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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (Parte I) – Hannah Arendt

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-962-0
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 344
Sinopse: Em 1960, sequestrado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense, Adolf Eichmann é levado para Jerusalém, para o que deveria ser o maior julgamento de um carrasco nazista depois do tribunal de Nuremberg. Mas, durante o processo, em vez do monstro sanguinário que todos esperavam ver, surge um funcionário medíocre, um arrivista incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos. É justamente aí que o olhar lúcido de Hannah Arendt descobre a “banalidade do mal”, ameaça maior às sociedades democráticas. Numa mescla brilhante de jornalismo político e reflexão filosófica, Arendt investiga questões sempre atuais, como a capacidade do Estado de transformar o exercício da violência homicida em mero cumprimento de metas e organogramas.



“A lei rabínica governa o status pessoal de cidadãos judeus, proibindo judeus de casar com não-judeus; os casamentos realizados no exterior são reconhecidos, mas os filhos de casamentos mistos são legalmente bastardos (filhos de pais judeus nascidos fora do casamento são legítimos), e se a mãe de alguém por acaso é não-judia essa pessoa não pode nem se casar, nem ser enterrada. (...)
Fossem quais fossem as razões, havia, sem dúvida, algo assombroso na ingenuidade com que a acusação denunciou as infames Leis de Nuremberg de 1935, que proibiu o casamento e as relações sexuais entre judeus e alemães. Os correspondentes melhor informados estavam bem cônscios dessa ironia, mas não fizeram menção a ela em suas reportagens. Não era o momento, pensaram, de apontar aos judeus o que estava errado nas leis e instituições de seu próprio país.”


