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terça-feira, 22 de maio de 2018

Obra de Sartre: busca da liberdade e desafio da história (Parte II) – István Mészáros

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-213-7
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 332
Sinopse: Ver Parte I



“O que se quer salientar agora é que a identificação, por um pensador, de um aspecto problemático da própria obra não significa, automaticamente, que tenha encontrado uma solução para ele. Tampouco significa que a autocrítica retrospectiva seja necessariamente válida e deva ser aceita por seu significado manifesto. Em ambos os casos, estamos diante de afirmações que carecem de fundamentação e de provas, para que se possa chegar a uma conclusão em um sentido ou em outro. Dar-se conta de um problema pode propiciar a possibilidade de uma solução, mas ela não deve ser confundida com a própria solução, que deve ser estabelecida em bases objetivas e não apenas em autoafirmações críticas, por mais que estas possam ser sentidas como autênticas.”


“Felizmente, porém, há outros modos de produzir mudanças radicais no mundo social. As pré-condições necessárias de uma mudança social importante são (1) a identificação e utilização das contradições, forças e instituições historicamente dadas e (2) a adequação do sujeito da ação à tarefa. Se, contudo, concebe-se o sujeito como um indivíduo isolado, ele está fadado a permanecer prisioneiro da série infinita. Pois a realidade social só é uma totalidade estruturada em relação a um sujeito que é, ele mesmo, um todo complexo: o indivíduo social integrado (por meio de sua classe ou, numa sociedade sem classes, de algum outro modo) na comunidade a que pertence. Aos olhos do indivíduo isolado, a totalidade social tem de parecer, naturalmente, o agregado misterioso de passos específicos que ele não pode concebivelmente controlar para além de um ponto extremamente limitado, se tanto. Assim, esse indivíduo isolado que se contrapõe – dentro do espírito da dupla dicotomia sartriana – não só ao mundo dos objetos, mas também aos seres humanos do dado mundo social caracterizado como “o outro”, nada mais pode fazer do que admitir a impotência de suas ações pessoais no “mundo das coisas utilizáveis” e deixar-se levar pelas curiosas estratégias do “mundo mágico”. É aqui que a herança heideggeriana mais pesa sobre os ombros de Sartre. A concepção não dialética do mundo como uma totalidade não estruturada e a caracterização, a ela intimamente ligada, do sujeito da ação humana como indivíduo isolado, transmutam-se em “estruturas existenciais” a-históricas, e o mundo social é subsumido pelo mundo da magia: o mundo da emoção.  
[...] na emoção a consciência se degrada e transforma bruscamente o mundo determinado em que vivemos num mundo mágico. Mas há uma recíproca: é o próprio mundo que às vezes se revela à consciência como mágico quando o esperávamos determinado. Com efeito, não se deve pensar que o mágico seja uma qualidade efêmera que colocamos no mundo ao sabor de nossos humores. Há uma estrutura existencial do mundo que é mágica. [...] a categoria “mágica” rege as relações interpsíquicas dos homens em sociedade e, mais precisamente, nossa percepção de outrem. O mágico, diz Alain, é “o espírito arrastando-se entre as coisas”, isto é, uma síntese irracional de espontaneidade e de passividade. É uma atividade interna, uma consciência apassivada. Ora, é precisamente dessa forma que outrem nos aparece, e isto não por causa de nossa posição em relação a ele, não pelo efeito de nossas paixões, mas por necessidade de essência. De fato, a consciência só pode ser objeto transcendente ao sofrer a modificação de passividade. [...] Assim o homem é sempre um feiticeiro para o homem, e o mundo social é primeiramente mágico.[257]
Chamaremos emoção uma queda brusca da consciência no mágico. Ou, se preferirem, há emoção quando o mundo dos utensílios desaparece bruscamente e o mundo mágico aparece em seu lugar. Portanto, não se deve ver na emoção uma desordem passageira do organismo e do espírito que viria perturbar de fora a vida psíquica. Ao contrário, trata-se do retorno da consciência à atitude mágica, uma das grandes atitudes que lhe são essenciais, com o aparecimento de um mundo correlativo, o mundo mágico. A emoção não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras como ela compreende (no sentido heideggeriano de “verstehen”) seu “ser-no-mundo”.[258]
Embora algumas partes dessas citações sejam muito esclarecedoras quanto à natureza da própria emoção, a utilização da emoção como chave para a compreensão do mundo social (como mágico) é extremamente problemática. Pois o homem pode ser “um feiticeiro para o homem” – mas não sabemos, todos nós, que feiticeiros são uma “invenção” do homem, no sentido sartriano do termo? E, se os homens se comportam como se fossem feiticeiros, não é devido a alguma necessidade ontológica essencial, que brota de uma estrutura existencial permanente e que para sempre se manifesta como síntese irracional inevitável de espontaneidade e passividade, mas sim devido a condições sócio-históricas determinadas – e, pelo menos em princípio, removíveis. Empenhar-se na tarefa de remover essas condições pela reestruturação do mundo social em que vivemos, de acordo com os autênticos fins humanos e em oposição ao poder autopropulsor de instituições “magicamente” reificadas, é precisamente o que confere sentido ao empreendimento humano no estágio atual da história. E não há “mágica” que ajude nisso.”
