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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (Parte II) – Hannah Arendt

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-962-0
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 344
Sinopse: Ver Parte I



“Aquilo que Eichmann chamou de “turbilhão de morte”, que se abateu sobre a Alemanha depois das imensas perdas de Stalingrado — os bombardeios incessantes de cidades alemãs, desculpa usual de Eichmann para o morticínio de civis, e ainda em curso na Alemanha — tornando corriqueira a visão de coisas diferentes das atrocidades relatadas em Jerusalém, mas não menos horríveis, pode bem ter contribuído para abater, ou melhor, extinguir a consciência, se é que sobrava ainda alguma consciência quando isso aconteceu; contudo, não era isso o que a evidência empírica indicava. A máquina de extermínio havia sido planejada e aperfeiçoada em todos os detalhes muitos antes do horror da guerra atingir a própria Alemanha, e sua intrincada burocracia funcionou com a mesma impassível precisão tanto nos anos de vitória fácil como naqueles de derrota previsível. No começo, quando as pessoas podiam ter ainda alguma consciência, quase não ocorreram deserções entre a elite governante e os comandantes superiores da SS; essas defecções se fizeram notar só quando ficou evidente que a Alemanha ia perder a guerra. Além disso, essas perdas nunca foram sérias a ponto de desequilibrar a máquina; elas consistiam em atos individuais não de misericórdia, mas de corrupção, inspirados não pela consciência, mas pelo desejo de guardar algum dinheiro ou alguns contatos para os dias sombrios que estavam por vir. A ordem de suspender o extermínio e desmontar as instalações dos pavilhões da morte, dada por Himmler no outono de 1944, brotou de sua absurda, mas sincera convicção de que os poderes aliados saberiam como apreciar esse gesto de atenção; ele contou a um incrédulo Eichmann que com isso ele poderia negociar uma Hubertusburger-Frieden — alusão ao Tratado de Paz de Hubertusburg que encerrou a Guerra dos Sete Anos de Frederico II da Prússia, em 1763, e permitiu que a Prússia retivesse Silésia apesar de ter perdido a guerra.
Eichmann contou que o fator mais potente para acalmar a sua própria consciência foi o simples fato de não ver ninguém, absolutamente ninguém, efetivamente contrário à Solução Final. Ele encontrou uma exceção, porém, que mencionou diversas vezes e que deve tê-lo impressionado muito. Foi na Hungria, quando ele estava negociando com o dr. Kastner a oferta de Himmler de libertar um milhão de judeus em troca de 10 mil caminhões. Kastner, aparentemente fortalecido pelo novo rumo das coisas, pediu a Eichmann que parasse “os moinhos de morte de Auschwitz”, e Eichmann respondeu que o faria “com o maior prazer” (herzlich gern), mas que infelizmente isso estava fora de sua alçada e fora da alçada de seus superiores, como de fato estava. Evidentemente, ele não esperava que os judeus compartilhassem o entusiasmo geral por sua destruição, mas esperava mais que complacência. Esperava — e recebeu, a um ponto verdadeiramente extraordinário — a cooperação deles. Isso era “evidentemente, a pedra angular” de tudo o que fazia, como havia sido a pedra angular de suas atividades em Viena. Não fosse a ajuda judaica no trabalho administrativo e policial — o agrupamento dos judeus de Berlim foi, como já mencionei, feito inteiramente pela polícia judaica —, teria ocorrido ou o caos absoluto ou uma drenagem extremamente significativa do potencial humano alemão. (“Não há dúvida de que, sem a cooperação das vítimas, dificilmente teria sido possível para uns poucos milhares de pessoas, a maioria das quais, além de tudo, trabalhava em escritórios, liquidar muitas centenas de milhares de pessoas [...] Ao longo de todo o caminho para as suas mortes, os judeus poloneses não viam mais que um punhado de alemães.” Assim se expressa R. Pendorf em Mörder und Ermordete. Isso se aplica em medida ainda maior aos judeus que foram transportados à Polônia para lá morrer.) Daí que o estabelecimento de governos de fachada em territórios ocupados fosse sempre acompanhado pela organização de um escritório judeu central; e nos lugares onde os nazistas não conseguiram estabelecer um governo marionete, fracassou também a obtenção da cooperação dos judeus. Mas enquanto os membros dos governos de fachada eram geralmente escolhidos entre os partidos de oposição, os membros dos Conselhos Judeus eram, como regra, os líderes judeus regionalmente reconhecidos, a quem os nazistas davam enormes poderes — até eles também serem deportados para Theresienstadt ou Bergen-Belsen, se eram da Europa Central ou Oriental, ou para Auschwitz se eram da comunidade da Europa Ocidental.
Para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição de seu próprio povo é, sem nenhuma dúvida, o capítulo mais sombrio de toda uma história de sombras. Isso já era sabido antes, mas agora foi exposto pela primeira vez em todos os seus patéticos e sórdidos detalhes por Raul Hilberg na obra The Destruction of the European Jews. Na questão da cooperação, não havia diferença entre as comunidades altamente assimiladas da Europa Central e Ocidental e as massas falantes do iídiche no Leste. Em Amsterdã assim como em Varsóvia, em Berlim como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda confiança ao compilar as listas de pessoas e de suas propriedades, ao reter o dinheiro dos deportados para abater as despesas de sua deportação e extermínio, ao controlar os apartamentos vazios, ao suprir forças policiais para ajudar a prender os judeus e conduzi-los aos trens, e até, num último gesto, ao entregar os bens da comunidade judaica em ordem para o confisco final. Eles distribuíam os emblemas da Estrela Amarela e, às vezes, como em Varsóvia, “a venda de braçadeiras tornou-se um negócio normal; havia as faixas comuns de pano e as faixas especiais de plástico que eram laváveis”. Nos manifestos que publicavam, inspirados pelos nazistas, mas não ditados pelos nazistas, ainda se pode perceber o quanto gostavam de seus novos poderes — “O Conselho Judeu Central foi brindado com o direito de dispor absolutamente de toda riqueza espiritual e material dos judeus e de toda força de trabalho judaica”, como dizia o primeiro anúncio do Conselho de Budapeste. Sabemos o que sentiam os funcionários judeus quando se transformaram em instrumentos de assassinatos: como capitães “cujos navios estavam a ponto de afundar e que conseguiam levá-lo em segurança até o porto atirando ao mar parte de sua preciosa carga”; como salvadores que “com cem vítimas salvam mil pessoas, com mil salvavam 10 mil”. A verdade era ainda mais terrível. O dr. Kastner, da Hungria, por exemplo, salvou exatamente 1684 pessoas entre cerca de 476 mil vítimas. A fim de não deixar a seleção a cargo do “destino cego”, eram necessários “princípios realmente sagrados como força guia para a fraca mão humana que registra no papel o nome de uma pessoa desconhecidos e com isso decide sua vida ou sua morte”. E quem esses “princípios sagrados” selecionavam para salvação? Aqueles “que haviam trabalhado toda a vida pela zibur [comunidade]” — isto é, os funcionários — e os “judeus mais importantes”, como diz Kastner em seu relato.”


