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sábado, 21 de outubro de 2017

História da Filosofia Ocidental: A Filosofia Moderna (Vol. III) – Bertrand Russell

Editora: Companhia Editora Nacional
Tradutor: Brenno Silveira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 210
Sinopse: Ver Parte I



“O período da história comumente chamado “moderno” tem uma perspectiva mental que difere, sob muitos aspectos, do período medieval. Destes, são dois os mais importantes: a decrescente autoridade da Igreja e a crescente autoridade da ciência. A estes acham-se relacionados outros aspectos. A cultura dos tempos modernos é mais leiga que clerical. O Estado substitui cada vez mais a Igreja como autoridade governamental que controla a cultura. O governo das nações encontra-se, a princípio, principalmente nas mãos dos reis; depois, como na antiga Grécia, os reis vão sendo gradualmente substituídos por democracias ou por tiranos. O poder do Estado nacional e as funções que realiza aumentam incessantemente durante todo o período (à parte algumas pequenas flutuações); mas, na maior parte das ocasiões, o Estado tem menos influência sobre as opiniões dos filósofos que a exercida pela Igreja na Idade Média. A aristocracia feudal, que, ao norte dos Alpes, havia sido capaz, até o século XV, de conservar seu poder ante os governos centrais, perde primeiro sua importância política e, depois, a econômica. É substituída pelo rei, aliado aos mercadores ricos; estes dois elementos compartilham do poder, em proporções diferentes, nos diversos países. Há uma tendência, entre os comerciantes ricos, de se deixarem absorver pela aristocracia. A partir das revoluções americana e francesa, a democracia, no sentido moderno, transforma-se em importante força política. O socialismo, como algo oposto à democracia baseada na propriedade privada, adquire pela primeira vez poder governamental em 1917. Esta forma de governo, porém, se estender, terá de trazer consigo, evidentemente, uma nova forma de cultura; a cultura de que nos ocuparemos é, principalmente, “liberal”, isto é, do tipo que se associa mais naturalmente ao comércio.”


“A autoridade da ciência, reconhecida pela maioria dos filósofos da época moderna, é uma coisa muito diferente da autoridade da Igreja, pois que é intelectual, e não governamental. Nenhuma penalidade recai sobre os que a rejeitam; nenhum argumento de prudência influi naqueles que a aceitam. Prevalece somente pelo seu apelo intrínseco à razão. É, ademais, uma autoridade fragmentada e parcial; não formula, como o corpo do dogma católico, um sistema completo, abrangendo a moral humana, as esperanças humanas e o passado e o futuro da história do universo. Pronuncia-se somente sobre aquilo que, na ocasião, parece ter sido cientificamente verificado, o que é uma pequena ilha num oceano de ignorância. Há ainda uma outra diferença em relação à autoridade eclesiástica, que declara que seus pronunciamentos são absolutamente certos e eternamente inalteráveis: os pronunciamentos da ciência são feitos à maneira de ensaio, sobre uma base de probabilidade, sendo considerados como sujeitos a modificações. Isso produz uma disposição de espírito muito diferente da do dogmático medieval. (...)
Não é aquilo em que o homem de ciência acredita que o distingue, mas sim o como e o porquê de suas crenças. Suas crenças são tentativas, e não dogmáticas; baseiam-se em provas, e não em autoridade ou intuição.”


“Entrementes, a ciência como técnica estava criando nos homens práticos uma perspectiva inteiramente diferente da que se podia encontrar entre os filósofos teóricos. A técnica proporcionava um sentimento de poder: o homem está agora muito menos à mercê do meio em que vive do que em épocas anteriores. Mas o poder conferido pela técnica é social, e não individual; um indivíduo médio, náufrago numa ilha deserta, poderia ter conseguido mais, no século XVII, do que hoje. A técnica científica requer cooperação de um grande número de indivíduos organizados sob uma única direção. Sua tendência, portanto, é contra o anarquismo e, mesmo, o individualismo, já que exige uma estrutura social bem elaborada. Ao contrário da religião, é eticamente neutra: assegura aos homens que podem realizar maravilhas, mas não lhes diz quais as maravilhas que devem realizar. Sob este aspecto, é incompleta. Na prática, os propósitos a que a capacidade científica deverá dedicar-se dependem, em grande parte, do acaso. Os homens que se acham à frente das vastas organizações de que ela necessita podem, dentro de certos limites, voltar-se para este ou aquele lado, conforme lhes apeteça. O estímulo do poder tem, assim, um escopo como nunca teve antes. As filosofias inspiradas pela técnica científica são filosofias do poder, e tendem a considerar tudo o que não é humano como mera matéria-prima. Os fins já não entram em consideração; só se dá valor à habilidade do procedimento. Isto também é uma forma de loucura. É, em nossos dias, a forma mais perigosa, e uma forma contra a qual uma filosofia sã devia proporcionar um antídoto. (...)
O mundo moderno, no presente, parece caminhar para uma solução como a da antiguidade: uma ordem social imposta pela força, representando antes a vontade dos poderosos que as esperanças do homem comum. O problema de uma ordem social duradoura e satisfatória só pode ser resolvido combinando-se a solidez do Império Romano com o idealismo da Cidade de Deus de Santo Agostinho. Para consegui-lo, será necessária uma nova filosofia.”


