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terça-feira, 22 de maio de 2018

Socialismo: uma utopia cristã (Parte IV) – Luiz Francisco F. de Souza

Editora: Casa Amarela
ISBN: 978-85-8682-147-9
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 1152


“Max Beer, na obra História do socialismo e das lutas sociais (Editorial Lalvino Ltda., Rio de Janeiro, 1944, p. 458, 2° volume, trad. de Horácio Mello), traz um bom texto de Necker:
Jacques Necker, ministro das Finanças de Luís XVI (1732-1804), terminou sua obra sobre o comércio dos cereais com as seguintes palavras;
“Contemplando a sociedade, é impossível deixar de verificar que todas as leis, todas as instituições sociais têm por finalidade única a garantia do bem-estar dos ricos. Se abrirmos um código de leis, ficaremos horrorizados porque iremos encontrar, em cada página, a confirmação dessa verdade. Compulsando as leis, tem-se a impressão de que uma ínfima minoria, um punhado de homens, dividiram a terra e fizeram as leis para se defender contra a massa de indivíduos que nada possuem. (...) As leis, para esses homens, têm a mesma utilidade que as cercas que se levantam para proteger as florestas das incursões de animais ferozes.
De fato, “as leis” e “as instituições sociais” liberais (capitalistas) têm como finalidade primária defender os interesses dos ricos (do latifúndio e do capital, especialmente do capital monopolista, dos trustes e cartéis). No entanto, tais “leis” e "instituições" podem e devem ser alteradas, para abolir essas formas jurídicas arcaicas e servis aos ricos (a empresa capitalista e o latifúndio), substituindo-as por formas jurídicas cooperativas que realizem o bem comum.
A propriedade quiritária, absoluta, somente beneficia os ricos. Na verdade, nem mesmo a esses, pois mergulham os capitalistas num terrível vazio existencial (cf. Viktor Frankl, Louis Lavelle e outros) e, por isso, vivem embriagados, drogados, etc. Livrar os ricos dos bens supérfluos (e das formas jurídicas concentradoras de bens) é libertar os ricos do mal, proporcionando a estes a chance de se regenerarem.”


“O padre Sieyès nasceu em 1748 e estudou em Saint Sulpice. Até 1799, não teve paróquia. Depois, com a ajuda do Lubersac, bispo de Treguier, foi nomeado vigário-geral. Participou da Assembleia provincial de Orleans. De novembro de 1788 a janeiro de 1789, publicou Vista sobre os meios de execução que os representantes da França poderão dispor em 1789, Ensaio sobre os privilégios e O que é o terceiro Estado?. Escreveu textos como:
É, portanto, uma verdade eterna (...) que a ação pela qual o poderoso manténs sob seu jugo o mais fraco não poderá jamais transformar-se em direito; por outro lado, é sempre um direito aquilo que o mais fraco faz para escapar do jugo do poderoso, além de ser um dever no que toca a si próprio.”


“Sobre a relação dos socialistas com o clero e os erros do anticlericalismo, vejamos dois textos de Luis Carlos Prestes, publicados na revista Divulgação Marxista, n.° 1, de 1/7/1946 (Editorial Calvino Limitada, Rio de Janeiro, pp. 89-92), que explicitou a posição do PCB (expressa por Prestes), sobre a proibição — devido à tolice — do anticlericalismo:
Numa sabatina realizada entre os ferroviários, uma das perguntas dirigidas a Prestes foi sobre posição do Partido Comunista do Brasil em face da religião. Eis, em síntese, a resposta de Prestes:
“Há clero e há clero.
Existem realmente padres reacionários ligados aos exploradores do povo e aos fascistas. (...) Fazem parte do alto clero, que vive na pompa e na abastança, alheio aos padecimentos do povo e indiferente aos seus justos anseios e aspirações.
Mas existem também os padres que vivem ligados às massas mais desprotegidas, que participam da vida dos trabalhadores e conhecem de perto a sua luta, o seu esforço para vencer as condições adversas da sua vida. Esses não nos atacam, e são sacerdotes amigos do povo, como o foram o padre Miguelino, o padre Roma, frei Caneca e tantos outros vigários que, nos subúrbios e no interior, vivem com o povo, amparando-o e ajudando-o. (...)
As portas do Partido Comunista estão abertas para todos os que queiram vir lutar conosco ao lado do povo. Temos, entre nós, católicos, protestantes, espíritas, homens de todas as crenças, que são, antes de mais nada, democratas convictos e honestos. O Partido Comunista sempre contou em suas fileiras com grandes lutadores católicos, democratas honestos e verdadeiros antifascistas que, ao lado do nosso povo, vieram lutar pela democracia. Hoje, os católicos nas fileiras do Partido são em número muito maior ainda. (...)
Aqui, centenas e centenas de católicos integram as fileiras do Partido Comunista e, conosco, lutam na vanguarda do proletariado e pelo engrandecimento de nossa Pátria, pela liquidação total do fascismo e pelo fortalecimento da democracia.
Na Europa, os católicos lutaram com grande heroísmo contra o nazifascismo que escravizou suas Pátrias até a libertação trazida pelas armas das nações aliadas.
Na França e na Itália, por exemplo, lutam ao lado dos comunistas e demais democratas, que não aceitaram a dominação nazista ou fascista”. (...)
Numa sabatina realizada em Belo Horizonte, respondendo a uma pergunta sobre qual deve ser a conduta de comunistas que foram anticlericais antes de entrarem para o PCB, Prestes esclareceu:
“Nenhum comunista pode ser anticlerical, e muito menos quando ocupar um cargo de direção no Partido.
Se o companheiro que fez essa pergunta é um dirigente do Partido e já foi anticlerical, nesse caso deverá fazer uma autocrítica pública, escrevendo um artigo num jornal, por exemplo, explicando que não é mais anticlerical, porque isso é lutar contra o Partido.
O anticlerical é uma deformação pequeno-burguesa uma manifestação de caráter anarquista. E nós não somos anarquistas, somos marxistas. Os comunistas, e principalmente os marxistas não podem combater a religião, de acordo com a própria natureza da doutrina que abraçam.
Os fascistas e reacionários sustentam sua campanha principalmente sobre dois pontos a que dão uma falsa interpretação. (...)
Com efeito, a linguagem usada pelas religiões e pelos padres, quando dizem que o pobre deve ter pena dos ricos e deve rezar por eles porque eles irão para o inferno, e que “é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar nos reinos dos céus”, a nosso ver justifica o ponto de vista de Marx.
Com isso, entretanto, Marx não procura ofender nenhum crente, nenhuma religião, nem aconselha ninguém a lutar contra nenhuma crença.