“A questão da cooperação foi mencionada duas vezes pelos juízes; o juiz Yitzak Raveh arrancou de uma das testemunhas da resistência a admissão de que a “polícia do gueto” era um “instrumento nas mãos dos assassinos” e conseguiu também o reconhecimento da “política de cooperação dos Judenrat com os nazistas”; e no segundo interrogatório, o juiz Halevi descobriu com Eichmann que os nazistas tinham visto essa cooperação como a pedra angular de sua política para os judeus. Mas a pergunta que o promotor fazia regularmente a cada testemunha, exceto aos combatentes, pergunta que soava tão natural àqueles que nada sabiam dos antecedentes do julgamento, a pergunta “Por que você não se rebelou?”, serviu na verdade de cortina de fumaça para a pergunta que não foi feita. E assim ocorreu que todas as respostas à pergunta irrespondível que o sr. Hausner fez a suas testemunhas eram bem menos do que “a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade”. A verdade era que o povo judeu não era um todo organizado, que não possuía território, governo, nem exército em sua hora de maior precisão, não tinha um governo no exílio para representá-lo entre os Aliados (a Agência Judaica para a Palestina, presidida pelo dr. Weizmann, era na melhor das hipóteses um substituto miserável), nem um esconderijo de armas, nem uma juventude com treinamento militar. Mas a verdade integral é que existiam organizações comunitárias judaicas e organizações recreativas e assistenciais tanto em nível local como internacional. Onde quer que vivessem judeus, havia líderes judeus reconhecidos, e essa liderança, quase sem exceção, cooperou com os nazistas de uma forma ou de outra, por uma ou outra razão. A verdade integral era que, se o povo judeu estivesse desorganizado e sem líderes, teria havido caos e muita miséria, mas o número total de vítimas dificilmente teria ficado entre 4 milhões e meio e 6 milhões de pessoas.
Detive-me sobre esse capítulo do caso, que o tribunal de Jerusalém deixou de apresentar aos olhos do mundo em suas verdadeiras dimensões, porque ele oferece uma visão notável da totalidade do colapso moral que os nazistas provocaram na respeitável sociedade europeia — não apenas na Alemanha, mas em quase todos os países, não só entre os perseguidores, mas também entre as vítimas.”


