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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Totem e Tabu e outros trabalhos (Parte III) – Sigmund Freud

Editora: Imago
ISBN: 978-85-3120-974-1
Tradução: Órizon Carneiro Muniz
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 278 
 
“O Herói da tragédia deve sofrer; até hoje isso continua sendo a essência da tragédia. Tem de conduzir o fardo daquilo que era conhecido como ‘culpa trágica’; o fundamento dessa culpa é fácil de descobrir, porque, à luz de nossa vida cotidiana, muitas vezes não há culpa alguma. Via de regra, reside na rebelião contra alguma autoridade divina ou humana e o Coro acompanhava o Herói com sentimentos de comiseração, procurava retê-lo, adverti-lo e moderá-lo, pranteando-o quando encontrara o que se sentia ser a punição merecida por seu ousado empreendimento.
Mas por que tinha de sofrer o Herói da tragédia? E qual era o significado de sua ‘culpa trágica’? Tinha de sofrer porque era o pai primevo, o Herói da grande tragédia primitiva que estava sendo reencenada com uma distorção tendenciosa, e a culpa trágica era a que tinha sobre si próprio, a fim de aliviar da sua o Coro. A cena no palco provinha da cena histórica através de um processo de deformação sistemática – um produto de refinada hipocrisia, poder-se-ia mesmo dizer. Na realidade remota, haviam sido verdadeiramente os membros do Coro que tinham causado o sofrimento do Herói; agora, entretanto, desmanchavam-se em comiseração e lamentações e era o próprio Herói o responsável por seus próprios sofrimentos. O crime que fora jogado sobre seus ombros, a presunção e a rebeldia contra uma grande autoridade era precisamente o crime pelo qual os membros do Coro, o conjunto de irmãos, eram responsáveis. E assim o Herói trágico tornou-se, ainda que talvez contra a sua vontade, o redentor do Coro.
Na tragédia grega, o tema especial da representação eram os sofrimentos do bode divino, Dionísio, e a lamentação dos bodes seus seguidores, que se identificavam com ele. Assim, sendo fácil compreender como o drama, que tinha se extinguido, voltou a brilhar com nova vida na Idade Média, em torno da Paixão de Cristo.
Ao concluir, então, esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de insistir em que o resultado dela mostra que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo. Isso entra em completo acordo com a descoberta psicanalítica de que o mesmo complexo constitui o núcleo de todas as neuroses, pelo menos até onde vai nosso conhecimento atual. Parece-me ser uma descoberta muito surpreendente que também os problemas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto concreto: a relação do homem com o pai. (...)
Os preceitos e restrições morais mais antigos da sociedade primitiva foram por nós explicados como reações a um ato que deu àqueles que o cometeram o conceito de ‘crime’. Sentiram remorso por ele e decidiram que não se deveria repetir e que sua execução não traria vantagens. Este sentimento de culpa criativo ainda persiste entre nós. Encontramo-lo operando de uma maneira não social nos neuróticos e produzindo novos preceitos morais e restrições persistentes, como expiação por crimes que foram cometidos e precaução contra a prática de novos. Se, contudo, pesquisarmos entre esses neuróticos para descobrir quais foram os atos que provocaram tais reações, ficaremos desapontados. Não encontraremos atos, mas apenas impulsos e emoções, pretendendo fins malignos, mas impedidos de realizar-se. O que jaz por trás do sentimento de culpa dos neuróticos são sempre realidades psíquicas, nunca realidades concretas. O que caracteriza os neuróticos é preferirem a realidade psíquica à concreta, reagindo tão seriamente a pensamentos como as pessoas normais às realidades.
Não poderá o mesmo ser verdade quanto aos homens primitivos? Temos justificativas para acreditar que, como um dos fenômenos de sua organização narcisista, eles supervalorizam seus atos psíquicos a um grau extraordinário. Consequentemente, o simples impulso hostil contra o pai, a mera existência de uma fantasia – plena de desejo de matá-lo e devorá-lo, teriam sido suficientes para produzir a reação moral que criou o totemismo e o tabu. Desta maneira, evitaríamos a necessidade de atribuir a origem de nosso legado cultural, de que com justiça nos orgulhamos, a um crime odioso, revoltante para todos os nossos sentimentos. Nenhum dano seria assim feito à cadeia causal que se estende desde os começos aos dias atuais, pois a realidade psíquica seria suficientemente forte para suportar o peso dessas consequências. A isto se poderá objetar que realmente efetuou-se uma alteração na forma da sociedade, de uma horda patriarcal para um clã fraterno. Trata-se de um argumento poderoso, mas não conclusivo. A alteração poderia ter sido efetuada de uma maneira menos violenta e, não obstante, capaz de determinar o aparecimento da reação moral. Enquanto a pressão exercida pelo pai primevo podia ser sentida, os sentimentos hostis para com ele eram justificados e o remorso por sua causa teria de esperar por seu dia. E se se argumentar ainda que tudo que tem sua origem na relação ambivalente com o pai – o tabu e a ordenação sacrificatória – se caracteriza pela mais profunda seriedade e a mais completa realidade, essa nova objeção tem tão pouco peso quanto a outra, porque os cerimoniais e as inibições dos neuróticos obsessivos apresentam essas mesmas características e, não obstante, têm sua origem apenas na realidade psíquica – provêm de intenções e não da execução delas. Temos de evitar transplantar para o mundo dos homens primitivos e dos neuróticos, cuja riqueza reside apenas no interior deles próprios, o desprezo de nosso mundo corriqueiro – com sua riqueza de valores materiais – pelo que é simplesmente pensado ou desejado. (...)
Examinemos, então, mais de perto o caso da neurose – a comparação com a qual nos conduziu à nossa presente incerteza. Não é exato dizer que os neuróticos obsessivos, curvados sob o peso de uma moralidade excessiva, estão se defendendo apenas da realidade psíquica e se punindo através de impulsos que foram simplesmente sentidos. A realidade histórica também tem a sua parte na questão. Na infância, eles tiveram esses impulsos malignos de modo puro e simples e transformaram-nos em atos até onde a impotência da infância permitia. Cada um desses indivíduos excessivamente virtuosos passou por um período de maldade na infância – uma fase de perversão que foi precursora e pré-condição do período posterior de moralidade excessiva. A analogia entre os homens primitivos e os neuróticos será estabelecida assim de modo muito mais completo, se supusermos que também no primeiro caso a realidade psíquica – a respeito da qual não temos dúvida quanto à forma que tomou – coincidiu no princípio com a realidade concreta, ou seja, que os homens primitivos realmente fizeram aquilo que todas as provas mostram que pretendiam fazer.
Tampouco devemos deixar-nos influenciar demais em nosso julgamento dos homens primitivos pela analogia com os neuróticos. Há distinções, também, que devem ser levadas em conta. Sem dúvida alguma, é verdade que o contraste nítido que nós traçamos entre o pensar e o fazer acha-se ausente em ambos. Mas os neuróticos são, acima de tudo, inibidos em suas ações: neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato.”