         “No livro G. Babeuf, o tribuno do povo (editado pela Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1977, p. 48), foi possível colher os seguintes textos de Babeuf, repletos de ideias religiosas:
         (…) Assentamos em que a perfeita igualdade decorre do direito primitivo.
que o pacto social, longe de atentar contra este direito natural, apenas deve dar a cada indivíduo a garantia de que tal direito jamais será violado, que a partir de então jamais deveria ter havido instituições que favorecessem a desigualdade, a cupidez, que permitissem que o necessário de uns pudesse ser invadido para formar o supérfluo de outros. (...)
Verificamos, todavia, que tinha acontecido o contrário; que convenções absurdas se tinham introduzido na sociedade e haviam protegido a desigualdade, permitido a espoliação da maioria pela minoria;
que houve épocas em que as derradeiras consequências dessas mortíferas regras sociais consistiram em que a universalidade das riquezas de todos se encontrava concentrada nas mãos de alguns;
em que a paz, natural quando todos são felizes, se encontrava então necessariamente ameaçada; em que a massa do povo, impossibilitada de sobreviver, desapossada de tudo, reencontrava na casta que tudo açambarcou apenas corações desapiedados; todos estes efeitos provocaram o aparecimento da época das grandes revoluções, dos períodos memoráveis, profetizados no Livro dos tempos e do destino, quando uma subversão geral de todo o sistema de propriedade se torna inevitável, quando a revolta dos pobres contra os ricos é de uma necessidade invencível.
(...) É mais do que tempo. É tempo de o povo, espezinhado e assassinado, manifestar, de uma maneira mais imponente, mais solene, mais geral, que jamais se cumpriu a sua vontade, para que, não somente os sinais, os adereços da miséria, mas a realidade, a própria miséria, seja eliminada. Que o povo proclame o seu Manifesto. Que nele defina a democracia como considera que a deve ter e tal como, segundo os puros princípios, deve existir. Que prove que a democracia consiste na obrigação de satisfazer, pelos que têm demasiado, tudo quanto falta aos que de modo algum possuem o suficiente! Que todo o deficit que se encontra na fortuna desses apenas provém do que aqueles lhe roubaram.
Roubo legal, se assim se quer, isto é, graças a leis de salteadores que, sob os regimes mais recentes como sob os mais antigos, permitiram todos os latrocínios; graças a leis iguais a todas as que existem presentemente; graças a leis segundo as quais sou forçado, para viver, a desfazer-me todos os dias de mais um pouco da minha casa, de levar a todos os ladrões que tais leis protegem até ao último farrapo que me cobre! Que o povo declare que exige a restituição de todos roubos, dessas vergonhosas confiscações dos ricos sobre os pobres. Tal restituição será tão legítima, sem dúvida, quanto a que é feita a emigrados. Através do restabelecimento da democracia, queremos, em primeiro lugar, que os nossos farrapos e os nossos velhos móveis nos sejam devolvidos e que esses que deles se apropriaram fiquem no futuro impossibilitados de recomeçar semelhantes atentados. Queremos, depois, isso a que temos direito e de acordo com o que se tem por justo.
(...) Explicaremos claramente em que consiste a felicidade comum, fim da sociedade.
Demonstraremos que o destino de qualquer homem não devia piorar com a passagem do estado natural ao estado social.
Definiremos a propriedade.
Provaremos que a terra não pertence a quem quer que seja, mas sim a todos.
Provaremos que tudo quanto um indivíduo se apropria além do que lhe é suficiente para o sustentar constitui um roubo social.
Provaremos que tudo quanto um membro do corpo social possui abaixo do que lhe basta para satisfazer as suas necessidades de todo o gênero e de todos os dias resulta de uma espoliação da sua propriedade natural individual realizada pelos espoliadores dos bens comuns.
(...) Que, na mesma ordem de consequência, tudo quanto um membro do corpo social possui acima do que lhe basta para satisfazer as suas necessidades, de todo o gênero e de todos os dias, resulta de um roubo realizado aos outros coassociados, que necessariamente priva um número maior ou menor da sua cota-parte nos bens comuns.
Que quaisquer raciocínios, por mais sutis que sejam, não podem prevalecer contra estas inalteráveis verdades.
Que foi assim que, no estado social, se destruiu, se arruinou, o equilíbrio do bem-estar, uma vez que nada se prova melhor do que a nossa grande máxima: não se consegue possuir demasiado sem fazer com que outros não possuam o suficiente.
Que é claro, pelo que precede, que tudo quanto possuem os que têm haveres para além da sua cota-parte individual nos bens da sociedade constitui roubo e usurpação.
Que, por consequência, é justo reavê-lo.
Que, mesmo quem provasse que, por efeito unicamente das suas forças naturais, seria capaz de fazer tanto quanto quatro e que, por conseguinte, exigisse a retribuição de quatro, nem por isso seria menos um conspirador contra a sociedade porque, por esse único meio, lhe destruiria o equilíbrio e, assim, a preciosa igualdade.
            (...) Que não existe verdade mais importante do que a que (...) um filósofo proclamou nos seguintes termos: discorrei tanto quanto vos apeteça acerca da melhor forma de governo, nada conseguireis enquanto não destruirdes os germes da cupidez e da ambição.
Que é preciso, portanto, que as instituições sociais consigam suprimir em todo o indivíduo a esperança de se tornar alguma vez mais rico, mais poderoso, mais culto do que qualquer dos seus iguais.
Que, para precisar melhor isto, importa conseguir acorrentar a sorte, tornar a de cada parceiro social independente dos acasos e das circunstâncias felizes e infelizes, assegurar a cada qual e à sua posteridade, por mais numerosa que seja, a suficiência, mas nada mais do que a suficiência, e fechar para quem quer que seja todas as vias possíveis para que jamais obtenha além da cota-parte individual nos produtos da natureza e do trabalho.
(...) Dominadores culpados! No momento em que julgais poder, sem perigo, descarregar os vossos braços de ferro sobre este povo virtuoso, ele far-vos-á sentir a sua superioridade, libertar-se-á de todas as vossas usurpações e das vossas algemas, readquirirá os seus direitos primitivos e sagrados. Desde há demasiado tempo que beneficiais da sua magnanimidade, há demasiado tempo que insultais a sua agonia.
            (...) Repitamo-lo ainda: todos os males atingiram o auge, já não podem piorar, apenas podem interromper-se através de uma subversão total. Que então tudo se confunda (...), que todos os elementos se misturem, se embaralhem, se entrechoquem! (...) Que tudo mergulhe no caos e que do caos saia um mundo novo e regenerado! (O Tribuno do Povo, n° 35, 30 de novembro de 1795). (...)
            Quanto charlatanismo, quanta astúcia, quantas grosseiras mentiras, quantos desajeitados sofismas, quantas calúnias vulgares, quantas frases banais nessa proclamação do Diretório acerca dos escritos, discursos e reuniões pretensamente sediciosos!
Pretendeu-se com isso fazer crer que pedíamos a pilhagem da mais pequena loja e da mais modesta habitação, como se não pertencesse apenas ao governo ter sabido realizar habilmente tal pilhagem.
Como se, pelo seu regime de fome, não tivesse encontrado o segredo de fazer transportar para a casa do agiota e de todos os tratantes endinheirados, pelos próprios infelizes, tudo quanto possuíam nas suas modestas habitações e nas suas pequenas lojas.
Como se ainda lá se encontrasse alguma coisa para pilhar. Como se, diferentemente do que procura o governo, não tivéssemos sempre claramente anunciado que queríamos restabelecer, fortificar as pequenas lojas e as modestas habitações, fazendo lá entrar pelo menos o equivalente do que a ladroeira legal delas fez sair. Como se todas as fortunas comuns não devessem ficar absolutamente garantidas pelas nossas francas declarações. Como se não tivéssemos dito sempre que pretendíamos demolir apenas as fortunas colossais e melhorar todas as outras.”


