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terça-feira, 14 de março de 2017

Vida Nova / Monarquia (Os Pensadores) – Dante Alighieri

Editora: Nova Cultural
Tradução: Paulo M. Oliveira e Blasio Demetrio (Vida Nova) e Carlos do Soreval (Monarquia)
Opinião: Vida Nova = ★★☆☆☆ / Monarquia = ★☆☆☆☆
Páginas: 90
Sinopse: Além da imortal obra-prima A Divina Comédia, Dante expressou suas ideias em prosa básica para a compreensão de seu universo intelectual. Da Monarquia é um tratado de filosofia política em que conclui pela dualidade do destino do homem. Dante acreditava na necessidade da monarquia para o bem-estar das nações e especulou sobre a origem da autoridade monárquica. Vida Nova são poemas líricos dedicados a Beatrice Portinari que descrevem seu amor em tom profundamente espiritualista, trechos de prosa críticos e autobiográficos, ou ficcionais. Vida Nova é considerada uma pequena obra-prima juvenil, ilustrativa do estilo poético do autor.



Vida nova (1293)

Vós, que a via de Amor vejo seguir,
Procurai distinguir
Se há dor alguma, quanto a minha, grave;
E consenti apenas em me ouvir,
Para então decidir
Se não sou da desgraça abrigo e chave.
Amor, não pelo bem que em mim se vir,
Mas que nele existir,
Pôs-me em vida tão doce e tão suave,
Que escutei, muitas vezes, proferir:
“Por que o vejo sempre ir,
Contente, sem tristeza que o agrave?”
Agora já perdi minha ousadia,
Que somente em amor tinha razão;
Infeliz dizer quão
Permaneço, difícil me seria.
Assim, por ser me esforço como o são
Os que escondem a sua vilania:
Sou por fora alegria
E por dentro amargor no coração.


Cavalgando eu seguia o meu destino,
Queixoso do trajeto que fazia,
Quando encontrei Amor em meio à via,
Com hábito vulgar de peregrino.
De aspecto parecia-me mofino,
Como houvesse perdido senhoria;
E suspirando a meditar seguia,
Cabisbaixo, sem de outrem dar-se tino.
Quando me viu, chamou-me pelo nome,
E disse: “Eu venho de longínqua parte,
Onde o teu coração deixei viver.
Levo-o, agora, a servir novo prazer”.
Então, dele tomei tão grande parte,
Que, sem que eu visse, se despede e some.


     “Disse ao meu amigo estas palavras: “Tive os pés naquela parte da vida além da qual não se pode ir com a intenção de retornar”.


Muitas vezes invadem minha mente
As condições fatais que Amor me cede;
E o sinto tanto que frequentemente
Digo: “Pobre! Tal coisa a alguém sucede?”
Amor me vem tão subitaneamente
Que a vida de mim quase se despede:
Vivo resta um espírito somente,
E resta porque nele tendes sede.
Depois me esforço e quero me suster;
E assim desfigurado, sem valor,
Vou ver-vos, esperando me curar.
E se levanto os olhos para ver,
No coração começa-me um tremor
Que faz a alma dos pulsos me escapar.


Nos olhos leva minha amada Amor,
Porque se faz gentil o que ela mira;
Toda a gente, ao passar, pra a ver se vira,
E em quem saúda ao peito dá tremor,
Tal que, baixando o rosto, é só temor
E todo seu defeito então suspira:
Ante ela fogem a soberba e a ira.
Mulheres, ajudai-me, em seu louvor.
Toda doçura e pensamento humil
Quem a escuta falar no peito sente,
Sendo louvado quem primeiro a viu.
E o que parece, quando a alguém sorriu,
Não se pode dizer nem ter em mente,
Tão estranho é o milagre e tão gentil.


Vinde, vinde os suspiros meus ouvir,
Ó corações gentis, penalizados:
Se não partissem, tão desconsolados,
À dor eu deveria sucumbir;
Muito mais do que posso consentir,
Os meus olhos seriam obrigados
A ficar de chorar tão fatigados,
Que minha dor lograssem expandir.
Ouvi-los-ei chamar constantemente
Minha gentil senhora, assim partida
Para o céu, que a virtude sua encerra:
E desprezar, às vezes, esta vida
Em nome de minh’alma descontente,
Por ela abandonada aqui na terra.
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Monarquia (1313)