“O antissemitismo fora desacreditado, graças a Hitler, talvez para sempre e sem dúvida por um bom tempo, e isso não ocorrera porque os judeus tinham ficado mais populares de repente, mas porque, nas palavras do próprio sr. Ben-Gurion, a maioria das pessoas tinha “entendido que em nossos dias o antissemitismo só pode levar à câmara de gás e à fábrica de sabão”. Igualmente dispensável era a lição para os judeus da Diáspora, que não precisavam nem um pouco da grande catástrofe em que morreu um terço de seu povo para se convencer da hostilidade do mundo: sua convicção sobre a natureza eterna e ubíqua do antissemitismo foi não só o fator ideológico mais potente do movimento sionista desde o Caso Dreyfus, como também a causa possível da prontidão demonstrada pela comunidade judaica alemã em negociar com as autoridades nazistas durante os primeiros estágios do regime. (Nem é preciso dizer que havia um abismo separando essas negociações da colaboração posterior dos Judenräte. Ainda não havia nenhuma questão moral envolvida, apenas uma decisão política cujo “realismo” era discutível: a ajuda “concreta”, rezava o argumento, era melhor do que denúncias “abstratas”. Era Realpolitik sem tons maquiavélicos, e seus perigos vieram à luz anos depois, quando eclodiu a guerra, quando esses contatos diários entre as organizações judaicas e a burocracia nazista tornaram tão fácil para os funcionários judeus atravessar o abismo entre ajudar os judeus a escapar ou ajudar os nazistas a deportá-los.) Foi essa convicção que produziu a perigosa incapacidade dos judeus de distinguir entre amigos e inimigos; e os judeus alemães não eram os únicos a subestimar seus inimigos porque de alguma forma consideravam que todos os gentios eram iguais. Se o primeiro-ministro Ben-Gurion, que para todas as finalidades práticas, era o chefe do Estado judeu, pretendia fortalecer esse tipo de “consciência judaica”, ele estava mal orientado; pois uma transformação nessa mentalidade é, de fato, um dos pré-requisitos indispensáveis para o Estado de Israel, que por definição fez dos judeus um povo entre os povos, uma nação entre as nações, um Estado entre os Estados, dependendo agora de uma pluralidade que não mais permite a antiquíssima dicotomia, infelizmente religiosa, entre judeus e gentios.
O contraste entre o heroísmo israelense e a passividade submissa com que os judeus marcharam para a morte — chegando pontualmente nos pontos de transporte, andando sobre os próprios pés para os locais de execução, cavando os próprios túmulos, despindo-se e empilhando caprichosamente as próprias roupas, e deitando-se lado a lado para ser fuzilados — parecia uma questão importante, e o promotor, ao perguntar a testemunha após testemunha “Por que não protestou?”, “Por que embarcou no trem?”, “Havia 15 mil pessoas paradas lá, com centenas de guardas à frente — por que vocês não se revoltaram, não partiram para o ataque?”, elaborava ainda mais essa questão, mesmo que insignificante. Mas a triste verdade é que ela era tomada erroneamente, pois nenhum grupo ou indivíduo não judeu se comportou de outra forma. Dezesseis anos antes, ainda sob o impacto dos acontecimentos, David Rousset, ex-prisioneiro de Buchenwald, descrevia o que sabemos ter acontecido em todos os campos de concentração: “O triunfo da SS exige que a vítima torturada permita ser levada à ratoeira sem protestar, que ela renuncie e se abandone a ponto de deixar de afirmar sua identidade. E não é por nada. Não é gratuitamente, nem por mero sadismo, que os homens da SS desejam sua derrota. Eles sabem que o sistema que consegue destruir suas vítimas antes que elas subam ao cadafalso... é incomparavelmente melhor para manter todo um povo em escravidão. Em submissão. Nada é mais terrível do que essas procissões de seres humanos marchando como fantoches para a morte” (Les Jours de notre mort, 1947). A corte não recebeu nenhuma resposta para essa questão tola e cruel, mas qualquer um poderia facilmente encontrar uma resposta se deixasse sua imaginação deter-se um pouco no destino daqueles judeus holandeses que, em 1941, no velho bairro judeu de Amsterdã, ousaram atacar um destacamento da Polícia de Segurança alemã. Quatrocentos e trinta judeus foram presos em represália e literalmente torturados até a morte, primeiro em Buchenwald, depois no campo austríaco de Mauthausen. Durante meses sem fim, morreram milhares de mortes, e todos eles deviam invejar seus irmãos que estavam em Auschwitz e até em Riga e Minsk. Há muitas coisas consideravelmente piores do que a morte, e a SS cuidava que nenhuma delas jamais ficasse muito distante da mente e da imaginação de suas vítimas. Sob esse aspecto, talvez até mais significativamente do que sob outros, a tentativa deliberada de contar apenas o lado judeu da história no julgamento distorcia a verdade, até mesmo a verdade judaica. A glória do levante do gueto de Varsóvia e o heroísmo dos poucos que reagiram estava precisamente no fato de eles terem recusado a morte comparativamente fácil que os nazistas lhes ofereciam — à frente do pelotão de fuzilamento ou na câmara de gás. E as testemunhas que em Jerusalém depuseram sobre a resistência e a rebelião e sobre o “lugar insignificante que desempenharam na história do holocausto” confirmaram mais uma vez o fato de que só os muito jovens haviam sido capazes de tomar “a decisão de não ir para o sacrifício como carneiros”.”