“Babeuf, com Buonarotti, considerava como sinônimos os termos “bem comum” e “comunidade de bens”, como está claro no “Manifesto dos iguais” e também no “Manifesto dos plebeus”. Como foi demonstrado neste livro, o bem comum era o mesmo conceito usado pelos Santos Padres, o princípio da destinação universal dos bens, ou seja, Deus fez tudo para todos. Os bens devem ser usados de acordo com as necessidades das pessoas (conforme o direito a uma existência digna, como ensinou Paulo VI, na “Pacem in Terris”), seguindo o princípio bíblico (duas vezes expresso no livro “Atos dos Apóstolos”, para descrever as comunidades modelares do cristianismo primitivo): “a cada um de acordo com suas necessidades” (que Marx e Engels, e também Lênin e Stalin, consideravam como o princípio fundamental do comunismo).
Praticamente nessa linha, São Tomás de Aquino, no livro Summa teológica, 11-11, Questão 47, X, 2, escreveu: “quem busca o bem comum da multidão busca também como consequência o próprio bem por duas razões: 1°.) porque o bem próprio não pode existir sem o bem comum, seja da família, seja da cidade ou do reino, por isso Valério Máximo disse dos antigos romanos que “preferiam ser pobres em um império rico, que ricos em um império pobre”; 2°.) porque, sendo o homem parte da casa ou da cidade, deve considerar como bem próprio o que considera prudente para o bem da multidão”, do povo, da sociedade, da comunidade.
A sociedade — ao estruturar o Estado e o ordenamento jurídico positivo, para se organizar juridicamente e obter o constrangimento (e os impulsos positivos) necessário para conter vícios e animar virtudes — deve proporcionar a cada pessoa ou grupo as condições (bens) que necessitam para realizar o bem pessoal de cada um. A justiça social exige a regulamentação estatal (planejamento participativo) dos bens para a promoção do bem comum, ponto totalmente esquecido pelo liberalismo econômico, que não tem nem compaixão e nem senso de justiça.
Logo, quando os primeiros cristãos (o cristianismo primitivo, considerado revolucionário e comunista por Engels) se reuniam nas primeiras igrejas (tendo tudo em comum, distribuindo os bens de acordo com as necessidades de cada um e com ampla cooperação social), não significa que estatizavam (dando atribuições exclusivas a uma pessoa jurídica abstrata e alienada do povo, verniz para burocratas) todos os bens, e sim que distribuíam (davam o controle, atribuições, poder efetivo, ao povo) largamente, reduzindo a propriedade a uma mera administração (gestão, uso) com muitos deveres sociais (sujeição ao bem comum, à soberania da sociedade). Usavam os bens para satisfazer as necessidades básicas, que distribuíam largamente, atentos aos deveres sociais (no fundo, formas de planificação participativas, consensuais). Até mesmo aceitavam pagar tributos e respeitavam as propriedades públicas, somente exigindo que o Estado estivesse submetido ao direito (no fundo, subordinação à soberania do povo), que chamavam de “vontade Deus”, pois Deus fala pelos movimentos naturais das consciências, da razão.
Não era permitido o supérfluo individual (o luxo) e nem a miséria. O ideal buscado era, assim, o de igualdade social, a mediania, como recomenda o Antigo Testamento (ver “Provérbios”, capítulo 32, os textos de Moisés, profetas e outros) e o Novo Testamento.”