[257] Jean-Paul Sartre, Emoções, p. 84-5. / [258] Ibidem, p. 90.


“Os princípios metodológicos de uma filosofia são inseparáveis das proposições básicas pelas quais se pode definir toda orientação abrangente do pensamento em direção à realidade. Naturalmente, para fins analíticos, as regras metodológicas podem ter de ser tratadas em separado. Porém, elas não são inteligíveis por si sós nem têm a capacidade de proporcionar justificação para si mesmas. Tentar explicar princípios e regras metodológicos por si mesmos só pode ter como resultado o retrocesso infinito da meta-meta – ...meta-metodologia, ou em circularidade, ou numa combinação dos dois (como em certa “filosofia analítica” neopositivista que se esgota na produção de uma metodologia pela metodologia que se consome a si mesma, afiando obsessivamente seu facão até que a lâmina desapareça por inteiro na poeira de limalhas da autoperfeição e o filósofo fique segurando apenas o cabo).
Os problemas de método nascem do que se faz, e a compreensão filosófica da experiência determina seu próprio método – explícito ou latente. Todo conjunto específico de regras metodológicas apresenta-se como um modo específico de exame e seleção dentre todos os dados disponíveis com vistas a construir um todo coerente. Especificar como proceder, o que incluir ou excluir, como definir a relação entre o conhecimento filosófico e a totalidade do conhecimento disponível (inclusive científico e vulgar), como relacionar a atividade filosófica com a totalidade da práxis humana, e assim por diante – nada disso teria sentido se não pudesse se justificar pela natureza do próprio empreendimento filosófico da maneira como se desenvolveu no curso da história. (Afinal, por que se prestaria menor atenção às regras de determinado método filosófico, a não ser que se quisesse participar do desenvolvimento ulterior desse empreendimento humano coletivo?) Além disso, as regras de um determinado método seriam arbitrárias se não pudessem ser justificadas por seus resultados em comparação aos obtidos pela adoção de métodos alternativos. A redução fenomenológica, por exemplo, é inteiramente fora de propósito sem as referências críticas, explícitas ou implícitas, às supostas deficiências da “atitude natural” e, assim, a todo o complexo de temas controversos – em epistemologia e ontologia – que deram origem à elaboração do método fenomenológico nas duas primeiras décadas do século XX.
As regras e princípios metodológicos são elaborados no decorrer da sistematização de uma dada filosofia como um todo. Essa é a razão por que não podem ser simplesmente transferidos de um cenário para outro, sem todas as modificações necessárias que homogeneízem as regras metodológicas e os princípios temáticos da filosofia em questão. Modificações ontológicas requerem mudanças metodológicas significativas até mesmo em filosofias que, explicitamente, professam sustentar as mesmas regras.”


