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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Totem e Tabu e outros trabalhos (Parte II) – Sigmund Freud

Editora: Imago
ISBN: 978-85-3120-974-1
Tradução: Órizon Carneiro Muniz
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 278

“Na fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na fase religiosa, transferem-na para os deuses, mas eles próprios não desistem dela totalmente, porque se reservam o poder de influenciar os deuses através de uma variedade de maneiras, de acordo com os seus desejos. A visão científica do universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras necessidades na natureza. Não obstante, um pouco da crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade.
Se acompanharmos retrospectivamente o desenvolvimento das tendências libidinais, tal como as encontramos no indivíduo, desde suas formas adultas até os seus começos na infância, surge uma importante distinção, que descrevi em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Manifestações dos instintos sexuais podem ser observadas desde os começos, mas, de saída, elas ainda não são dirigidas para qualquer objeto externo. Os componentes instintivos separados da sexualidade atuam independentemente uns dos outros, a fim de obter prazer e encontrar satisfação no próprio corpo do sujeito. Essa fase é conhecida como a do auto-erotismo, sendo sucedida por outra, na qual um objeto é escolhido.
Estudos ulteriores demonstraram que é conveniente e verdadeiramente indispensável inserir uma terceira fase entre aquelas duas, ou, em outras palavras, dividir a primeira fase, a do auto-erotismo, em duas. Nessa fase intermediária, cuja importância a pesquisa tem evidenciado cada vez mais, os instintos sexuais até então isolados já se reuniram num todo único e encontraram também um objeto. Este objeto, porém, não é um objeto externo, estranho ao sujeito, mas se trata de seu próprio ego, que se constituiu aproximadamente nessa mesma época. Tendo em mente as fixações patológicas dessa nova fase, que se tornam observáveis mais tarde, demos-lhe o nome de ‘narcisismo’. O sujeito comporta-se como se estivesse amoroso de si próprio; seus instintos egoístas e seus desejos libidinais ainda não são separáveis pela nossa análise.
Embora ainda não estejamos em posição de descrever com exatidão suficiente as características dessa fase narcisista, na qual os instintos sexuais até então dissociados se reúnem numa unidade isolada e catexizam* o ego como objeto, já temos motivos para suspeitar que essa organização narcisista nunca é totalmente abandonada. Um ser humano permanece até certo ponto narcisista, mesmo depois de ter encontrado objetos externos para a sua libido. As catexias de objetos que efetua são, por assim dizer, emanações da libido que ainda permanece no ego e pode ser novamente arrastada para ele. A condição de apaixonado, que é psicologicamente tão notável e é o protótipo normal das psicoses, mostra essas emanações em seu máximo, comparadas com o nível do amor a si mesmo.”
* Catexia: concentração de todas as energias mentais sobre uma representação bem precisa, um conteúdo de memória, uma sequência de pensamentos ou encadeamento de atos; catexe.


“Se podemos considerar a existência da onipotência de pensamentos entre os povos primitivos como uma prova em favor do narcisismo, somos incentivados a fazer uma comparação entre as fases do desenvolvimento da visão humana do universo e as fases do desenvolvimento libidinal do indivíduo. A fase animista corresponderia à narcisista, tanto cronologicamente quanto em seu conteúdo; a fase religiosa corresponderia à fase da escolha de objeto, cuja característica é a ligação da criança com os pais; enquanto que a fase científica encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo em busca do objeto de seus desejos.
Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos e esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais – graças à ilusão artística – como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia da arte’ e comparam os artistas aos mágicos. Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor à arte. Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos suspeitar da presença de muitos intuitos mágicos.”


“Os espíritos e os demônios, como demonstrei no último ensaio, são apenas projeções dos próprios impulsos emocionais do homem. Ele transforma as suas catexias emocionais em pessoas, povoa o mundo com elas e enfrenta os seus processos mentais internos novamente fora de si próprio.”


“Existe em nós uma função intelectual que exige unidade, conexão e inteligibilidade de qualquer material, seja da percepção ou do pensamento, que cai sob o seu domínio e se, em consequência de circunstâncias especiais, não pode estabelecer uma conexão verdadeira, não hesita em fabricar uma falsa. Os sistemas construídos desta maneira chegam ao nosso conhecimento não apenas através dos sonhos, mas também das fobias, do pensamento obsessivo e dos delírios. A construção de sistemas é percebida de modo mais notável nas perturbações delirantes (na paranoia), onde domina o quadro sintomático; mas sua ocorrência em outras formas de neuropsicoses não deve ser subestimada. Em todos esses casos pode-se demonstrar que uma nova arrumação do material psíquico foi feita com um novo objetivo em vista, e muitas vezes essa redisposição tem de ser radical, se é que se quer que o resultado pareça inteligível do ponto de vista do sistema. Assim, um sistema é mais bem caracterizado pelo fato de pelo menos duas razões poderem ser descobertas para cada um de seus produtos: uma razão baseada nas premissas do sistema (uma razão, que pode ser, então, delirante) e uma razão oculta, que devemos julgar como sendo a verdadeiramente operante e real.”