“(William) Godwin teve o avô, o pai e um tio ligados à igreja, como pregadores. O próprio Godwin foi pregador, o que basta para demonstrar as fontes cristãs de seu pensamento. No livro Investigações sobre a justiça política e sua influência na virtude e na felicidade geral, tradução de J. Prince, publicada em Buenos Aires pela Americalee, ele é claríssimo quanto ao fato de amparar suas ideias no Evangelho (o mesmo hábito de Fourier e Saint-Simon):
A doutrina da injustiça da propriedade monopolizada se acha nos fundamentos de toda moral religiosa. Esta incita os homens a reparar tal injustiça, mediante o exercício da virtude individual. Os mais zelosos pregadores da religião se hão visto obrigados a pronunciar rigorosas verdades a esse respeito.
Ensinaram aos ricos que deviam considerar-se simples depositários dos bens de que dispunham, sentindo-se responsáveis até pela menor porção da riqueza gasta, ao modo de administradores e não de amos absolutos. Mas o defeito de tal doutrina consiste precisamente em que somente incita a diminuir o mal, em vez de extirpá-lo de raiz.
Encerra essa doutrina, no entanto, uma verdade essencial. Não há ação humana e, sobretudo, não há ação relativa a propriedade que não esteja sujeita às noções do bem e do mal, a cujo respeito a moral e a razão não possam prescrever normas específicas de conduta.
O que reconhece que os demais homens são de igual natureza que ele mesmo e seja capaz de imaginar o juízo que sua conduta possa merecer aos olhos de um observador imparcial, terá a sensação clara e precisa de que o dinheiro que inverte na aquisição de objetos fúteis ou desnecessários é um dinheiro injustamente desperdiçado, posto que poderia empregar-se na obtenção de coisas substanciais e indispensáveis para a existência de outros homens. Seu espírito equânime lhe dirá que cada chelin deve ser investido de acordo com as exigências da justiça. Mas sofrerá por sua ignorância sobre o modo de cumprir os mandamentos da justiça e de servir à utilidade geral.
Há alguém que ponha em dúvida a verdade dessas observações? Não se admitirá acaso que quando emprego qualquer soma de dinheiro, pequena ou grande, na compra de um objeto supérfluo, incorro em uma injustiça? É tempo já que tudo isso seja plenamente compreendido. É tempo já que ou desprezemos por completo os termos de virtude e justiça ou bem reconheçamos de uma vez que não nos autorizam a acumular luxo enquanto nossos semelhantes carecem do indispensável para sua vida e sua felicidade. (...)
Se a religião nos ensina que todos os homens devem receber o necessário para a satisfação de suas necessidades, devemos concluir por nossa conta que uma distribuição gratuita realizada pelos ricos constitui um modo muito indireto e sumamente ineficaz de conseguir aquele objetivo. A experiência de todas as idades nos demonstra que semelhante método produz resultados muito precários.


