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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O melhor livro sobre nada – Jerry Seinfeld

Editora: Frente
ISBN: 8586166200
Tradução: Ronald Fucs
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
Sinopse: Em O melhor livro sobre nada Seinfeld conta tudo sobre: canibais, sorvete, penteados de papagaio, contorno de cadáveres, decores e sapatos, super-homem, pedaços grandes de pão, comportamentos básicos em encontros, emergências sexuais, puxa-puxa, sobrancelhas desiguais, empregadas, mulheres em matadouros, bolsos no paletó de pijama, macacos no espaço, cabelo na manhã seguinte, relacionamentos mussarela, sanduíches de atum de aeroporto, cartões de congratulações em branco, sinais para camisinhas, Ginsu 2000, dispositivos de segurança para casamentos, sala de esperam todos os biscoitos, bonecos tarados de ventríloquo, roupas de banho do papai, moda futurista, sexo paterno, tornozelos brancos, passeios de pônei, educação física, escotismo, comida de avião, sobras de sabonete.

“Deve ser frustrante trabalhar numa livraria. Você vê alguém entrar, ficar duas horas por ali e sair com nada. Dá vontade de explodir, dar um safanão no cliente quando ele estiver saindo e dizer: “Então você acha que sabe tudo? Não há nada que você precise aqui? Deve haver alguma coisa em que você esteja pelo menos interessado. Por que você veio para cá? Nós não precisamos de você!”
De certa forma, é isso que uma livraria é. Uma loja “mais esperta do que você”. E é por isso que as pessoas ficam intimidadas. Porque para entrar numa livraria, você precisa admitir que há algo que você não sabe.
E o pior é que você nem sabe o que é. Você entra e tem de perguntar às pessoas: “Onde está isso? Onde está aquilo? Eu não só não tenho conhecimento como nem sei onde conseguir." Portanto, é só entrar numa livraria e você está admitindo para o mundo que você não é muito sabido. Coisa impressionante.”


“É isso aí. Desisto. Não sei mesmo o que as mulheres estão pensando. Já falei com elas, estudei-as, pedi a elas que me estudassem. E tenho de admitir que voltei à estaca zero.
Não que eu me queixe da estaca zero. É a única estaca que tem um número, pelo menos você sabe qual é a sua posição. Não tem isso de alguém se dar mal e voltar para a estaca sete.”


“Um encontro é pressão e tensão. Afinal, o que é mesmo um encontro, senão uma entrevista de emprego que dura a noite toda?
Talvez precisemos de algum ritual pré-encontro. Talvez o primeiro encontro seria numa daquelas salas em que você visita prisioneiros. Tem aquele vidro entre os dois. Vocês falam por aqueles telefones. A gente pode ver como isso funciona antes de tentar um encontro de verdade. Desta forma, a única tensão sexual é decidir se você deve botar a mão no vidro ou não. E se em algum momento você se sentir desconfortável, é só acenar para o guarda e ele leva a outra pessoa para fora.
O encontro, na época atual, é um grande aperfeiçoamento em relação às antigas civilizações. Nas antigas culturas tribais, eles sacrificariam uma virgem. É verdade. Eles achavam que iam conseguir alguma coisa dessa maneira. Pegavam uma garota que nunca tinha saído com ninguém e jogavam num vulcão. Esse é um primeiro encontro que ela nunca esqueceria.”


“É comum que os piores encontros sejam o resultado de armações. Por que nós armamos encontros para as pessoas? Porque achamos que elas vão gostar? Quem somos nós? Estamos brincando de Deus?
Aliás, Deus foi mesmo o primeiro a armar um encontro para outras. Armou para Adão e Eva. Estou certo de que ele disse para Adão: “Não, ela é legal, muito descontraída... usa pouca roupa. Estava saindo com uma cobra, mas acho que os dois romperam”.”


“O que você pode fazer ao acabar um encontro, se sabe que nunca mais vai querer ver aquela pessoa, em toda a sua vida? O que você diz? Não importa o que for, é mentira. “A gente se vê por aí.” Por aí? Onde é que fica isso? “Se você estiver por aí e eu estiver por aí, então a gente vai se ver. Você vai estar por aí em algum lugar e eu vou estar por aí em outro lugar, não vai ser o mesmo por aí”.”


“As mulheres, naturalmente, têm poderes muito acima dos homens mortais.
Uma mulher deixou, um recado na minha secretária eletrônica, outro dia, com uma voz sussurrada. Não importa o que a mulher diz, se é naquela voz sussurrada, é sempre muito atraente. Uma aeromoça pode se debruçar para mim e sussurrar no meu ouvido: “Quer colocar o cinto? Vamos dar de cara numa montanha.” E eu responderia: “É mesmo? E o que você vai fazer depois que sair da fuselagem destroçada? Que tal a gente comer uns amendoins sentados na caixa preta? Eu trago duas almofadas”.”


“Acho que o conflito básico entre homens e mulheres, sexualmente, é que os homens são como bombeiros. Para nós, sexo é uma emergência, e não importa o que estejamos fazendo, ficamos prontos em dois minutos. Já as mulheres são como o fogo. São muito excitantes, mas só acontecem quando as condições estão certas.
Homens e mulheres de modo geral, se comportam como nossos elementos sexuais básicos. Se você observa homens solteiros numa noite de fim de semana, eles agem como espermatozoides: desorganizados, esbarrando nos amigos, nadando na direção errada.
Cheguei primeiro.”
Deixa eu passar.”
Você está pisando no meu rabo.”
Isso aí é meu.”
Somos Três Bilhões de Patetas.
Mas o óvulo é tranquilão: “Então, quem vai ser? Eu posso me dividir. Posso esperar um mês. Não estou nadando para parte alguma”.”


“A nudez é coisa séria para os homens. Vivemos para isso. Seja o que for que você não quer nos mostrar, é isso que queremos ver.”


“Quando você começa a sair com alguém, é a mesma coisa que dirigir um carro novo pela primeira vez na sua vida, sem nada escrito nos controles. De repente, o limpador de para-brisa começa a funcionar, o carro morre... E o pior é que às vezes encontramos gente sem direção hidráulica, sem freios, precisando de amortecedor novo, com os faróis tortos, a mala cheia demais, o capo não fecha direito, sem gasolina. É por isso que as pessoas, quando se casam, escolhem o transporte mais simples. É fácil, confiável e te leva para onde você quer ir. Isso é que é importante numa viagem longa.
Qual é o problema? Por que se comprometer é um problemão grande para o homem? Acho que, por algum motivo, quando um homem está viajando na autoestrada do amor, a mulher com quem ele está envolvido é como uma saída, mas ele não quer ir para lá. Ele quer continuar na estrada. Já a mulher é assim: “Olha, gasolina, comida, alojamentos, esta é a nossa saída, tem tudo que você precisa para ser feliz... Saia já, agora!” Mas o homem está concentrado no sinal mais embaixo que diz: “Próxima saída, 45 quilômetros”, e pensa: “Dá para ir até lá.” Às vezes dá, às vezes não dá. Às vezes, o carro acaba no acostamento, com o capô levantado e fumaça saindo do motor. E ele, sentado no meio-fio, sozinho: “Acho que era mais longe do que eu pensei”.”


“A cerimônia de casamento é uma coisa linda. O juramento, as roupas. Acho que a ideia daquele terno alinhado é o ponto de vista da mulher, de que se “os homens são todos iguais, por que não vesti-los assim?”
Por isso é que, para mim, um casamento é a união de uma noiva linda, exuberante, e um cara lá. O terno é um dispositivo de segurança, criado pelas mulheres, porque elas sabem que não dá para confiar num homem. Portanto, caso o noivo caia fora, basta pegar um outro cara qualquer e pronto.
É por isso que o juramento não é “Você aceita Valdemar de Oliveira...” e sim “Você aceita este homem...””


“Tenho um amigo que vai se casar. A despedida de solteiro e o chá de panela vão ser no mesmo dia. É possível que, enquanto as amigas da noiva estão dando a ela uma lingerie sexy, o noivo esteja num show de strip-tease vendo uma mulher vestindo exatamente a mesma lingerie. Acho que para os dois vai ser um momento muito especial.”


“Para mim, a diferença entre ser solteiro e casado é a forma de governo. Quando você é solteiro, você é o ditador de sua própria vida. Você tem poder total. Quando eu dou a ordem para pegar no sono no sofá com a TV ligada, no meio da tarde, ninguém vai me desobedecer! Quando você é casado, você faz parte de um grande órgão tomador de decisões. Antes de fazer qualquer coisa é preciso haver reuniões, a situação tem de ser estudada por comitês.
E é por isso que os casamentos funcionam. Acho que é por isso que os divórcios são tão dolorosos. Você recebeu o impeachment e nem era o presidente.”


