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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Celso Furtado - Brasil, a construção interrompida (Parte II)

Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-500-4
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 88
Sinopse: Ver Parte I



“A corrente do pensamento econômico que domina os grandes centros acadêmicos ignora a especificidade do subdesenvolvimento, pretendendo englobar todas as situações históricas de aumento persistente de produtividade em um só modelo explicativo. É a obsessão do monoeconomics a que se referiu Hirschman, o “falso universalismo” de que já falava Prebisch em 1949. Segundo essa doutrina, existe um só modelo de industrialização nas economias de mercado, o qual se desdobra em fases temporais. Mas a realidade é cabeçuda e nem sempre é possível escamoteá-la.
Os dados estatísticos não deixam dúvida de que a tendência à concentração da renda persiste em todas as fases da industrialização, quando esta foi precedida por um período de crescimento apoiado na exportação de produtos primários, a qual engendra a modernização. E com frequência tal tendência se acentua quando o crescimento econômico se intensifica. Não é de surpreender, portanto, que a especificidade do subdesenvolvimento se manifeste conceitualmente na “teoria da pobreza”. Essa teoria estatui que a massa de pobreza existente em determinada economia reflete a distribuição de ativos no momento em que tem início o processo de crescimento da produtividade e também a natureza das instituições que regulam a acumulação dos ativos. Simplificando: ali onde a propriedade da terra está concentrada e o crédito é monopolizado pelos proprietários, uma maioria de despossuídos não participará dos benefícios do crescimento, acarretando essa concentração da renda. Se esses dados estruturais não se modificam, o aumento de produtividade engendrará necessariamente uma crescente dicotomia social. O único ativo de que a população pobre dispõe é sua força de trabalho, e, sendo esta um bem de oferta elástica, o seu preço será fixado no mercado em função de seu custo de reprodução, perpetuando-se a miséria.
Essas ideias foram desenvolvidas por economistas ligados ao Banco Mundial para serem utilizadas pelos técnicos dessa instituição que dão assistência aos governos de países subdesenvolvidos. Esses autores reconhecem que, para romper o círculo fechado da pobreza, faz-se necessária uma “estratégia” de desenvolvimento, vale dizer, uma ação deliberada do governo, capaz de modificar a “distribuição primária da renda” — apropriação do produto antes dos impostos e transferências. A quantidade de ativos em mãos dos pobres pode ser aumentada mediante redistribuição do estoque existente (reforma agrária), ou mediante modificação do quadro institucional, a fim de que o fluxo de novos ativos também beneficie os pobres (reforma do sistema de crédito, por exemplo). A segunda estratégia, preconizada por Hollis Chenery, evita um choque maior com interesses criados. Irma Adelman recomenda a combinação das duas estratégias, mas adverte com pertinência que a reforma agrária deve ser feita antes da implantação da política visando a incrementar a produtividade agrícola, e que substanciais investimentos em educação devem preceder a política de incentivo à industrialização. É evidente que Adelman se inspirou nas experiências de Taiwan e da Coreia do Sul, sem contudo dar a devida importância às condições históricas que conduziram esses dois países pelos caminhos que trilharam, em particular o grande desafio representado pela vizinhança de outro estilo de desenvolvimento privilegiando o social.”


“No período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial e se estendeu até fins dos anos 50, os Estados Unidos se beneficiaram de amplo saldo comercial em conta corrente, o que lhes permitiu financiar vultosos gastos no exterior e acumular enormes reservas de câmbio. Foi a época da chamada “escassez de dólares”, fenômeno que muitos economistas atribuíram a um diferencial positivo de produtividade em favor da economia norte-americana. Aceitava-se então como certo que a posição de vanguarda, no que respeita à produtividade — finto de gastos importantes em pesquisa e desenvolvimento —, asseguraria aos Estados Unidos por muito tempo a função de centro principal da economia capitalista. O crescimento relativamente mais rápido da produtividade, observado no imediato pós-guerra em outros países industrializados, encontrava explicação no processo de “recuperação econômica” em que estes se encontravam empenhados. Dava-se por certo que, quando se aproximassem do nível mais alto em que se situava a poderosa nação americana, já não lhes seria fácil manter tão expressivas taxas de incremento da produtividade.