“O dr. Servatius pelo menos dessa vez tomou a iniciativa e fez à testemunha uma pergunta altamente pertinente: “O senhor tentou influenciá-lo? Tentou, como religioso, apelar para os sentimentos dele, fazer um sermão para ele, e lhe dizer que sua conduta era contrária à moralidade?”. Evidentemente o bravo pastor Grüber não tinha feito nada do tipo, e suas respostas foram altamente embaraçosas. Ele disse que “atos são mais eficazes que palavras”, e que “palavras teriam sido inúteis”; expressou-se com clichês que não tinham nada a ver com a realidade da situação, na qual “meras palavras” teriam sido atos, e onde teria sido talvez dever de um sacerdote desafiar “a inutilidade das palavras”.
Ainda mais pertinente que a pergunta do dr. Servatius foi o que Eichmann disse sobre esse episódio em seu último depoimento “Ninguém veio até mim e me censurou por nada no desempenho de meus deveres, nem o pastor Grüber disse uma coisa dessas”, ele repetiu. E acrescentou: “Ele veio até mim e pediu alívio para o sofrimento, mas não objetou de fato ao desempenho de meus deveres enquanto tais”. Pelo depoimento do pastor Grüber parecia que ele buscava não tanto o “alívio do sofrimento” quanto a isenção para algumas categorias bem estabelecidas anteriormente pelos nazistas. Essas categorias haviam sido aceitas sem protestos pelo judaísmo alemão desde o começo. E a aceitação de categorias privilegiadas — judeus alemães acima de judeus poloneses, judeus veteranos de guerra e condecorados acima de judeus comuns, famílias cujos ancestrais eram nascidos na Alemanha acima de cidadãos naturalizados recentemente etc. — fora o começo do colapso moral da respeitável sociedade judaica. (Hoje em dia, quando há uma tendência a relegar esses temas como se houvesse uma lei da natureza humana que levasse todo mundo a perder a dignidade em face do desastre, podemos relembrar a atitude dos veteranos de guerra judeus franceses, a quem seu governo ofereceu os mesmos privilégios e que responderam: “Declaramos solenemente que recusamos todo benefício excepcional que possamos gozar por nossa condição de ex-combatentes” [American Jewish Yearbook, 1945].) Nem é preciso dizer que os próprios nazistas nunca levaram a sério essas distinções. Para eles um judeu era um judeu, mas as categorias desempenharam certo papel até o final, uma vez que ajudaram a acalmar certa inquietação entre a população alemã: só os judeus poloneses foram deportados, só as pessoas que haviam fugido do serviço militar, e assim por diante. Para aqueles que não queriam fechar os olhos, deve ter ficado claro desde o começo que “era prática geral permitir certas exceções a fim de conseguir manter a regra geral com maior facilidade” (nas palavras de Louis de Jong num esclarecedor artigo sobre “Jews and Non-Jews in Nazi-Occupied Holland”).
Moralmente, o mais desastroso na aceitação dessas categorias privilegiadas era que todos os que pediam uma “exceção” para o seu caso reconheciam implicitamente a regra, mas esse ponto aparentemente nunca foi percebido por esses “bons homens”, judeus e gentios, que se ocupavam com esses “casos especiais” para os quais pediam tratamento preferencial. Mas se os solicitantes judeus e gentios de “casos especiais” não tinham consciência de sua involuntária cumplicidade, esse reconhecimento implícito da regra, que significava morte para todos os casos não especiais, deve ter sido muito óbvio para aqueles que estavam envolvidos no negócio do assassinato. Eles devem ter sentido, pelo menos, que ao receber pedidos de exceções e ao atender alguns ocasionalmente, conquistando assim gratidão, estavam convencendo seus oponentes da legalidade do que faziam.”


“E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita “Não matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”, embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem — a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação.”