“Não há maneira fácil de acabar um relacionamento. É como a muçarela numa boa fatia de pizza. Por mais que você puxe a fatia para longe da sua boca, ela vai ficando mais fina e mais comprida, mas nunca arrebenta.
Uma forma de acabar um relacionamento é o adultério. Adultério é uma coisa braba. Não se faz simplesmente um adultério, comete-se um adultério.”


“Fumar é, certamente, uma das mais antigas e estúpidas idiossincrasias humanas.”


“Adoro fazer exercício, mas não posso deixar de rir disso. Você vai à academia, vê aquela gente toda se exercitando, entrando em forma. Mas ninguém vai ficar em forma para fazer alguma coisa. Na sociedade moderna, você não precisa ser fisicamente forte para fazer coisa nenhuma. O único motivo para eles ficarem em forma é conseguir fazer todo aquele exercício. Então a gente malha para ficar em forma para quando for a hora de malhar. Isso é comédia.
Outra coisa que eu não entendo a respeito de malhar é por que somos tão cuidadosos ao guardar nossas toalhas sujas, shorts imundos e tênis fedorentos. Qual será o valor de mercado dessas mercadorias repelentes?
Entrego o meu carro a qualquer cara em frente a um restaurante porque ele tem um paletó vermelho — “Deve ser o manobrista.” Nem penso duas vezes. Mas para aquelas roupas hediondas, putrefatas da academia, arranjo um desses cadeados que pode levar um tiro e não abre. Aquela coisa está segura.”


“Eu já tive um casaco de couro que se estragou na chuva. Mas como é que a água pode estragar o couro? As vacas não ficam lá fora quase o tempo todo?
Será que quando está chovendo as vacas correm para a casa da fazenda: “Deixa a gente entrar! Estamos todas usando couro! Abra a porta! Vamos estragar nossa roupa!” É couro? “Eu sou couro! Tudo isso é couro! Não posso botar para lavar, é tudo que eu tenho!””


“O que eu acho maravilhoso a respeito de homens e mulheres é como nós temos interesse por essas pessoas com quem não temos nada em comum. Os homens estão obcecados com decotes, as mulheres com sapatos. E sempre a mesma obsessão. Não interessa quantas vezes tenhamos visto essas coisas, toda vez que elas aparecem, temos de olhar. Não podemos não olhar.”


“O lado ruim dos recados é que geralmente eles significam que alguém quer alguma coisa de você.
Há dois tipos de favor: o grande favor e o pequeno favor. Você pode medir o tamanho do favor pela pausa que a pessoa faz, depois que diz: “Você pode me fazer um favor?”
Favor pequeno, pausa pequena. “Me faz um favor, passa aquele lápis.” Esse nem tem pausa. Já os favores grandes... “Você pode me fazer um favor?” Oito segundos se passam e nada. “Posso, o quê?” “Bem...” Quanto mais tempo ele demora para dizer, mais vai doer.”


“Há toda uma indústria de maus presentes.
Nada se compara com o peso para papel em matéria de mau presente. Para mim, não há maneira melhor do que um peso para papel para se dizer a alguém: “Recusei-me a fazer o menor esforço para comprar um presente.” E onde é que essa gente está trabalhando que o vento leva todos os papéis das mesas deles? A escrivaninha está em cima de algum caminhão na autoestrada ou coisa parecida? Eles estão datilografando alguma coisa naquela torre no mastro principal de um navio? Para que eles precisam de um peso para papel? De onde vem tanto vento?
Alguém me deu um rádio para o chuveiro. Muito obrigado. Será que eu quero mesmo música no chuveiro? Acho que não há melhor lugar para dançar do que um chuveiro com o chão escorregadio, junto de uma porta de vidro.”


“A vaga para deficientes é a miragem no deserto do estacionamento. Você conhece esta sensação. Você vê a vaga de longe, lá está ela. É difícil de acreditar nos próprios olhos. “É bom demais para ser verdade. Uma vaga grande, larga, junto da entrada. Por algum motivo ninguém reparou nela.” E quando você vai estacionando — epa, não tem vaga nenhuma. Nada. Foi como uma alucinação. “Ei, eu pensei que tinha uma vaga aqui... Não sei o que aconteceu...””


“Outro dia, eu passei por uma ambulância e reparei que eles escrevem a palavra ao contrário na frente. Que coisa inteligente! A gente olha no retrovisor e vê a palavra ambulância. É claro que, enquanto a gente lê, a gente não pode ver para onde está indo e bate num poste, e aí precisa mesmo de uma ambulância. Acho que eles estão só querendo arranjar alguns clientes enquanto voltam do almoço.”


“Você acha que as pessoas que administram as lojas no aeroporto fazem ideia de quais sejam os preços em qualquer outra parte do mundo? Ou será que eles têm seu próprio país ali e por isso podem cobrar o que quiserem?
“Está com um pouco de fome? Quer um sanduíche de atum? São 28 dólares. Se não gostar, pode voltar para seu país”.
Acho que todo esse complexo aeroporto/companhias aéreas é um golpe para vender os sanduíches de atum. Na minha opinião, o que sustenta toda a indústria de viagens aéreas é o lucro com o atum. Os aviões poderiam voar vazios, e mesmo assim, eles fariam dinheiro. Os terminais, os aviões, o estacionamento, as lojas de presentes, tudo isso é só para te distrair, para você não notar que estão te roubando no atum.”


“Pode-se medir a distância pelo tempo. “A que distância fica aquele lugar?” “A uns 20 minutos.” Mas não funciona ao contrário. “Quando é que você sai do escritório?” “Por volta de três quilômetros.”


“Outro dia, eu estava num avião e fiquei pensando: “Esse avião tem chave? Eles precisam de uma chave para dar a partida no motor?”
Estou no avião, partimos com atraso e o piloto diz: “Vamos tentar ganhar algum tempo para compensar.” Aí, eu penso: “Interessante. Eles compensam o atraso. Como? Fazem tempo.” É por isso que a gente tem de acertar o relógio quando aterrissa.
É claro, quando eles dizem que vão ganhar tempo, estão só aumentando a velocidade do avião. O que eu quero saber é: se eles podem ir mais rápido, por que não vão sempre o mais rápido possível? “Vamos lá, pessoal, não tem guarda de trânsito aqui em cima! Pé na tábua!”
Eu adoro aqueles banheirinhos de avião. É como o seu próprio apartamentozinho no avião. Você entra, fecha a porta, a luz se acende sozinha. É como uma festinha-surpresa toda vez que você entra.
E adoro o cartaz no banheiro. “Como cortesia para o próximo passageiro, por favor, limpe o assento com a toalha de papel”. Bom, sejamos corteses de verdade. Desculpe, mas esqueci de trazer minha escova de limpar o vaso. Quando foi que começou essa Irmandade de Passageiros? “Você perdeu sua bagagem? Leve a minha. Somos todos passageiros. Por falar nisso, o banheiro ficou bem limpinho para você? Eu não achei o desinfetante, senão deixaria o vaso brilhando.”
Tudo nos aviões é pequenininho. É sempre comida pequenininha, garrafinhas de licor pequenininhas, travesseiros pequenininhos, banheiro pequenininho, pia pequenininha, sabonete pequenininho. Todo mundo fica numa poltrona apertada, trabalhando num computador pequenininho. Há sempre “um pequeno problema, vai haver um pequeno atraso, chegaremos um pouquinho atrasados, por favor, tenham um pouquinho de paciência. Estamos tentando arranjar um desses caminhõezinhos, para nos puxar um pouquinho mais perto daquela minhoquinha fininha. Ali estará um funcionário com uma jaquetinha vermelha que lhes dirá que vocês têm muito pouquinho tempo para fazer sua conexão. Portanto, mexam-se!”


“As pessoas gostam de recomendar seu médico aos outros. Não sei o que elas ganham com isso, mas ficam mesmo pressionando.
“Ele é bom?”
“É o melhor de todos. É o melhor.”
Não pode haver tantos melhores. Alguém se formou com as piores notas da turma. Onde é que ele está? Alguém deve estar dizendo para um amigo: “Você devia ver o meu médico, ele é o pior. É absolutamente o pior que existe. Não importa o que você tenha, depois de vê-lo, vai piorar. O cara é um perfeito açougueiro.”
E sempre que um amigo se refere a um médico, diz: “Não se esqueça de dizer que você me conhece.” Por quê? Qual é a diferença? O cara é um médico!
“Ah, você conhece o António Carlos? Ah, está bem, nesse caso vou te dar um remédio de verdade. Para os outros eu estou dando pastilhas de hortelã”.”