Mas o que se observou a partir dos anos 60 foram modificações profundas nas relações entre as economias cêntricas, que afetaram seriamente a posição norte-americana como centro principal. O sistema de taxas de câmbio fixas, que vinculava o dólar ao ouro, dava lugar a uma evidente sobrevalorização dessa moeda, o que repercutiu negativamente na competitividade externa da economia norte-americana. De forma paradoxal, essa situação favoreceu os investimentos das empresas norte-americanas no exterior, o que também se traduziu em pressão sobre as reservas de ouro do centro principal. Em 1963, o governo Johnson introduziu a lei chamada Interest Equalization Act, tentando frear a saída de capitais — primeiro sinal de debilidade de uma economia que desempenhava o papel de centro motor do mundo capitalista. Ora, consequência dessa medida foi o reforçamento do emergente mercado do eurodólar, já que as empresas norte-americanas que operavam no exterior começaram a reter fora do país seus ativos líquidos. Ao acumular-se uma grande massa de liquidez em dólares nos bancos centrais de alguns países cêntricos, e também em bancos privados norte-americanos no exterior, a convertibilidade do dólar em ouro tornou-se insustentável.
A suspensão dessa convertibilidade ocorreu em 1971 e provocou forte valorização do ouro. O valor deste em dólares e, em menor escala, em outras moedas das reservas mantidas nesse metal aumentou inusitadamente, inflando-se a massa de liquidez internacional. Não tardou o abandono do regime de câmbio fixo pelo governo dos Estados Unidos, que se produziria dois anos depois. Não obstante a intervenção dos bancos centrais mais poderosos, a desvalorização da moeda americana em relação às moedas dos demais países cêntricos foi considerável, provocando a fuga para ativos reais, numa significativa onda de especulação nos mercados internacionais.
A prolongada sobrevalorização do dólar — a partir da Segunda Guerra Mundial até 1973 — não terá sido estranha ao desgaste da posição dos Estados Unidos como centro principal. Para defender essa posição, teria sido necessário manter o nível de reservas e uma acumulação de ativos reprodutivos no exterior, capazes de colocar o dólar a salvo de qualquer ameaça, independentemente do nível da atividade econômica norte-americana. Cabe ao centro principal emitir a moeda que serve de reserva ao conjunto do sistema capitalista, prerrogativa que supõe uma posição de balança de pagamentos em conta corrente excepcionalmente sólida. Sólida com respeito às modificações da conjuntura internacional e também frente às mudanças bruscas de sua própria conjuntura interna, pois a política monetária do centro principal deve assegurar fluidez às correntes internacionais de capital a curto prazo.
Se aprofundarmos a análise desses fatos, veremos que não foi somente a sobrevalorização do dólar que atuou no sentido de comprometer a posição de centro principal que certamente ocupou a economia norte-americana até começos do decênio de 1970. Também contribuiu para esse resultado o peso dos gastos que realizou o governo norte-americano na montagem de um sistema de segurança que compreendia instalações militares em todos os continentes. O fato de que a economia dos Estados Unidos era relativamente pouco aberta para o exterior restringia sua capacidade de realizar gastos que incorriam em custos em divisas. Com o correr do tempo, os enormes gastos militares forçariam o governo de Washington a cobrir os desembolsos no exterior com emissões de papel-moeda de circulação internacional forçada, vale dizer, obrigando os bancos centrais de outros países a acumular excessivas reservas em dólares, as quais se transformavam em títulos da dívida pública do Tesouro dos Estados Unidos. Basta observar o comportamento dos gastos militares, realizados em proporção crescente fora do território do país nos anos 60, para comprovar a magnitude das deslocações que se produziam na economia norte-americana, levando-a a uma situação de dependência financeira com respeito a outras economias cêntricas. Em 1973, os gastos militares representaram 5,6% do PNB desse país. Esses gastos reduziam o potencial de investimento do setor público em atividades econômicas e sociais. E, a partir desse ano, observa-se uma sensível diminuição da taxa de crescimento da produtividade média da economia.