         “Entendo por parapraxias a ocorrência em pessoas sadias e normais de fatos como esquecimento de palavras e nomes que nos são normalmente familiares; esquecimento do que pretendíamos fazer; incursão em lapsos de linguagem e escrita; erros de leitura, colocação de coisas em lugares errados e incapacidade de encontrá-las; perda de objetos; enganos em assuntos que conhecemos muito bem e certos gestos e movimentos habituais. (...)
O motivo mais comum para reprimir uma intenção, que daí em diante tem de contentar-se em encontrar expressão numa parapraxia, resulta ser a necessidade de evitar o desprazer. Assim, esquecemos obstinadamente um nome próprio se nutrimos um rancor secreto contra o seu possuidor; esquecemos de levar adiante uma intenção se, na realidade, formulamo-la contra a vontade – apenas pressionados por alguma convenção, para dar um exemplo; perdemos um objeto se ele faz lembrar alguém com quem tivemos uma briga – a pessoa que nos deu o objeto, por exemplo; tomamos o trem errado se estivermos fazendo uma viagem contra a vontade e preferíssemos estar noutro lugar. Esta necessidade de evitar o desprazer é percebida mais claramente no que se refere ao esquecimento de impressões e experiências – fato que já fora observado por muitos escritores antes que a psicanálise existisse. A memória revela sua parcialidade mostrando-se pronta a impedir a reprodução de impressões comprometidas com uma emoção angustiante, se bem que este propósito não possa ser alcançado em todos os casos.
A perda de objetos preciosos com frequência mostra ser um ato de sacrifício destinado a impedir algum mal esperado; muitas outras superstições também sobrevivem sob a forma de parapraxias em pessoas instruídas. A colocação de objetos em lugares errados via de regra significa a intenção de livrar-se deles; os estragos que uma pessoa causa aos seus próprios objetos (ostensivamente por acidentes) podem ter o sentido de tornar necessário a aquisição de algo melhor – e assim por diante.
Não obstante, a despeito da aparente trivialidade destes fenômenos, a explicação psicanalítica das parapraxias implica algumas ligeiras modificações em nossa visão do mundo. Descobrimos que mesmo pessoas normais são movidas por motivos contraditórios com muito mais frequência do que era de se esperar. O número de ocorrências que podem ser descritas como ‘acidentais’ é consideravelmente pequeno. É quase uma consolação poder excluir a perda de objetos dos acontecimentos fortuitos da vida; nossos enganos com frequência resultam ser um disfarce para nossas intenções secretas. Mas – o que é mais importante muitos – acidentes sérios que de outro modo teríamos atribuído inteiramente ao acaso revelam, quando analisados, a participação da própria volição do sujeito, embora sem ser claramente admitida por ele. A distinção entre um acidente casual e autodestruição deliberada, que na prática muitas vezes é tão difícil de precisar, torna-se ainda mais dúbia quando examinada de um ponto de vista psicanalítico.
A explicação das parapraxias deve o seu valor teórico à facilidade com que podem ser solucionadas e à sua frequência nas pessoas normais. Entretanto, o sucesso da psicanálise em explicá-las é ultrapassado de muito, em importância, por outra conquista realizada pela própria psicanálise relacionada com outro fenômeno da vida mental normal. Trata-se de interpretação de sonhos, que causou o primeiro conflito da psicanálise com a ciência oficial, o que passou a ser seu destino. A pesquisa médica explica os sonhos como sendo fenômenos puramente somáticos, sem sentido ou significação, e considera-os como a reação de um órgão mental, mergulhado em estado de sono, aos estímulos físicos que o mantêm parcialmente desperto. A psicanálise eleva a condição dos sonhos à de atos psíquicos possuidores de sentido e intenção e com um lugar na vida mental do indivíduo, apesar de sua estranheza, incoerência e absurdo. Segundo esse ponto de vista, os estímulos somáticos simplesmente desempenham o papel de material que é elaborado no decurso da construção do sonho. Não existe um meio termo entre essas duas opiniões sobre os sonhos. O argumento usado contra a hipótese fisiológica é a sua esterilidade, e o que pode ser argumentado em favor da hipótese psicanalítica é o fato de ter traduzido e dado um sentido a milhares de sonhos, usando esse sentido para iluminar os pormenores mais íntimos da mente humana.”