“Existe um outro lado dessa questão, mais delicado e politicamente mais relevante. Uma coisa é desentocar criminosos e assassinos de seus esconderijos, outra é encontrá-los importantes e prósperos no âmbito público — encontrar nas administrações estadual e federal e, geralmente, em cargos públicos inúmeros homens cujas carreiras floresceram no regime de Hitler. Claro, se a administração Adenauer fosse exigente demais para empregar funcionários com passado nazista comprometedor, talvez não houvesse administradores de nenhuma espécie. Pois a verdade é, evidentemente, o oposto do que disse o dr. Adenauer, para quem só “uma porcentagem relativamente pequena” de alemães foi nazista, ao passo que a “grande maioria [ficava] feliz de ajudar seus concidadãos judeus, sempre que possível”. (Pelo menos um jornal alemão, o Frankfurter Rundschau, fez a pergunta óbvia, pendente há muito tempo — Por que tantas pessoas que deviam conhecer o passado do promotor-chefe, por exemplo, se calaram? — e o próprio jornal deu a resposta ainda mais óbvia: “Porque essas pessoas também se sentiam incriminadas”.) A lógica do julgamento de Eichmann, conforme concebido por Ben-Gurion, com ênfase em questões gerais, em detrimento de sutilezas legais, exigiria a exposição da cumplicidade de todos os funcionários e autoridades alemães na Solução Final — de todos os servidores públicos dos ministérios estatais, das forças armadas regulares, com seu staff geral, do Judiciário e do mundo empresarial. Mas embora a acusação tenha sido conduzida pelo sr. Hausner de forma a pôr no banco testemunha após testemunha para falar sobre coisas que, embora horrendas e verdadeiras, tinham pouca ou nenhuma ligação com os atos do acusado, essa acusação evitava cuidadosamente tocar na questão altamente explosiva: a cumplicidade quase ubíqua, que se estendera muito além das alas dos membros do Partido.
Porque era a história, no que dizia respeito à acusação, que estava no centro do processo. “Não é um indivíduo que está no banco dos réus neste processo histórico, não é apenas o regime nazista, mas o antissemitismo ao longo de toda a história.” Foi esse o tom estabelecido por Ben-Gurion e seguido fielmente pelo sr. Hausner, que começou seu discurso de abertura (que durou três sessões) com o faraó do Egito e com o decreto de Haman de “destruir, matar, e fazê-los perecer”. Em seguida, citou Ezequiel: “E quando eu [o Senhor] passei por ti e te vi imundo de teu próprio sangue, disse-te: Em teu sangue, vive”, explicando que estas últimas palavras deviam ser entendidas como “o imperativo que confronta esta nação desde sua primeira aparição no palco da história”. Mas aquilo era má história e péssima retórica; pior, contrariava diretamente o depoimento de Eichmann em julgamento, sugerindo que talvez ele fosse apenas um inocente executor de algum misterioso destino predeterminado, ou, quem sabe, do próprio antissemitismo, talvez necessário para marcar a trilha da “estrada manchada de sangue que este povo trilhou” para cumprir seu destino.”


“Será que Eichmann se teria declarado culpado se fosse acusado de cumplicidade no assassinato? Talvez, mas teria feito importantes qualificações. O que ele fizera era crime só retrospectivamente, e ele sempre fora um cidadão respeitador das leis, porque as ordens de Hitler, que sem dúvida executou o melhor que pôde, possuíam “força de lei” no Terceiro Reich. (A defesa poderia ter citado, em apoio à tese de Eichmann, o testemunho de um dos mais conhecidos peritos em lei constitucional do Terceiro Reich, Theodor Maunz, então ministro da Educação e Cultura da Baviera, que afirmou, em 1943 [em Gestalt und Recht der Polizei]: “O comando do Führer [...] é o centro absoluto da ordem legal contemporânea”.) Aqueles que hoje diziam que Eichmann podia ter agido de outro modo simplesmente não sabiam, ou haviam esquecido, como eram as coisas. Ele não queria ser um daqueles que agora fingiam que “tinham sempre sido contra”, quando na verdade estavam muito dispostos a fazer o que lhes ordenavam. Porém, o tempo muda, e ele, assim como o professor Maunz, “chegara a conclusões diferentes”. O que fez estava feito, não pretendia negar; ao contrário, propunha “ser enforcado publicamente como exemplo para todos os antissemitas da Terra”. Com isso, não queria dizer que se arrependia de alguma coisa: “Arrependimento é para criancinhas”. (Sic!)
Mesmo sob considerável pressão de seu advogado, ele não mudou essa posição.”