“[...] Filosofia é uma questão de tomar emprestado e inventar conceitos que, progressivamente, mediante uma espécie de dialética, levam-nos a uma percepção mais ampla de nós mesmos ao nível da experiência. Em última análise, a filosofia sempre se destina a anular-se. [...] Isto resulta que a filosofia deve estar continuamente se destruindo e renascendo. A filosofia é pensamento na medida em que pensamento já é invariavelmente o momento inerte da práxis, uma vez que, no momento em que ocorre, a práxis já está formada. Em outras palavras, a filosofia vem atrás, embora não obstante sempre olhando para a frente. Ela não deve permitir-se dispor de nada mais do que conceitos, isto é, palavras. Ainda assim, porém, o que conta em favor da filosofia é o fato de que essas palavras não são completamente definidas. A ambiguidade da palavra filosófica antes de mais nada oferece algo que pode ser utilizado para ir mais além. Pode ser utilizada para mistificar, como muitas vezes faz Heidegger, mas pode também ser utilizada para fins exploratórios, como ele também utiliza.”
(“The Writer and His Language”, cit., p. 110-1.”)


“Em sua filosofia, estamos envolvidos diretamente com o homem que se interroga a respeito de seu próprio projeto, o qual tenta ocultar de si mesmo, com todas as ambiguidades, subterfúgios, estratégias de má-fé e circularidades implicadas. Por isso é que a “ontologia fenomenológica” sartriana deve ser concebida como uma antropologia existencial que se funde com preocupações morais e psicanalíticas práticas nesse “novo tratado das paixões” e, assim, “circularmente”, enrosca-se em si mesma, fundamentando-se precisamente nas mesmíssimas dimensões existenciais que afirma fundamentar. Em consequência, tentar eliminar a antropologia existencial da ontologia fenomenológica de Sartre, a fim de torná-la “formalmente consistente”, seria equivalente à futilidade e ao absurdo de tentar a quadratura do círculo.”


“Vemos, assim, uma singular fusão de determinações pessoais com dada postura teórica, e essa fusão torna-se o núcleo organizador da síntese de O ser e o nada. Como tal, ela determina, em última análise, não só a atitude de Sartre para com outros pensadores, relegando a questão das considerações acadêmicas a um status realmente sem importância nenhuma, como também seu vínculo ao tratamento da experiência como evidência interpretativa. A esmagadora subjetividade de Sartre, tal como incorporada ao quadro estrutural de sua concepção, é que determina inteiramente e de modo cortante que tipo de evidência é admissível à consideração e que espécie de uso se deve fazer dos dados admitidos. (De fato, a palavra “dados” é bastante inadequada. Pois, no momento em que são enfocadas pela generalização teórica, as informações empíricas são fundamentalmente transformadas através da descrição eidética e da especificação caleidoscópica.)
Marx consome a maior parte de sua vida trancado no Museu Britânico, empenhado em desenterrar as provas que não apenas dão base à sua concepção teórica como também a ampliam, modificam e intensificam, exibindo, assim, uma relação inerentemente dialética entre teoria e pesquisa. Nada poderia ser mais alheio do que isso ao modo de proceder de Sartre. (Não é, pois, de admirar que ele tenha de interromper o projeto de estudo da história precisamente no momento em que as permutações mais ou menos autogeradoras das “estruturas formais da história” estavam delineadas e em que se impunha de modo inevitável a necessidade de evidências sob a forma de uma pesquisa histórica continuada.) Ele mantém para com seus relatos de pormenor a mesma espécie de atitude do monarca absoluto para com seus súditos: trata-os como bem lhe apraz; e isso de maneira muito legítima, uma vez que, sendo o fundamento categoricamente autoafirmado da própria legalidade, ele os constitui de tal modo que eles devem a própria existência como súditos à estrutura constitutiva da concepção global em que lhes é permitido surgir. E, do mesmo modo que a busca consciente da originalidade fora teorizada e autenticada existencialisticamente como o projeto único de uma aventura estritamente individual, agora a atitude soberana para com a experiência empírica é elevada a um status teórico no espírito da “hermenêutica da existência”, que declara seu interesse apenas pelo significado simbólico que ela mesma gera, cria e inventa.