“Como é que a gente pode deixar de pensar sobre a prisão? Toda noite, na televisão, tem gente indo para lá. E sempre que estão levando algum terrorista, psicopata, serial killer, a gente repara que ele está cobrindo o rosto com um jornal, um paletó, um chapéu.
O que tem de tão importante na reputação de um homem, para ele se preocupar com esse tipo de coisa? Será que ele está a ponto de receber uma boa promoção no emprego? Está com medo de que o chefe veja isso na televisão e diga: “Ei, esse não é o Eribaldo, do departamento de vendas? Ele estava lá em cima daquela torre atirando nas pessoas. Acho que não é o homem certo para chefiar aquela nova seção. Acho que ele ficaria melhor na cobrança”.”


“Para mim, a pior coisa da televisão é que todo mundo que você vê na tela está fazendo alguma coisa melhor do que você. Você nunca vê ninguém na televisão esparramado no sofá com farelo de batata frita na camisa.
Algumas pessoas se divertem demais na televisão. Esse pessoal dos anúncios de refrigerantes — onde é que eles arranjam tanto entusiasmo? Você já viu? “Temos refrigerante, temos refrigerante, temos refrigerante!” Pulando, rindo, se atirando no ar. É só uma lata de refrigerante!
Você já ficou ali sentado, olhando a TV, e repara que está bebendo o mesmo refrigerante que estão anunciando? E eles estão jogando vôlei, andando de jet-ski, com as garotas de biquíni. Você sentado ali, pensando: “Vai ver que estou botando gelo demais. Não consigo nada”.”


“Coisa detestável na TV é aquele “continua”. É horrível quando você percebe que vem um “continua” por aí. Você está vendo o programa, acompanhando a história, então só faltam uns cinco minutos e você percebe: “Ei, eles não vão conseguir. O garoto ainda está preso na caverna. Não tem como eles resolverem tudo em cinco minutos.” Ora, você só assiste a um filme na televisão porque ele acaba. Se eu quiser uma história comprida, chata, sem fim, eu já tenho a minha vida.”


“Há muitas coisas que você pode mostrar como prova de que os seres humanos não são inteligentes. Mas a minha prova favorita é que nós precisamos inventar o capacete. Pelo visto, o que estava acontecendo é que estávamos praticando numa porção de atividades que estavam quebrando as nossas cabeças. Decidimos não parar de fazer essas atividades e inventar um negócio para que pudéssemos continuar a gozar do nosso estilo de vida racha-crânios. O capacete. E nem isso funcionou, porque nem todo mundo usava o capacete, de modo que tivemos de inventar a lei do capacete obrigatório. O que é uma coisa ainda mais besta, porque é uma lei que visa proteger um cérebro cujo juízo é tão torto que nem tenta evitar que a cabeça onde ele está instalado se rache ao meio.”


“Os estudos mostram que o maior medo das pessoas é falar em público. O número dois é a morte. A morte é número dois? Isso não parece lógico. Quer dizer, se um cara vai a um enterro, ele prefere estar dentro do caixão do que fazer a oração fúnebre?”


“O que eu não entendo a respeito dos caras que se suicidam é que tem uns que tentam se matar, mas não conseguem, e pronto. Param de tentar. Por que não continuam tentando? O que foi que mudou? A vida deles melhorou agora? Não. Na verdade, piorou, porque agora tem mais uma coisa em que eles são uma merda. Acho que é por isso que eles não têm sucesso na vida. Desistem rápido demais.
Quer dizer, os comprimidos não deram certo? Tente se enforcar. O carro não quer pegar na garagem? Arranje um revólver. Nada é mais recompensador do que você alcançar a meta que você fixou para si.”


“Gente com fome faz coisas incríveis. Basta pensar no canibalismo. “Isso é gostoso. Quem é? Gostei dessa pessoa”.”


“No meu quarteirão, uma porção de gente leva seus cachorros para passear, e sempre andam com aqueles saquinhos de plástico para cocô. Para mim, essa é a atividade mais baixa do ser humano. Andar atrás de um cachorro com um saquinho para pegar coco. Esperando que ele faça cocô para você pegar e ficar andando com um saquinho cheio de cocô. Se houver alienígenas observando a Terra com telescópios, eles vão pensar que os cachorros são os líderes do planeta. Se você vê duas formas de vida, uma faz cocô e a outra carrega o cocô, quem é que você pensaria que está por cima?
É o que eu digo. Se depois de 50 mil anos de civilização chegamos a este ponto, é melhor desistir. Estou falando sério, vamos cair fora. Não vale a pena. Digamos que a raça humana é uma ideia que não deu certo. De início parecia boa, a gente ficou se esforçando um tempo, mas acabou não funcionando. Fomos até a lua, mas acabamos carregando saquinhos com cocô de cachorro. Em alguma hora as coisas deram errado. Vamos dar a vez agora aos insetos, ou quem for o próximo na fila.”


“Todos os escoteiros são sempre amigos, não importa o que sejam quando crescem. Se você usou aquela roupinha, nunca esquece. Lembro bem: calças azuis, camisa azul, amarelo, aquela fivela enorme de metal para prender o lenço no pescoço. Aí, eu saía, apanhava dos outros garotos, voltava para casa e botava a roupa normal. Não dava para ir para a escola vestido daquele jeito. Por isso é que a gente vivia em grupos: para sobreviver. É por isso também que a gente acampava no mato. Se a gente se vestisse normalmente, ia se hospedar num hotel como todo mundo. Mas vestido daquele jeito, você prefere se esconder no mato.”


“Todos os escoteiros são sempre amigos, não importa o que sejam quando crescem. Se você usou aquela roupinha, nunca esquece. Lembro bem: calças azuis, camisa azul, amarelo, aquela fivela enorme de metal para prender o lenço no pescoço. Aí, eu saía, apanhava dos outros garotos, voltava para casa e botava a roupa normal. Não dava para ir para a escola vestido daquele jeito. Por isso é que a gente vivia em grupos: para sobreviver. É por isso também que a gente acampava no mato. Se a gente se vestisse normalmente, ia se hospedar num hotel como todo mundo. Mas vestido daquele jeito, você prefere se esconder no mato.”

Celso Furtado - Brasil, a construção interrompida (Parte II)

Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-500-4
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 88
Sinopse: Ver Parte I



“A corrente do pensamento econômico que domina os grandes centros acadêmicos ignora a especificidade do subdesenvolvimento, pretendendo englobar todas as situações históricas de aumento persistente de produtividade em um só modelo explicativo. É a obsessão do monoeconomics a que se referiu Hirschman, o “falso universalismo” de que já falava Prebisch em 1949. Segundo essa doutrina, existe um só modelo de industrialização nas economias de mercado, o qual se desdobra em fases temporais. Mas a realidade é cabeçuda e nem sempre é possível escamoteá-la.
Os dados estatísticos não deixam dúvida de que a tendência à concentração da renda persiste em todas as fases da industrialização, quando esta foi precedida por um período de crescimento apoiado na exportação de produtos primários, a qual engendra a modernização. E com frequência tal tendência se acentua quando o crescimento econômico se intensifica. Não é de surpreender, portanto, que a especificidade do subdesenvolvimento se manifeste conceitualmente na “teoria da pobreza”. Essa teoria estatui que a massa de pobreza existente em determinada economia reflete a distribuição de ativos no momento em que tem início o processo de crescimento da produtividade e também a natureza das instituições que regulam a acumulação dos ativos. Simplificando: ali onde a propriedade da terra está concentrada e o crédito é monopolizado pelos proprietários, uma maioria de despossuídos não participará dos benefícios do crescimento, acarretando essa concentração da renda. Se esses dados estruturais não se modificam, o aumento de produtividade engendrará necessariamente uma crescente dicotomia social. O único ativo de que a população pobre dispõe é sua força de trabalho, e, sendo esta um bem de oferta elástica, o seu preço será fixado no mercado em função de seu custo de reprodução, perpetuando-se a miséria.
Essas ideias foram desenvolvidas por economistas ligados ao Banco Mundial para serem utilizadas pelos técnicos dessa instituição que dão assistência aos governos de países subdesenvolvidos. Esses autores reconhecem que, para romper o círculo fechado da pobreza, faz-se necessária uma “estratégia” de desenvolvimento, vale dizer, uma ação deliberada do governo, capaz de modificar a “distribuição primária da renda” — apropriação do produto antes dos impostos e transferências. A quantidade de ativos em mãos dos pobres pode ser aumentada mediante redistribuição do estoque existente (reforma agrária), ou mediante modificação do quadro institucional, a fim de que o fluxo de novos ativos também beneficie os pobres (reforma do sistema de crédito, por exemplo). A segunda estratégia, preconizada por Hollis Chenery, evita um choque maior com interesses criados. Irma Adelman recomenda a combinação das duas estratégias, mas adverte com pertinência que a reforma agrária deve ser feita antes da implantação da política visando a incrementar a produtividade agrícola, e que substanciais investimentos em educação devem preceder a política de incentivo à industrialização. É evidente que Adelman se inspirou nas experiências de Taiwan e da Coreia do Sul, sem contudo dar a devida importância às condições históricas que conduziram esses dois países pelos caminhos que trilharam, em particular o grande desafio representado pela vizinhança de outro estilo de desenvolvimento privilegiando o social.”