“Ao longo de todo o julgamento, Eichmann tentou esclarecer, quase sempre sem nenhum sucesso que era “inocente no sentido da acusação”. A acusação deixava implícito que ele não só agira conscientemente, coisa que ele não negava, como também agira por motivos baixos e plenamente consciente da natureza criminosa de seus feitos. Quanto aos motivos baixos, ele tinha certeza absoluta de que, no fundo de seu coração, não era aquilo que chamava de innerer Schweinehund, um bastardo imundo; e quanto à sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam — embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado. Isso era mesmo difícil de engolir. Meia dúzia de psiquiatras haviam atestado a sua “normalidade” — “pelo menos, mais normal do que eu fiquei depois de examiná-lo”, teria exclamado um deles, enquanto outros consideraram seu perfil psicológico, sua atitude quanto a esposa e filhos, mãe e pai, irmãos, irmãs e amigos, “não apenas normal, mas inteiramente desejável” — e, por último, o sacerdote que o visitou regularmente na prisão depois que a Suprema Corte terminou de ouvir seu apelo tranquilizou a todos declarando que Eichmann era “um homem de ideias muito positivas”. Por trás da comédia dos peritos da alma estava o duro fato de que não se tratava, evidentemente, de um caso de sanidade moral e muito menos de sanidade legal.”
Claro, ninguém acreditou nele. O promotor não acreditou, porque não era essa a sua função. O advogado de defesa não lhe prestou atenção porque, ao contrário de Eichmann, ele não estava, aparentemente, interessado em questões de consciência. E os juízes não acreditaram nele, porque eram bons demais e talvez também conscientes demais das bases de sua profissão para chegar a admitir que uma pessoa mediana, “normal”, nem burra, nem doutrinada, nem cínica, pudesse ser inteiramente incapaz de distinguir o certo do errado. Eles preferiram tirar das eventuais mentiras a conclusão de que ele era um mentiroso — e deixaram passar o maior desafio moral e mesmo legal de todo o processo. A acusação tinha por base a premissa de que o acusado, como toda “pessoa normal”, devia ter consciência da natureza de seus atos, e Eichmann era efetivamente normal na medida em que “não era uma exceção dentro do regime nazista”. No entanto, nas condições do Terceiro Reich, só se podia esperar que apenas as “exceções” agissem “normalmente”. O cerne dessa questão, tão simples, criou um dilema para os juízes. Dilema que eles não souberam nem resolver, nem evitar.”


“Eichmann não entrou para o Partido por convicção nem jamais se deixou convencer por ele — sempre que lhe pediam para dar suas razões, repetia os mesmos clichês envergonhados sobre o Tratado de Versalhes e o desemprego; antes, conforme declarou no tribunal, “foi como ser engolido pelo Partido contra todas as expectativas e sem decisão prévia. Aconteceu muito depressa e repentinamente”. Ele não tinha tempo, e muito menos vontade de se informar adequadamente, jamais conheceu o programa do Partido, nunca leu Mein Kampf. Kaltenbrunner disse para ele: Por que não se filia à SS? E ele respondeu: Por que não? Foi assim que aconteceu, e isso parecia ser tudo.
Evidentemente, isso não era tudo. O que Eichmann deixou de dizer ao juiz presidente durante seu interrogatório foi que ele havia sido um jovem ambicioso que não aguentava mais o emprego de vendedor viajante antes mesmo de a Companhia de Óleo a Vácuo não aguentá-lo mais. De uma vida rotineira, sem significado ou consequência, o vento o tinha soprado para a História, pelo que ele entendia, ou seja, para dentro de um Movimento sempre em marcha e no qual alguém como ele — já fracassado aos olhos de sua classe social, de sua família e, portanto, aos seus próprios olhos também — podia começar de novo e ainda construir uma carreira. E se ele nem sempre gostava do que tinha de fazer (por exemplo, despachar multidões que iam de trem para a morte em vez de forçá-las a emigrar), se ele não adivinhou antes que a coisa toda iria acabar mal, com a Alemanha perdendo a guerra, se todos os seus planos mais caros deram em nada (a evacuação dos judeus europeus para Madagascar, o estabelecimento de um território judeu na região de Nisko, na Polônia, o experimento com instalações de defesa cuidadosamente construídas em torno de seu escritório de Berlim para repelir os tanques russos), e se, para sua grande “tristeza e sofrimento”, ele nunca passou do grau de Obersturmbannführer da SS (posto equivalente ao de tenente-coronel) — em resumo, se, com exceção do ano que passou em Viena, sua vida fora marcada por frustrações, ele jamais esqueceu qual seria a alternativa. Não só na Argentina, levando a triste existência de um refugiado, mas também na sala do tribunal de Jerusalém, com sua vida praticamente confiscada, ele ainda preferiria — se alguém lhe perguntasse — ser enforcado como Obersturmbannführer a. D. (da reserva) do que viver a vida discreta e normal de vendedor viajante da Companhia de Óleo a Vácuo.”