“O livro Os grandes escritos anarquistas (Editores L&PM, Porto Alegre, 1998, pp. 118-122) traz um texto de William Godwin sobre a propriedade, colhido de outro livro Inquérito sobre a justiça política, 1793, — que merece ser transcrito.
A propriedade é a base que completa o sistema de justiça social. Segundo o erro ou acerto das ideias que tivermos sobre o tema, seremos capazes de entender as consequências de uma forma simples de sociedade sem governo, eliminando os preconceitos que nos mantêm presos à complexidade. Não há nada que possa distorcer tanto o nosso julgamento e as nossas opiniões do que as ideias erradas que tivermos sobre os benefícios da fortuna. Finalmente, o período que deverá pôr um fim no sistema de coerção e castigo está intimamente ligado às circunstâncias que colocarão a distribuição da propriedade em bases mais equitativas.
Há três tipos de propriedade.
O primeiro e mais simples deles é aquele que garante o meu direito permanente sobre determinadas coisas, as quais, ao me ser atribuído o seu uso, poderão proporcionar-me uma soma muito maior de benefícios e prazeres do que ocorreria caso pertencessem a qualquer outro. Nesse caso não importa saber como cheguei à posse dessas coisas, sendo a única condição necessária para tal a grande utilidade que possam ter para mim e o fato de que meu direito a elas é aceito unanimemente pelos membros da comunidade em que vivo. E será injusto todo aquele que, com respeito a tais coisas, se conduzir de forma a infringir, em qualquer grau, a minha capacidade de desfrutá-las no momento em que seu uso for realmente importante para mim.
Já vimos que um dos direitos essenciais do homem é aquele que me garante a compreensão dos meus semelhantes; não apenas o meu direito a que evitem fazer qualquer coisa que, como consequência direta, possa vir a afetar a minha vida ou a posse dos meus poderes, mas que evitem interferir na minha compreensão dos fatos, concedendo-me uma determinada esfera de ação para que eu possa exercitar a minha própria capacidade de julgamento. É preciso que seja assim, em primeiro lugar porque, assim como eu posso errar, eles também poderão fazê-lo; em segundo, porque o exercício da compreensão é essencial ao desenvolvimento do ser humano e, finalmente, porque, mesmo que a interferência de outrem em assuntos que são de real importância para mim exista apenas na minha imaginação, a dor e o desconforto que eu vier a sentir diante dessa interrupção serão tão reais como se ela tivesse realmente existido. Segue-se ao acima exposto que, em circunstâncias normais, nenhum homem poderá fazer uso dos meus aposentos, móveis, roupas e alimentos, seja por empréstimo ou por troca, sem que meu primeiro tenha obtido o meu consentimento.
O segundo grau de propriedade é o império que todo o homem deve ter sobre o produto do seu próprio trabalho, mesmo daquela parte dele cujo uso não lhe for atribuído. Ele não tem direito de escolha na disposição geral de qualquer coisa que lhe venha a cair nas mãos. Cada centavo que lhe pertença, e até mesmo cada produto do seu esforço por menor que seja, já receberam um destino determinado pelas medidas da justiça. Ele é apenas o administrador, mas, ainda assim, um administrador. Todas as coisas devem ser confiadas a sua decisão, controlada apenas pelo poder de censura e pela opinião favorável ou contrária do grupo em que ele vive. Quando é impedido de agir segundo os ditames da sua inteligência, todo homem se transforma, de indivíduo capaz e dotado de infinitas qualidades, na pior e mais desprezível coisa que a imaginação seria capaz de criar.
Logo se poderá perceber que este segundo tipo de propriedade é, a rigor, mais importante do que o primeiro. Ele é, sob um determinado ponto de vista, uma usurpação, pois confere a mim a preservação daquilo que, por direito, pertence a outro.
O terceiro tipo de propriedade é aquele que recebe as maiores atenções dos Estados civilizados da Europa. É o sistema, estabelecido seja de que modo for, pelo qual um determinado homem passa a ter o direito de dispor sobre o produto do trabalho de outro homem. Não há quase nenhuma forma de riqueza, consumo ou luxo em qualquer país civilizado que não seja, de alguma forma, consequência do trabalho manual e do esforço conjunto dos homens que nele vivem. Os recursos naturais de um país são quase sempre poucos e em quase nada contribuem para o aumento da riqueza, do consumo e do luxo.
Basta que cada homem calcule, a cada cálice de vinho que bebe ou diante de cada objeto que usa como adorno, quantos indivíduos foram condenados à escravidão, ao suor, a uma labuta incessante, a uma vida de dificuldades permanentes, má alimentação, ignorância e à mais brutal insensibilidade para que ele pudesse dispor desses luxos. Uma das grandes imposturas que os homens costumam lançar sobre si mesmos é falar nos bens que lhes foram legados por seus antepassados, pois na verdade esses bens são resultado do trabalho diário de seres que vivem no presente. Seus antepassados deixaram-lhes apenas um papel embolorado que eles apresentam como um título que lhes concede o direito de extorquir dos seus semelhantes tudo aquilo que estes produziram com seu próprio esforço. Fica portanto claro que o terceiro grau de propriedade contradiz frontalmente o segundo.
Pois o fato de que um determinado homem possa desfrutar dos confortos mais rudimentares enquanto esses mesmos confortos permanecem inacessíveis à maioria dos membros da comunidade é, em termos absolutos, um erro. Todos os refinamentos, todos os luxos supérfluos, todas as inovações que exijam o emprego de um grande número de trabalhadores são diretamente contrários à propagação da felicidade. Cada novo imposto criado, cada nova forma encontrada para aumentar os gastos do erário público — a menos que sejam compensados (o que raramente acontece) por uma diminuição proporcional da riqueza das classes privilegiadas — é um pouco mais que se acrescenta ao capital da ignorância, servidão e sofrimento (...)
Uma das fontes inesgotáveis do crime consiste no fato de que um homem possa ter em abundância tudo aquilo de que um outro carece. Antes que possamos impedir que a mente seja poderosamente influenciada quando colocada diante dessa situação, seria preciso mudar a sua natureza. Seria necessário que o homem esquecesse os sentidos, os prazeres da gula, a vaidade, antes que pudesse assistir sem revolta ao monopólio desses prazeres. Seria preciso que deixasse de ter o sentido da justiça antes que pudesse aceitar sem reservas o mundo em que vive, misto de miséria e supérfluo. E, se é certo que a melhor forma de curar essa desigualdade seria através da razão e não da violência, a tendência instintiva dos governantes é convencer os homens de que a razão é impotente. A injustiça, contra a qual tanto reclamam, é sustentada pela força e eles se deixam induzir por ela com demasiada facilidade para que sequer pensem em lançar mão dela para corrigir as injustiças do mundo em que vivem. Limitam-se apenas a tentar corrigir parcialmente essas injustiças que a educação lhes diz serem necessárias, mas que a razão, mais poderosa, afirma serem tirânicas.
A força tem origem no monopólio. Isso poderia ter acontecido pela primeira vez acidentalmente entre os selvagens cujos apetites excedessem as provisões de que dispunham, ou cujas paixões tivessem sido demasiado inflamadas pelo objeto de seus desejos. Mas logo teria desaparecido gradualmente à medida que a razão e a civilização avançassem. Porém a propriedade acumulada fixou o poder supremo e, a partir de então, tudo se resume numa competição, na luta aberta entre a força e a astúcia de outro. Sendo assim, as lutas violentas e prematuras que possam surgir entre os necessitados serão sempre um erro, pois, na maior parte das vezes, acabarão provocando a derrota das causas que mais de perto os interessam, contribuindo para adiar o triunfo da justiça. Mas o verdadeiro crime estará sempre na predisposição que todo o homem tem para o egoísmo e a parcialidade, para pensar apenas em si mesmo, desprezando as necessidades do outro. E é de homens iguais a esse que são feitas as classes privilegiadas.
A opressão, o servilismo e a fraude são os frutos imediatos da atual forma de administração da propriedade, tão hostis ao progresso moral quanto ao desenvolvimento intelectual do ser humano. Outros males tais como a inveja, a malícia e a vingança são seus companheiros inseparáveis.
Numa sociedade em que todos vivessem em meio à abundância, compartilhando igualmente as riquezas que a natureza oferece, esses sentimentos desapareceriam inevitavelmente. Se nenhum homem fosse obrigado a guardar o pouco que lhe pertence, ou tivesse que prover, com sofrimento e angústia, todas as necessidades incessantes, cada um deixaria de pensar apenas em si para pensar no bem comum. Nenhum homem seria o inimigo do seu vizinho, pois não teriam razões de disputa e, em consequência, a filantropia voltaria a ocupar o lugar supremo que lhe foi concedido pela razão. Liberta da angústia permanente de prover o sustento físico, a mente estaria livre para exercer as funções para as quais foi criada. Cada homem poderia responder às indagações de todos”.