O que vemos, então, é uma singular integração de determinações subjetivas e objetivas em um tipo específico de síntese que mantém permanentemente a soberania da concepção global sobre os detalhes específicos de sua sistematização. O modo caleidoscópico de desenvolvimento é das mais adequadas formas de manifestação desse tipo de síntese, por ser ao mesmo tempo aberto e fechado. É surpreendentemente aberto com respeito às possibilidades de transformações parciais autogeradoras, e é rigidamente fechado no que concerne à estrutura fundamental e ao esquema categorial do todo. Por essa razão é que cada nova fase do desenvolvimento de Sartre sempre traz consigo um novo modo de apresentar os pormenores, associado à pretensão de que isso importa em uma síntese radicalmente nova.”


“Do modo como as coisas estão em O ser e o nada, o círculo existencial-ontológico define o caráter e os limites do empreendimento humano:
Trabalha-se para viver e vive-se para trabalhar. A questão do sentido da totalidade “vida-trabalho” – “Por que trabalho, eu que vivo?”, “Por que viver, se é para trabalhar?” – só pode ser posta no plano reflexivo, já que encerra uma descoberta do Para-si por si mesmo. (266)
Essa passagem segue-se à descrição do uniforme de um operário que conserta telhados, como exemplo de como o “ser-Para-outro” reporta-nos à “remissão ao infinito dos complexos de utensilidade”, retratada como uma cadeia da qual o “para quem” é meramente um elo incapaz de romper a cadeia. É compreensível, pois, que a determinação ontológica das estruturas de reificação restringe a busca do sentido ao nível reflexivo de uma descoberta da própria “incomparável singularidade”. E é aqui que as limitações da postura individualista se tornam penosamente visíveis. Pois, obviamente, a cadeia da reificação capitalista deve ser rompida se eu quero constituir um significado que me é recusado dentro do círculo, embora, por certo, seja impossível conceber a realização dessa tarefa por meio de uma ação puramente individual.
Sartre é, naturalmente, um pensador grande demais para estabelecer uma solução tão absurdamente individualista que elevaria Dom Quixote à estatura de todos os heróis positivos da literatura mundial combinados em um só, de Hércules e El Cid a Figaro e Julien Sorel. O senso de realismo de Sartre não só especifica a inseparabilidade necessária de Dom Quixote (liberdade absoluta) e Sancho Pança (contingência e facticidade absolutas), mas também produz uma fusão completa dos dois na identidade estipulada de “escolha autêntica” e “ação radical”: um vigoroso Dom Quixote que traz em si, e não apenas consigo, o seu Sancho Pança. (Não há, pois, perigo de uma colisão frontal com o moinho de vento da sociedade. Nosso herói fundido não se interessa pelo êxito da liberdade, mas pela possibilidade da ação. E ele pode ser sempre bem-sucedido no agir, pois o que quer que faça ou não faça é necessariamente ação, até mesmo quando tudo importe em nada mais do que a escolha de recusar-se a escolher.)
Mesmo assim, porém, o empreendimento permanece problemático. Pois a autodescoberta individual de alguém, não importa quão autêntica seja a escolha, não pode afetar significativamente as estruturas compactas da dominação, com todos os seus antagonismos e complexos instrumentais. Por isso é que a busca do significado não pode se tornar inteligível “no nível reflexivo”: o terreno da individualidade isolada. “Trabalha-se para viver e vive-se para trabalhar” não é apenas um círculo, mas o mais vicioso de todos os círculos viciosos concebíveis nas circunstâncias do trabalho alienado, precisamente porque, como circularidade de um “existente em bruto”, constitui a base material de toda dominação, logo é radicalmente incompatível com uma vida plena de significado. Assim, a busca de significado é idêntica a romper o círculo vicioso da auto-objetificação alienada, a qual implica não uma “autodescoberta do Para-si”, mas o rompimento prático e a reestruturação radical de toda a imensa cadeia de complexos instrumentais, em relação à qual o indivíduo isolado, em toda a sua “incomparável singularidade”, nada mais é do que uma vítima indefesa. E, dado o tamanho do empreendimento, para não falar em seu caráter inerente, isso significa que a efetivação da tarefa envolvida só pode ser concebida como uma intervenção radical ao nível da práxis social, com o objetivo de submeter ao controle social consciente as determinações materiais cruciais, humanas, institucionais e instrumentais: tarefa que implica uma viável consciência social responsável pela situação, em contraste com a autoconsciência puramente individual concernente à sua própria autodescoberta autêntica no nível reflexivo-contemplativo.