“A Renascença não foi um período de grandes realizações na filosofia, mas fez certas coisas que constituíram os preliminares essenciais para a grandeza do século XVII. Antes de mais nada, acabou com o rígido sistema escolástico, que se havia convertido numa camisa-de-força intelectual. Renovou o estudo de Platão e, portanto, tomou necessária pelo menos a independência de pensamento que se fazia mister para escolher entre ele e Aristóteles. Com respeito a ambos, promoveu um conhecimento autêntico e de primeira mão, liberto das glosas dos comentadores neoplatônicos e árabes. O que é ainda mais importante, encorajou o hábito de se considerar a atividade intelectual como uma deliciosa aventura social, e não uma meditação enclausurada, tendo por objetivo a preservação de uma ortodoxia predeterminada. (...)
A Renascença não foi um movimento popular; foi um movimento de um pequeno número de eruditos e artistas, encorajados por protetores liberais, principalmente os Médicis e os Papas humanistas. Não fossem esses protetores, e talvez seu êxito houvesse sido muito menor.
A atitude dos eruditos da Renascença para com a Igreja é difícil de caracterizar-se em poucas palavras. Alguns eram livres-pensadores declarados, embora mesmo esses recebessem, habitualmente, a extrema-unção, fazendo as pazes com a Igreja quando sentiam que a morte se aproximava. A maioria deles estava impressionada com a perversidade dos Papas seus contemporâneos, mas, não obstante, todos se mostravam contentes de ser empregados por eles. (...)
A riqueza de Roma dependia só em pequena parte das rendas provenientes dos domínios papais; em geral, era um tributo tirado de todo o mundo católico por meio de um sistema teológico que afirmava que os Papas conservavam as chaves do céu. Um italiano que efetivamente levantasse dúvida quanto a esse sistema arriscaria causar o empobrecimento da Itália e a perda de sua posição no mundo ocidental. Por conseguinte, a heterodoxia italiana, durante a Renascença, foi puramente intelectual, não conduzindo ao cisma nem a qualquer tentativa no sentido de se criar um movimento popular fora da Igreja.”


“QUASE TUDO que distingue o mundo moderno dos séculos anteriores é atribuível à ciência, que obteve os seus triunfos mais espetaculares no século XVII. A Renascença italiana, embora não seja medieval, não é moderna; tem mais afinidade com a melhor época da Grécia. O século XVI, com sua preocupação pela teologia, é mais medieval do que o mundo de Maquiavel. O mundo moderno, quanto ao que se refere à perspectiva mental, começa no século XVII. Nenhum italiano da Renascença teria sido ininteligível a Platão ou Aristóteles; Lutero teria horrorizado Santo Tomás de Aquino, mas não lhe teria sido difícil entendê-lo. Quanto ao século XVII, é diferente: Platão e Aristóteles, Aquino e Occam, não conseguiriam ver nem pés nem cabeça em Newton.”