“Era o ano de 1935, quando a Alemanha, contrariamente às determinações do Tratado de Versalhes, introduziu a convocação geral e anunciou publicamente planos de rearmamento, inclusive a construção de uma força aérea e uma marinha. Era também o ano em que a Alemanha, tendo deixado a Liga das Nações em 1933, preparava, nem discreta, nem secretamente, a ocupação da zona desmilitarizada do Reno. Era o momento dos discursos de paz de Hitler — “a Alemanha precisa de paz e deseja a paz”, “reconhecemos a Polônia como lar de um grande povo consciente de sua nacionalidade”, “a Alemanha não pretende nem deseja interferir nos negócios internos da Áustria, nem anexar a Áustria, nem concluir um Anchluss” — e, acima de tudo, era o ano em que o regime nazista conquistaria reconhecimento generalizado e infelizmente genuíno na Alemanha e no exterior, em que Hitler seria admirado por toda parte como um grande estadista. Na própria Alemanha, aquela era uma época de transição. Devido ao enorme programa de rearmamento, o desemprego havia sido eliminado, a resistência inicial da classe trabalhadora fora quebrada, e a hostilidade do regime, que de início voltara-se primordialmente contra “antifascistas” — comunistas, socialistas, intelectuais de esquerda e judeus em posições importantes —, ainda não se voltara inteiramente para a perseguição de judeus enquanto judeus.”


“Quando perguntaram a Eichmann como ele conseguia conciliar seus sentimentos pessoais sobre os judeus com o antissemitismo aberto e violento do Partido a que se filiara, ele respondeu com o provérbio: “Nada é tão quente para se comer, como era ao se cozer” — provérbio que andava na boca de muitos judeus também. Eles viviam num paraíso ilusório, no qual, durante alguns anos, até mesmo Streicher falava de uma “solução legal” para o problema judeu. Para tirá-los desse engano, foi preciso levar a cabo os pogroms organizados de novembro de 1938, a Kristallnacht ou Noite dos Cristais, em que 7500 vitrinas de lojas judaicas foram quebradas, todas as sinagogas foram incendiadas e 20 mil judeus foram levados para campos de concentração.”