“‘‘Um totem’, escreve Frazer em seu primeiro ensaio sobre o assunto, ‘é uma classe de objetos materiais que um selvagem encara com supersticioso respeito, acreditando existir entre ele e todos os membros da classe uma relação íntima e inteiramente especial (…) A vinculação entre um homem e seu totem é mutuamente benéfica; o totem protege o homem e este mostra seu respeito por aquele de diversas maneiras, não o matando, se for um animal; não o cortando, nem colhendo, se for um vegetal. Distintamente de um fetiche, um totem nunca é um indivíduo isolado, mas sempre uma classe de objetos, em geral uma espécie de animais ou vegetais, mais raramente uma classe de objetos naturais inanimados, muito menos ainda uma classe de objetos artificiais.”


“As autoridades, como de costume, são mais eficientes em suas críticas das obras dos outros do que em sua própria produção.”


“Não é fácil perceber porque qualquer instinto humano profundo deva necessitar ser reforçado pela lei. Não há lei que ordene aos homens comer e beber ou os proíba de colocar as mãos no fogo. Os homens comem e bebem e mantém as mãos afastadas do fogo instintivamente por temor a penalidades naturais, não legais, que seriam acarretadas pela violência aplicada a esses instintos. A lei apenas proíbe os homens de fazer aquilo a que seus instintos os inclinam; o que a própria natureza proíbe e pune, seria supérfluo para a lei proibir e punir. Por conseguinte, podemos sempre com segurança pressupor que os crimes proibidos pela lei são crimes que muitos homens têm uma propensão natural a cometer. Se não existisse tal propensão, não haveriam tais crimes e se esses crimes não fossem cometidos, que necessidade haveria de proibi-los? Desse modo, em vez de presumir da proibição legal do incesto que existe uma aversão natural a ele, deveríamos antes pressupor haver um instinto natural em seu favor e que se a lei o reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses instintos naturais é prejudicial aos interesses gerais da sociedade.” (James Frazer)