No decênio que se inicia em 1973, o crescimento da produtividade não superou a metade do que havia sido nos dez anos anteriores. Ora, essa desaceleração do aumento da produtividade não impediu que crescesse o peso dos gastos militares, os quais alcançaram 6,6% do PNB em 1983. Ademais, a taxa de poupança se reduziu, naquele período, de 9,5% para 6,7%.” (...)
A desordem implantada no sistema monetário-financeiro internacional, em razão do excesso de liquidez gerado pela crise do dólar, foi o ponto de partida do processo de endividamento de quase todos os países da periferia. As taxas de juros em 1973 não passavam de 2 % negativos, no ano seguinte alcançaram 6% negativos, e até fins do decênio se mantiveram extremamente baixas. Esse quadro de desajustes foi agravado no segundo semestre de 1973 pela elevação brutal dos preços do petróleo, o que permitiu a um grupo de países sem capacidade para absorver grandes recursos financeiros acumular de maneira precipitada enormes reservas sob a forma de certificados de depósito em bancos internacionais. O desequilíbrio provocado nas contas externas dos países cêntricos — quase todos eles grandes importadores de petróleo — levou-os a buscar por todos os meios o aumento de suas exportações. O esforço de abertura adicional das economias industriais, realizado em seguida à comoção do aumento do preço do petróleo, teve como contrapartida o incremento das importações dos países periféricos, assim como uma transformação do excesso de liquidez dos bancos internacionais em créditos sobre esses países. As economias subdesenvolvidas, que lutavam tradicionalmente com grande escassez de capital, encontraram-se repentinamente em face de uma oferta completamente elástica de recursos financeiros no mercado internacional a taxas de juros negativas.
A conjunção de uma oferta de capitais sem restrições no plano internacional e do empenho dos países cêntricos em corrigir o desequilíbrio de suas contas externas — provocado pela brusca elevação dos preços do petróleo — explica a rápida acumulação de dívida externa por países que buscavam meios para intensificar seu crescimento ou simplesmente para elevar o nível de seus gastos.
O regime de tipos de câmbio flutuante, que permitiu a rápida desvalorização de um dólar antes sobrevalorizado, desencadeou uma onda de elevação de preços no plano internacional. Nos países que buscavam aumentar suas exportações, financiando-as nos bancos que administravam o excedente de liquidez internacional, manifestaram-se pressões inflacionárias adicionais. Produziu-se assim uma corrida para os ativos reais e para a acumulação de estoques. Os preços dos alimentos elevaram-se no mercado internacional em 54% em 1973, e em 60% em 1974, e os preços dos metais aumentaram em 45% e em 25% nesses dois anos, respectivamente. Uma inflação de dois dígitos se manifestou por todas as partes no mundo capitalista industrializado, fato sem precedente desde a Segunda Guerra Mundial.
Em 1979, o governo norte-americano decidiu abandonar a atitude negligente face à inflação e optou por uma política de choque, de tipo cruamente monetarista. Mas ocorre que o sistema monetário internacional se baseia no dólar, e a criação do eurodólar não é mais do que um multiplicador de crédito, a partir de depósitos em dólares realizados fora dos Estados Unidos. As autoridades monetárias norte-americanas têm, portanto, o poder de atuar sobre o mercado monetário internacional mediante a manipulação da base monetária de seu país. Se as taxas de juros são elevadas pela Reserva Federal, forma-se imediatamente uma corrente de recursos financeiros em direção a esse país, junto com a alta das taxas de juros no mercado internacional.
Nessas circunstâncias, ao aplicar uma política monetarista restritiva, o governo de Washington descobriu as facilidades de que dispõe para financiar-se no exterior; estava portanto aberta a porta para uma expansão descontrolada de seus gastos. Com efeito, a balança em conta corrente dos Estados Unidos, que se mantivera equilibrada até 1978, fez-se negativa desde começos dos anos 80: seu déficit alcançou 45 bilhões de dólares em 1983 e cresceu até atingir, em 1987, o nível assustador de 147 bilhões de dólares.
