Editora: Nova Cultural
ISBN: 85-13-00848-6
Tradução: J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina (Confissões) e Ângelo Ricci
(De Magistro)
Consultor da
Introdução: José Américo Motta Pessanha
Opinião: Confissões: ★★★★☆ / De Magistro: ★☆☆☆☆
Páginas: 416
Sinopse: Confissões
– ver Parte
I / De magistro: Este diálogo didático entre o autor e seu filho, Adeodato,
foi escrito depois de seu batismo, em 389. Utilizando o método de Sócrates,
Agostinho demonstra a seu filho, que morrerá dois anos mais tarde, que não são
as palavras do mestre que nos conduzem à verdade: estas podem ser mal
interpretadas e não passam de um meio para expressar a verdade que está dentro
de nós. Para julgar sobre a veracidade das palavras do mestre é preciso
envolver-se na verdade interior inspirada por Deus. Cada homem está assim
envolvido por esta palavra divina, na qual deve reconhecer seu único mestre.
“Assim como as adulações dos amigos nos
pervertem, do mesmo modo as censuras dos inimigos nos reformam.”
“Próximo já do dia em que minha mãe, Mônica,
ia sair desta vida — dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos —, sucedeu,
segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios, que nos
encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o
jardim interior da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde,
apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as
forças para embarcarmos.
Falávamos a sós, muito docemente, “esquecendo
o passado e ocupando-nos do futuro¹”. Na presença da Verdade, que sois Vós,
alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, “que nunca os olhos viram,
nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou²”. Sim, os lábios do
nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste “da Vossa fonte, a
fonte da Vida³”, que está em Vós, para que, aspergidos segundo a nossa
capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.
Encaminhamos a conversa até à conclusão de
que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam, e por mais
brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de
comparar-se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça menção.
Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa
felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até o próprio céu,
donde o Sol, a Lua e as estrelas iluminam a terra. Subíamos ainda mais em
espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras. Chegamos às nossas
almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância,
onde apascentais eternamente Israel com o pastio da verdade. Ali a vida é a
própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de
existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e
como sempre será. Antes, não há nela ter sido, nem haver
de ser, pois simplesmente “é”, por ser eterna. Ter
sido e haver de ser não são próprios do Ser eterno.
Enquanto assim falávamos, anelantes pela
Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do nosso coração.
Suspiramos e deixamos lá agarradas “as primícias do nosso espírito4”.
Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como
poderá esta, meu Deus, comparar-se ao vosso Verbo, que subsiste por si mesmo,
nunca envelhecendo e tudo renovando?
Dizíamos pois: Suponhamos uma alma onde jazem
em silêncio a rebelião da carne, as vãs imaginações da terra, da água, do ar e
do céu. Suponhamos que ela guarda silêncio consigo mesma, que passa para além
de si, nem sequer pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os
sonhos e as revelações imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim,
tudo o que sucede passageiramente.
Imaginemos que nessa mesma alma existe o
silêncio completo porque, se ainda pode ouvir, todos os seres lhe dizem: “Não
nos fizemos a nós mesmos, fêz-nos O que permanece eternamente5”. Se
ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já escutaram quem os fez,
suponhamos então que Deus sozinho fala, não por essas criaturas, mas
diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma língua
corpórea, nem por voz de anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem por metáforas
enigmáticas, mas já por Ele mesmo.
Suponhamos que ouvíamos Aquele que amamos nas
criaturas, mas sem o intermédio delas, assim como nós acabamos de experimentar,
atingindo, num relance de pensamento, a Eterna Sabedoria, que permanece
imutável sobre todos os seres. Se esta contemplação se continuasse e se todas
as outras visões de ordem muito inferior cessassem, se unicamente esta
arrebatasse a alma e a absorvesse, de tal modo que a vida eterna fosse
semelhante a este vislumbre intuitivo, pelo qual suspiramos: não seria isto a
realização do “entra no gozo do teu Senhor6”? E
quando sucederá isto? Será quando todos “ressuscitarmos”?