“Benoit Malon, na obra O socialismo integral, historia das theorias e tendências geraes (impresso em Lisboa — TYE, pelo Instituto Geral das Artes Gráficas, em 1899 traduzido por Heliodoro Salgado), trouxe boas informações sobre Buret:
Buret especialmente elevou-se até ao mais generoso socialismo:
Todos o repetem, todos têm disso o pressentimento, nós assistimos a um mundo novo, isto não pode durar mais, o deixar-correr compra a riqueza à custa da miséria, não sabe aumentar a produção senão à custa daqueles que a produzem; não tem melhor meio de aumentar o capital do que reduzir de cada vez mais a parte que compete ao trabalho (...)
Enfim, o estado miserável das populações industriais é incompatível não só com as esperanças da civilização mas ainda com a sua existência.
Chegou um momento na história em que a escravidão se tornou um crime, justamente imputável à classe que dela tirava proveito (...) Da mesma sorte o fato da miséria nos há de ser severamente imputado, desde o momento em que, sendo conhecidas as verdadeiras causas, nós não trabalharmos em combatê-las”.
Depois, os processos capitalistas não têm feito senão cavar o inferno do salariato e F. Engels viu-se autorizado a dizer do capitalismo: “É a concorrência vital darwiniana transplantada da natureza para a sociedade com uma violência potenciada. A selvageria animal apresenta-se como último termo do desenvolvimento humano (em sistema capitalista). O antagonismo entre produção social e apropriação individual capitalista tomou a forma de antagonismo na organização da produção em cada fábrica particular e de anarquia da produção na sociedade inteira.”


“Aloísio Teixeira, no livro Utópicos, heréticos e malditos (Editora Rio de Janeiro, 2002, pp. 196-228) traz alguns bons textos de Louis Blanc:
Organização do Trabalho (1839)
Mas será que o que é verdadeiro no plano das ideias filosóficas deixará de sê-lo no plano das ideias econômicas? Ah! Graças a Deus, não há para as sociedades nem progresso parcial nem queda parcial. Toda a sociedade se eleva ou toda a sociedade regride. São as leis da justiça melhor compreendidas? Todas as condições sociais saem ganhando. Recaem no obscurantismo as nações onde há justiça? Todas as condições sociais saem perdendo. Uma nação na qual uma classe é oprimida assemelha-se a um homem que tem uma ferida na perna: a perna doente impede a perna sadia de fazer qualquer exercício. Por isso, por mais paradoxal que essa proposição possa parecer, opressores e oprimidos ganharão igualmente se a opressão for eliminada; e perdem igualmente se ela for mantida. Querem uma prova gritante? A burguesia estabeleceu sua dominação com base na concorrência ilimitada, que é um princípio de tirania. Muito bem! É pela concorrência ilimitada que vemos hoje a burguesia perecer. Por exemplo: se tenho dois milhões e meu rival apenas um, eu o arruinarei, com toda a certeza, no campo aberto da indústria e com o exército dos preços baixos. Homem débil e insensato! Não compreendeis que amanhã, armando-se contra vós com vossas próprias armas, algum impiedoso Rothschild vos arruinará? Tereis então cara para vos lastimar: Nesse abominável sistema de lutas cotidianas, a indústria média devora a pequena indústria. Vitória de Pirro! Porque ela será devorada por sua vez pela grande indústria, a qual, ela mesma, obrigada a perseguir até a extremidade do globo consumidores desconhecidos, participará em breve apenas de um jogo de azar que, como todos os jogos de azar, acabará para uns em ladroeira, para outros em suicídio. A tirania não é somente odiosa, ela é estúpida. Não ha inteligência onde não há entranhas (misericórdia, compaixão, amor ao próximo). (...)
         A humanidade tem estado muito afastada de sua finalidade para que nos seja dado atingi-la em um dia. A civilização corruptora da qual sofremos ainda o jugo confundiu todos os espíritos e envenenou as fontes da inteligência humana. A iniquidade tornou-se justiça, mentira tornou-se verdade, e os homens vêm-se entredevorando em meio às trevas.
Muitas ideias falsas devem ser destruídas; elas desaparecerão, não devemos duvidar. Chegará, assim, o dia, por exemplo, em que será reconhecido que, quem recebeu de Deus mais força ou mais inteligência, deve mais a seus semelhantes. Será então um gênio, constatando, o que é digno dele, seu legítimo poder não pela importância do tributo que imporá à sociedade, mas pela grandeza dos serviços que lhe prestará. Porque não é para a desigualdade de direitos que a desigualdade de talentos deve conduzir, e sim para a desigualdade de deveres (p. 228).