“O primitivo liberalismo foi um produto da Inglaterra e da Holanda, e tinha certas características bem acentuadas. Defendia a tolerância religiosa; era protestante, mas de caráter mais amplo que fanático. Considerava todas as guerras de religião. Apreciava o comércio e a indústria e favorecia antes o desenvolvimento da classe média do que a monarquia e a aristocracia; tinha imenso respeito pelos direitos de propriedade, principalmente quando esta havia sido obtida pelo trabalho de quem a possuía. O princípio hereditário, embora não rejeitado, viu seu escopo mais restringido do que o havia sido anteriormente; em particular, o direito divino dos reis foi rejeitado, em favor da opinião de que toda comunidade tem o direito, ao menos inicialmente, de escolher sua própria forma de governo. Implicitamente, a tendência do primitivo liberalismo era no sentido de uma democracia moderada pelo direito de propriedade. Havia a crença – a princípio não de todo explícita – de que todos os homens nascem iguais e de que suas desigualdades posteriores são um produto das circunstâncias. Isso fez com que se desse grande importância à educação como coisa oposta às características congênitas. Havia uma certa predisposição contra o governo, porque os governos estavam, quase em toda a parte, em mão dos reis ou da aristocracia, os quais raramente compreendiam ou respeitavam as necessidades dos comerciantes, mas esse desagrado era refreado pela esperança de que o entendimento e o respeito necessários seriam conquistados dentro de pouco tempo.
O liberalismo primitivo era otimista, enérgico e filosófico, pois representava forças crescentes que pareciam destinadas a obter a vitória sem grande dificuldade, trazendo, com essa vitória, grandes benefícios à humanidade. Era contrário a tudo que fosse medieval, tanto na filosofia como na política, porque as teorias medievais haviam sido utilizadas para sancionar os poderes da Igreja e do rei, para justificar a perseguição, para obstruir o desenvolvimento da ciência; mas opunha-se, igualmente, aos fanatismos, então modernos, dos calvinistas e anabatistas. Queria acabar com a luta política e teológica, a fim de libertar as energias para os excitantes cometimentos do comércio e da ciência, tais como a Companhia das índias Orientais e o Banco da Inglaterra, a teoria da gravitação e a descoberta da circulação do sangue. Em todo o mundo ocidental, o fanatismo ia cedendo lugar à ilustração, o receio do poder da Espanha ia acabando, a prosperidade de todas as classes aumentava e as mais altas esperanças pareciam estar garantidas pelo juízo mais sóbrio. Durante cem anos, nada ocorreu que obscurecesse essas esperanças; depois, por fim, elas próprias geraram a Revolução Francesa, que levou diretamente a Napoleão e, daí, à Santa Aliança. Depois desses acontecimentos, o liberalismo teve de tomar novo fôlego, antes que se tornasse possível o renovado otimismo do século XIX.”


“Uma característica de Locke, que chegou até ele vinda de todo o movimento liberal, é a falta de dogmatismo. Ele toma de seus predecessores umas certas certezas: nossa própria existência, a existência de Deus e a verdade das matemáticas. Mas, sempre que suas doutrinas diferem das de seus antecessores, só o fazem para mostrar que a verdade é difícil de ser averiguada, e que um homem razoável defenderá suas opiniões com uma certa medida de dúvida. Esta tempera de espírito está, evidentemente, ligada à tolerância religiosa, ao êxito da democracia parlamentar, ao laissez-faire e a todo o sistema de máximas liberais. Embora seja um homem profundamente religioso, um devoto que crê no Cristianismo e aceita a revelação como fonte do conhecimento, coloca em torno das revelações professadas, como salvaguardas, certas barreiras racionais. Em certa ocasião, diz ele: “O simples testemunho da revelação constitui a mais alta certeza”, mas, em outra, afirma: “A revelação deve ser julgada pela razão.” Assim, no fim, a razão permanece suprema.
Seu capítulo “Do Entusiasmo” é instrutivo a este respeito. “Entusiasmo” não tinha então o mesmo significado que agora; significava a crença numa revelação pessoal a um líder religioso ou a seus adeptos. Era uma das características das seitas que haviam sido derrotadas na Restauração. Quando há uma multiplicidade de tais revelações pessoais, todas incompatíveis umas com as outras, a verdade, ou o que passa por tal, torna-se puramente pessoal, e perde seu caráter social. O amor da verdade, que Locke considera essencial, é uma coisa muito diferente do amor a uma doutrina particular proclamada como a verdade. Um sinal inequívoco de amor à verdade, diz ele, é “não manter proposição alguma com maior segurança do que o permitam as provas sobre as quais foi ela edificada”. A prontidão em impor, diz ele, revela falta de amor à verdade. “O entusiasmo, esquecido da razão, é capaz de erigir a revelação sem ela; com isso, de fato, elimina tanto a razão como a revelação, e coloca em seu lugar as fantasias sem base do cérebro de um homem.” Os homens que sofrem de melancolia ou são presunçosos estão sujeitos “a persuadir-se de um contato com Deus”. Daí as opiniões e ações estranhas adquirirem a sanção divina, o que “lisonjeia a preguiça, a ignorância e a vaidade dos homens”. Termina o capítulo com a máxima citada acima, de que “a revelação deve ser julgada pela razão”.”