“A psicanálise, portanto, demonstrou os fatos que se seguem. Todos os sonhos têm um significado. Sua estranheza é devida a distorções que foram feitas na expressão desse significado. Sua aparência absurda é deliberada e exprime zombaria, ridículo e contradição. Sua incoerência é uma questão de indiferença para com a interpretação. O sonho, tal como o recordamos depois de acordar, é descrito por nós através de seu ‘conteúdo manifesto’. No processo de interpretação deste, somos conduzidos aos ‘pensamentos oníricos latentes’, que jazem ocultos por trás do conteúdo manifesto, e são por este representados. Estes pensamentos oníricos latentes já não são estranhos, incoerentes ou absurdos, são constituintes completamente válidos de nosso pensamento quando despertos. Damos o nome de ‘elaboração onírica’ ao processo que transforma os pensamentos oníricos latentes no conteúdo manifesto do sonho; é essa elaboração a responsável pela deformação que torna os pensamentos oníricos irreconhecíveis no conteúdo manifesto do sonho.
A elaboração onírica é um processo psicológico que até hoje não encontrou similar na psicologia, reclamando o nosso interesse em dois sentidos principais. Em primeiro lugar, traz ao nosso conhecimento processos novos como a ‘condensação’ (de ideias) e o ‘deslocamento’ (da ênfase psíquica de uma ideia para outra), processos com os quais nunca, de forma nenhuma, nos deparamos em nossa vida desperta, a não ser como base daquilo que é conhecido como ‘erros de pensamento’. Em segundo lugar, nos permite detectar no funcionamento da mente um jogo de forças que estava escondido de nossa percepção consciente. Descobrimos que há uma ‘censura’, um órgão de verificação a funcionar em nós, que decide se uma ideia que surge na mente deve ter ou não permissão de chegar à consciência e que, até onde está em seu poder, exclui implacavelmente qualquer coisa que possa produzir ou reviver um desprazer. Aqui lembramos que na análise das parapraxias encontramos traços dessa mesma intenção de evitar desprazer na recordação de coisas, e de conflitos similares entre os impulsos mentais.”