         “Dizia Marx em 1844:
“Weitling, conhecedor de Rousseau, referia-se ao estado natural de felicidade do passado: “O homem, fruto do amor de Deus e da natureza, no primeiro período da criação sentiu felicidade e gozou no paraíso desta bela terra.”
Mas o egoísmo e a cobiça de uns, que queriam ter mais do que os outros, fizeram mudar o estado primitivo e começaram a aparecer os conceitos de meu, de propriedade, que por sua vez, produziram os de direito e de troca (isto é, de comércio). A propriedade, inconcebível nos primórdios da existência do homem, afirmou-se e a terra, que era livre e estava à disposição de todos, foi “murada”, tornou-se gozo exclusivo de um indivíduo ou de alguns poucos, e mais, aquilo que ao princípio fora um simples estado de fato foi depois “santificado” por leis que puniam severamente aqueles que contra isso se revoltavam. A propriedade teve como consequência a herança, isto é, prefiguração de uma relação válida não apenas no presente, mas também no futuro; mais ainda, pensava Weitling, reportando-se às teorizações do livre-cambismo e sobretudo às do liberalismo, extensivo a toda a coletividade humana e para toda a eternidade. As consequências da propriedade foram a luta por ela, a guerra e, derivada desta, a escravatura, isto é, não a luta pela sobrevivência mas sim por um poder econômico a exercer sobre as coisas e sobre os homens.
O discurso de Weitling nesta altura ampliava-se muito e ultrapassava as concepções iniciais de Rousseau, até por influência das críticas mais violentas à sociedade fundada sobre a “propriedade privada”, especialmente as de Fourier. Passou efetivamente do exame da escravatura na antiguidade ao da escravatura presente, concluindo que “outrora se tornava um homem escravo pela força; hoje este vende-se espontaneamente, juntamente com a sua saúde, a sua juventude, o seu sangue”. Essa alienação era possível porque aqueles que se haviam apoderado da propriedade tinham um verdadeiro direito de vida e de morte sobre todos, isto é, podiam aproveitar-se da sua posição, eram “privilegiados” que miravam obter cada vez mais à custa da restante parte do gênero humano.
Os detentores da propriedade eram os ricos, que eram, ao mesmo tempo, poderosos e injustos e tinham a possibilidade de gozar mais do que o necessário porque, na sua avidez e no seu egoísmo, não empregavam apenas as suas forças, mas também as dos outros que trabalhavam para eles, transformando-se assim em exploradores. A diferenciação do trabalho fora a primeira ação impor à discriminação; na sociedade atual, os ricos possuíam o supérfluo, enquanto aos operários faltavam os bens necessários para a sua sobrevivência.
Portanto, Weitling deduzia: “A causa de tudo isso é a desigual divisão do trabalho e dos bens produzidos pelo trabalho. Com o trabalho geraram-se a pobreza e a riqueza. [...] Ser rico e poderoso significa ser injusto. Contai os ricos e os poderosos e achareis um número igual de pessoas injustas. O reino do Céu é apenas destinado aos justos”.


“Gian Mário Bravo, no livro História do socialismo (vol. I, coleção Saber, Publicação Europa-América), expõe as fontes religiosas do “socialismo alemão” (chamado de “verdadeiro socialismo). (...)
“O máximo representante do “verdadeiro” socialismo, o expoente mais coerente do grupo (a liga dos justos), foi Moses Hess (1812-1875), judeu, o qual, no decurso da sua vida, passou por experiências intelectuais e políticas de gênero vário e, se bem que o seu pensamento possa ser sempre ligado ao socialismo, na verdade tratou-se de um socialismo de formas diferentes conforme as épocas. (...)
Hess levanta o problema da passagem do humanismo teórico de Feuerbach a um humanismo prático (...), recusando, juntamente com a “liberdade de iniciativa”, também a “mútua exploração, a sede de dinheiro”, que não era outra coisa senão “a sede de sangue do animal social rapace”. O homem, o indivíduo, o trabalhador, era separado na sociedade burguesa do seu próprio produto e “alienado” na civilização capitalista, regida apenas pela economia, onde a lei única e dominante era a da opressão, da exploração, do lucro, do egoísmo. (...)
Como fundamento desta relação falseada encontrava-se justamente o dinheiro: por um lado, ele apresentava a avaliação objetiva desse, os males que dele derivavam (“a existência da escravidão humana, porque ele não é mais do que o sinal da escravidão humana, representando em números o valor humano”), e, por outro lado, a variação dominada pela paixão e no fundo, retórica (“o dinheiro é sangue que escorre, suado pelos pobres, que levam ao mercado a sua própria riqueza inalienável, a sua pessoalíssima capacidade, a sua própria atividade vital”).”


“Na revista Encontro com a Civilização Brasileira, n° 17, de novembro de 1979 (da Editora Civilização Brasileira), há um bom artigo de Albert Einstein, intitulado “Por que o socialismo?” (Einstein, A., “Ideas and Opinions”. New York, Bonanza Books, 1954). Vejamos os trechos principais, que coincidem, em muitos pontos, com as ideias de Gandhi e dos teólogos da libertação:
            Indivíduo e sociedade
O homem é, ao mesmo tempo, um ser solitário e um ser social.
Como ser solitário, procura proteger sua própria existência e a dos que estão mais próximos dele, para satisfazer seus desejos pessoais e para desenvolver suas habilidades inatas.
Como ser social, procura ganhar o reconhecimento e afeto dos outros seres humanos, participar dos seus prazeres, confortá-los nos seus sofrimentos e melhorar suas condições de vida.
Apenas a existência destes diversos e, frequentemente, conflitivos esforços explica o caráter especial do homem e numa combinação específica determina a extensão na qual pode conseguir um equilíbrio interno e contribuir para o bem-estar da sociedade. (...)
O conceito abstrato de “sociedade” significa para o ser humano individual a soma total de suas relações diretas e indiretas com seus contemporâneos e com todas as pessoas de gerações anteriores.
O indivíduo pode pensar, sentir, lutar e trabalhar por si mesmo, mas depende tanto da sociedade — na sua existência física, intelectual e emocional —, que é impossível pensar nele ou compreendê-lo fora da estrutura da sociedade. É a sua “sociedade” que fornece casa, comida, roupas, ferramentas de trabalho, linguagem, as formas de pensamento e a maior parte do conteúdo do mesmo; sua vida deve-se ao trabalho e aos talentos de muitos milhões de seres passados e presentes, escondidos atrás da pequena palavra “sociedade”. (...)