“Locke tinha em mira a credibilidade e a conseguiu às expensas da coerência. A maior parte dos grandes filósofos fez o contrário. Uma filosofia que não é congruente não pode ser inteiramente verdadeira, mas uma filosofia que é congruente pode bem ser inteiramente falsa. As filosofias mais fecundas têm contido incoerências notórias, mas por essa mesma razão tem sido parcialmente verdadeira. Não há razão para se supor que um sistema coerente consigo mesmo contenha mais verdade que um que, como o de Locke, é evidentemente mais ou menos errôneo.”


“Mesmo antes da Reforma, os teólogos tendiam a crer na limitação do poder real. Isto fazia parte da batalha entre a Igreja e o Estado, a qual enfureceu a Europa durante quase toda a Idade Média. Nesta batalha, o Estado dependia da força armada e, a Igreja, da inteligência e da santidade. Enquanto a Igreja teve ambos esses méritos, venceu; quando passou a ter apenas inteligência, perdeu. Mas as coisas que os homens eminentes e santos haviam dito contra o poder dos reis permaneceram registradas. Embora fossem ditas no interesse do Papa, podiam ser usadas para apoiar os direitos do povo quanto a um governo próprio. “Os sutis escolásticos – diz Firmer – para estar certos de colocar o rei abaixo do Papa, acharam que o modo mais seguro seria colocar o povo acima do rei, de modo que o poder papal pudesse ocupar o lugar do poder real”. Cita o teólogo Belarmino, como tendo dito que o poder secular é concedido pelos homens (isto é, não por Deus), e que “está no povo, a menos que este o conceda a um príncipe”. Assim, Belarmino, segundo Firmer, “faz de Deus o autor imediato de um Estado democrático”, coisa que a ele soa de modo tão chocante como soaria a um plutocrata moderno dizer-se que Deus é o autor imediato do bolchevismo.”


“O princípio hereditário já quase desapareceu da política. Durante minha vida, os imperadores do Brasil, China, Rússia, Alemanha e Áustria desapareceram, para dar lugar a ditadores que não tem em vista a fundação de uma dinastia hereditária. A aristocracia perdeu seus privilégios em toda a Europa, exceto na Inglaterra, onde se converteu em pouco mais do que numa forma histórica. Tudo isto, na maioria dos países, é muito recente, e tem muito que ver com o advento das ditaduras, pois que a base tradicional do poder foi eliminada e os hábitos mentais requeridos para a prática bem-sucedida da democracia ainda não tiveram tempo de desenvolver-se. Há uma grande instituição que jamais teve qualquer elemento hereditário: a Igreja Católica. Podemos esperar que as ditaduras, se sobreviverem, desenvolvam, aos poucos, uma forma de governo análoga à da Igreja. Isto já aconteceu no caso das grandes corporações nos Estados Unidos, as quais têm, ou tiveram até Pearl Harbour, poderes quase iguais aos do governo*.
É curioso que a rejeição do princípio hereditário na política quase não haja tido qualquer efeito sobre a esfera econômica, nos países democráticos. (Nos Estados totalitários, o poder econômico foi absorvido pelo poder político.) Ainda achamos natural que um homem deva deixar suas propriedades a seus filhos, isto é, aceitamos o princípio hereditário quanto ao que se refere ao poder econômico, embora o rejeitemos com respeito ao poder político. As dinastias políticas desapareceram, mas as dinastias econômicas sobrevivem.”
*: O livro foi escrito no início da década de 40.


“Na teoria do governo de Locke, repito, há pouca coisa que seja original. Nisto, Locke se assemelha à maioria dos homens que adquiriram fama com suas ideias. Regra geral, o homem que primeiro pensa numa ideia nova está tão à frente de seu tempo que toda a gente o considera tolo, de modo que permanece obscuro e é logo esquecido. Depois, gradualmente, o mundo amadurece para tal ideia e aquele que a proclama no momento exato recebe todas as honras. Assim aconteceu, por exemplo, com Darwin; o pobre Lorde Monboddo foi um pobre diabo que fazia rir.”