“No período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial e se estendeu até fins dos anos 50, os Estados Unidos se beneficiaram de amplo saldo comercial em conta corrente, o que lhes permitiu financiar vultosos gastos no exterior e acumular enormes reservas de câmbio. Foi a época da chamada “escassez de dólares”, fenômeno que muitos economistas atribuíram a um diferencial positivo de produtividade em favor da economia norte-americana. Aceitava-se então como certo que a posição de vanguarda, no que respeita à produtividade — finto de gastos importantes em pesquisa e desenvolvimento —, asseguraria aos Estados Unidos por muito tempo a função de centro principal da economia capitalista. O crescimento relativamente mais rápido da produtividade, observado no imediato pós-guerra em outros países industrializados, encontrava explicação no processo de “recuperação econômica” em que estes se encontravam empenhados. Dava-se por certo que, quando se aproximassem do nível mais alto em que se situava a poderosa nação americana, já não lhes seria fácil manter tão expressivas taxas de incremento da produtividade.
Mas o que se observou a partir dos anos 60 foram modificações profundas nas relações entre as economias cêntricas, que afetaram seriamente a posição norte-americana como centro principal. O sistema de taxas de câmbio fixas, que vinculava o dólar ao ouro, dava lugar a uma evidente sobrevalorização dessa moeda, o que repercutiu negativamente na competitividade externa da economia norte-americana. De forma paradoxal, essa situação favoreceu os investimentos das empresas norte-americanas no exterior, o que também se traduziu em pressão sobre as reservas de ouro do centro principal. Em 1963, o governo Johnson introduziu a lei chamada Interest Equalization Act, tentando frear a saída de capitais — primeiro sinal de debilidade de uma economia que desempenhava o papel de centro motor do mundo capitalista. Ora, consequência dessa medida foi o reforçamento do emergente mercado do eurodólar, já que as empresas norte-americanas que operavam no exterior começaram a reter fora do país seus ativos líquidos. Ao acumular-se uma grande massa de liquidez em dólares nos bancos centrais de alguns países cêntricos, e também em bancos privados norte-americanos no exterior, a convertibilidade do dólar em ouro tornou-se insustentável.
A suspensão dessa convertibilidade ocorreu em 1971 e provocou forte valorização do ouro. O valor deste em dólares e, em menor escala, em outras moedas das reservas mantidas nesse metal aumentou inusitadamente, inflando-se a massa de liquidez internacional. Não tardou o abandono do regime de câmbio fixo pelo governo dos Estados Unidos, que se produziria dois anos depois. Não obstante a intervenção dos bancos centrais mais poderosos, a desvalorização da moeda americana em relação às moedas dos demais países cêntricos foi considerável, provocando a fuga para ativos reais, numa significativa onda de especulação nos mercados internacionais.
A prolongada sobrevalorização do dólar — a partir da Segunda Guerra Mundial até 1973 — não terá sido estranha ao desgaste da posição dos Estados Unidos como centro principal. Para defender essa posição, teria sido necessário manter o nível de reservas e uma acumulação de ativos reprodutivos no exterior, capazes de colocar o dólar a salvo de qualquer ameaça, independentemente do nível da atividade econômica norte-americana. Cabe ao centro principal emitir a moeda que serve de reserva ao conjunto do sistema capitalista, prerrogativa que supõe uma posição de balança de pagamentos em conta corrente excepcionalmente sólida. Sólida com respeito às modificações da conjuntura internacional e também frente às mudanças bruscas de sua própria conjuntura interna, pois a política monetária do centro principal deve assegurar fluidez às correntes internacionais de capital a curto prazo.
Se aprofundarmos a análise desses fatos, veremos que não foi somente a sobrevalorização do dólar que atuou no sentido de comprometer a posição de centro principal que certamente ocupou a economia norte-americana até começos do decênio de 1970. Também contribuiu para esse resultado o peso dos gastos que realizou o governo norte-americano na montagem de um sistema de segurança que compreendia instalações militares em todos os continentes. O fato de que a economia dos Estados Unidos era relativamente pouco aberta para o exterior restringia sua capacidade de realizar gastos que incorriam em custos em divisas. Com o correr do tempo, os enormes gastos militares forçariam o governo de Washington a cobrir os desembolsos no exterior com emissões de papel-moeda de circulação internacional forçada, vale dizer, obrigando os bancos centrais de outros países a acumular excessivas reservas em dólares, as quais se transformavam em títulos da dívida pública do Tesouro dos Estados Unidos. Basta observar o comportamento dos gastos militares, realizados em proporção crescente fora do território do país nos anos 60, para comprovar a magnitude das deslocações que se produziam na economia norte-americana, levando-a a uma situação de dependência financeira com respeito a outras economias cêntricas. Em 1973, os gastos militares representaram 5,6% do PNB desse país. Esses gastos reduziam o potencial de investimento do setor público em atividades econômicas e sociais. E, a partir desse ano, observa-se uma sensível diminuição da taxa de crescimento da produtividade média da economia.
No decênio que se inicia em 1973, o crescimento da produtividade não superou a metade do que havia sido nos dez anos anteriores. Ora, essa desaceleração do aumento da produtividade não impediu que crescesse o peso dos gastos militares, os quais alcançaram 6,6% do PNB em 1983. Ademais, a taxa de poupança se reduziu, naquele período, de 9,5% para 6,7%.” (...)
A desordem implantada no sistema monetário-financeiro internacional, em razão do excesso de liquidez gerado pela crise do dólar, foi o ponto de partida do processo de endividamento de quase todos os países da periferia. As taxas de juros em 1973 não passavam de 2 % negativos, no ano seguinte alcançaram 6% negativos, e até fins do decênio se mantiveram extremamente baixas. Esse quadro de desajustes foi agravado no segundo semestre de 1973 pela elevação brutal dos preços do petróleo, o que permitiu a um grupo de países sem capacidade para absorver grandes recursos financeiros acumular de maneira precipitada enormes reservas sob a forma de certificados de depósito em bancos internacionais. O desequilíbrio provocado nas contas externas dos países cêntricos — quase todos eles grandes importadores de petróleo — levou-os a buscar por todos os meios o aumento de suas exportações. O esforço de abertura adicional das economias industriais, realizado em seguida à comoção do aumento do preço do petróleo, teve como contrapartida o incremento das importações dos países periféricos, assim como uma transformação do excesso de liquidez dos bancos internacionais em créditos sobre esses países. As economias subdesenvolvidas, que lutavam tradicionalmente com grande escassez de capital, encontraram-se repentinamente em face de uma oferta completamente elástica de recursos financeiros no mercado internacional a taxas de juros negativas.
A conjunção de uma oferta de capitais sem restrições no plano internacional e do empenho dos países cêntricos em corrigir o desequilíbrio de suas contas externas — provocado pela brusca elevação dos preços do petróleo — explica a rápida acumulação de dívida externa por países que buscavam meios para intensificar seu crescimento ou simplesmente para elevar o nível de seus gastos.
O regime de tipos de câmbio flutuante, que permitiu a rápida desvalorização de um dólar antes sobrevalorizado, desencadeou uma onda de elevação de preços no plano internacional. Nos países que buscavam aumentar suas exportações, financiando-as nos bancos que administravam o excedente de liquidez internacional, manifestaram-se pressões inflacionárias adicionais. Produziu-se assim uma corrida para os ativos reais e para a acumulação de estoques. Os preços dos alimentos elevaram-se no mercado internacional em 54% em 1973, e em 60% em 1974, e os preços dos metais aumentaram em 45% e em 25% nesses dois anos, respectivamente. Uma inflação de dois dígitos se manifestou por todas as partes no mundo capitalista industrializado, fato sem precedente desde a Segunda Guerra Mundial.
Em 1979, o governo norte-americano decidiu abandonar a atitude negligente face à inflação e optou por uma política de choque, de tipo cruamente monetarista. Mas ocorre que o sistema monetário internacional se baseia no dólar, e a criação do eurodólar não é mais do que um multiplicador de crédito, a partir de depósitos em dólares realizados fora dos Estados Unidos. As autoridades monetárias norte-americanas têm, portanto, o poder de atuar sobre o mercado monetário internacional mediante a manipulação da base monetária de seu país. Se as taxas de juros são elevadas pela Reserva Federal, forma-se imediatamente uma corrente de recursos financeiros em direção a esse país, junto com a alta das taxas de juros no mercado internacional.
Nessas circunstâncias, ao aplicar uma política monetarista restritiva, o governo de Washington descobriu as facilidades de que dispõe para financiar-se no exterior; estava portanto aberta a porta para uma expansão descontrolada de seus gastos. Com efeito, a balança em conta corrente dos Estados Unidos, que se mantivera equilibrada até 1978, fez-se negativa desde começos dos anos 80: seu déficit alcançou 45 bilhões de dólares em 1983 e cresceu até atingir, em 1987, o nível assustador de 147 bilhões de dólares.
Por outro lado, o déficit na conta de transações correntes dos Estados Unidos veio a traduzir a segunda grande deslocação produzida nas estruturas internacionais da economia capitalista. Esse déficit é a causa básica da inusitada elevação das taxas de juros reais ocorrida a partir do final da década de 70. Em 1980, essas taxas já passavam de 8%, e em 1982, haviam chegado a 12%.
Dessa maneira, dois processos de ajustamento ocorridos nas economias cêntricas — o primeiro, ligado ao esforço de recuperação do equilíbrio externo dessas economias em seguida à primeira elevação dos preços do petróleo e tornado possível pela abundância descontrolada de liquidez internacional; o segundo, no tocante às políticas monetárias restritivas do governo norte-americano e à forma como vem sendo financiado o déficit fiscal desse governo — se encontram no ponto de partida da enorme dívida que pesa atualmente sobre os países que constituem a periferia do sistema capitalista.”