Por outro lado, o déficit na conta de transações correntes dos Estados Unidos veio a traduzir a segunda grande deslocação produzida nas estruturas internacionais da economia capitalista. Esse déficit é a causa básica da inusitada elevação das taxas de juros reais ocorrida a partir do final da década de 70. Em 1980, essas taxas já passavam de 8%, e em 1982, haviam chegado a 12%.
Dessa maneira, dois processos de ajustamento ocorridos nas economias cêntricas — o primeiro, ligado ao esforço de recuperação do equilíbrio externo dessas economias em seguida à primeira elevação dos preços do petróleo e tornado possível pela abundância descontrolada de liquidez internacional; o segundo, no tocante às políticas monetárias restritivas do governo norte-americano e à forma como vem sendo financiado o déficit fiscal desse governo — se encontram no ponto de partida da enorme dívida que pesa atualmente sobre os países que constituem a periferia do sistema capitalista.”


“Para entender a formação do sistema econômico — que tendeu a mundializar-se e teve como ponto de partida a aceleração da acumulação e do progresso técnico que marca o começo da era contemporânea —, impõe-se observar esse processo de dois ângulos. O primeiro enfoca as transformações do modo de produção, ou seja, a destruição total ou parcial das formas senhorial, corporativa e artesanal de organização da produção, e a progressiva implantação de mercados dos fatores produtivos: mão-de-obra, os instrumentos de trabalho, a tecnologia e os recursos naturais apropriados privadamente. O segundo ângulo de observação concerne à ativação das relações comerciais ligadas à implantação de um sistema de divisão do trabalho inter-regional. Nesse sistema, as regiões em que ocorreu a intensificação da acumulação especializaram-se nas atividades produtivas em que a revolução em curso no modo de produção abria maiores possibilidades ao avanço das técnicas, transformando-se em focos geradores do progresso tecnológico. Por seu lado, a especialização geográfica, graças aos efeitos das vantagens comparativas em um mercado em expansão, também proporcionava aumentos de produtividade ali onde se procedia a uma utilização mais eficaz dos recursos produtivos disponíveis, independentemente de avanços nas técnicas de produção. Esses aumentos de produtividade, apoiados essencialmente no intercâmbio externo, serviam de correia de transmissão das inovações na cultura material que acompanhavam a intensificação da acumulação nos países que formavam a vanguarda da Revolução Industrial. Dessa forma, em regiões privilegiadas o progresso técnico penetrou sem tardança nas formas de produção, ao mesmo tempo que os padrões de consumo se modernizavam. Ao passo que em regiões marginalizadas essa penetração se circunscreveu inicialmente aos padrões de consumo, limitando seus efeitos à modernização do estilo de vida de segmentos da população. É verdade que o processo de industrialização em fase subsequente tenderia a universalizar-se mediante o que se chamou de substituição de importações. Mas a industrialização tardia regida pelas leis do mercado levou ao reforçamento das estruturas sociais existentes em razão de sua fraca absorção de mão-de-obra e da forte propensão a consumir das camadas modernizadas da sociedade.
O subdesenvolvimento, por conseguinte, é uma conformação estrutural produzida pela forma como se propagou o progresso tecnológico no plano internacional.
Essa visão global do processo histórico do capitalismo industrial levou-me à conclusão de que a superação do subdesenvolvimento não se daria ao impulso das simples forças do mercado, exigindo um projeto político voltado para a mobilização de recursos sociais que permita compreender um trabalho de reconstrução de certas estruturas. Daí que eu me haja empenhado, desde a época em que trabalhei na CEPAL nos anos 50, em elaborar uma técnica de planejamento econômico que viabilizasse com mínimo custo social a superação do subdesenvolvimento. Essa técnica objetivava modificar estruturas bloqueadoras da dinâmica socioeconômica, tais como latifundismo, o corporativismo, a canalização inadequada da poupança, o desperdício desta em formas abusivas de consumo e sua drenagem para o exterior. As modificações estruturais deveriam ser vistas como um processo liberador de energias criativas, e não como o trabalho de engenharia social em que tudo está previamente estabelecido. Seu objetivo estratégico seria remover os entraves à ação criativa do homem, a qual, nas condições de subdesenvolvimento, está caracterizada por anacronismos institucionais e por amarras de dependência externa.