Mas então não “seremos todos transformados7”?
Ainda que isto disséssemos, não pelo mesmo
modo e por estas palavras, contudo bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus
prazeres nos pareciam vis, naquele dia, quando assim conversávamos. Minha mãe
então disse: Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto,
nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que ainda cá esteja,
esvanecidas já as esperanças deste mundo. Por um só motivo desejava prolongar
um pouco mais a vida: para ver-te católico antes de morrer. Deus concedeu-me
esta graça superabundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena
para servires ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?
Não me lembro bem do que lhe respondi a
respeito destas palavras. Dentro de cinco dias ou pouco mais, recolhia-se ao
leito, com febre. Num daqueles dias da sua doença perdeu os sentidos e, durante
um curto espaço de tempo, não dava acordo dos presentes.
Enfim, no nono dia da doença, aos cinquenta e
seis anos de idade, e no trigésimo terceiro de minha vida, aquela alma piedosa
e santa libertou-se do corpo8.”
1: Flp 3, 13. / 2: 1 Cor 2, 9. / 3: Sl 30,
10. / 4: Rom 8, 23. / 5: Sl 99, 3, 5. / 6: Mt 25, 21. / 7: 1 Cor 15,51. /
8: Mônica recebeu da Igreja e da tradição cristã o título de santa.
O seu corpo foi sepultado na cripta da Igreja de Santa Áurea, em Óstia, onde
foi descoberto em 1430 e trasladado para Roma, primeiro para a Igreja de São
Trifão e mais tarde para a igreja que lhe foi dedicada. (N. do T.)
“Fazei que eu Vos conheça, ó Conhecedor de
mim mesmo, sim, que Vos conheça como de Vós sou conhecido.”
“Que a vossa misericórdia supere a vossa
justiça.” (Tg 2, 13)
Quem é Deus?
A minha consciência, Senhor, não duvida,
antes tem a certeza de que Vos amo. Feristes-me o coração com a vossa palavra e
amei-Vos. O céu, a terra e tudo o que neles existe dizem-me por toda parte que
Vos ame. Não cessam de o repetir a todos os homens, para que sejam
inescusáveis. Compadecer-Vos-eis mais profundamente daquele de quem já Vos
compadecestes, e concedereis misericórdia àquele para quem já fostes
misericordioso. De outro modo, o céu e a terra só a surdos cantariam os vossos
louvores.
Que amo eu, quando Vos amo? Não amo a
formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga
destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o
suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem
os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu
Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço,
quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde
brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz
que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge,
onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um
contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu Deus.
Quem é Deus?
Perguntei-o à terra e disse-me: “Eu não sou”.
E tudo o que nela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos e
os répteis animados e vivos e responderam-me: “Não somos o teu Deus; busca-o
acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e o ar, com os seus habitantes
respondeu-me: “Anaxímenes está enganado; eu não sou o teu Deus”. Interroguei o
céu, o Sol, a Lua, as estrelas e disseram-me: “Nós também não somos o Deus que
procuras”. Disse a todos os seres que me rodeiam as portas da carne: “Já que
não sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, ao menos, alguma coisa
d’Ele”. E exclamaram com alarido: “Foi Ele quem nos criou¹”.
A minha pergunta consistia em contemplá-las;
a sua resposta era a sua beleza.
Dirigi-me, então, a mim mesmo, e
perguntei-me: “E tu, quem és?” “Um homem” respondi. Servem-me um corpo e uma
alma; o primeiro é exterior, a outra interior. Destas duas substâncias, a qual
deveria eu perguntar quem é o meu Deus, que já tinha procurado com o corpo,
desde a terra ao céu, até onde pude enviar, como mensageiros, os raios dos meus
olhos? À parte interior, que é a melhor. Na verdade, a ela é que os mensageiros
do corpo remetiam, como a um presidente ou juiz, as respostas do céu, da terra
e de todas as coisas que neles existem, e que diziam: “Não somos Deus; mas foi
Ele quem nos criou”. O homem interior conheceu esta verdade pelo
ministério do homem exterior. Ora, eu, homem interior — alma
—, eu conheci-a também pelos sentidos do corpo. Perguntei pelo meu Deus à massa
do Universo, e respondeu-me: “Não sou eu; mas foi Ele quem me criou”.