“O que já foi descoberto sobre a formação dos sonhos funciona – onde quer que seja – no conflito psíquico; na repressão de certos impulsos instintivos enviados de volta para o inconsciente por outras forças mentais, nas formações reativas estabelecidas pelas forças repressoras, e nos substitutos construídos pelos instintos reprimidos, mas não despojados de toda a sua energia. Os processos acessórios de condensação e de deslocamento, tão familiares a nós nos sonhos, podem também ser encontrados em toda parte. A multiplicidade de quadros clínicos observada pelos psiquiatras depende de duas outras coisas: da multiplicidade dos mecanismos psíquicos à disposição dos processos repressivos e da multiplicidade de disposições desenvolvimentais, que dão aos impulsos reprimidos oportunidade de irromperem através de estruturas substitutivas. (...)
Quando interpretamos um sonho estamos apenas traduzindo um determinado conteúdo de pensamento (os pensamentos oníricos latentes) da ‘linguagem de sonhos’ para a nossa fala de vigília. À medida que fazemos isso, aprendemos as peculiaridades dessa linguagem onírica e nos convencemos de quem ela faz parte de um sistema altamente arcaico de expressão.”


“Se examinarmos a sexualidade do adulto com o auxílio da psicanálise e considerarmos a vida das crianças à luz dos conhecimentos que assim obtivermos, perceberemos que a sexualidade não é simplesmente uma função que serve aos fins da reprodução, no mesmo nível que a digestão, a respiração etc. Trata-se de algo muito mais independente, que se coloca em contraste com todas as outras atividades do indivíduo e só é forçado a uma aliança com a economia individual após um complicado curso de desenvolvimento que envolve a imposição de numerosas restrições. Casos – em teoria inteiramente concebíveis – em que os interesses desses impulsos sexuais deixam de coincidir com a autopreservação do indivíduo parecem realmente ser apresentados pelo grupo das doenças neuróticas, porque a fórmula final a que a psicanálise chegou quanto à natureza das neuroses é a seguinte: o conflito primário que leva às neuroses é um conflito entre os instintos sexuais e os instintos que sustentam o ego. As neuroses representam uma dominação mais ou menos parcial do ego pela sexualidade, depois de terem falhado os esforços do ego para reprimi-la. (...)
O contraste entre os instintos do ego e o instinto sexual, ao qual fomos obrigados a atribuir a origem das neuroses, é transposto para a esfera da biologia pelo contraste entre os instintos que servem à preservação do indivíduo e os que servem à sobrevivência da espécie. Na biologia encontramos a mais abrangente concepção de um plasma germinal imoral ao qual os diferentes indivíduos transitórios se ligam como órgãos que se desenvolvem sucessivamente. É somente essa concepção que nos permite compreender corretamente o papel desempenhado pelas forças instintivas sexuais na filosofia e na psicologia.
Apesar de todos os nossos esforços para que a terminologia e as considerações biológicas não dominassem o trabalho psicanalítico, não pudemos evitar o seu emprego mesmo na descrição dos fenômenos que estudamos. Não podemos deixar de considerar o termo ‘instinto’ como um conceito fronteiriço entre as esferas da psicologia e da biologia.”