“Seus primeiros contatos pessoais com funcionários judeus, todos eles bem conhecidos sionistas de longa data, foram inteiramente satisfatórios. A razão de tanto fascínio pela “questão judaica”, conforme ele próprio explicou, era seu “idealismo”; esses judeus, ao contrário dos assimilacionistas, que sempre desprezou, e ao contrário dos judeus ortodoxos, que achava tediosos, eram “idealistas” como ele próprio. Um “idealista”, segundo as noções de Eichmann, não era simplesmente um homem que acreditava numa “ideia” ou alguém que não roubava nem aceitava subornos, embora essas qualificações fossem indispensáveis. Um “idealista” era um homem que vivia para a sua ideia — portanto não podia ser um homem de negócios — e que por essa ideia estaria disposto a sacrificar tudo e, principalmente, todos. Quando ele disse no interrogatório da polícia que teria mandado seu próprio pai para a morte se isso tivesse sido exigido, não queria simplesmente frisar até que ponto se achava cumprindo ordens e pronto para executá-las; queria também mostrar o “idealista” que sempre fora. O “idealista” perfeito, como todo mundo, tinha evidentemente seus sentimentos e emoções pessoais, mas jamais permitia que interferissem em suas ações se entrassem em conflito com sua “ideia”. O maior “idealista” que Eichmann encontrou entre os judeus foi o dr. Rudolf Kastner, com quem negociou durante as deportações judaicas da Hungria e com quem firmou um acordo: Eichmann permitiria a partida “legal” de alguns milhares de judeus para a Palestina (os trens eram, de fato, guardados pela polícia alemã) em troca de “ordem e tranquilidade” nos campos de onde centenas de milhares eram enviados para Auschwitz. Os poucos milhares salvos por esse acordo, judeus importantes e membros das associações jovens de sionistas, eram, nas palavras de Eichmann, “o melhor material biológico”. O dr. Kastner, no entender de Eichmann, sacrificara seus irmãos judeus a sua “ideia”, e assim devia ser. O juiz Benjamin Halevi, um dos três juízes do julgamento de Eichmann, foi o encarregado do julgamento de Kastner em Israel, no qual Kastner teve de se defender da acusação de cooperação com Eichmann e outros nazistas de alto escalão; na opinião de Halevi, Kastner tinha “vendido a alma ao diabo”. Agora que o próprio diabo estava no banco dos réus, ele se revelava um “idealista”, e embora possa ser difícil de acreditar, é bem possível que alguém que vendeu sua alma ao diabo também seja um “idealista”.”


“Mas vangloriar-se é um vício comum, e uma falha mais específica, e também mais decisiva, no caráter de Eichmann era sua quase total incapacidade de olhar qualquer coisa do ponto de vista do outro. Em nenhum ponto essa falha foi mais notável do que em seu relato do episódio de Viena. Ele, seus homens e os judeus estavam todos “se esforçando juntos” e cada vez que havia alguma dificuldade os funcionários judeus vinham correndo até ele para “desabafar seus corações”, contar-lhe todo “seu sofrimento e dor”, e pedir sua ajuda. Os judeus “desejavam” emigrar, e ele, Eichmann, estava ali para ajudá-los, porque aconteceu de, ao mesmo tempo, as autoridades nazistas terem expressado o desejo de ver o Reich judenrein. Os dois desejos coincidiam, e ele, Eichmann, podia “fazer justiça a ambas as partes”. No julgamento, ele jamais cedeu um milímetro quando chegava nessa parte da história, embora concordasse que hoje, quando “os tempos mudaram tanto”, os judeus podem não gostar mais de se lembrar desse “esforço conjunto” e ele não queria “ferir seus sentimentos”.”

“Eichmann sempre foi genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê. (Será que foram esses clichês que os psiquiatras acharam tão “normais” e “desejáveis”? Serão essas as “ideias positivas” que um clérigo espera encontrar nas almas para as quais ministra? A melhor oportunidade para Eichmann demonstrar esse lado positivo de seu caráter em Jerusalém surgiu quando o jovem oficial de polícia encarregado de seu bem-estar mental e psicológico deu-lhe um exemplar de Lolita para relaxar. Dois dias mais tarde, Eichmann devolveu o livro, visivelmente indignado; “Um livro nada saudável” — “Das ist aber ein sehr unerfreuliches Buch” — disse ele a seu guarda.) Sem dúvida, os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dissera era “conversa vazia” — só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o acusado queria encobrir outros pensamentos que, embora hediondos, não seriam vazios. Essa ideia parece ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann, apesar de sua má memória, repetia palavra por palavra as mesmas frases feitas e clichês semi-inventados (quando conseguia fazer uma frase própria, ele a repetia até transformá-la em clichê) toda vez que se referia a um incidente ou acontecimento que achava importante. Quer estivesse escrevendo suas memórias na Argentina ou em Jerusalém, quer falando com o interrogador policial ou com a corte, o que ele dizia era sempre a mesma coisa, expressa com as mesmas palavras. Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal.”


