Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-451-9
Opinião: ★★★★★
Páginas: 476
Sinopse: Obra
magistral, e o maior desafio de Darcy Ribeiro, O povo brasileiro é
uma tentativa de compreender quem somos, o que somos e a importância do nosso
país. Talvez uma tarefa dura, mas imprescindível, pois segundo Darcy: “Este é
um livro que quer ser participante, que aspira a influir sobre as pessoas e
ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”.
“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os
índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei
fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são
minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
“Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil
é uma etnia nacional, um povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado
dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha,
na Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades
multiétnicas regidas por Estados unitários e, por isso mesmo, dilaceradas por
conflitos interétnicos, os brasileiros se integram em uma única etnia nacional,
constituindo assim um só povo incorporado em uma nação unificada, num Estado
uni-étnico. A única exceção são as múltiplas microetnias tribais, tão
imponderáveis que sua existência não afeta o destino nacional.
Aquela uniformidade cultural e esta unidade
nacional - que são, sem dúvida, a grande resultante do processo de formação do
povo brasileiro - não devem cegar-nos, entretanto, para disparidades,
contradições e antagonismos que subsistem debaixo delas como fatores dinâmicos
da maior importância. A unidade nacional, viabilizada pela integração econômica
sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada, de fato, depois da
independência, como um objetivo expresso, alcançado através de lutas cruentas e
da sabedoria política de muitas gerações. Esse é, sem dúvida, o único mérito
indiscutível das velhas classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco
unitário resultante da América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais
diversos a que deu lugar a América hispânica, pode se avaliar a extraordinária
importância desse feito.
Essa unidade resultou de um processo
continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço
deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e
opressão de toda tendência virtualmente separatista. Inclusive de movimentos
sociais que aspiravam fundamentalmente edificar uma sociedade mais aberta e
solidária. A luta pela unificação potencializa e reforça, nessas condições, a repressão
social e classista, castigando como separatistas movimentos que eram meramente
republicanos ou antioligárquicos.
Subjacente à uniformidade cultural
brasileira, esconde-se uma profunda distância social, gerada pelo tipo de
estratificação que o próprio processo de formação nacional produziu. O
antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se
exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da
população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças
raciais.
O povo-nação não surge no Brasil da evolução
de formas anteriores de sociabilidade, em que grupos humanos se estruturam em
classes opostas, mas se conjugam para atender às suas necessidades de
sobrevivência e progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de
trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela,
através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram,
de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável.
Nessas condições, exacerba-se o
distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre
estas e as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da
uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter
traumático. Em consequência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois
luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o
pavor pânico do alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse pavor
pânico é a brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a predisposição
autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem
vigente. A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e
remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde
habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam
a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana
entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e
a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural. A
façanha que representou o processo de fusão racial e cultural é negada, desse
modo, no nível aparentemente mais fluido das relações sociais, opondo à unidade
de um denominador cultural comum, com que se identifica um povo de milhões de
habitantes, a dilaceração desse mesmo povo por uma estratificação classista de
nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa
conceber.
O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos
de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os
profundos abismos que aqui separam os estratos sociais.
O mais grave é que esse abismo não conduz a
conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus
vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e
guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para
com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa
espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e
perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria
contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de
serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente,
imprevisíveis.
Essa alternidade só se potencializou
dinamicamente nas lutas seculares dos índios e dos negros contra a escravidão.
Depois, somente nas raras instâncias em que o
povo-massa de uma região se organiza na luta por um projeto próprio e
alternativo de estruturação social, como ocorreu com os Cabanos, em Canudos, no
Contestado e entre os Mucker.
Nessas condições de distanciamento social, a
amargura provocada pela exacerbação do preconceito classista e pela consciência
emergente da injustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões anárquicas que
conflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente é que explica a
preocupação obsessiva que tiveram as classes dominantes pela manutenção da
ordem. Sintoma peremptório de que elas sabem muito bem que isso pode suceder,
caso se abram as válvulas de contenção. Daí suas “revoluções preventivas”,
conducentes a ditaduras vistas como um mal menor que qualquer remendo na ordem
vigente.
É de assinalar que essa preocupação se
assentava, primeiro, no medo da rebeldia dos escravos. Dada a coloração escura
das camadas mais pobres, esse medo racial persiste, quando são os antagonismos
sociais que ameaçam eclodir com violência assustadora. Efetivamente, poderá
assumir a forma de convulsão social terrível, porque, com uma explosão
emocional, acabaria provavelmente vencida e esmagada por forças repressoras,
que restaurariam, sobre os escombros, a velha ordem desigualitária.