“Para um claro entendimento, notemos que o fim para o qual o polegar foi criado não se identifica com aquele para que existe a mão inteira. E notemos que, diverso destes dois fins, nos aparece aquele outro a que se ordena o braço. E, ainda, que, distinto de todos os fins referidos, é o fim do homem integral. Em termos correspondentes, um é o fim a que se ordena um indivíduo, outro o da comunidade familiar, outro o do povoado, outro o da cidade, outro o do reino, outro, enfim, e acima de todos, o fim para o qual Deus eterno, atuando por meio da sua arte — e a arte divina é a natureza —, instaurou na existência a universalidade do gênero humano.
O que passamos a procurar é o princípio diretor da nossa investigação.
Importa saber, antes de tudo, que Deus e a natureza não criam ser ocioso nenhum: o que é depositado na existência, destina-se a qualquer ação. Não é, com efeito, uma essência que o Criador se propõe como fim no ato de criar, mas sim a ação própria da essência. De onde se conclui que a ação própria duma essência não existe para esta, mas, ao contrário, que é antes a essência que existe em razão da ação. Existe uma atividade específica do gênero humano: é a ela que se ordena a incontável humanidade: uma atividade a que não pode chegar nem o indivíduo, nem a família, nem a aldeia, nem a cidade, nem o reino particular. Qual seja esta atividade logo se verá quando se descubra o que de melhor pode realizar a humanidade.
Raciocino assim: não constitui a máxima perfeição a que possam chegar determinados seres de espécies diferentes aquela capacidade que por eles é possuída em graus desiguais. De fato, a não ser assim, e dado que a perfeição suprema dum ser constitui a sua espécie, uma essência seria informada por várias espécies, o que é impossível. Por conseguinte, a virtude suprema do homem não consiste em existir pura e simplesmente, pois que a existência é também possuída pelos elementos; nem em ser um organismo, porquanto esta outra potência se encontra até nos minerais; nem em ser animado, porque isso pertence também às plantas; nem em ser sensitivo — perfeição de que participam os animais: mas sim em receber as formas inteligíveis dos outros seres num intelecto possível: esta é a perfeição que não convém a nenhum outro ser senão ao homem — uma perfeição que se não encontra nem abaixo nem acima dele. Porquanto, ainda que outras essências participem da inteligência, a inteligência que lhes cabe não é possível como a do homem; trata-se de espécies intelectuais, que não são mais que espécies intelectuais: o seu ser é o seu ato de pensar, e este ato é sem mudança, pois que de outra forma não seriam perenes. Concluamos: toma-se evidente que a perfeição suprema da potência específica do homem reside na faculdade ou virtude da intelecção.”


“A tarefa própria do gênero humano, tomado na totalidade, é de pôr continuamente em ato toda a potência do intelecto possível, em vista, primeiro, da especulação, em vista da prática, e por via de consequência, depois. Ora, partes e todo obedecem às mesmas leis: se o indivíduo ganha prudência e sabedoria com viver aprazível e serenamente, o gênero humano, de forma semelhante, só se consagra livre e desafogadamente à sua tarefa quando frui do repouso e da paz. E a tarefa é quase divina, segundo a palavra sagrada: “Puseste-os logo abaixo dos anjos”1. De onde resulta que a paz universal é o melhor de todos os meios para chegar à felicidade. Em verdade aquilo que as vozes celestiais anunciaram aos pastores foi a paz — e não riquezas, ou prazeres, ou honrarias, ou longevidade, ou saúde, ou vigor, ou beleza. Paz. A milícia celeste canta: “Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade” 2. Eis, ainda, por que o Salvador dos homens saudava com estas palavras: “Que a Paz seja convosco”3. Convinha, em verdade, que o soberano Salvador dissesse a soberana Saudação. Os seus discípulos quiseram conservá-la, e Paulo usa-a no começo das epístolas, como podemos verificar.
De tudo o que antecede se conclui qual seja o meio que melhor, e mesmo perfeitamente, conduzirá o gênero humano ao desempenho da tarefa que lhe pertence. Viu-se que o meio mais imediato para chegar ao fim supremo é a paz universal.”
2: Lc 2,14.