“A psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças e teve de levar a sério o velho ditado que diz que a criança é o pai do homem. Delineou a continuidade entre a mente infantil e a mente adulta e observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo. Na maioria de nós existe, em nossas lembranças, uma lacuna que abrange os primeiros anos da infância dos quais apenas algumas recordações fragmentárias sobrevivem. Pode-se dizer que a psicanálise preencheu essa lacuna e aboliu a amnésia infantil do homem.
Algumas descobertas notáveis foram efetuadas no curso dessa investigação da mente infantil. Assim foi possível confirmar – o que já fora muitas vezes suspeitado – a influência extraordinariamente importante exercida pelas impressões da infância (e particularmente pelos seus primeiros anos) sobre todo o curso da evolução posterior. Isso nos conduz ao paradoxo psicológico – que somente para a psicanálise não é paradoxo – de serem precisamente estas, as mais importantes de todas as impressões, as que não são recordadas em anos posteriores. A psicanálise pôde estabelecer o caráter decisivo e indestrutível dessas primeiras experiências da maneira mais clara possível, no caso da vida sexual. ‘On revient toujours à ses premiers amours‘* é pura verdade. Os muitos enigmas da vida sexual dos adultos só podem ser solucionados se forem ressaltados os fatores infantis existentes no amor. Uma luz teórica é lançada sobre a influência deles depois de considerarmos que as primeiras experiências de um indivíduo na infância não ocorrem somente por acaso, mas correspondem também às primeiras atividades de suas disposições instintivas inatas ou constitucionais.
Outra descoberta muito mais surpreendente foi que, a despeito de toda a evolução posterior que ocorre no adulto, nenhuma das formações mentais infantis perece. Todos os desejos, impulsos instintivos, modalidades de reação e atitudes da infância acham-se ainda demonstravelmente presentes na maturidade e, em circunstância apropriada, podem mais uma vez surgir. Elas não são destruídas, mas simplesmente se sobrepõem.”
*: Sempre voltamos ao nosso primeiro amor.


“A psicanálise estabeleceu uma estreita conexão entre essas realizações psíquicas de indivíduos, por um lado, e de sociedades, por outro, postulando uma mesma e única fonte dinâmica para ambas. Ela parte da ideia básica de que a principal função do mecanismo mental é aliviar o indivíduo das tensões nele criadas por suas necessidades. Uma parte desta tarefa pode ser realizada extraindo-se satisfação do mundo externo e, para esse fim, é essencial possuir controle sobre o mundo real. Mas a satisfação de outra parte dessas necessidades – entre elas, certos impulsos afetivos – é regularmente frustrada pela realidade. Isto conduz a uma nova tarefa de encontrar algum outro meio de manejar os impulsos insatisfeitos. Todo o curso da história da civilização nada mais é que um relato dos diversos métodos adotados pela humanidade para ‘sujeitar’ seus desejos insatisfeitos, que, de acordo com as condições cambiantes (modificadas, ademais, pelos progressos tecnológicos) defrontaram-se com a realidade, às vezes favoravelmente e outras com frustração.”