“Foi na Dinamarca, porém, que os alemães descobriram o quanto eram justificadas as apreensões do Ministério das Relações Exteriores. A história dos judeus dinamarqueses é sui generis, e o comportamento do povo dinamarquês e de seu governo foi único entre todos os países da Europa — ocupada, associada ao Eixo, neutra ou verdadeiramente independente. É forte a tentação de recomendar a leitura obrigatória desse episódio da ciência política para todos os estudantes que queiram aprender alguma coisa sobre o enorme potencial de poder inerente à ação não violenta e à resistência a um oponente detentor de meios de violência vastamente superiores. Sem dúvida alguns outros países na Europa eram desprovidos de um adequado “conhecimento da questão judaica”, e na verdade a maioria deles se opôs às soluções “radical” e “final”. Assim como a Dinamarca, a Suécia, a Itália e a Bulgária provaram ser quase imunes ao antissemitismo, mas dos três países na esfera de influência alemã, só os dinamarqueses ousaram falar do assunto com seus senhores alemães. A Itália e a Bulgária sabotavam as ordens alemãs e se permitiam um complicado jogo de negociação e trapaça, salvando seus judeus graças a um tour de force de pura criatividade, mas jamais contestaram a política enquanto tal. Os dinamarqueses fizeram uma coisa completamente diferente. Quando os alemães os abordaram, bastante cautelosamente, quanto à introdução do emblema amarelo, eles simplesmente disseram que o rei seria o primeiro a usá-la, e os funcionários governamentais dinamarqueses tiveram o cuidado de esclarecer que medidas antijudaicas de qualquer ordem provocariam sua imediata renúncia. Muito decisivo na questão toda foi o fato de os alemães não conseguirem determinar nem mesmo — o que era vitalmente importante para eles — quem eram os dinamarqueses nativos de origem judaica (cerca de 6400) e quem eram os 1400 judeus alemães refugiados que haviam encontrado asilo no país antes da guerra, agora declarados apátridas pelo governo alemão. Essa recusa deve ter sido uma infinita surpresa para os alemães, visto que parecia “ilógico” um governo proteger pessoas a quem havia recusado categoricamente naturalização e mesmo permissão de trabalho. Os dinamarqueses, porém, explicaram aos funcionários alemães que uma vez que os refugiados apátridas não eram mais cidadãos alemães, os nazistas não podiam mais requisitá-los sem o consentimento dinamarquês. Esse foi um dos poucos casos em que a falta de pátria acabou sendo um privilégio, embora, evidentemente, não tenha sido a falta de Estado per se que salvou os judeus, mas, ao contrário, o fato de o governo dinamarquês decidir protegê-los. Dessa forma, nenhum dos movimentos preparatórios, tão importantes para a burocracia do assassinato, pôde ser levado a cabo, e as operações foram adiadas até depois do outono de 1943.
O que aconteceu então foi realmente surpreendente; comparado ao que aconteceu em outros países europeus, tudo resultou numa grande trapalhada. Em agosto de 1943 — depois do fracasso da ofensiva alemã na Rússia, da rendição do Afrika Korps na Tunísia e da invasão aliada na Itália — o governo sueco cancelou o acordo de 1940 com a Alemanha, permitindo que as tropas alemãs atravessassem seu território. Diante disso, os trabalhadores dinamarqueses decidiram que podiam ajudar um pouco a acelerar as coisas; irromperam tumultos nos estaleiros dinamarqueses e os trabalhadores das docas se recusaram a consertar navios alemães, entrando em greve em seguida. O comandante militar alemão decretou estado de emergência e impôs a lei marcial, e Himmler achou que aquele era o momento adequado para tocar na questão judaica, cuja “solução” estava muito atrasada. O que não estava em seus cálculos — sem contar a resistência dinamarquesa — foi que os funcionários alemães que viviam havia anos no país não eram mais os mesmos. Não só o general von Hannecken, comandante militar, recusou-se a pôr tropas à disposição do plenipotenciário do Reich, dr. Werner Best, como também as unidades especiais da SS (Einsatzkommandos) alocadas na Dinamarca muitas vezes objetaram às medidas que os organismos centrais ordenavam que fossem tomadas — segundo o testemunho de Best em Nuremberg. E o próprio Best, um velho homem da Gestapo e antigo conselheiro legal de Heydrich, autor de um livro famoso sobre a polícia e que trabalhara para o governo militar em Paris satisfazendo plenamente a seus superiores, já não merecia confiança, embora não se saiba ao certo se Berlim chegou a tomar conhecimento disso. De toda forma, desde o princípio ficou claro que as coisas não estavam indo bem, e o departamento de Eichmann mandou um de seus melhores homens à Dinamarca — Rolf Günther, que ninguém jamais acusara de não ter a necessária “dureza impiedosa”. Günther não impressionou seus colegas de Copenhague e Hannecken se recusou até mesmo a baixar um decreto exigindo que todos os judeus se apresentassem para trabalhar.