O grande desafio que o Brasil enfrenta é
alcançar a necessária lucidez para concatenar essas energias e orientá-las
politicamente, com clara consciência dos riscos de retrocessos e das
possibilidades de liberação que elas ensejam. O povo brasileiro pagou,
historicamente, um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que
se tem registro na história, sem conseguir sair, através delas, da situação de
dependência e opressão em que vive e peleja. Nessas lutas, índios foram
dizimados e negros foram chacinados aos milhões, sempre vencidos e integrados
nos plantéis de escravos. O povo inteiro, de vastas regiões, às centenas de
milhares, foi também sangrado em contrarrevoluções sem conseguir jamais, senão
episodicamente, conquistar o comando de seu destino para reorientar o curso da
história. Ao contrário do que alega a historiografia oficial, nunca faltou
aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma
fundamental da construção da história. O que faltou, sempre, foi espaço para
movimentos sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e falta
ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como
necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de
ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu
pelas grandes maiorias. Não é impensável que a reordenação social se faça sem
convulsão social, por via de um reformismo democrático. Mas ela é muitíssimo
improvável neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem
açambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores
a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força da
manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um político nacionalista ou
populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes
dominantes apelam para a repressão e a força.”
AS OPOSTAS VISÕES
Os índios perceberam a chegada do europeu
como um acontecimento espantoso, só assimilável em sua visão mítica do mundo.
Seriam gente de seu deus sol, o criador – Maíra –, que vinha milagrosamente
sobre as ondas do mar grosso. Não havia como interpretar seus desígnios, tanto
podiam ser ferozes como pacíficos, espoliadores ou dadores.
Provavelmente seriam pessoas generosas,
achavam os índios. Mesmo porque, no seu mundo, mais belo era dar que receber.
Ali, ninguém jamais espoliara ninguém e a pessoa alguma se negava louvor por
sua bravura e criatividade. Visivelmente, os recém-chegados, saídos do mar,
eram feios, fétidos e infectos. Não havia como negá-lo. É certo que, depois do
banho e da comida, melhoraram de aspecto e de modos. Maiores terão sido,
provavelmente, as esperanças do que os temores daqueles primeiros índios. Tanto
assim é que muitos deles embarcaram confiantes nas primeiras naus, crendo que
seriam levados a Terras sem Males, morada de Maíra (Newen Zeytung, A
nova gazeta da terra do Brasil, 1515). Tantos que o índio passou a ser,
depois do pau-brasil, a principal mercadoria de exportação para a metrópole.
Pouco mais tarde, essa visão idílica se
dissipa. Nos anos seguintes, se anula e reverte-se no seu contrário: os índios
começam a ver a hecatombe que caíra sobre eles. Maíra, seu deus, estaria morto?
Como explicar que seu povo predileto sofresse tamanhas provações? Tão
espantosas e terríveis eram elas, que para muitos índios melhor fora morrer do
que viver.
Mais tarde, com a destruição das bases da
vida social indígena, a negação de todos os seus valores, o despojo, o
cativeiro, muitíssimos índios deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como
só eles têm o poder de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro
possível seria a negação mais horrível do passado, uma vida indigna de ser
vivida por gente verdadeira.
Sobre esses índios assombrados com o que lhes
sucedia é que caiu a pregação missionária, como um flagelo. Com ela, os índios
souberam que era por culpa sua, de sua iniquidade, de seus pecados, que o bom
deus do céu caíra sobre eles, como um cão selvagem, ameaçando lançá-los para
sempre nos infernos. O bem e o mal, a virtude e o pecado, o valor e a covardia,
tudo se confundia, transtrocando o belo com o feio, o ruim com o bom. Nada
valia, agora e doravante, o que para eles mais valia: a bravura gratuita, a
vontade de beleza, a criatividade, a solidariedade. A cristandade surgia a seus
olhos como o mundo do pecado, das enfermidades dolorosas e mortais, da
covardia, que se adonava do mundo índio, tudo conspurcando, tudo apodrecendo.
Os povos que ainda o puderam fazer, fugiram
mata adentro, horrorizados com o destino que lhes era oferecido no convívio dos
brancos, seja na cristandade missionária, seja na pecaminosidade colonial.
Muitos deles levando nos corpos contaminados as enfermidades que os iriam
dizimando a eles e aos povos indenes de que se aproximassem.
Mas a atração irresistível das ferramentas,
dos adornos, da aventura, os fazia voltar. Cada nova geração queria ver com
seus próprios olhos o povo estranho, implantado nas praias, recebendo navios
cheios de bens preciosíssimos.
Alguns se acercavam e aderiam, preferindo a
aventura do convívio com os novos senhores, como flecheiros de suas guerras
contra os índios arredios, do que a rotina da vida tribal, que perdera o viço e
o brilho.
Esse foi o primeiro efeito do encontro fatal
que aqui se dera. Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram,
pasmos de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a civilização.