“O objetivo primário do artista é libertar-se e, através da comunicação de sua obra a outras pessoas que sofram dos mesmos desejos sofreados, oferecer-lhes a mesma libertação. Ele representa suas fantasias mais pessoais plenas de desejo como realizadas; mas elas só se tornam obra de arte quando passaram por uma transformação que atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua origem pessoal e, obedecendo às leis da beleza, seduz outras pessoas com uma gratificação prazerosa. A psicanálise não tem dificuldade em ressaltar, juntamente com a parte manifesta do prazer artístico, uma outra que é latente, embora muito mais poderosa, derivada das fontes ocultas da libertação instintiva. A conexão entre as impressões da infância do artista e a história de sua vida, por um lado, e suas obras como reações a essas impressões, por outro, constitui um dos temas mais atraentes de estudo analítico. (...)
A arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação – uma região em que, por assim dizer, os esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor.”


“A psicanálise nos mostrou que as atitudes emocionais dos indivíduos para com outras pessoas que são de tão extrema importância para seu comportamento posterior, já estão estabelecidas numa idade surpreendentemente precoce. A natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de sua vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções mas não pode mais livrar-se delas. As pessoas a quem se acha assim ligada são os pais e irmãos e irmãs. Todos que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos. (Deveríamos talvez acrescentar aos pais algumas outras pessoas como babás, que dela cuidaram na infância.) Essas figuras substitutas podem classificar-se, do ponto de vista da criança, segundo provenham do que chamamos as ‘imagos’, do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, e assim por diante. Seus relacionamentos posteriores são assim obrigados a arcar com uma espécie de herança emocional, defrontam-se com simpatias e antipatias para cuja produção esses próprios relacionamentos pouco contribuíram. Todas as escolhas posteriores de amizade e amor seguem a base das lembranças deixadas por esses primeiros protótipos.
De toda as imagens (imagos) de uma infância que, via de regra, não é mais recordada, nenhuma é mais importante para um jovem ou um homem que a do pai. A necessidade orgânica introduz na relação de um homem com o pai uma ambivalência emocional que encontramos expressa de forma mais notável no mito grego do rei Édipo. Um rapazinho está fadado a amar e a admirar o pai, que lhe parece ser a mais poderosa, bondosa e sábia criatura do mundo. O próprio Deus, em última análise, é apenas uma exaltação dessa imagem do pai, tal como é representado na mente durante a mais tenra infância. Cedo, porém, surge o outro lado da relação emocional. O pai é identificado como o perturbador máximo da nossa vida instintiva; torna-se um modelo não apenas a ser imitado, mas também a ser eliminado para que possamos tomar o seu lugar. Daí em diante, os impulsos afetuosos e hostis para com ele persistem lado a lado, muitas vezes, até o fim da vida, sem que nenhum deles seja capaz de anular o outro. É nessa existência concomitante de sentimentos contrários que reside o caráter essencial daquilo que chamamos de ambivalência emocional.
Na segunda metade da infância, dá-se uma mudança na relação do menino com o pai – mudança cuja importância não pode ser exagerada. De seu quarto de criança, o menino começa a vislumbrar o mundo exterior e não pode deixar de fazer descobertas que solapam a alta opinião original que tinha sobre o pai e que apressam o desligamento de seu primeiro ideal. Descobre que o pai não é o mais poderoso, sábio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a criticá-lo, a avaliar o seu lugar na sociedade; e então, em regra, faz com que ele pague pesadamente pelo desapontamento que lhe causou. Tudo que há de admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai.
É nessa fase do desenvolvimento de um jovem que ele entra em contato com os professores, de maneira que agora podemos entender a nossa relação com eles. Estes homens, nem todos pais na realidade, tornaram-se nossos pais substitutos. Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-nos como tão maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa. Confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido em nossas próprias famílias, e, ajudados por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com nossos pais em carne e osso. A menos que levemos em consideração nossos quartos de crianças e nossos lares, nosso comportamento para com os professores seria não apenas incompreensível, mas também indesculpável.”

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