A fonte do mal
Cheguei ao ponto onde quero indicar brevemente qual é, para mim, a essência da crise do nosso tempo: a relação dos indivíduos com a sociedade. O indivíduo tornou-se mais consciente do que nunca da sua dependência da sociedade. Entretanto, ele não vivencia essa dependência como valor positivo, como um laço orgânico, mas, pelo contrário, como uma ameaça aos seus direitos naturais ou mesmo à sua existência econômica. Além disso, sua posição na sociedade é tal que a direções egoístas da sua constituição estão se acentuando constantemente, ao passo que as suas direções sociais, que por sua natureza são mais débeis, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, independentemente da sua posição na sociedade estão sofrendo desse processo de deterioração. Prisioneiros sem sabê-lo de seu próprio egoísmo, sentem-se inseguros, sós e desprovidos das ingênuas, simples e tolas alegrias da vida. O homem pode encontrar significado na vida, curta e perigosa como ela é, apenas dedicando-se à sociedade. (...)
            A anarquia econômica da sociedade capitalista, tal como existe hoje, é, na minha opinião, fonte real do mal. (...)

Propriedade de trabalho
Para simplificar as coisas, na discussão que se segue, chamarei de “trabalhadores” todos que não participam da propriedade dos meios de produção – embora isso não corresponda totalmente ao uso costumeiro do termo. O proprietário dos meios de produção reúne condições para comprar a força de trabalho do trabalhador. Mediante o emprego dos meios de produção, o trabalhador produz novos bens, que se convertem em propriedade do capitalista. O ponto essencial desse processo é a relação entre o que o trabalhador produz e o que recebe como pagamento, ambos medidos em termos de valor real. Enquanto a contratação de mão-de-obra é “livre”, o que o trabalhador recebe não é determinado pelo valor real dos bens que produz, mas sim pelo valor mínimo que o capitalista pode pagar para a força de trabalho – o que tem relação direta com o número de trabalhadores que compete pelos empregos. É importante compreender que, mesmo na teoria, o pagamento ao trabalhador não é determinado pelo valor de seu produto.
O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte pela concorrência entre capitalistas e em parte porque o crescente desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão de trabalho fomentam a formação de grandes unidades de produção às expensas das pequenas. O resultado desses desenvolvimentos é uma oligarquia de capital privado, cujo enorme poder não pode ser contido nem sequer mediante uma sociedade política organizada democraticamente. Isso é verdade na medida em que os membros dos organismos legislativos são escolhidos por partidos políticos, amplamente financiados ou influenciados de uma ou de outra forma pelos capitalistas privados, que devido a um objeto prático, separam o eleitorado de seus representantes no parlamento. A consequência disso é que os representantes do povo realmente não protegem suficientemente os interesses das camadas desamparadas da população. Além disso, sob as condições existentes, os capitalistas privados controlam inevitavelmente, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). Dessa forma, é extremamente difícil, e na verdade na maioria dos casos quase impossível, para o cidadão individual chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente de seus direitos políticos.

Os princípios do capitalismo
Assim, a situação predominante em uma economia baseada na propriedade privada do capitalismo se caracteriza por dois princípios fundamentais: primeiro, os meios de produção (capital) são propriedade privada e os seus proprietários dispõem deles de acordo com a sua conveniência; segundo, a contratação de mão-de-obra é livre. Certamente não existe uma sociedade capitalista pura neste sentido. Particularmente, podemos observar que os trabalhadores, através de amplas e amargas (encarniçadas) lutas políticas, conseguiram obter melhores formas de “livre contratação de mão-de-obra” para certas categorias de trabalhadores. No entanto, considerada em seu conjunto, a economia atual não difere muito do capitalismo “puro”.
            A produção é orientada para o lucro, não para o uso. Nada garante que todos aqueles indivíduos capazes e desejosos de trabalhar terão sempre condições de encontrar emprego; há quase permanentemente um “exército de desempregados”. O trabalhador está constantemente temeroso de perder o seu trabalho. Visto que os desempregados e os trabalhadores mal-pagos não proporcionam um amplo mercado consumidor, a produção de bens de consumo fica restrita, o que acarreta graves consequências. O progresso tecnológico frequentemente se traduz antes em um maior desemprego do que em uma redução de trabalho para todos. A motivação do lucro, juntamente com a concorrência entre capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e por uma utilização do capital que leva a depressões cada vez maiores. A concorrência ilimitada leva a uma grande desvalorização da mão-de-obra, prejudicando a consciência social dos indivíduos que eu mencionava antes.
Esse prejuízo para os indivíduos parece ser o pior mal do capitalismo. Nosso sistema educacional global sofre desse mal. Uma exagerada atitude competitiva é inculcada no estudante, o qual é estimulado a supervalorizar a acumulação de bens de materiais como preparação para sua carreira futura.

Planificação não é socialismo
Estou convencido de que há apenas uma forma de eliminar esses grandes males, que é o estabelecimento de uma economia socialista, aliada a um sistema educacional orientado para metas sociais. Nessa economia, os meios de produção são propriedade da sociedade e utilizados de forma planejada. Uma economia planejada, que ajusta sua produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho de tal forma que todos poderiam trabalhar, e garantiria uma vida para cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de estimular suas próprias habilidades inatas, procuraria desenvolver nele um sentido de responsabilidade para com o próximo, em vez de incentivar a glorificação do poder e do êxito como acontece em nossa atual sociedade.
Sem dúvida, é necessário lembrar que uma economia planejada não é sinônimo de socialismo. Uma economia planejada pode ser seguida da total escravização do indivíduo. A realização do socialismo requer a solução de alguns problemas sócio-políticos extremamente difíceis: como é possível, diante da centralização de grande alcance do poder político e econômico, evitar que a burocracia se torne toda poderosa e arrogante? Como é possível proteger os direitos dos indivíduos, para assegurar, dessa forma, um contrapeso democrático ao poder da burocracia?”
(Traduzido por Marcia Lamarão do original em espanhol da revista Nexos, n. 17, Cidade do México, maio de 1979.)

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