos do movimento trabalhista foram exigidos, (este seria) um programa para as próximas décadas num cenário otimista.”


As lutas populares: diversidade crescente
Trinta anos de globalização neoliberal sob a hegemonia norte-americana gradualmente impuseram a visão da convergência de todas as ordens sociais para uma única configuração. Os sofrimentos nos países sujeitos à nova ordem neoliberal, como na África, Ásia e América Latina, foram apresentados pelos inquilinos do neoliberalismo como os efeitos infelizes de uma capacidade deficiente de se adaptar a um destino comum inescapável. O mesmo vale para as frações da população especificamente prejudicadas pelo neoliberalismo em todos os países. O mundo inteiro foi alegadamente programado para convergir para o modelo comum, mesmo a China. Isso foi executado, mas também com algumas limitações que podem desempenhar um papel significativo durante as próximas décadas:
1. Em primeiro lugar, as regras internas do neoliberalismo tiveram de ser introduzidas em todos os países, o que foi, em grande parte, feito com sucesso. Por toda parte, o “mercado” (outro nome para a liberdade de agir das classes altas e dos países mais poderosos) teria de dominar. Essa estrutura combinaria um apoio mínimo para as frações mais fracas da população, seguro-saúde privado e fundos de pensão, mas não um sistema de bem-estar que pudesse manifestar uma ameaçadora solidariedade no meio das classes populares.
Esse quadro “róseo” do ajuste global às tendências neoliberais, como nas mentes dos líderes neoliberais, nunca correspondeu completamente aos acordos sociais prevalentes. Na maioria dos países, o compromisso neoliberal entre as classes altas é menos avançado que nos Estados Unidos. Na Europa (com situações distintas em diferentes países) e no Japão, os padrões sociais anteriores nunca foram totalmente deslocados, nem mesmo nos Estados Unidos. As sociedades europeias ou a sociedade japonesa ainda são penetradas pela experiência das décadas do pós-guerra, com forte envolvimento do governo em assuntos econômicos e sistemas de bem-estar. Embora grandes partidos políticos tradicionalmente considerados entidades de esquerda tenham se movido na direção do compromisso neoliberal (como no chamado “caminho do meio” das décadas de 1980 e 1990), um segmento do movimento popular, como os sindicatos e organizações da esquerda radical, ainda é inspirado pela lembrança de uma configuração alternativa de poder.
2. No que diz respeito às relações internacionais, (o neoliberalismo defende que) cada país deveria ocupar seu lugar específico na divisão internacional do trabalho, com grandes zonas de livre comércio ou num mundo totalmente aberto aos fluxos internacionais de mercadorias e capitais. Países da periferia deveriam se especializar nas atividades em que têm melhor desempenho. (“Desempenho” deve ser entendido aqui em comparação com outras atividades, uma taxa de câmbio que torne possível sua competitividade internacional e o equilíbrio do comércio externo, como na teoria das vantagens comparativas.) Assim, a periferia poderia ser capaz de oferecer mercadorias baratas ao centro e oportunidades de lucro aos investidores em outras palavras, o melhor das palavras imperiais do neoliberalismo. Mas estratégias nacionais de desenvolvimento mais complexas são postas em prática, não só na China, e a resistência às pressões imperialistas às vezes é forte.
Depois de mais ou menos vinte anos de ajustes (às vezes dramáticos, como nas ditaduras, ou nas crises da década de 1990 no México ou na de 2001 na Argentina), a América Latina é a primeira região do mundo em que as lutas populares, votos e novas políticas manifestaram uma recusa da ordem imperialista neoliberal. O Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), efetivado em janeiro de 1994, foi imposto ao México quando o neoliberalismo ainda estava na ofensiva. Mas a projetada Área de Livre Comércio das Américas (Alca), iniciada em 2001, perdeu o prazo de 2005, na esteira do fracasso da Rodada Doha da OMC. (Desde o fim de 2009, o processo está em negociação, mas com poucas chances de sucesso.) A Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba) foi criada no início de 2004 com a Venezuela e Cuba e, a partir de 2010, já incluía também a Nicarágua, Bolívia, Equador e três pequenas ilhas do Caribe. A eleição de governos orientados para a esquerda na América do Sul sinaliza uma tendência semelhante (com exceção da Colômbia e Peru).
Já depois da Segunda Guerra Mundial, a prevalência de um mundo bipolar permitiu certo grau de autonomia no que era conhecido como “terceiro mundo” em relação às duas superpotências da época. Emblemático do período foram a Conferência de Bandung, de 1995, a industrialização por substituição de importações na América Latina e um forte envolvimento dos governos no desenvolvimento de muitos países (inspirados pela industrialização europeia no século XIX e pelo sovietismo daqueles anos). A crise do neoliberalismo está criando uma oportunidade semelhante para ser agarrada pelos países em desenvolvimento. A configuração exata ainda deve ser encontrada e a transição, administrada.
Resumindo, entre as questões cruciais das próximas décadas estão as trajetórias econômicas e políticas em outras regiões do mundo. Que tendências irão prevalecer? Ê difícil imaginar um mundo dominado pela dinâmica neoliberal e os Estados Unidos atraídos para novas lógicas. A Europa não necessita enfrentar as restrições de uma trajetória insustentável, como os Estados Unidos. A situação europeia é muito menos grave, é apenas medíocre. A questão principal é o que vai acontecer com as ordens sociais dominantes em países como China, Rússia, Índia e Brasil. A continuação do movimento em direção ao neoliberalismo ou caminhos inovadores? O mesmo vale para as tendências socialdemocratas que hoje prevalecem na América Latina.
Assim, o destino do neoliberalismo numa escala mundial não está estritamente nas mãos dos Estados Unidos nem da Europa e, nas próximas décadas, deverá estar ainda menos. Esse destino será em grande parte determinado no longo prazo pelo caminho seguido pelos desafiantes de outras regiões do mundo. Depois de trinta anos de globalização neoliberal, essa situação abre novas perspectivas. Fundamentais para as tendências históricas serão os rumos políticos na China e na América do Sul.”