Mas não se manifesta esta beleza a todos os
que possuem sentidos perfeitos? Porque não fala a todos do mesmo modo? Os
animais, pequenos ou grandes, veem a beleza, mas não a podem interrogar. Não
lhes foi dada a razão — juiz que julga o que os sentidos lhe anunciam. Os
homens, pelo contrário, podem-na interrogar, para verem as perfeições
invisíveis de Deus, considerando-as nas obras criadas². Submetem-se todavia a
estas pelo amor, e, assim, já não as podem julgar. Nem a todos os que as
interrogam respondem as criaturas, mas só aos que as julgam. Não mudam a voz, isto
é, a beleza, se um a vê simplesmente, enquanto outro a vê e a interroga. Não
aparecem a um duma maneira e a outro doutra... Mas, aparecendo a ambos do mesmo
modo, para um é muda e para outro fala. Ou antes, fala a todos, mas somente a
entendem aqueles que comparam a voz vinda de fora com a
verdade interior.
Ora, a verdade diz-me: “O teu Deus não é o
céu, nem a terra, nem corpo algum”. E a natureza deles exclama: “Repara que a
matéria é menor na parte que no todo”. Por isso te digo, ó minha alma, que és superior
ao corpo, porque vivificas a matéria do teu corpo, dando-lhe vida, o que nenhum
corpo pode fazer a outro corpo. Além disso, o teu Deus é também para ti vida da
tua vida.
1: Sl 99,3. / 2: Rom 1, 20.
“Por que é que a verdade gera o ódio¹?
Por que é que os homens têm como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a
vida feliz, que não é mais que a alegria vinda da verdade? Talvez por amarem de
tal modo a verdade que todos os que amam outra coisa querem que o que amam seja
a verdade. Como não querem ser enganados, não se querem convencer de que estão
em erro. Assim, odeiam a verdade, por causa daquilo que amam em vez da verdade.
Amam-na quando os ilumina, e odeiam-na quando os repreende². Não querendo ser
enganados e desejando enganar, amam-na quando ela se manifesta e
odeiam-na quando os descobre. Porém a verdade castigá-los-á,
denunciando todos os que não quiserem ser manifestados por ela. Mas nem por
isso ela se lhes há de mostrar.
É assim, é assim, é assim também a alma
humana: cega, lânguida, torpe e indecente, procura ocultar-se e não quer que
nada lhe seja oculto. Em castigo, não se pode ocultar à verdade, mas
oculta-se-lhe. Apesar de ser tão infeliz, antes quer encontrar a alegria nas
coisas verdadeiras do que nas falsas. Será feliz quando, liberta de todas as
moléstias, se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.”
1: Terêncio, Ândria, 68. / 2: Jo 5, 35; 3,
20.
“Ó Verdade, Vós em toda parte assistis a
todos os que Vos consultam e ao mesmo tempo respondeis aos que Vos interrogam
sobre os mais variados assuntos. Respondeis com clareza, mas nem todos Vos
ouvem com a mesma lucidez. Todos Vos consultam sobre o que desejam, mas nem
sempre ouvem o que querem. O Vosso servo mais fiel é aquele que não espera nem
prefere ouvir aquilo que quer, mas se propõe aceitar, antes de tudo, a resposta
que de Vós ouviu.”
“Só na grandeza da vossa misericórdia coloco
toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que
quiserdes.”