“Robertson Smith mostrou-nos que a antiga refeição totêmica se repete sob a forma original de sacrifício. O significado do ato é o mesmo: santificação por meio da participação numa refeição comum. O sentimento de culpa, que só pode ser aliviado pela solidariedade de todos os participantes, persiste também. O que é novo é a divindade do clã, em cuja suposta presença o sacrifício é executado, que participa da refeição como se fosse um membro do clã e com quem aqueles que consomem se tornam identificados. Como veio o deus a colocar-se numa situação à qual era originalmente estranho?
A resposta poderia ser que, nesse meio tempo, surgiu – de alguma fonte desconhecida – o conceito de Deus assumindo o controle de toda a vida religiosa; e que, como tudo o mais que quisesse sobreviver, a refeição totêmica foi obrigada a encontrar um ponto de contato com o novo sistema. A psicanálise dos seres humanos de per si, contudo, ensina-nos com insistência muito especial que o deus de cada um deles é formado à semelhança do pai, que a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e oscila e se modifica de acordo com essa relação e que, no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado. Como no caso do totemismo, a psicanálise recomenda-nos ter fé nos crentes que chamam Deus de seu pai, tal como o totem era chamado de ancestral tribal. Se a psicanálise merece alguma atenção, então – sem prejuízo de quaisquer outras fontes ou significados do conceito de Deus, sobre os quais não pode lançar luz – o elemento paterno nesse conceito deve ser um elemento muito importante. Mas, nesse caso, o pai é representado duas vezes na situação do sacrifício primitivo: uma vez como Deus e outra como a vítima animal totêmica. E, mesmo pressupondo o número restrito de explicações aberto à psicanálise, tem-se de perguntar se isto é possível e que sentido pode ter.
Sabemos existir uma multiplicidade de relações entre o deus e o animal sagrado (o totem ou a vítima sacrificatória). (1) Cada deus geralmente possui um animal (e muito frequentemente diversos animais) que lhe é consagrado. (2) No caso de certos sacrifícios especialmente sagrados – os sacrifícios ‘místicos’ – a vítima era exatamente o animal consagrado ao deus (Smith). (3) O deus era frequentemente adorado sob a forma de um animal (ou, encarando o fato de outra maneira, os animais eram adorados como deuses), muito tempo após a época do totemismo. (4) Nos mitos, o deus muitas vezes se transforma em animal e, com frequência, no animal que lhe é consagrado.
Dessa maneira, parece plausível supor que o próprio deus era o animal totêmico, e que deste se desenvolveu numa fase posterior do sentimento religioso. Mas somos liberados da necessidade de novos exames pela consideração de que o totem nada mais é que um representante do pai. Assim, embora o totem possa ser a primeira forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai reconquistou sua aparência humana. Uma nova criação como esta, derivada do que constitui a raiz de toda forma de religião – a saudade do pai – poderia ocorrer se, no decurso do tempo, alguma mudança fundamental se houvesse efetuado na relação do homem com o pai e, talvez, também na sua relação com os animais.
Sinais da ocorrência de modificações dessa espécie podem ser facilmente percebidos, mesmo se deixarmos de lado o começo de um afastamento afetivo dos animais e a desagregação do totemismo devida à domesticação. Houve, no estado de coisas, um fator produzido pela eliminação do pai que estava destinado, com o decorrer do tempo, a provocar um enorme aumento na saudade que dele sentiam. Cada um dos irmãos que se tinham agrupado com o propósito de matar o pai estava inspirado pelo desejo de tornar-se semelhante a ele e dera expressão ao mesmo incorporando partes do representante paterno na refeição totêmica. Entretanto, em consequência da pressão exercida sobre cada participante pelo clã fraterno como um todo, esse desejo não pôde ser realizado. De futuro, ninguém poderia nem tentaria atingir o poder supremo do pai, ainda que isso fosse o objetivo pelo qual todos tinham-se empenhado. Assim, após um longo lapso de tempo, o azedume contra o pai, que os havia impulsionado à ação, tornou-se menor e a saudade dele aumentou, tornando-se possível surgir um ideal que corporificava o poder ilimitado do pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a disposição de submeter-se a ele. Em consequência de mudanças culturais decisivas, a igualdade democrática original que havia predominado entre os membros do clã tornou-se insustentável e desenvolveu-se ao mesmo tempo uma inclinação, baseada na veneração sentida por determinados seres humanos, a reviver o antigo ideal através da criação de deuses. A noção de um homem que se torna deus ou de um deus que morre nos impressiona hoje como chocantemente presunçosa, mas, mesmo na antiguidade clássica, nada havia de revoltante nela. A elevação do pai que fora outrora assassinado à condição de um deus de quem o clã alegava descender constituía uma tentativa de expiação muito mais séria do que fora o antigo pacto com o totem.
Não posso sugerir em que ponto deste processo de evolução é possível encontrar lugar para as grandes deusas-mães, que podem talvez em geral ter precedido os deuses-pais. Parece certo, contudo, que a mudança na atitude para com o pai não se restringiu à esfera da religião, mas se estendeu de maneira harmônica àquele outro lado da vida humana que fora afetado pela eliminação do pai – à organização social. Com a introdução das divindades paternas, uma sociedade sem pai gradualmente transformou-se numa sociedade organizada em base patriarcal. A família constituiu uma restauração da antiga horda primeva e devolveu aos pais uma grande parte de seus antigos direitos. Mais uma vez apareceram pais, mas as conquistas sociais do clã fraterno não foram abandonadas; e a distância existente entre os novos pais de uma família e o irrefreado pai primevo da horda era suficientemente grande para garantir a continuidade do anseio religioso, a persistência de uma saudade não apaziguada do pai.