““A grande e principal finalidade da união de homens em comunidades, e de se colocarem eles sob um governo, é a preservação de sua propriedade” (Locke).
De acordo com esta doutrina, Locke declara que:
“O poder supremo não pode privar um homem de qualquer parte de sua propriedade sem o seu próprio consentimento.”
Mais surpreendente ainda é a afirmação de que, embora os comandantes militares tenham poder de vida e morte sobre seus soldados, não tem poder para tirar dinheiro. (Segue-se daí que, em qualquer exército, seria ilícito castigar por meio de multas as pequenas infrações da disciplina, mas que seria permissível puni-las por meio de castigos corporais, tais como o açoite. Isto mostra a que extremos absurdos é levado Locke pelo seu amor à propriedade.)”


“O contrato social, no sentido requerido, é mítico mesmo quando, em algum período anterior, tivesse havido realmente um contrato que criasse o governo em questão. Os Estados Unidos constituem um exemplo adequado. Ao tempo em que a Constituição foi adotada, os homens tinham liberdade de escolha. Mesmo então, muitos votaram contra ela e não foram, portanto, partes do contrato. Poderiam, por certo, ter deixado o país, mas, tendo ficado, se considerou que ficaram obrigados por um contrato ao qual não haviam dado o seu assentimento. Mas, na prática é geralmente difícil deixar o país natal. E, no caso de homens nascidos depois da adoção da Constituição, seu consentimento é ainda mais vago.
A questão dos direitos do indivíduo ante o governo é muito difícil. Os democratas presumem com demasiada prontidão que, quando o governo representa a maioria, tem o direito de coagir a minoria. Até certo ponto, isto deve ser certo, pois que a coerção faz parte da essência do governo. Mas o direito divino das maiorias, se levado demasiado longe, pode tornar-se quase tão tirânico como do direito divino dos reis. (...)
A teoria de que o governo foi criado por um contrato é, sem dúvida, pré-evolucionista. O governo, como o sarampo e a tosse comprida, deve ter-se desenvolvido gradualmente, embora, como essas doenças, pudesse ser introduzido subitamente em novas regiões, tais como as ilhas dos Mares do Sul. Antes do estudo da antropologia, os homens não tinham ideia dos mecanismos psicológicos implicados no início dos governos nem das razões fantásticas que levaram os homens a adotar instituições e costumes que, depois, demonstraram ser úteis. Mas, como ficção legal, para justificar o governo, a teoria do contrato social encerra certo grau de verdade.”


“O estranho é que Locke pudesse anunciar doutrinas que exigiam tantas revoluções para que pudessem ser efetuadas, e que, apesar de tudo, não revelasse em seus escritos qualquer indício de que achava injusto o sistema existente em sua própria época, ou que percebesse que este era diferente do sistema pelo qual propugnava.
A teoria do valor do trabalho – isto é, a doutrina de que o valor de um produto depende do trabalho empregado nele – que alguns atribuem a Karl Marx e outros a Ricardo, pode ser encontrada em Locke e lhe foi sugerida por uma série de predecessores que remonta até Santo Tomás. Eis o que diz Tawney, resumindo a doutrina escolástica: “A essência do argumento era que o pagamento pode propriamente ser exigido pelos artesãos que fazem a mercadoria ou pelos comerciantes que a transportam, pois ambos trabalham em seus ofícios e servem à necessidade comum. O pecado imperdoável é o do especulador ou intermediário, que lança mão do lucro privado por meio da exploração das necessidades públicas. O verdadeiro descendente da doutrina de Aquino é a teoria do valor do trabalho. O último dos escolásticos foi Karl Marx”.”


“O princípio de que o homem tem direito ao produto de seu próprio trabalho é inútil numa civilização industrial. Suponhamos que somos empregados numa operação na fábrica de automóveis Ford: como é que alguém pode calcular qual a proporção da produção total devida ao nosso trabalho? Ou suponhamos que somos empregados por uma companhia ferroviária no transporte de mercadorias: quem pode decidir a parte que nos corresponde na produção das mercadorias? Tais considerações levaram os que desejam impedir a exploração do trabalho a abandonar o princípio do direito ao produto de nosso próprio trabalho em favor de métodos mais socialistas da organização da produção e da distribuição.
A teoria do valor do trabalho tem sido habitualmente defendida em oposição a uma classe considerada como predatória. Os escolásticos, na medida em que a defendiam, faziam-no por oposição aos usurários que eram em sua maioria judeus. Ricardo defendeu-a em oposição aos grandes proprietários rurais; Marx, em oposição aos capitalistas. Mas Locke parece tê-la defendido num vácuo, sem hostilidade a classe alguma. Sua única hostilidade era a respeito dos monarcas, mas isto não tem relação com suas opiniões sobre o valor.”