“Daqui se vê claramente quanto a volúpia e
curiosidade agem em nós pelos sentidos: o prazer corre atrás do belo, do
harmonioso, do suave, do saboroso, do brando; a curiosidade, porém, gosta às
vezes de experimentar o contrário dessas sensações, não para se sujeitar a
enfados dolorosos, mas para satisfazer a paixão de tudo examinar e conhecer.
Que gosto há em ver um cadáver dilacerado, a
que se tem horror? Apesar disso, onde quer que esteja, toda a gente lá acorre,
ainda que, vendo-o, se entristeça e empalideça. Depois, até em sonhos temem
vê-lo, como se alguém os tivesse obrigado a ir examiná-lo, quando estavam
acordados, ou como se qualquer anúncio de beleza os tivesse persuadido a lá
irem.
O mesmo se dá com os outros sentidos. Iríamos
longe se os percorrêssemos a todos. Por causa desta doença da curiosidade,
exibem-se no teatro cenas monstruosas de superstição. Dela nasce o desejo de
perscrutar os segredos preternaturais, que afinal nada nos aproveita conhecer,
e que os homens anseiam saber, só por saber.
É ainda a curiosidade que, com o mesmo intuito
de alcançar uma ciência perversa, faz o homem recorrer às artes mágicas. Enfim
é ela que, até na religião, nos arrasta a tentar a Deus, pedindo-lhe milagres e
prodígios, não porque os exija a salvação das almas, mas só porque se deseja
fazer a experiência.”
“Uma coisa é levantar-me após a queda, e
outra coisa é não cair nunca.
De tais misérias está repleta a minha vida. A
minha única esperança é a vossa infinita misericórdia. Como o nosso coração é
recipiente de todas estas misérias e porque traz essa imensa multidão de
vaidades, muitas vezes as nossas orações interrompem-se e perturbam-se.
Enquanto na vossa presença elevamos até junto
dos vossos ouvidos a voz da nossa alma, não sei donde provêm tantos pensamentos
fúteis, que se despenham sobre nós e nos cortam a atenção em coisa tão
importante.”
“Que Vos hei de eu, Senhor, confessar, neste
gênero de tentações? Que me deleito muito com os louvores? Mas ainda me deleito
mais com a verdade do que com os louvores! Pois, se me dessem à escolha ou ser
um doido que se engana em todas as coisas, mas que é louvado por todos, ou ser
um homem seguríssimo da verdade, mas por toda gente escarnecido, bem sei o que
escolheria. Portanto, não quereria que o louvor saído duns lábios alheios
aumentasse o gosto que experimento pela boa obra, seja ela qual for. Porém,
tenho de confessar que não só o louvor lhe aumenta o deleite, mas também que o
vitupério lho diminui.
Quando me perturbo com esta minha miséria,
penetra-me na mente uma desculpa cuja natureza Vós conheceis, meu Deus.
Torno-me duvidoso e perplexo ante ela.
Pois Vós não só nos ordenastes a continência,
que nos ensina que coisas devemos afastar da nossa afeição, mas também
preceituastes a justiça, que nos ensina para onde havemos de dirigir o nosso
amor. Não quisestes que nos amássemos somente a nós, mas também ao próximo.
Ora, muitas vezes, quando retamente me deleito no louvor que é dado por uma
pessoa inteligente, parece que me comprazo no aproveitamento e nas esperanças
de que dá mostras. E, pelo contrário, entristeço-me com a sua maldade, quando a
ouço censurar o que ignoro ou o que é bom.
Algumas vezes também me contristo com os
louvores que me dirigem, quando enaltecem em mim coisas que me desagradam, ou
quando apreciam bens somenos e transitórios, com maior estima do que merecem.
Mas, repito de novo, como hei de eu saber se este sentimento me aflige por
causa de eu não querer que o meu admirador pense a meu respeito de modo diverso
do que eu penso?