Contudo, o mundo de O ser e o nada é radicalmente incompatível com essa consciência social. Partindo da “solidão ontológica do Para-si”, a existência do Outro é estabelecida às custas de identificar objetividade com alienação e estipulando a insuperabilidade absoluta dessa alienação:
Meu pecado original é a existência do outro [...]. Capto o olhar do outro no próprio cerne de meu ato, como solidificação e alienação de minhas próprias possibilidades (338). [...] minha possibilidade se converte, fora de mim, em probabilidade (341). Assim, o ser-visto constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que não é a minha liberdade. [...] esta escravidão não é o resultado – histórico e susceptível de ser superado (344). Meu ser Para-outro é uma queda através do vazio absoluto em direção à objetividade (352). A vergonha é o sentimento de pecado original [...] simplesmente pelo fato de [eu] ter “caído” no mundo, em meio às coisas, e necessitar da mediação do outro para ser o que sou (369). [...] pelo fato da existência do outro, existo em uma situação que tem um lado de fora, e que, por esse mesmo fato, possui uma dimensão de alienação que não posso remover de forma alguma, do mesmo modo como não posso agir diretamente sobre ela. Este limite à minha liberdade, como se vê, é colocado pela pura e simples existência do outro (644). Assim, o sentido mesmo de nossa livre escolha consiste em fazer uma situação que exprime tal escolha e da qual uma característica essencial é ser alienada, ou seja, existir como forma em si para o outro. Não podemos escapar a esta alienação, pois seria absurdo sequer sonhar em existir de outro modo que não em situação. (644-5)
Como se poderia escapar do círculo pela solidariedade que se ergue sobre o fundamento de uma condição compartilhada, se a “pura e simples existência’’ do Outro converte a objetividade em escravidão permanente pela definição da “essência” de toda situação como alienação? Como se poderia sequer conceitualizar a possibilidade de uma luta social contra a objetividade reificada, se é atribuída à reificação a dignidade ontológica de “solidificação” e “petrificação”, tal como contida no “sentido profundo do mito de Medusa”[373]? E como se poderia almejar um fim do desamparo da individualidade isolada mediante uma reciprocidade dialética e uma mediação com outros, se a dialética da reciprocidade é convertida em uma circularidade autodestrutiva e a mediação é a priori condenada como o domínio do Outro em meu próprio ser, depois de ter eu caído miticamente pelo “vácuo absoluto” na objetividade-alienação-petrificação da minha situação?
Ao adotar o ponto de vista do individualismo anarquista, Sartre impõe a si mesmo as características limitações desse quadro como uma série de conceitualizações para a exclusão de outras: uma abordagem cujo traço mais saliente é a rejeição a priori da possibilidade de uma supressão histórica da alienação, desvinculando a objetividade da reificação, em uma reversão radical do processo histórico original de vinculação correspondente à “condição inconsciente” do desenvolvimento humano até o presente momento. A postura individualista de Sartre, contudo, priva-o das ferramentas conceituais exigidas para visualizar uma solução de tais problemas. No quadro conceitual de O ser e o nada, a possibilidade de uma consciência coletiva genuína é um falimento a priori, uma vez que a autoconsciência é, por definição, puramente individual, e a ideia de um inconsciente é categoricamente rejeitada já no nível da consciência individual. Assim, podemos ver de novo que Sartre caminha em direção diametralmente oposta ao desenvolvimento dado por Marx a esses problemas. Embora adote a identificação hegeliana entre alienação e objetividade, que é inerentemente a-histórica, ele vai muito mais longe, liquidando até mesmo os resquícios de historicidade dessas relações ao declarar a vacuidade do conceito de uma humanidade historicamente em desenvolvimento.”