Best foi para Berlim e conseguiu uma promessa de que os judeus da Dinamarca seriam mandados para Theresienstadt fosse qual fosse sua categoria — concessão muito importante do ponto de vista nazista. Foi escolhida a noite de 10 de outubro para sua captura e partida imediata — os navios já estavam prontos no porto —, e como não se podia confiar nem nos dinamarqueses, nem nos judeus, nem nas tropas alemãs estacionadas na Dinamarca, chegaram da Alemanha unidades da polícia para realizar uma busca de porta em porta. No último momento, Best lhes disse que não podiam invadir apartamentos, porque nesse caso a polícia dinamarquesa poderia interferir, e que não deviam entrar em choque com os dinamarqueses. Em decorrência, só conseguiram capturar os judeus que abriram suas portas voluntariamente. De um total de mais de 7800 pessoas, encontraram exatamente 477 que estavam em casa e dispostas a deixá-los entrar. Poucos dias antes da data fatídica, um agente de transporte alemão, Georg F. Duckwitz, provavelmente a partir de informações fornecidas pelo próprio Best, revelou todo o plano aos funcionários governamentais dinamarqueses, que por sua vez informaram rapidamente os cabeças da comunidade judaica. Estes, em marcante contraste com líderes judeus de outros países, deram a notícia abertamente nas sinagogas, por ocasião dos serviços de Ano-Novo. Os judeus tiveram tempo suficiente para sair de seus apartamentos e esconder-se, o que era muito fácil na Dinamarca porque, nas palavras da sentença, “todos os setores do povo dinamarquês, desde o rei até os simples cidadãos”, estavam prontos para recebê-los.
Talvez fosse necessário que ficassem na clandestinidade até o final da guerra se os dinamarqueses não tivessem a sorte de ter a Suécia como vizinha. Pareceu razoável embarcar os judeus para a Suécia, e isso foi feito com a ajuda da frota pesqueira dinamarquesa. O custo do transporte para as pessoas sem meios — cerca de cem dólares por pessoa — foi pago em grande parte por cidadãos dinamarqueses ricos, e talvez seja esse o fato mais assombroso, uma vez que na época a praxe era os judeus pagarem sua própria deportação, com os ricos gastando fortunas em permissões de saída (na Holanda, na Eslováquia e depois na Hungria), fosse subornando as autoridades locais, fosse negociando “legalmente” com a SS, que só aceitava moedas fortes e vendia permissões de saída da Holanda ao preço de 5 ou 10 mil dólares por pessoa. Mesmo em lugares onde os judeus encontravam simpatia e sincera disposição para ajudar, tinham de pagar por isso, e a probabilidade de os pobres conseguirem fugir eram nulas.
Levou-se a maior parte do mês de outubro para transportar os judeus ao longo das cinco a quinze milhas marítimas que separam a Dinamarca da Suécia. Os suecos receberam 5919 refugiados, dos quais pelo menos mil eram de origem alemã, 1310 eram meio-judeus, e 686 não-judeus casados com judeus. (Quase metade dos judeus dinamarqueses parece ter ficado no país, sobrevivendo à guerra na clandestinidade.) Os judeus não dinamarqueses ficaram melhor do que antes, e todos receberam permissão de trabalho. As poucas centenas de judeus que a polícia alemã conseguiu prender foram mandadas para Theresienstadt. Eram velhos ou pobres que não haviam recebido a notícia a tempo ou que não conseguiram entender seu significado. No gueto, gozavam de privilégios maiores do que os de qualquer outro grupo, devido ao “espalhafato” infinito que faziam instituições e indivíduos dinamarqueses. Quarenta e oito pessoas morreram, número não particularmente alto, em vista da média de idade do grupo. Quando tudo terminou, na opinião abalizada de Eichmann, “por várias razões a ação contra os judeus na Dinamarca foi um fracasso”, enquanto o curioso dr. Best declarou que “o objetivo da operação não era capturar um número grande de judeus, mas limpar a Dinamarca dos judeus, e esse objetivo foi alcançado”.
Política e psicologicamente, o aspecto mais interessante desse incidente é talvez o papel desempenhado pelas autoridades alemãs na Dinamarca, sua evidente sabotagem das ordens de Berlim. É o único caso que conhecemos em que os nazistas encontraram resistência nativa declarada, e o resultado parece ter sido que os que foram expostos a ela mudaram de ideia. Aparentemente eles mesmos haviam deixado de ver com naturalidade o extermínio de todo um povo. Quando encontraram resistência baseada em princípios, sua “dureza” se derreteu como manteiga ao sol, e eles foram capazes até mesmo de demonstrar um tímido começo de coragem genuína. O ideal de “dureza”, exceto talvez para uns poucos brutos semiloucos, não passava de um mito de autoengano, escondendo um desejo feroz de conformidade a qualquer preço, e isso foi claramente revelado nos julgamentos de Nuremberg, onde os réus se acusavam e traíam mutuamente e juravam ao mundo que sempre “haviam sido contra aquilo”, ou diziam, como faria Eichmann, que seus superiores haviam feito mau uso de suas melhores qualidades. (Em Jerusalém, ele acusou “os poderosos” de ter feito mau uso de sua “obediência”. “O cidadão de um bom governo tem sorte, o cidadão de um mau governo é azarado. Eu não tive sorte.”) A atmosfera mudara, e embora a maior parte deles deva ter percebido que estava condenada, nem um único teve a coragem de defender a ideologia nazista.”