Será, não porque me deixe arrastar pelo valor
e utilidade desse meu admirador, mas porque aqueles bens que em mim me agradam
me são mais saborosos quando agradam também aos outros? De certo modo, não sou
louvado quando a minha opinião, a meu respeito, não é elogiada, porque ou
enchem de encômios as coisas que me desagradam, ou louvam ainda mais as coisas
que menos me comprazem. Sobre este ponto não sou eu um enigma para comigo
mesmo?”
“Por isso, patenteamos o nosso amor para
convosco, confessando-Vos as nossas misérias e as vossas misericórdias,
a fim de que ponhais termo à obra já começada da nossa libertação e sejamos
felizes em Vós, cessando de ser miseráveis em nós.”
“Quem afirma tais coisas, ó “Sabedoria de
Deus¹”, Luz das inteligências, ainda não compreendeu como se realiza o que se
faz por Vós e em Vós. Esforça-se por saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento
ainda volita ao redor das ideias da sucessão dos tempos passados e futuros, e,
por isso, tudo o que excogita é vão.
A esse, quem o poderá prender e fixar, para
que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade
perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a
confronta com o tempo, que nunca para? Compreenderá então que a duração do
tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros.
Ora, estes não podem alongar-se
simultaneamente.
Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo
é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o
passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum passado,
e todo o passado e futuro são criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente.
Quem poderá prender o coração do homem, para que pare e veja como a eternidade
imóvel determina o futuro e o passado, não sendo ela nem passado nem futuro?
Poderá, porventura, a minha mão que escreve explicar isto? Poderá a atividade
da minha língua conseguir pela palavra realizar empresa tão grandiosa?”
Precedeis, porém, todo o passado,
alteando-Vos sobre ele com a vossa eternidade sempre presente². Dominais todo o
futuro porque está ainda para vir. Quando ele chegar, já será pretérito. “Vós,
pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo, e os vossos anos não morrem”. Os
vossos anos não vão nem vêm. Porém os nossos vão e vêm, para que todos venham.
Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os
anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos nossos
anos, só poderão existir todos, quando já todos não existirem. Os vossos anos
são como um só dia³, e o vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se
cotidiano, mas é um perpétuo “hoje”, porque este vosso “hoje” não se afasta do
“amanhã”, nem sucede ao “ontem”. O vosso “hoje” é a eternidade. Por isso
gerastes coeterno o vosso Filho, a quem dissestes: “Eu hoje te gerei4”.
Criastes todos os tempos e existis antes de todos os tempos. Não é concebível
um tempo em que possa dizer-se que não havia tempo.”
1: Ef 3, 10. / 2: Sl
101, 28. / 3: 2 Pdr 3, 8. / 4: Sl 2,7; Hbr 5,5.
O que é o tempo?
Não houve tempo nenhum em que não fizésseis
alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo.
Nenhuns tempos Vos são coeternos, porque Vós
permaneceis imutável, e se os tempos assim permanecessem, já não seriam tempos.
Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá
apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o
seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do
que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos
também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o
tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a
pergunta, já não sei.
“Por isso, na maior parte dos casos, a
pobreza da inteligência humana manifesta-se na abundância de palavras, porque a
investigação é mais loquaz no buscar do que no descobrir, o pedir demora mais
do que o obter e a mão, batendo à porta, cansa-se mais do que recebendo. Mas
temos a vossa promessa, e quem a destruirá? “Se Deus é por nós, quem contra
nós¹?” “Pedi e recebereis; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Com
efeito, todo aquele que pede recebe; o que busca, encontra; e a quem bate,
abrir-se-á².”
Estas são as vossas promessas. Quem temerá
ser iludido, quando é a própria Verdade quem promete?”
1: Gên 1, 1. / 2: Rom 8,3l.
“Os soberbos amam somente o próprio parecer,
não por ser verdadeiro, mas por ser o deles. Se assim não fosse, estimariam
igualmente a opinião dos outros quando é verdadeira, assim como eu estimo o que
eles dizem, quando afirmam a verdade, e, por esse motivo, já não é um bem
exclusivo deles. Se amam essa opinião por ser a verdade, pertence-lhes a eles e
a mim. É um bem comum, pertencente a todos os amantes da verdade.”