O caminho para a centro-direita
Apesar das circunstâncias históricas completamente distintas, a crise contemporânea cria uma grande oportunidade histórica para as lutas populares, reminiscente da Grande Depressão. Dominar a situação presente da economia norte-americana — reconstrução do sistema financeiro, restauração das tendências de acumulação e correção dos desequilíbrios — exige a contenção dos interesses das finanças. Há potencial na crise para desestabilizar a coesão entre as classes altas, como se deu durante a década de 1930.
Assim, um cenário otimista é que a situação criada poderia operar a favor de uma transição evocativa do New Deal, em que um grande segmento das frações superiores dos assalariados busca e, de fato, encontra o apoio das classes populares. A passagem à liderança seria realizada sob a pressão de um movimento popular. Essas tendências criariam as condições favoráveis às demandas das classes populares, pois os gerentes iriam necessitar do apoio destas para realizar seus novos objetivos. Em outras palavras, não haveria nenhuma outra opção para acalmar os interesses capitalistas que não essa esperança nas classes populares. Funcionários do governo, aliados a frações da gerência (outros componentes que não a gerência financeira, os segmentos técnicos e inferiores da gerência etc.) que não estejam irreversivelmente comprometidos com a defesa das frações mais ricas da população, não teriam outra escolha que não confiar no apoio popular.
Os primeiros sintomas tímidos desse movimento por parte de uma fração das classes altas ficaram evidentes no tratamento inicial da crise contemporânea nos Estados Unidos dado pelo governo Obama, principalmente no que se refere às altas rendas, tributação, regulação e bem-estar. Desde o fim de 2009, contudo, o novo curso dos acontecimentos não manifesta a prevalência dessas tendências políticas.
Um cenário pessimista é que, na ausência de um impetuoso movimento popular, seria possível criar uma oportunidade para uma alternativa de extrema direita, o pior de todos os resultados, mas um resultado que não pode ser afastado*. Foi o que a luta popular de apoio à ação do presidente Roosevelt evitou durante os anos entre guerras, enquanto em outros países, como a Alemanha nazista, prevaleceu a extrema direita. As consequências teriam sido terríveis, com repressão nacional e propensão a perigosas aventuras militares internacionais, pior que as tendências neoconservadoras que, em certo sentido, marcariam o seu ponto máximo.
O capitalismo neogerencial define um terceiro cenário, mais realista. Uma característica estrutural das relações sociais nos Estados Unidos, significativamente diferente das de outros países, é a relação íntima entre os componentes das faixas mais altas da pirâmide social. A contenção dos interesses capitalistas durante o compromisso do pós-guerra já tinha sido significativamente menos aguda nos Estados Unidos que na Europa ou no Japão. Esses traços se manifestam no compromisso neoliberal e no processo de hibridização no topo, quando as economias das faixas mais altas de salários já estão investidas em securities e os proprietários também estão engajados na alta administração e, como tal, nababescamente remunerados.
No pós-neoliberalismo, essas ligações privilegiadas poderiam operar no curto prazo, para atrasar a realização das mudanças radicais urgentemente necessárias, caso os gerentes e funcionários hesitem em prejudicar por meio de medidas drásticas os interesses dos seus “primos” sociais, os proprietários capitalistas. Desde 2009, esses acordos parecem prevalecer. Mas, em prazo mais longo, essas configurações ocultas no topo das hierarquias sociais também oferecem bases robustas para uma estratégia conjunta das classes altas, independentemente da distribuição de poder e das consequências sobre os padrões de renda. Isso significa um grande potencial de mudança, embora não favorável às classes populares.
Assim, em geral, as tendências sociais indicam o estabelecimento no topo das hierarquias sociais de um novo compromisso de centro-direita, e não de centro-esquerda. Dado o que o capítulo anterior chama de “fator nacional” e a fraqueza das lutas populares, essa nova estratégia do capitalismo neogerencial parece ser o resultado mais provável da crise do neoliberalismo nas próximas décadas.”
*: O livro foi escrito em 2014 – antes, portanto, da eleição de Donald Trump.

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