Não me escapava que o verdadeiro desenvolvimento dá-se nos homens e nas mulheres e tem importante dimensão política. A história subsequente não fez senão confirmar minhas opiniões iniciais. Assim, como ignorar que foi porque a partir de 1964 o Brasil paralisou nosso desenvolvimento político – em realidade, retrocedeu nesse plano enquanto sua sociedade crescia e se fazia mais complexa – que ignorar, dizíamos, que nos tornamos um país de difícil governabilidade, que destrói recursos escassos e acumula problemas de forma alucinante?
A visão global também me fez perceber, desde começos dos anos 70, que a fratura do desenvolvimento se faria mais deformante à medida que se aprofundasse a crise manifesta que aflige a civilização consumista que se planetarizou. Que é inerente a essa civilização um processo depredador, já o sabíamos há tempo: as fontes de energia em que se funda o estilo de vida que ela estimula caminham para a exaustão, eleva-se a temperatura em nosso ecúmeno e é progressivo o empobrecimento da biosfera.
Não podemos escapar à evidência de que a civilização criada pela Revolução Industrial aponta de forma inexorável para grandes calamidades. Ela concentra riqueza em benefício de uma minoria cujo estilo de vida requer um dispêndio crescente de recursos não-renováveis e que somente se mantém porque a grande maioria da humanidade se submete a diversas formas de penúria, principalmente à fome. Uma minoria dispõe dos recursos não-renováveis do planeta sem se preocupar com as consequências para as gerações futuras do desperdício que hoje realiza.
O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação, num curto horizonte de tempo, para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos. Devemos nos empenhar para que essa seja a tarefa maior dentre as que preocuparão os homens no correr do próximo século: estabelecer novas prioridades para a ação política em função de uma nova concepção do desenvolvimento, posto ao alcance de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio ecológico. O objetivo deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação concebida como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da ação solidária. A criatividade humana, hoje orientada de forma obsessiva para a inovação técnica a serviço da acumulação econômica e do poder militar, seria dirigida para a busca da felicidade, esta entendida como a realização das potencialidades e aspirações dos indivíduos e das comunidades vivendo solidariamente.”


“A ameaça de destruição termonuclear, primeiro, e a hecatombe ecológica que agora começa a configurar-se não deixam aos povos escapatória para sobreviver fora da cooperação. E o caminho dessa cooperação passa pela mudança de rumo de uma civilização dominada pela lógica dos meios, em que a acumulação a tudo se sobrepõe.
Essa mudança de rumo, no que nos concerne, exige que abandonemos muitas ilusões, que exorcizemos os fantasmas de uma modernidade que nos condena a um mimetismo cultural esterilizante. Devemos assumir nossa situação histórica e abrir caminho para o futuro a partir do conhecimento de nossa realidade. A primeira condição para liberar-se do subdesenvolvimento é escapar da obsessão de reproduzir o perfil daqueles que se auto-intitulam desenvolvidos. É assumir a própria identidade. Na crise de civilização que vivemos, somente a confiança em nós mesmos poderá nos restituir a esperança de chegar a bom porto.
Nesse novo quadro que se configura, o destino dos povos dependerá menos das articulações dos centros de poder político e mais da dinâmica das sociedades civis. Não que o Estado tenda a deliquescer, conforme a utopia socialista do século XIX, mas a possibilidade de que ele seja empolgado por minorias de espírito totalitário se reduzirá, se a vigilância da emergente sociedade civil internacional se fizer eficaz. A consciência de que está em jogo a sobrevivência da própria espécie humana cimentará um novo sentimento de solidariedade e favorecerá a emergência da figura do cidadão empenhado na defesa de valores comuns a todos os homens, numa luta que não comporta discriminações, exceto em defesa da própria liberdade.