“Quando, porém, lemos que o homem “julga
todas as coisas”, isto significa que tem poder sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céu, sobre todos os animais domésticos e feras, sobre toda a terra, e
sobre os répteis que “pela terra se arrastam¹”. Este poder, exerce-o por meio
da inteligência, pela qual percebe o que é do Espírito de Deus. Mas o “homem,
posto em lugar de honra, não entendeu a sua grandeza e igualou-se aos jumentos
insensatos, tornando-se semelhante a eles²”. Por isso, na vossa Igreja, meu
Deus, tanto os que presidem como os que obedecem julgam pelo Espírito segundo a
graça que a cada um concedestes, porque “somos obra vossa e criados para obras
boas³”. Desse modo formastes a criatura humana, o homem e a mulher na vossa
graça espiritual, sem que no entanto houvesse na ordem do espírito distinção de
sexo entre eles, porque “não há judeu, nem grego, nem escravo, nem homem livre4”.
Portanto, os “espirituais”, quer os que
presidem, quer os que obedecem, julgam espiritualmente. A sua inteligência não
se exerce sobre os pensamentos intelectuais que brilham no firmamento, pois não
lhes pertence formular juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam da vossa
Escritura, ainda que esta contenha obscuridades, porque lhe devemos sujeitar a
inteligência. Temos como certo ainda mesmo o que permanece velado à nossa
compreensão, e acreditamos que isso não foi dito com justiça e com verdade.
Deste modo o homem, se bem que já espiritual
e renovado “no conhecimento de Deus, segundo a imagem d’Aquele que o criou5”,
deve ser cumpridor e não juiz da lei6.”
1: Gên I, 26. / 2: Sl
48,21 / 3: Ef 2, 10. / 4: Col 3, 11. / 5: Col 3, 10. / 6: Tg 4, 11.
“Contudo, Vós, meu Deus e único Bem, nunca
deixastes de nos beneficiar. Com a vossa graça algumas obras realizamos; mas
estas não são eternas. Depois de as termos praticado, esperamos repousar na
vossa grande santificação. Vós sois o Bem que de nenhum bem precisa. Estais
sempre em repouso, porque sois Vós mesmo o vosso descanso.
Quem dos homens poderá dar a outro homem a
inteligência deste mistério? Que anjo a outro anjo? Que anjo ao homem? A Vós se
peça, em Vós se procure, à vossa porta se bata. Deste modo, sim, deste modo se
há de receber, se há de encontrar e se há de abrir a porta do mistério.”
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De Magistro
“Ver a virtude e não a ter é um suplício.”
“Diz o profeta: “Se não credes, não
entendereis¹”; certamente não diria isto se não julgasse necessário pôr uma
diferença entre as duas coisas. Portanto, creio tudo o que entendo, mas nem
tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que
creio conheço. E não ignoro quanto é útil crer também em muitas coisas que não
conheço, utilidade que encontro também na história dos três jovens². Pois, não
podendo saber a maioria das coisas, sei porém quanto é útil acreditar nelas. No
que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de
quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à
própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado
ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem
interior³, isto é: a virtude incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria, que
toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é permitido
pela sua própria boa ou má vontade. E se às vezes há enganos, isto não acontece
por erro da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os
olhos, volta e meia, se enganam: luz que confessamos consultar a respeito das
coisas sensíveis, para que no-las mostre na proporção em que nos é permitido distingui-las.”
1: Is 7, 9. / 2: Hananias, Misael e Azarias
se recusaram a adorar um ídolo, e por isso foram jogados na fornalha ardente,
mas escaparam milagrosamente ilesos. / 3: São Paulo, Ef 3, 16, 17.
Interessante, mas não tocante.
ResponderExcluirPerfeito! Muito obrigada!
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