“Atinge o gênero humano a perfeição quando desfruta de uma grande liberdade. E é esta asserção evidente se se compreende o princípio da liberdade. Recorde-se, então, que o aspecto primacial da nossa liberdade é o livre arbítrio que tantos trazem na boca e tão poucos na inteligência. Dizem ser o livre arbítrio o juízo livre que mana da vontade. E dizem a verdade. Não abrangem, porém, o sentido das palavras que pronunciam. Assim repetem os nossos lógicos, durante todo o dia, sem as compreender, as proposições que aduzem para ilustração das regras.
Quanto a mim, penso que o juízo se situa entre a apreensão e o apetite: apreende-se, primeiro, o objeto; julgamo-lo, em seguida, bom ou mau; o julgador, por último, ou o persegue ou lhe foge. Se o juízo move assim de tão completa forma o apetite, e se, de modo nenhum, recebe deste o menor impulso, é que o juízo é livre; se, pelo contrário, o juízo é movido, seja como for, pelo apetite, não podemos considerá-lo livre: não age por si mesmo, é cativo de outrem. Eis por que os animais irracionais não podem ter um juízo livre; os seus juízos são sempre precedidos do apetite. E eis, outrossim, por que as substâncias intelectuais, cujas vontades são imutáveis, e ainda as almas separadas, que dos bens desta vida se apartaram, não perdem a liberdade de arbítrio, fundada na imutabilidade da vontade. Longe de perdê-la, conservam-na em perfeitíssimo e poderosíssimo estado.
Posto isto, podemos estabelecer de novo que essa liberdade, ou o princípio dela, é o dom maior que Deus concedeu à natureza humana.”


“O gênero humano, então, quando está excelentemente ordenado, depende da unidade das vontades. Mas tal acordo das vontades é impossível se não existe uma vontade única, senhora e reguladora de todas as outras no uno. Por causa dos deleites da adolescência, carecem as vontades dos mortais de quem bem as dirija, como o ensina o Filósofo nos últimos livros a Nicômaco1. Nem esta vontade pode ser una sem um príncipe único e universal, cuja vontade seja a senhora e reguladora de todas as outras vontades. Se todas as conclusões precedentes são verdadeiras, e o são, é necessário para a boa organização do gênero humano que exista no mundo um monarca.”
1: Ética a Nicômaco, X, 5. (N. do T.)


“Numerosas são, de fato, as coisas que ignoramos e acerca das quais não disputamos: o geômetra desconhece a quadradura do círculo e não se entrega a debates sobre o assunto; o teólogo ignora o número dos anjos e não faz disso um problema: o egípcio ignora a civilização dos citas, e também a não discute.
Quanto à verdade tratada nesta terceira parte, temos de dizer que é litigiosa. Amiúde, noutras matérias, costuma ser a ignorância a origem das querelas, mas aqui, ao contrário, são as querelas que causam a ignorância.
Aos homens em quem a vontade prevalece sobre a clara visão da inteligência acontece por norma que quando estão impregnados de maus sentimentos se lhes extingue a luz da razão e ficam como cegos arrastados da paixão, cegos que negam obstinadamente a sua cegueira. Outra consequência se produz amiúde: o erro não respeita a determinada matéria; e então vê-se os homens, abandonando a sua capacidade peculiar, invadirem o campo dos outros. Deixam de compreender e de ser compreendidos: suscitam nuns a ira, noutros o desprezo e, ainda noutros, o riso.”


“A fim de destruir estas razões notemos, segundo a palavra do Filósofo em Dos Argumentos Sofísticos, que “a ruína do argumento é a manifestação do erro”. E como o erro pode dissimular-se na matéria ou na forma do argumento, pode o argumento pecar de duas maneiras: ou assumindo o falso, ou inferindo mal.”


“Dois fins deu ao homem a inefável Providência: a beatitude desta vida, que consiste no exercício da própria virtude e que se figura pelo paraíso terrestre; e a beatitude da vida eterna, que consiste na fruição da presença divina, à qual não pode ascender a virtude se não é ajudada da luz divina, e que se estende pelo paraíso celeste.
A estas diferentes beatitudes, como a diversas conclusões, se deve chegar por diversos meios. Chegamos à primeira por doutrinas filosóficas, desde que, todavia, sigamos os ensinamentos destas e exercitemos as virtudes morais e intelectuais. Chegamos à segunda por meio de doutrinas espirituais que excedem a razão humana, desde que as ponhamos em prática com o auxílio das virtudes teologais, fé, esperança e caridade. Estas conclusões, e estes meios, que nos são patenteados já pela razão humana, que toda se nos oferece nos filósofos, já pelo Espírito Santo, que nos revela a verdade sobrenatural do que carecemos por meio dos Profetas e Hagiógrafos, já por Jesus Cristo, coeterno filho de Deus, já pelos discípulos d’Ele.”

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