“Para entender a formação do sistema econômico — que tendeu a mundializar-se e teve como ponto de partida a aceleração da acumulação e do progresso técnico que marca o começo da era contemporânea —, impõe-se observar esse processo de dois ângulos. O primeiro enfoca as transformações do modo de produção, ou seja, a destruição total ou parcial das formas senhorial, corporativa e artesanal de organização da produção, e a progressiva implantação de mercados dos fatores produtivos: mão-de-obra, os instrumentos de trabalho, a tecnologia e os recursos naturais apropriados privadamente. O segundo ângulo de observação concerne à ativação das relações comerciais ligadas à implantação de um sistema de divisão do trabalho inter-regional. Nesse sistema, as regiões em que ocorreu a intensificação da acumulação especializaram-se nas atividades produtivas em que a revolução em curso no modo de produção abria maiores possibilidades ao avanço das técnicas, transformando-se em focos geradores do progresso tecnológico. Por seu lado, a especialização geográfica, graças aos efeitos das vantagens comparativas em um mercado em expansão, também proporcionava aumentos de produtividade ali onde se procedia a uma utilização mais eficaz dos recursos produtivos disponíveis, independentemente de avanços nas técnicas de produção. Esses aumentos de produtividade, apoiados essencialmente no intercâmbio externo, serviam de correia de transmissão das inovações na cultura material que acompanhavam a intensificação da acumulação nos países que formavam a vanguarda da Revolução Industrial. Dessa forma, em regiões privilegiadas o progresso técnico penetrou sem tardança nas formas de produção, ao mesmo tempo que os padrões de consumo se modernizavam. Ao passo que em regiões marginalizadas essa penetração se circunscreveu inicialmente aos padrões de consumo, limitando seus efeitos à modernização do estilo de vida de segmentos da população. É verdade que o processo de industrialização em fase subsequente tenderia a universalizar-se mediante o que se chamou de substituição de importações. Mas a industrialização tardia regida pelas leis do mercado levou ao reforçamento das estruturas sociais existentes em razão de sua fraca absorção de mão-de-obra e da forte propensão a consumir das camadas modernizadas da sociedade.
O subdesenvolvimento, por conseguinte, é uma conformação estrutural produzida pela forma como se propagou o progresso tecnológico no plano internacional.
Essa visão global do processo histórico do capitalismo industrial levou-me à conclusão de que a superação do subdesenvolvimento não se daria ao impulso das simples forças do mercado, exigindo um projeto político voltado para a mobilização de recursos sociais que permita compreender um trabalho de reconstrução de certas estruturas. Daí que eu me haja empenhado, desde a época em que trabalhei na CEPAL nos anos 50, em elaborar uma técnica de planejamento econômico que viabilizasse com mínimo custo social a superação do subdesenvolvimento. Essa técnica objetivava modificar estruturas bloqueadoras da dinâmica socioeconômica, tais como latifundismo, o corporativismo, a canalização inadequada da poupança, o desperdício desta em formas abusivas de consumo e sua drenagem para o exterior. As modificações estruturais deveriam ser vistas como um processo liberador de energias criativas, e não como o trabalho de engenharia social em que tudo está previamente estabelecido. Seu objetivo estratégico seria remover os entraves à ação criativa do homem, a qual, nas condições de subdesenvolvimento, está caracterizada por anacronismos institucionais e por amarras de dependência externa.
Não me escapava que o verdadeiro desenvolvimento dá-se nos homens e nas mulheres e tem importante dimensão política. A história subsequente não fez senão confirmar minhas opiniões iniciais. Assim, como ignorar que foi porque a partir de 1964 o Brasil paralisou nosso desenvolvimento político – em realidade, retrocedeu nesse plano enquanto sua sociedade crescia e se fazia mais complexa – que ignorar, dizíamos, que nos tornamos um país de difícil governabilidade, que destrói recursos escassos e acumula problemas de forma alucinante?
A visão global também me fez perceber, desde começos dos anos 70, que a fratura do desenvolvimento se faria mais deformante à medida que se aprofundasse a crise manifesta que aflige a civilização consumista que se planetarizou. Que é inerente a essa civilização um processo depredador, já o sabíamos há tempo: as fontes de energia em que se funda o estilo de vida que ela estimula caminham para a exaustão, eleva-se a temperatura em nosso ecúmeno e é progressivo o empobrecimento da biosfera.
Não podemos escapar à evidência de que a civilização criada pela Revolução Industrial aponta de forma inexorável para grandes calamidades. Ela concentra riqueza em benefício de uma minoria cujo estilo de vida requer um dispêndio crescente de recursos não-renováveis e que somente se mantém porque a grande maioria da humanidade se submete a diversas formas de penúria, principalmente à fome. Uma minoria dispõe dos recursos não-renováveis do planeta sem se preocupar com as consequências para as gerações futuras do desperdício que hoje realiza.
O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação, num curto horizonte de tempo, para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos. Devemos nos empenhar para que essa seja a tarefa maior dentre as que preocuparão os homens no correr do próximo século: estabelecer novas prioridades para a ação política em função de uma nova concepção do desenvolvimento, posto ao alcance de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio ecológico. O objetivo deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação concebida como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da ação solidária. A criatividade humana, hoje orientada de forma obsessiva para a inovação técnica a serviço da acumulação econômica e do poder militar, seria dirigida para a busca da felicidade, esta entendida como a realização das potencialidades e aspirações dos indivíduos e das comunidades vivendo solidariamente.”


“A ameaça de destruição termonuclear, primeiro, e a hecatombe ecológica que agora começa a configurar-se não deixam aos povos escapatória para sobreviver fora da cooperação. E o caminho dessa cooperação passa pela mudança de rumo de uma civilização dominada pela lógica dos meios, em que a acumulação a tudo se sobrepõe.
Essa mudança de rumo, no que nos concerne, exige que abandonemos muitas ilusões, que exorcizemos os fantasmas de uma modernidade que nos condena a um mimetismo cultural esterilizante. Devemos assumir nossa situação histórica e abrir caminho para o futuro a partir do conhecimento de nossa realidade. A primeira condição para liberar-se do subdesenvolvimento é escapar da obsessão de reproduzir o perfil daqueles que se auto-intitulam desenvolvidos. É assumir a própria identidade. Na crise de civilização que vivemos, somente a confiança em nós mesmos poderá nos restituir a esperança de chegar a bom porto.
Nesse novo quadro que se configura, o destino dos povos dependerá menos das articulações dos centros de poder político e mais da dinâmica das sociedades civis. Não que o Estado tenda a deliquescer, conforme a utopia socialista do século XIX, mas a possibilidade de que ele seja empolgado por minorias de espírito totalitário se reduzirá, se a vigilância da emergente sociedade civil internacional se fizer eficaz. A consciência de que está em jogo a sobrevivência da própria espécie humana cimentará um novo sentimento de solidariedade e favorecerá a emergência da figura do cidadão empenhado na defesa de valores comuns a todos os homens, numa luta que não comporta discriminações, exceto em defesa da própria liberdade.
Não podemos fugir à evidência de que a sobrevivência humana depende do rumo de nossa civilização, primeira a dotar-se dos meios de autodestruição. Que possamos encarar esse desafio sem nos cegarmos é indicação de que ainda não fomos privados dos meios de sobrevivência. Mas não podemos desconhecer que é imensa a responsabilidade dos homens chamados a tomar certas decisões políticas no futuro. E somente a cidadania consciente da universalidade dos valores que unem os homens livres pode garantir a justeza das decisões políticas.”