[373] O fato de que o mito de Medusa (531) tenha sido virado “do avesso” para ajustar-se à teoria (pois originalmente não é o mítico olhar do Outro sobre mim que causa minha petrificação, mas sim meu próprio olhar proibido para a Medusa) não nos deve preocupar demais. Muito mais importante é o uso geral feito das relações simbólicas apresentadas. Em última análise, todas elas se prendem à questão da apropriação: o individualismo de Sartre o impede de conceber a apropriação senão em termos simbólicos, uma vez que uma plena apropriação em relação ao indivíduo isolado é claramente inconcebível. Essa posição é projetada miticamente a um passado que precede a divisão do trabalho, e aí encontramos a versão existencialista de Sartre da “robinsonada”, que se destina a alinhar produção e apropriação como individualistas e, como tais, ontologicamente fundamentais. Estamos diante de uma fictícia antropologia de gabinete, em nome de uma descrição ontológica das relações fundamentais, e terminamos com uma conclusão perversa que identifica o “luxo” como mais próximo da propriedade original: “Originariamente [...], eu mesmo faço para mim o objeto que quero possuir. Meu arco, minhas flechas [Sexta-feira chega depois] [...] A divisão do trabalho obscureceu essa relação primordial sem eliminá-la. O luxo é uma degradação da relação; na forma primitiva do luxo, possuo um objeto que fiz fazer [fait faire] para mim, por pessoas minhas (escravos, criados nascidos na casa). O luxo é, pois, a forma de propriedade mais próxima da propriedade primitiva” (720).


“Os perigos políticos/militares devastadores do imperialismo – um sistema de determinações internas e correspondentes relações inter-Estados extremamente iníquas que podem mudar sua especificidade histórica, mas não sua substância estruturalmente arraigada – não podem ser relegados ao passado sem superar radicalmente a dimensão reprodutiva material do sistema do capital como um todo integrado.
A incurável centrifugalidade do sistema do capital só pode intensificar suas contradições e aumentar os perigos necessariamente associados a elas numa era de interesses próprios globalmente conflitantes afirmados pelas forças monopolistas dominantes, correspondentes ao estágio hoje prevalecente da articulação do modo de reprodução social metabólica do capital. (...)
O verdadeiro significado das palavras citadas sobre “a emancipação econômica da classe trabalhadora” é a emancipação da humanidade do poder cegamente prevalecente do determinismo econômico, sob o qual nenhum ser humano pode ter controle genuíno do metabolismo social, nem mesmo as personificações mais dispostas do capital. Somente por meio da transformação qualitativa do trabalho – deixando de ser a classe social alienada e estruturalmente subordinada, porém necessariamente recalcitrante, do processo de reprodução para ser o princípio regulador universal do intercâmbio da humanidade com a natureza e entre seus membros individuais, livremente adotado enquanto sua atividade vital significativa por todos os membros da sociedade – a real emancipação humana pode ser realizada no curso do desenvolvimento histórico com fim aberto.
É por essa razão que Marx contrastava ao que chamou de “pré-história” não algum tipo de “fim da história” messiânico – embora costume ser cruelmente acusado de fazê-lo –, mas sim o processo dinâmico da “história real” de fato em desdobramento e conscientemente controlada. Ou seja: a história não mais governada pelas determinações econômicas antagônicas, mas vivida de acordo com seus objetivos e fins escolhidos pelos indivíduos sociais enquanto produtores livremente associados. (...)
A questão decisiva concerne à controlabilidade e restringibilidade racional de qualquer ordem reprodutiva societal em relação à efetividade histórica e disponibilidade de suas condições necessárias de reprodução. E a verdade mais desconfortável da questão a esse respeito é que a ordem reprodutiva socioeconômica, a ordem societal agora estabelecida, cuja viabilidade depende da infindável expansão do capital, deve gerar constantemente não só expectativas subjetivas (em grande medida manipuláveis ou até mesmo repreensíveis), mas também expectativas objetivas irrepreensíveis – tanto para os outros quanto para si mesma – que ela possivelmente não pode suprir.