Vemos então que, na cena do sacrifício perante o deus do clã, pai é, na realidade duas vezes – como o deus e como a vítima animal totêmica. Entretanto, em nossas tentativas de compreensão dessa situação, devemos ter cuidado com as interpretações que procuram traduzi-la de maneira bidimensional, como se fosse uma alegoria, e para que, assim procedendo, não nos esquecemos de sua estratificação histórica. A dupla presença do pai corresponde aos dois significados cronologicamente sucessivos da cena. A atitude ambivalente para com o pai encontrou nela uma expressão plástica e assim também a vitória das emoções afetuosas do filho sobre as hostis. A cena da sujeição do pai, de sua maior derrota, tornou-se o estofo da representação de seu triunfo supremo. A importância que em toda parte, sem exceção, é atribuída ao sacrifício reside no fato de ele oferecer satisfações ao pai pelo ultraje que lhe foi infligido no mesmo ato em que aquele feito é comemorado.
À medida que o tempo foi passando, o animal perdeu seu caráter sagrado e o sacrifício, sua vinculação com o festim totêmico; tornou-se uma simples oferenda à divindade, um ato de renúncia em favor do deus. O próprio Deus foi sendo exaltado tão acima da humanidade que as pessoas só podiam aproximar-se dele através de um intermediário – o sacerdote. Ao mesmo tempo, os reis divinos fizeram seu aparecimento na estrutura social e introduziram o sistema patriarcal no Estado. Devemos reconhecer que a vingança tomada pelo pai deposto e restaurado foi rude: o domínio da autoridade chegou ao seu clímax. Os filhos subjugados utilizaram-se da nova situação para aliviar-se ainda mais de seu sentimento de culpa. Não eram mais, de maneira alguma, responsáveis pelo sacrifício, tal como agora se fazia. Era o próprio Deus que o exigia e regulamentava. Esta é a fase em que encontramos mitos apresentando o próprio deus matando o animal que lhe é consagrado e que, na realidade, é ele próprio. Temos aqui a negação mais extrema do grande crime que constituiu o começo da sociedade e do sentimento de culpa. Mas há, nesta última representação do sacrifício, um significado que é inequívoco. Ele expressa a satisfação pelo primitivo representante paterno ter sido abandonado em favor do conceito superior de Deus. Neste ponto, a interpretação psicanalítica da cena coincide aproximadamente com a tradução alegórica e superficial dela, que representa o deus a vencer o lado animal de sua própria natureza.
Não obstante, seria um equívoco supor que os impulsos hostis inerentes ao complexo-pai foram completamente silenciados durante esse período de autoridade paterna revivida. Pelo contrário, as primeiras fases da dominância dos dois novos representantes paternos – deuses e reis – apresentam os mais vigorosos sinais da ambivalência que continua sendo uma das características da religião.
Em sua grande obra, The Golden Bough, Frazer apresenta o ponto de vista de que os primeiros reis das tribos latinas foram estrangeiros que desempenhavam o papel de um deus e eram solenemente executados num determinado festival. O sacrifício anual (ou, como variante, o auto-sacrifício) de um deus parece ter sido um elemento essencial das religiões semíticas. Os cerimonias de sacrifício humano, realizados nas mais diferentes partes do globo habitado, deixam pouca dúvida de que as vítimas encontram seu fim como representantes da divindade e esses ritos sacrificatórios podem ser remontados a épocas antigas, com uma efígie ou boneco inanimado tomando o lugar do ser humano vivo. O sacrifício teantrópico do deus, no qual, infelizmente, me é impossível aqui deter-me de modo tão completo quanto no sacrifício animal, lança uma luz retrospectiva sabre o significado das formas mais antigas de sacrifício. Ele reconhece, com uma franqueza que dificilmente pode ser excedida, o fato de que o objeto do ato de sacrifício sempre foi o mesmo, a saber, aquilo que é hoje adorado como Deus, ou seja, o pai. O problema da relação entre o sacrifício animal e o sacrifício humano admite assim uma solução simples. O sacrifício animal original já constituía um substituto de um sacrifício humano – a morte cerimonial do pai; assim sendo, quando o representante paterno mais uma vez reassumiu sua figura humana, o sacrifício animal também podia ser retransformado num sacrifício humano.
A lembrança do primeiro grande ato de sacrifício mostrava-se assim indestrutível, não obstante todos os esforços para esquecê-lo; e, no próprio ponto em que os homens procuravam colocar-se a maior distância dos motivos que os levaram a ele, sua reprodução indeformada surgiu na forma do sacrifício do deus. Não é necessário estender-se aqui sobre os desenvolvimentos do pensamento religioso que, sob a forma de racionalizações, tornaram possível esta recorrência. Robertson Smith, que nada sabia de nossa interpretação que atribui a origem do sacrifício a esse grande acontecimento da pré-história humana, declara que as cerimônias dos festivais em que os antigos semitas celebravam a morte de uma divindade ‘eram correntemente interpretadas como a comemoração de uma tragédia mítica’. ‘O luto’, declara, ‘não é uma expressão espontânea de pesar pela tragédia divina, mas obrigatória e forçada pelo temor da ira sobrenatural. E um dos principais objetivos dos enlutados é rejeitar a responsabilidade pela morte do deus – ponto que já foi examinado em conexão com os sacrifícios teantrópicos, tais como a “morte do boi em Atenas”.’ Parece mais provável que essas ‘interpretações correntes’ fossem corretas e que os sentimentos dos celebrantes fossem integralmente explicados pela situação subjacente.