“Cabe referir a liquidação das experiências do socialismo fundado na concepção de Estado-partido operando na esfera econômica através de planejamento centralizado. Não que essas experiências hajam sido falhas desde o começo. Elas permitiram que se realizassem, em países menos desenvolvidos, importantes modificações nas estruturas econômicas, dotando-se de capacidade de crescimento autogerado, e abriram o caminho para que os frutos do desenvolvimento se distribuíssem mais equitativamente no conjunto da sociedade. Esses países apresentam um perfil de distribuição de renda mais igualitário do que os países capitalistas de nível de renda per capita similar. Em contrapartida, não construíram sistemas produtivos eficazes e dinâmicos, em razão do peso da centralização de decisões e da inoperância dos mecanismos de incentivo à criatividade e ao trabalho. A falta de espírito participativo não é senão um aspecto de uma organização social que não abria espaço à capacidade criativa dos indivíduos, limitando-lhes as oportunidades de afirmação pessoal.”


“Submetidas a uma tutela financeira intermediada por instituições multilaterais, como o FMI, que na realidade são instrumentos do governo de Washington, as economias latino-americanas operam hoje em dia essencialmente para produzir excedentes comerciais em benefício das nações credoras, principalmente dos Estados Unidos. Entre 1982 e 1989, os países da América Latina transferiram para o exterior recursos no montante de 203 bilhões de dólares, o que não impediu que sua dívida externa haja, no mesmo período, crescido de 350 para 416 bilhões de dólares. Convém não esquecer que essa transferência de recursos é uma das formas que assume o financiamento do déficit da conta corrente da balança de pagamentos dos Estados Unidos. É uma situação anômala que não poderá ser sanada enquanto a economia norte-americana não recuperar o seu equilíbrio.
Na fase formativa em que se encontra a economia brasileira, o essencial é a ativação do potencial produtivo interno e a integração dos mercados regionais, principais fatores de dinamização econômica. A capacidade interna de poupança, se estimulada e completada pelas linhas ordinárias de crédito comercial externo, é suficiente para permitir alcançar índices adequados de crescimento, como ocorreu nos três decênios compreendidos entre 1950 e 1980. A cooperação de empresas transnacionais dá-se espontaneamente na medida em que a economia se expande. Mas, se se atribuir a elas a iniciativa do estilo de desenvolvimento, caminharemos inexoravelmente para a desarticulação do sistema econômico nacional.
Em poucas áreas do mundo a relação homem/recursos naturais, inclusive solo e água para a agricultura, é tão favorável como entre nós. O que se pode esperar da ordem internacional é que ela não nos prive de autonomia para governar-nos, autonomia seriamente comprometida a partir do momento em que as taxas de juros foram brutalmente elevadas em consequência do desequilíbrio financeiro do governo dos Estados Unidos. As relações com esse país constituem, portanto, a trava básica da ação governamental no Brasil. E não esqueçamos que a dependência se faz mais custosa nas fases de declínio da potência dominante.”

Celso Furtado – Brasil, a construção interrompida (Parte I)

Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-500-4
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 88
Sinopse: O processo de construção de um sistema econômico nacional interrompeu-se no Brasil no último decênio. O dinamismo do mercado interno, que durante meio século contribuiu para consolidar a unidade nacional, já não desempenha a função de motor do nosso desenvolvimento.
Este livro traz uma reflexão serena e lúcida sobre o que está acontecendo no mundo e suas projeções no Brasil. Trata-se de uma incursão na raiz de nossos problemas estruturais e de um afresco das convulsões e reacomodações de forças em curso na esfera internacional.
  

“O que permitia aos brasileiros conviver com as gritantes injustiças sociais era o intenso dinamismo da economia no período de intenso crescimento*. Muitos observadores (inseridos nos segmentos sociais privilegiados, evidentemente) descobriam nesse dinamismo uma fonte de legitimidade para um sistema de poder que gerava tantas injustiças. Outros (entre os quais me incluo) consideravam que o preço social que estava sendo pago pelo desenvolvimento era exorbitantemente elevado, e sua razão de ser estava na obstinada resistência da aliança de interesses oligárquicos à introdução de reformas modernizadoras das estruturas. Mas, pelo menos sobre um ponto, havia consenso: interromper o crescimento econômico não contribuiria senão para agravar os problemas sociais.”
*: em décadas passadas.


“Aprendemos com a experiência dos anos 80 — com sua falsa prosperidade fundada na degradação sem precedentes dos termos de intercâmbio dos países exportadores de produtos primários, numa exorbitante elevação das taxas de juros, que fez crescer desmedidamente as dívidas dos países do Terceiro Mundo, e em vastas transferências de recursos financeiros para os Estados Unidos — que a transição para uma ordem econômica multipolar não se realizará sem acidentes.
Com efeito, a tutela norte-americana, legitimada pela guerra fria — exercício de política internacional sem qualquer fundamento racional a que se prestou a defunta União Soviética —, entrou em franco declínio sem que se haja avançado na montagem de um quadro institucional que se incline a operar sem demasiados atritos uma multipolaridade de contornos ainda incertos.”


“A taxa de poupança líquida desse país declinou consideravelmente, sendo essa, aliás, uma das principais causas do desequilíbrio da economia mundial. A taxa de poupança norte-americana nos anos 80 reduziu-se a menos da metade de seus valores históricos observados no período 1950-80, sendo menos de um terço da média dos países da OCDE e menos de um quarto da taxa japonesa. O extraordinário endividamento, tanto do governo como da população, retirou toda eficácia aos instrumentos de política monetária.
Assim, as baixas recentes das taxas de juro administradas pela Reserva Federal reduziram o interesse dos credores externos, particularmente japoneses, pelos bônus do governo, e pouca influência tiveram sobre a propensão a investir das empresas privadas, que preferiram seguir uma linha de redução de seu excessivo endividamento.
Os dados disponíveis deixam claro que é o declínio da poupança, e não o aumento dos investimentos, que está por trás do considerável crescimento do endividamento externo norte-americano. Com efeito, a taxa de investimento líquido quanto ao produto declinou sensivelmente nos anos 80, com relação aos dois decênios anteriores. Daí o inusitado crescimento da dívida externa.”


“São muitas as empresas norte-americanas cujo campo de operação se situa principalmente fora do território do país, pautando seu comportamento por uma lógica que transcende o âmbito nacional. Por outro lado, os investimentos que ali se efetivam, em parte muito significativa, são financiados com recursos captados por agentes nacionais ou estrangeiros, domiciliados no exterior. Explica-se, assim, que o declínio da taxa de poupança não haja modificado na mesma dimensão o volume dos investimentos. A acentuada tendência ao endividamento dos agentes consumidores não se explica sem ter em conta a situação privilegiada que ocupa a sociedade norte-americana na ordem mundial. O fato de poder emitir uma moeda fiduciária com poder liberatório mundial e títulos que são retidos por todos os países como reserva de câmbio abre à sua economia linhas de crédito a custo praticamente nulo, que se estimam atualmente em cerca de 400 bilhões de dólares.
As disparidades no custo da mão-de-obra estão na base do amplo processo de localização no exterior de fração crescente de empresas industriais norte-americanas desde inícios dos anos 70. Por essa época, o salário médio mensal do trabalhador atingia 1.220 dólares. Ora, em Taiwan, ele se situava ao redor de 45 dólares, na Coreia do Sul, não passava de 68 dólares; em Cingapura, de 60, e em Hong-Kong, de 82 dólares. A luta para utilizar a mão-de-obra barata do Sudeste asiático passou a ser a frente mais dinâmica dos investimentos das multinacionais norte-americanas. Em conformidade com as seções 806/807 da lei de tarifas dos Estados Unidos, estão isentas de impostos as partes dos produtos que reingressarem nesse país, limitando-se a incidência tributária ao valor adicionado no estrangeiro, ou seja, essencialmente aos custos salariais. Graças a essas facilidades, o valor das importações chamadas de “806/807” subiu entre o final dos anos 60 e o dos anos 80 de menos de 1 bilhão para 40 bilhões de dólares.
Nas palavras de um estudioso da matéria: “Enquanto a taxa de lucro dos investimentos americanos em 1984 era na Europa de 4,3%, e na América Latina, de 7,2%, na Ásia alcançou 14%, sendo de 21,8% em Taiwan, e ainda mais alta em Cingapura e na Coreia do Sul”.
Os investimentos diretos das firmas multinacionais vêm sendo substituídos com vantagem por formas variadas de subcontratação, dentro de especificações técnicas rigorosas, conservando o produto final a marca de fábrica original. Assim, firmas como a Sears, Hewlett-Packard, Texas Instruments, IBM e General Electric dominam as exportações de Taiwan, sendo a última delas o maior exportador do país. Daí que um observador se haja referido a essa ilha como sendo uma “coleção de subcontratistas internacionais orientados para o mercado norte-americano”.
As chamadas zonas de processamento de exportações, instaladas na Coreia do Sul, em Taiwan, nas Filipinas e em outros países do Sudeste asiático são um conjunto de facilidades destinadas a atrair empresas multinacionais. Pelas concessões que oferecem em todos os planos, inclusive no jurídico e no que respeita à política salarial, essas zonas podem ser assimiladas aos sistemas de “capitulações” do passado. Bom exemplo da dispersão dos investimentos é o automóvel produzido pela empresa japonesa Mitsubishi, com partes manufaturadas em Cingapura, na Malásia e nas Filipinas, e com motor proveniente do Japão. Os produtos dessa diáspora industrial se dirigem em grande medida a terceiros países, entre os quais aparece em primeiro lugar, o mercado norte-americano.”