Nesse sentido, em contraste com a ordem existente do capital, somente uma forma qualitativamente diferente de gerir o metabolismo social, dos processos materiais elementares aos mais altos níveis de produção e apreciação artística, poderia fazer uma real diferença a esse respeito. E isso implicaria uma orientação radicalmente diferente dos indivíduos sociais para a coerência coletiva conscientemente buscada de suas atividades, no lugar da centrifugalidade hoje prevalecente e potencialmente desintegradora de suas condições de existência. Isso acontece porque, enquanto as mediações de segunda ordem antagônicas do sistema do capital permanecerem dominantes, elas estão fadadas a clamar por algum tipo de superimposição social em vez de militar contra ela no espírito do desiderato anarquista da “sociedade sem poderes”.
Não pode haver “uma sociedade sem poderes”. Especialmente não na era da reprodução societal e de produção em desdobramento global. A ordem reprodutiva estabelecida hoje é inseparável de suas mediações de segunda ordem antagônicas pela simples razão de serem necessárias para a busca irracional da expansão infindável do capital, independentemente de suas consequências. No entanto, esse sistema está fadado a gerar recalcitrância (nos indivíduos que produzem), a superimposição do controle extrínseco (para derrotar a recalcitrância, se necessário pela violência) e, ao mesmo tempo, também a irresponsabilidade institucionalizada (por causa da ausência de racionalidade factível e controle aceitável). (...)
De modo compreensível, portanto, a única forma de sustentar uma ordem reprodutiva globalmente coordenada no nosso horizonte é almejando um poder político e material cooperativamente compartilhado, determinado e administrado sobre a base não só da igualdade simplesmente formal, mas também substantiva (uma necessidade absoluta como condição de possibilidade de uma ordem societal futura viável) e o correspondente planejamento racional de suas atividades vitais pelos produtores livremente associados.
Naturalmente, isso é inconcebível sem a forma apropriada de mediação dos indivíduos sociais entre si e na sua relação combinada, enquanto humanidade real (embora não “como quiserem”), com a natureza. No entanto, não há nada de misterioso ou proibitivamente difícil sobre defender um sistema qualitativamente diferente de mediação reprodutiva societal. As condições de seu estabelecimento podem ser explicitadas de forma tangível, envolvendo um esforço determinado e historicamente sustentado para romper a pressão do valor de troca sobre o valor de uso humanamente adotado e gratificante, correspondendo não à carência humana formalmente equalizável e substantivamente incomensurável, bem como insensivelmente ignorada, mas sim à carência humana diretamente significativa dos indivíduos como livremente associados.
O princípio organizador básico do tipo de atividade reprodutiva societal que é orientado para tal ordem social metabólica qualitativamente diferente foi descrito por Marx em termos bem simples, com referência ao intercâmbio coletivo da atividade vital dos indivíduos, quando ele escreveu que
O caráter coletivo da produção faria do produto, desde o início, um produto coletivo, universal. A troca que originalmente tem lugar na produção – que não seria uma troca de valores de troca, mas de atividades que seriam determinadas pelas necessidades coletivas, por fins coletivos – incluiria, desde o início, a participação do indivíduo singular no mundo coletivo dos produtos.[517]
Obviamente, a regulação e a livre coordenação de suas atividades vitais pelos indivíduos implicam ajustes positivos contínuos. Os necessários ajustes positivos genuínos em uma ordem socialista tornam-se possíveis graças à remoção dos interesses próprios estruturalmente arraigados da existência alienante de classe do passado, com sua irresponsabilidade institucionalizada sob o sistema do capital. Por conseguinte, a atividade produtiva e distributiva dos indivíduos pode ser promovida e mantida não pela postulação de uma “sociedade sem poderes”, mas pelos poderes plenamente compartilhados dos membros da sociedade, inseparáveis da adoção de sua responsabilidade plenamente compartilhada. Essa é a única alternativa historicamente viável para a destrutividade crescente do “capitalismo avançado” e do “capitalismo organizado”.
[517] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política (trad. Mario Duayer e Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 118.

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