“A filosofia política de Locke foi, em seu todo, adequada e útil à revolução industrial. Desde então, foi cada vez mais incapaz de abordar os problemas importantes. O poder da propriedade, incorporado em grandes corporações, cresceu muito mais do que o imaginado por Locke. As funções necessárias do Estado – como, por exemplo, na educação – aumentaram enormemente. O nacionalismo produziu uma aliança, às vezes um amálgama, do poder econômico e político, fazendo da guerra o meio principal da concorrência. O simples cidadão isolado não tem mais o poder e a independência que tinha nas especulações de Locke. Nossa época é uma época de organização, e seus conflitos são entre organizações, e não entre indivíduos isolados. O estado de natureza, como diz Locke, ainda existe entre os Estados. Um novo Contrato Social internacional torna-se necessário para que possamos desfrutar dos prometidos benefícios do governo. Uma vez que haja sido criado um governo internacional, muito da filosofia política de Locke se tornará de novo aplicável, embora não a parte que trata da propriedade privada.”


“Na ética, há uma divisão semelhante entre as duas escolas.
Locke acreditava que o prazer era o bem, e este foi o critério predominante entre os empiristas durante os séculos XVIII e XIX. Seus adversários, pelo contrário, desprezavam o prazer como ignóbil e tinham vários sistemas de moral que pareciam mais exaltados. Hobbes valorizava o poder e Spinoza, até certo ponto, estava de acordo com Hobbes. Há em Spinoza dois pontos de vista irreconciliáveis sobre a moral – um, o de Hobbes e, o outro, o de que o bem consiste na união mística com Deus. Leibniz não fez nenhuma contribuição importante à ética, mas Kant a tornou suprema, derivando sua metafísica de premissas éticas. A ética de Kant é importante porque é anti-utilitária é, a priori, a que se chama “nobre”.
Kant diz que, se somos bondosos para com o nosso irmão porque gostamos dele, não temos nisso nenhum mérito moral: um ato só tem valor moral quando é executado porque a lei moral o ordena. Embora o prazer não seja o bem, é, não obstante, injusto – assim o afirma Kant – que o virtuoso sofra. Já que isso acontece com frequência neste mundo, deve haver um outro mundo, em que os virtuosos sejam recompensados depois da morte, e deve haver um Deus que assegure a justiça na outra vida. Rejeita todos os velhos argumentos metafísicos relativos a Deus e à imortalidade, mas considera irrefutável o seu novo argumento ético.
O próprio Kant era um homem cuja visão dos assuntos práticos era generosa e humanitária, mas não se pode dizer o mesmo da maioria daqueles que negavam que a felicidade era o bem. A espécie de ética chamada “nobre” está menos associada às tentativas no sentido de melhorar o mundo que ao critério mais mundano de que deveríamos procurar tornar os homens mais felizes. Isto não é surpreendente. O desdém pela felicidade é mais fácil quando se trata da felicidade alheia do que quando se trata da nossa. Habitualmente, o substituto da felicidade é alguma forma de heroísmo. Este proporciona saídas inconscientes para o desejo de poder, bem como desculpas abundantes para a crueldade. Ou, então, aquilo a que se dá valor pode ser a emoção forte; este era o caso dos românticos. Isto conduziu à tolerância de paixões como o ódio e a vingança; os heróis de Byron são típicos, não sendo nunca pessoas de procedimento exemplar. Os homens que mais fizeram para promover a felicidade humana foram – como era de esperar-se – aqueles que consideravam importante a felicidade, e não os que a desprezavam em comparação com algo mais “sublime”. Ademais, a ética de um homem reflete-se em seu caráter e a benevolência conduz ao desejo da felicidade geral. Assim, os homens que consideravam a felicidade como finalidade da vida eram, em geral, mais benévolos, enquanto que os que propunham outros fins eram, com frequência, dominados inconscientemente pela crueldade ou pelo amor do poder.”

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