Vamos presumir ser um fato, então, que no decurso do desenvolvimento posterior das religiões, os dois fatores propulsores, o sentimento de culpa do filho e sua rebeldia, nunca se tenham extinguido. Todas as tentativas feitas para solucionar os problemas religiosos, todos os tipos de reconciliação efetuados entre essas duas forças mentais opostas mais cedo ou mais tarde ruíam sob a influência combinada, sem dúvida, dos fatos históricos, das mudanças culturais e das modificações psíquicas internas.
Os esforços do filho para colocar-se no lugar do deus-pai tornaram-se ainda mais óbvios. A introdução da agricultura aumentou sua família patriarcal. Ele aventurou-se a novas demonstrações de sua libido incestuosa, que encontraram satisfação simbólica no cultivo da Terra-Mãe. Surgiram figuras divinas como Átis, Adônis e Tamuz, espíritos da vegetação e, ao mesmo tempo, divindades cheias de juventude, a desfrutar dos favores das deusas-mães e a cometer incesto com a mãe, em desafio ao pai. Mas o sentimento de culpa, que não fora aliviado por essas criações, encontrou expressão em mitos que conferiam apenas vidas breves a esses favoritos juvenis das deusas-mães e decretavam sua punição pela emasculação ou pela ira do pai manifestada sob a forma de um animal. Adônis foi morto por um javali, o animal sagrado de Afrodite; Átis, amado de Cibele, pereceu por castração. O luto por esses deuses e o júbilo por sua ressurreição foram transferidos para o ritual de outra divindade-filho que estava destinada a alcançar um sucesso permanente.
Quando o cristianismo pela primeira vez penetrou no mundo antigo, defrontou-se com a competição da religião de Mitras e, durante algum tempo, houve dúvida em relação a qual das duas divindades alcançaria a vitória. Não obstante o halo de luz que rodeia a sua forma, o jovem deus persa continua a ser obscuro para nós. Podemos talvez deduzir das esculturas de Mitras matando um touro que ele representava um filho sozinho no sacrifício do pai, redimindo assim os irmãos do ônus de cumplicidade no ato. Havia um método alternativo de mitigar a culpa e ele foi adotado pela primeira vez por Cristo. Sacrificou a própria vida e assim redimiu do pecado original o conjunto de irmãos. A doutrina do pecado original era de origem órfica. Constituía parte dos mistérios e deles propagou-se para as escolas de filosofia da antiga Grécia (Reinach). A humanidade, dizia-se, descendia dos Titãs, que haviam matado o jovem Dioniso-Zagreus e o despedaçado. A carga desse crime pesava sobre eles. Um fragmento de Anaximandro conta como a unidade do mundo foi rompida por um pecado primevo e que tudo dele surgido devia sofrer o castigo. A malta tumultuosa, a matança e o despedaçamento pelos Titãs fazem-nos recordar com bastante clareza o sacrifício totêmico descrito por São Nilo – bem como, a propósito, também muitos outros mitos antigos, inclusive, por exemplo, o da morte do próprio Orfeu. Não obstante, existe uma diferença perturbadora no fato de o assassinato ter sido cometido contra um deus jovem.
Não pode haver dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir que o pecado foi um homicídio. A lei de talião, que se acha tão profundamente enraizada nos sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser expiado pelo sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa sanguínea. E se este sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o Deus-Pai, o crime a ser expiado só pode ter sido o homicídio do pai.
Na doutrina cristã, assim, os homens estavam reconhecendo da maneira mais indisfarçada o ato primevo culpado, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no sacrifício desse filho único. A expiação para o pai foi ainda mais completa visto que o sacrifício se fez acompanhar de uma renúncia total às mulheres, por causa de quem a rebelião contra aquele fora iniciada. Mas, neste ponto, a inexorável lei psicológica da ambivalência apareceu. O próprio ato pelo qual o filho oferecia a maior expiação possível ao pai conduzia-o, ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o pai. Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. Uma religião filial deslocava a religião paterna. Como sinal dessa substituição, a antiga refeição totêmica era revivida sob a forma da comunhão, em que a associação de irmãos consumia a carne e o sangue do filho – não mais do pai – obtinha santidade por esse e identificava-se com ele. Assim podemos acompanhar, através das idades, a identidade da refeição totêmica com o sacrifício animal, com o sacrifício humano teantrópico e com a eucaristia cristã, podendo identificar em todos esses rituais o efeito do crime pelo qual os homens se encontravam tão profundamente abatidos, mas do qual, não obstante, devem sentir-se tão orgulhosos. A comunhão cristã, no entanto, constitui essencialmente uma nova eliminação do pai, uma repetição do ato culposo. Podemos perceber a inteira justiça da declaração de Frazer de que ‘a comunhão cristã absorveu um sacramento que é sem dúvida muito mais antigo que o cristianismo’.”

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