“Trata-se de um caso exemplar de má-fé, de autoengano misturado a ultrajante burrice? Ou é simplesmente o caso do criminoso que nunca se arrepende (Dostoiévski conta em seu diário que na Sibéria, em meio a multidões de assassinos, estupradores e ladrões, nunca encontrou um único homem que admitisse ter agido mal), que não pode se permitir olhar de frente a realidade porque seu crime passou a fazer parte dele mesmo? No entanto, o caso de Eichmann é diferente do criminoso comum, que só pode se proteger com eficácia da realidade do mundo não criminoso dentro dos estreitos limites de sua gangue. Bastava a Eichmann relembrar o seu passado para se sentir seguro de não estar mentindo e de não estar se enganando, pois ele e o mundo em que viveu marcharam um dia em perfeita harmonia. E a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos autoengano, mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade de Eichmann. Essas mentiras mudavam de ano para ano, e frequentemente se contradiziam; além disso, não eram necessariamente as mesmas para todos os diversos níveis da hierarquia do Partido e para as pessoas em geral. Mas a prática do autoengano tinha se tornado tão comum, quase um pré-requisito moral para a sobrevivência, que mesmo agora, dezoito anos depois do colapso do regime nazista, quando a maior parte do conteúdo específico de suas mentiras já foi esquecido, ainda é difícil às vezes não acreditar que a hipocrisia passou a ser parte integrante do caráter nacional alemão. Durante a guerra, a mentira que mais funcionou com a totalidade do povo alemão foi o slogan “a batalha pelo destino do povo alemão” [der Schicksalskampf des deutschen Volkes], cunhado por Hitler ou por Goebbels, e que tornou mais fácil o autoengano sob três aspectos: sugeria, em primeiro lugar, que a guerra não era guerra; em segundo, que fora iniciada pelo destino e não pela Alemanha; e, em terceiro, que era questão de vida ou morte para os alemães, que tinham de aniquilar seus inimigos ou ser aniquilados.”


“Fazia parte da natureza do movimento nazista estar sempre mudando, radicalizando-se a cada mês que passava, mas uma das características mais notáveis de seus membros era, psicologicamente, tender a estar sempre um passo atrás do movimento — eles tinham dificuldade em acompanhar essas mudanças ou, como Hitler costumava dizer, não eram capazes de “saltar a própria sombra”.”


(...) “Em Nuremberg, vários acusados apresentaram um espetáculo enojante, um acusando o outro — embora nenhum pusesse a culpa em Hitler!”


“Existe mesmo boas razões para se concordar com o amargo julgamento desses homens feito pelo romancista alemão Friedrich P. Reck-Malleczewen, morto num campo de concentração na noite do colapso e que não participou da conspiração anti-Hitler. Em seu quase desconhecido Diário de um homem desesperado, Reck-Malleczewen escreveu o seguinte, depois de saber do fracasso do atentado contra a vida de Hitler, que ele evidentemente lamentou: “Um pouco tarde demais, senhores, vocês que construíram esse arquidestruidor da Alemanha e correram atrás dele, enquanto tudo parecia estar bem; vocês que [...] sem comoção fizeram todos os juramentos exigidos de vocês e se reduziram a desprezíveis lacaios desse criminoso, culpado pelo assassinato de centenas de milhares, que despertou o lamento e a maldição do mundo inteiro; agora vocês o traíram [...] Agora, quando o desastre não pode mais ser escondido, eles traem a casa que ruiu, a fim de estabelecer um álibi político para si próprios — os mesmos homens que traíram tudo o que estava no caminho de seu desejo de poder”.”

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