“Nos países desenvolvidos, o dinamismo tem estado mais e mais na dependência da produção de artigos supérfluos. Cada ano que passa suas economias acrescentam 400 bilhões de dólares à sua renda, sem que isso se traduza em melhora perceptível do bem-estar de suas populações. O que se comprova é a perenidade do desemprego, da massa de destituídos, a deterioração nos serviços de saúde, a alienação de jovens e idosos, a diminuição na participação nas tomadas de decisão, o congestionamento dos sistemas de transporte e a poluição endêmica. E se pode comprovar que nos países ricos pelo menos 30% da produção agrícola e industrial não correspondem às necessidades reais de suas respectivas populações, sendo apenas uma forma de desperdício.
No decênio de 80, durante o qual o consumo de recursos, incluído o desperdício, cresceu em 6 trilhões de dólares nos países ricos, estes reduziram em 4 bilhões a ajuda aos países do Terceiro Mundo. Ademais, o fluxo líquido de recursos, incluído o serviço da dívida, foi desfavorável aos países pobres, e a perda acumulada destes, causada pela degradação dos termos de intercâmbio, naquele mesmo período alcançou 1 trilhão de dólares, soma superior ao montante da dívida externa desses países.”


“Um dos traços característicos do desenvolvimento atual é a lenta absorção de mão-de-obra, o que se traduz em desemprego crônico e em pressão para a baixa de salários da mão-de-obra não especializada. O que se vem chamando de “sociedade de serviços” constitui uma mistura de elevada taxa de desemprego com uma parcela expressiva de população trabalhando em tempo parcial e precariamente.
Um sistema econômico nacional não é outra coisa senão a prevalência de critérios políticos que permitem superar a rigidez da lógica econômica na busca do bem-estar coletivo. O conceito de produtividade social, introduzido nos anos 30 no estudo das economias em prolongada recessão, não tem aplicabilidade nas economias cuja dinâmica se funda na abertura externa. Para as empresas transnacionais, o conceito de produtividade social carece de qualquer conteúdo explicativo. E, contudo, sem esse conceito o estudo do subdesenvolvimento se empobrece consideravelmente.
Se deixarmos de lado toda referência a sistema econômico nacional e a produtividade social, a ideia mesma de política econômica perde seu significado corrente. Estaremos de volta à economia de mercado em estado puro, na forma em que a concebeu Adam Smith, e que exclui a noção de poder de mercado. Ora, esse sistema de concorrência pura e perfeita está mais distante das estruturas transnacionalizadas do que os tradicionais sistemas econômicos nacionais.
As elevadas taxas de crescimento que conheceram as economias desenvolvidas na segunda metade do século XX foram em grande parte fruto da abertura crescente de seus mercados, a qual estimulou a concorrência e permitiu a grande concentração de poder econômico que está na base das empresas transnacionais. Mas o fator decisivo desse extraordinário período de crescimento foi o progresso das técnicas de coordenação e regulação macroeconômica, viabilizado pela chamada revolução keynesiana. Contudo, enquanto não emergir um confiável sistema de regulação plurinacional, essa coordenação será insuficiente, traduzindo-se em desemprego crônico de recursos produtivos. Por outro lado, à medida que avance o processo de integração de espaços plurinacionais, é de esperar que ocorram amplas transferências inter-regionais de recursos, intensificando-se inclusive as migrações demográficas. O freio a esse processo de integração virá de fatores culturais, pois não será surpresa se grupos de população lutarem para preservar suas raízes culturais e valores específicos ameaçados pela homogeneização dos padrões de comportamento que a racionalidade econômica impõe.
Ora, a partir do momento em que o motor do crescimento deixa de ser a formação do mercado interno para ser a integração com a economia internacional, os efeitos de sinergia gerados pela interdependência das distintas regiões do país desaparecem, enfraquecendo consideravelmente os vínculos de solidariedade entre elas. Se se instalam plataformas de exportação no Nordeste, no estilo das maquiladoras mexicanas, a integração regional com o exterior far-se-á por vários meios, em detrimento da articulação em nível nacional. Na lógica das empresas transnacionais, as relações externas, comerciais ou financeiras, são vistas, de preferência, como operações internas da empresa, e cerca de metade das transações do comércio internacional já são atualmente operações realizadas no âmbito interno de empresas. As decisões sobre o que importar e o que produzir localmente, onde completar o processo produtivo, a que mercados internos e externos se dirigir são tomadas no âmbito da empresa, que tem sua própria balança de pagamentos externos e se financia onde melhor lhe convém.
Nessas circunstâncias, já não se contará com a integração das economias regionais e a formação do mercado interno em geral como um motor do crescimento (engine of growth, na expressão dos teóricos do imediato pós-guerra). A alternativa consiste em apoiar-se, de preferência, no mercado internacional, o que significa depender da dinâmica das empresas transnacionais. Ora, o estilo de desenvolvimento que estas impõem caracteriza-se por uma lenta geração de emprego, ou seja, por uma margem crescente de desemprego estrutural. A experiência dos países que integram a União Europeia tem demonstrado sobejamente que o enfraquecimento das formas de coordenação e regulação macroeconômica, no plano nacional, se traduz por um debilitamento da acumulação e por um aumento da taxa de desemprego. É natural que esses efeitos se manifestem agravados em países que interrompem a formação do mercado nacional para privilegiar a integração internacional.”


“Em meio milênio de história, partindo de uma constelação de feitorias, de populações indígenas desgarradas, de escravos transplantados de outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em busca de um destino melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência cultural, um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade linguística e religiosa. Mas nos falta a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. E nos falta também um verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades, e principalmente de nossas fraquezas. Mas não ignoramos que o tempo histórico se acelera, e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação.”


“Já lá se vão quarenta anos desde que Prebisch nos ensinou a observar o capitalismo como um processo de difusão do progresso técnico, difusão irregular, comandada pelos interesses das economias criadoras de novas técnicas. Quem diz progresso técnico diz aumento de produtividade, portanto condições propícias à concentração dinâmica da renda e impulso à acumulação, vetor da difusão de novas técnicas. Esse processo, conhecido como desenvolvimento econômico, foi descrito em modelos mentais singelos pelos economistas clássicos, tudo lhes parecendo um incremento do “excedente” social, processo que mais cedo ou mais tarde encontraria os seus limites. Partiam eles da evidência de que os salários eram estáveis, dada a abundância de mão-de-obra em atividades de baixo nível de produtividade, e da convicção de que, ao contrário do que acontecia com os senhores de terras, os empresários industriais eram virtuosos, empenhando-se em canalizar para a acumulação a quase totalidade do fruto dos incrementos de produtividade. Havia concentração de renda mas, em compensação, intensificava-se a acumulação, que se traduzia em absorção da mão-de-obra pelas atividades beneficiárias dos aumentos de produtividade. Para os primeiros clássicos, isso não impedia que se formasse um desequilíbrio entre oferta e demanda. Daí insistirem em que o crescimento não podia ser senão temporário. A verdade, entretanto, era que grande parte dos bens produzidos pelo setor tecnologicamente em avanço destinava-se ao consumo – competia com a produção artesanal preexistente. Portanto, o sistema era potencialmente apto a absorver elevações dos salários reais. Por um ou outro caminho, parte dos assalariados viria a ter acesso, em grau maior ou menor, aos benefícios proporcionados pelos aumentos de produtividade. Que parte era essa, com que rapidez crescia, são questões que se colocam. Para respondê-las, era necessário descer ao estudo de situações concretas, pois os processos de desenvolvimento não se davam fora da história.”