“A mesma história que se repete: os que escaparam dos julgamentos de Nuremberg e não foram extraditados para os países onde cometeram seus crimes nunca foram levados à justiça ou encontraram nas cortes alemãs a maior “compreensão” possível. Vem à lembrança a infeliz República de Weimar, cuja especialidade era endossar o assassinato político se o assassino pertencia a um dos grupos violentamente antirrepublicanos da direita.”


“(Devido ao apoio da população da Bulgária e do seu parlamento, a despeito da forte pressão alemã,) o resultado foi que nem um único judeu búlgaro havia sido deportado ou tinha morrido de causa não natural quando, em agosto de 1944, com a aproximação do Exército Vermelho, as leis antijudaicas foram revogadas.
          Não conheço nenhuma tentativa de explicar a conduta do povo búlgaro, que é única no cinturão de populações mistas. Mas vem à mente Georgi Dimitrov, o comunista búlgaro que estava por acaso na Alemanha quando os nazistas subiram ao poder e que eles resolveram acusar pelo Reichstagsbrand, o incêndio misterioso do Parlamento de Berlim em 27 de fevereiro de 1933. Ele foi julgado pela Suprema Corte alemã e confrontou-se com Göring, que o interrogou como se estivesse encarregado do julgamento; e foi graças a ele que todos aqueles acusados, exceto van der Lubbe, tiveram de ser absolvidos. Foi tal a sua conduta que ele conquistou a admiração do mundo inteiro, da Alemanha inclusive. “Sobrou um homem na Alemanha”, as pessoas costumavam dizer, “e ele é búlgaro”.”


“Os buracos de esquecimento não existem.”


“Existem no mundo pessoas demais para que seja possível o esquecimento. Sempre sobra um homem para contar a história.”


“Ligado de perto a esse fracasso estava o conspícuo desamparo que os juízes experimentaram quando se viram confrontados com a tarefa de que menos podiam escapar, a tarefa de entender o criminoso que tinham vindo julgar. Evidentemente não bastava que não acompanhassem a acusação em sua descrição obviamente errada do acusado como um “sádico pervertido”, nem teria bastado que fossem um passo à frente e demonstrassem a incoerência do argumento da acusação, segundo o qual o sr. Hausner queria julgar o monstro mais anormal que o mundo já vira e, ao mesmo tempo, julgar nele “muitos outros como ele”, até mesmo “todo o movimento nazista e o antissemitismo em geral”. Eles sabiam, é claro, que teria sido realmente muito reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro; se assim fosse, a acusação de Israel contra ele teria soçobrado ou, no mínimo, perdido todo interesse. Não é possível convocar o mundo inteiro e reunir correspondentes dos quatro cantos da Terra para expor o Barba Azul no banco dos réus. O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que — como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados — esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado.”

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