Não podemos fugir à evidência de que a sobrevivência humana depende do rumo de nossa civilização, primeira a dotar-se dos meios de autodestruição. Que possamos encarar esse desafio sem nos cegarmos é indicação de que ainda não fomos privados dos meios de sobrevivência. Mas não podemos desconhecer que é imensa a responsabilidade dos homens chamados a tomar certas decisões políticas no futuro. E somente a cidadania consciente da universalidade dos valores que unem os homens livres pode garantir a justeza das decisões políticas.”


“Cabe referir a liquidação das experiências do socialismo fundado na concepção de Estado-partido operando na esfera econômica através de planejamento centralizado. Não que essas experiências hajam sido falhas desde o começo. Elas permitiram que se realizassem, em países menos desenvolvidos, importantes modificações nas estruturas econômicas, dotando-se de capacidade de crescimento autogerado, e abriram o caminho para que os frutos do desenvolvimento se distribuíssem mais equitativamente no conjunto da sociedade. Esses países apresentam um perfil de distribuição de renda mais igualitário do que os países capitalistas de nível de renda per capita similar. Em contrapartida, não construíram sistemas produtivos eficazes e dinâmicos, em razão do peso da centralização de decisões e da inoperância dos mecanismos de incentivo à criatividade e ao trabalho. A falta de espírito participativo não é senão um aspecto de uma organização social que não abria espaço à capacidade criativa dos indivíduos, limitando-lhes as oportunidades de afirmação pessoal.”


“Submetidas a uma tutela financeira intermediada por instituições multilaterais, como o FMI, que na realidade são instrumentos do governo de Washington, as economias latino-americanas operam hoje em dia essencialmente para produzir excedentes comerciais em benefício das nações credoras, principalmente dos Estados Unidos. Entre 1982 e 1989, os países da América Latina transferiram para o exterior recursos no montante de 203 bilhões de dólares, o que não impediu que sua dívida externa haja, no mesmo período, crescido de 350 para 416 bilhões de dólares. Convém não esquecer que essa transferência de recursos é uma das formas que assume o financiamento do déficit da conta corrente da balança de pagamentos dos Estados Unidos. É uma situação anômala que não poderá ser sanada enquanto a economia norte-americana não recuperar o seu equilíbrio.
Na fase formativa em que se encontra a economia brasileira, o essencial é a ativação do potencial produtivo interno e a integração dos mercados regionais, principais fatores de dinamização econômica. A capacidade interna de poupança, se estimulada e completada pelas linhas ordinárias de crédito comercial externo, é suficiente para permitir alcançar índices adequados de crescimento, como ocorreu nos três decênios compreendidos entre 1950 e 1980. A cooperação de empresas transnacionais dá-se espontaneamente na medida em que a economia se expande. Mas, se se atribuir a elas a iniciativa do estilo de desenvolvimento, caminharemos inexoravelmente para a desarticulação do sistema econômico nacional.
Em poucas áreas do mundo a relação homem/recursos naturais, inclusive solo e água para a agricultura, é tão favorável como entre nós. O que se pode esperar da ordem internacional é que ela não nos prive de autonomia para governar-nos, autonomia seriamente comprometida a partir do momento em que as taxas de juros foram brutalmente elevadas em consequência do desequilíbrio financeiro do governo dos Estados Unidos. As relações com esse país constituem, portanto, a trava básica da ação governamental no Brasil. E não esqueçamos que a dependência se faz mais custosa nas fases de declínio da potência dominante.”

Um comentário:

  1. Muito boa a análise feita pelo autor. Gostaria de destacar o trecho final, que é excelente: "O que se pode esperar da ordem internacional é que ela não nos prive de autonomia para governar-nos, autonomia seriamente comprometida a partir do momento em que as taxas de juros foram brutalmente elevadas em consequência do desequilíbrio financeiro do governo dos Estados Unidos. As relações com esse país constituem, portanto, a trava básica da ação governamental no Brasil. E não esqueçamos que a dependência se faz mais custosa nas fases de declínio da potência dominante."

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