“Nas economias que conheceram o processo que chamamos de modernização, inserindo-se no sistema de divisão internacional do trabalho como exportadoras de produtos primários, a industrialização se dá por caminhos distintos. Seu ponto de partida são atividades complementares das importações — acabamento, aviamento, armação de peças, etc. —, cabendo-lhes abrir caminho competindo com artigos importados, acabados ou não. Toda vez que a capacidade para importar entra em crise, melhoram as condições para que as atividades “substitutivas” internas se ampliem. O espaço em que estas penetram é previamente delimitado pelas atividades importadoras. Por conseguinte, o progresso tecnológico dá-se inicialmente pela via da importação de bens de consumo, vale dizer, no quadro da modernização. Somente em fase posterior tais avanços chegam aos processos produtivos.
A substituição de importações se inicia pelas indústrias mais simples, pouco exigentes em tecnologia e de baixo coeficiente de capital. Mas, na medida em que progride faz-se mais exigente, requerendo maiores dotações de capital. Coloca-se então o problema de obter recursos externos e/ou de elevar a taxa de poupança. Sendo a atividade industrial mais capitalística do que a primário-exportadora de tipo tradicional, a “substituição” de bens importados por produção local requer maior esforço de acumulação no sistema produtivo, concorrendo com o processo de modernização. Essa pressão sobre a poupança gerada pela disputa entre acumulação reprodutiva e modernização está na origem de processos inflacionários crônicos e de tendência ao endividamento externo. Ademais: a atividade industrial é labour-saving, comparativamente à primário-exportadora, vale dizer, economiza mão-de-obra por unidade de produto final. Bens antes importados agora são obtidos mediante menor aplicação de mão-de-obra e maior de capital.”


“O caso de uma modernização beneficiadora do conjunto da população não passa de hipótese de escola. Na realidade dos fatos, o processo de modernização agravou a concentração de riqueza e renda já existente, acentuando-a na fase de industrialização substitutiva. Somente o segmento de população que controla o setor da produção substitutiva desfruta os benefícios da modernização. Excluída a intervenção do Estado, esse processo concentrador somente se interrompe quando escasseia a mão-de-obra e o quadro internacional permite que os trabalhadores se organizem para pressionar por melhores salários. Ora, condição necessária para que se produza a raridade de mão-de-obra é que o essencial dos aumentos de produtividade seja canalizado para a poupança e invertido em atividades criadoras de empregos. Conforme vimos, esse processo se frustra no quadro da modernização. A adoção de padrões de consumo imitados de sociedades de níveis de riqueza muito superiores torna inevitável o dualismo social.
Esses dados de observação corrente põem em evidência que o crescimento da produtividade está longe de ser condição suficiente para que se produza o verdadeiro desenvolvimento, o qual conduz à homogeneização social.”


“A experiência chinesa constitui caso à parte, pois não é difícil demonstrar que a China jamais reproduzirá os padrões de consumo das nações capitalistas industrializadas, qualquer que seja a política que adote. Tais padrões são demasiado custosos em termos de utilização de recursos não renováveis para serem universalizados à escala da população chinesa. Enquanto não se desenvolvem tecnologias muito menos criadoras de entropia, a China terá que optar entre homogeneidade social a modestos níveis de consumo e um acentuado dualismo social com maiores ou menores disparidades regionais. Essa constatação nos põe diante da evidência de que a civilização surgida da Revolução Industrial europeia conduz inevitavelmente a humanidade a uma dicotomia de ricos e pobres, dicotomia que se manifesta entre países e dentro de cada país de forma pouco ou muito acentuada. Segundo a lógica dessa civilização, somente uma parcela minoritária da humanidade pode alcançar a homogeneidade social ao nível da abundância. A grande maioria dos povos terá que escolher entre a homogeneidade a níveis modestos de consumo e um dualismo* social de grau maior ou menor. Isso não significa que a pobreza seja sempre do mesmo tipo. A experiência chinesa demonstrou que é possível satisfazer as necessidades básicas da população a partir de um nível de renda per capita comparativamente baixo. A miséria absoluta e a indigência não se apresentarão necessariamente nos países de mais baixos níveis de renda per capita, e sim naqueles em que forem mais acentuadas as disparidades sociais e regionais.
De não menor relevância foram as experiências de dois outros países de matriz cultural confuciana, à semelhança da China e do Japão: Coreia do Sul e Taiwan. Ambos conheceram a ocupação do Japão Imperial até a derrota deste na II Guerra Mundial. Como as atividades econômicas mais rentáveis, particularmente as ligadas ao comércio exterior estiveram sob o controle da potência ocupante, enquanto durou a ocupação o processo de modernização foi apenas epidérmico. Demais, os dois países tiveram de enfrentar na primeira fase de sua vida independente o formidável desafio que constituiu a vizinhança do modelo alternativo de desenvolvimento orientado para o social, implantado na Coreia do Norte e na China continental. Os notáveis êxitos logrados por estes dois últimos países, no sentido da melhoria do bem-estar do conjunto da população e do lançamento das bases de uma estrutura apta para o crescimento autossustentado, exerceram considerável influência nos dois vizinhos que lutavam para consolidar uma precária independência.
Assim, em uma primeira fase, tanto na Coreia do Sul como em Taiwan a preocupação com o social prevaleceu, procedendo-se a uma reforma agrária que possibilitou a plena utilização dos solos aráveis e da água de irrigação, fixação de grande parte da população no campo e uma distribuição o mais possível igualitária do produto da terra. Simultaneamente, procedeu-se a um intenso investimento no fator humano. Logo foi alcançada a plenitude na escolarização e a total alfabetização da população adulta. O esforço se estendeu ao ensino médio e superior, prolongando-se em amplo programa de bolsas de estudo no exterior para formar pesquisadores. Um programa de crédito subsidiado, que na Coreia do Sul chegou a absorver 10% do Produto Interno Bruto, orientou os investimentos em função de objetivos estabelecidos pelo governo em planos quinquenais mais do que indicativos. Em Taiwan, onde o sistema bancário é de propriedade do Estado, um terço da formação de capital fixo tem origem nas empresas públicas. Referindo-se a este último país, informa um especialista: “Os incentivos fiscais foram altamente seletivos por produto, refletindo a clara estratégia setorial do governo visando a mudar a estrutura da economia”. Assim, uma primeira fase orientada para a consecução da homogeneização, social (reforma agrária e investimento educacional) foi sucedida por outra em que o governo orientou a formação de capital para estruturar o sistema produtivo de forma a obter incrementos de produtividade. Até 1960, a preocupação maior não foi com a acumulação, e sim com a homogeneização social. Na Coreia do Sul, nesse ano a taxa de investimento não passava de 10,9% do PIB. Dez anos depois essa taxa havia alcançado 26,9%, e em 1980 atingia o nível excepcional de 30,6%. Em seguida, vem a fase do esforço para ganhar autonomia tecnológica, numa grande manobra estratégica visando a mudar o padrão das vantagens comparativas para inserir-se nos setores mais dinâmicos do comércio internacional. O acesso à tecnologia moderna foi inicialmente obtido mediante contratos de cessão, via pagamento de royalties. O número desses contratos, que na primeira metade dos anos 60 foi de 33, em 1970 alcançava 84, e em 1978, 296. Três quintas partes dessa tecnologia foram cedidas por firmas do Japão, o que revela a estratégia desse país de facilitar o desenvolvimento de sua antiga “esfera de co-prosperidade”. A busca de autonomia tecnológica pode ser aferida pelo aumento considerável nos investimentos em “pesquisa e desenvolvimento”, os quais na Coreia do Sul duplicaram entre 1970 e 1980. No decênio dos 80, a participação desses gastos no PIB passou de 0,91% para 2%, alcançando o nível do Japão. Esse esforço na área da pesquisa tecnológica permitiu um salto qualitativo na composição das exportações. Porque alcançaram um grau elevado de homogeneidade social e fundam o próprio crescimento em relativa autonomia tecnológica, cabe reconhecer que a Coreia do Sul e Taiwan lograram superar a barreira do subdesenvolvimento. São países com fortíssima densidade demográfica – na Coreia do Sul, empilham-se mais de quatrocentas pessoas por quilômetro quadrado – e quase totalmente destituídos de fontes primárias de energia. Em razão dessas limitações, o desenvolvimento está na estrita dependência de abertura para o exterior, e a conquista de novos espaços no mercado internacional exige uma combinação criteriosa de mão-de-obra qualificada com tecnologia de vanguarda.
As experiências referidas nos ensinam que a homogeneização social é condição necessária mas não suficiente para alcançar a superação do subdesenvolvimento. Segunda condição necessária é a criação de um sistema produtivo eficaz dotado de relativa autonomia tecnológica, o que requer: (a) descentralização de decisões que somente os mercados asseguram; (b) ação orientadora do Estado dentro de uma estratégia adrede concebida; e (c) exposição à concorrência internacional. Também aprendemos que para vencer a barreira do subdesenvolvimento não se necessita alcançar os altos níveis de renda por pessoa dos atuais países desenvolvidos.”
*: As estatísticas oficiais indicam que o 1% mais rico da população do Brasil aumentou sua participação na renda nacional de 11,9%, em 1960, para 14,7% em 1970, e 16,9% em 1980; enquanto isso, os 50% mais pobres da população conheceram um declínio de 17,4% para 14,9% e 12,9% no correr desses dois decênios de rápida industrialização e elevada taxa de crescimento.