Suas concepções, não só diferentes mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do
amor, se chocaram cruamente. Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de
meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam, em
espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios,
vestidos da nudez emplumada, esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as
ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam
do mar.
Para os que chegavam, o mundo em que entravam
era a arena dos seus ganhos, em ouros e glórias, ainda que estas fossem
principalmente espirituais, ou parecessem ser, como ocorria com os
missionários. Para alcançá-las, tudo lhes era concedido, uma vez que sua ação
de além-mar, por mais abjeta e brutal que chegasse a ser, estava previamente
sacramentada pelas bulas e falas do papa e do rei. Eles eram, ou se viam, como
novos cruzados destinados a assaltar e saquear túmulos e templos de hereges
indianos. Mas aqui, o que viam, assombrados, era o que parecia ser uma
humanidade edênica, anterior à que havia sido expulsa do Paraíso. Abre-se com
esse encontro um tempo novo, em que nenhuma inocência abrandaria sequer a sanha
com que os invasores se lançavam sobre o gentio, prontos a subjugá-los pela
honra de Deus e pela prosperidade cristã. Só hoje, na esfera intelectual,
repensando esse desencontro se pode alcançar seu real significado.
Para os índios que ali estavam, nus na praia,
o mundo era um luxo de se viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de
frutos, de flores, de sementes, que podia dar as alegrias de caçar, de pescar,
de plantar e colher a quanta gente aqui viesse ter. Na sua concepção sábia e
singela, a vida era dádiva de deuses bons, que lhes doaram esplêndidos corpos,
bons de andar, de correr, de nadar, de dançar, de lutar. Olhos bons de ver
todas as cores, suas luzes e suas sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir
vozes estridentes ou melódicas, cantos graves e agudos e toda a sorte de sons
que há. Narizes competentíssimos para fungar e cheirar catingas e odores. Bocas
magníficas de degustar comidas doces e amargas, salgadas e azedas, tirando de
cada qual o gozo que podia dar. E, sobretudo, sexos opostos e complementares,
feitos para as alegrias do amor.
Os recém-chegados eram gente prática,
experimentada, sofrida, ciente de suas culpas oriundas do pecado de Adão,
predispostos à virtude, com clara noção dos horrores do pecado e da perdição
eterna. Os índios nada sabiam disso. Eram, a seu modo, inocentes, confiantes,
sem qualquer concepção vicária, mas com claro sentimento de honra, glória e
generosidade, e capacitados, como gente alguma jamais o foi, para a convivência
solidária.
Aos olhos dos recém-chegados, aquela indiada
louçã, de encher os olhos só pelo prazer de vê-los, aos homens e às mulheres,
com seus corpos em flor, tinha um defeito capital: eram vadios, vivendo uma
vida inútil e sem prestança. Que é que produziam? Nada. Que é que amealhavam?
Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo só lhes coubesse viver.
Aos olhos dos índios, os oriundos do mar oceano pareciam aflitos demais. Por
que se afanavam tanto em seus fazimentos? Por que acumulavam tudo, gostando
mais de tomar e reter do que de dar, intercambiar? Sua sofreguidão seria
inverossímil se não fosse tão visível no empenho de juntar toras de pau
vermelho, como se estivessem condenados, para sobreviver, a alcançá-las e
embarcá-las incansavelmente?
Temeriam eles, acaso, que as florestas fossem
acabar e, com elas, as aves e as caças? Que os rios e o mar fossem secar,
matando os peixes todos?
“Os nossos tupinambás muito se admiram dos
franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar os seus
arabutan. Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e
perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não
tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela
qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos
tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas
plumas.
Retrucou o velho imediatamente: e porventura
precisais de muito? – Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes
que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que
podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios
voltam carregados. – Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas,
acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem
tão rico de que me falas não morre? – Sim, disse eu, morre como os outros.
Mas os selvagens são grandes discursadores e
costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e
quando morrem para quem fica o que deixam? – Para seus filhos se os têm,
respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. – Na
verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo
que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis
grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para
amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não
será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais,
mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a
terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores
cuidados.” (Jean de Léry, 1960, Viagem à terra do
Brasil)
Aquele desencontro de gente índia que enchia
as praias, encantada de ver as velas enfunadas, e que era vista com fascínio
pelos barbudos navegantes recém-chegados, era, também, o enfrentamento biótico
mortal da higidez e da morbidade. A indiada não conhecia doenças, além de
coceiras e desvanecimentos por perda momentânea da alma.
A branquitude trazia da cárie dental à
bexiga, à coqueluche, à tuberculose e o sarampo. Desencadeia-se, ali, desde a
primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados,
nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais
desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indenes, indefesos, que
começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro,
como uma epidemia de pestes mortais. Depois, pela dizimação através de guerras
de extermínio e da escravização. Entretanto, esses eram tão-só os passos iniciais
de uma escalada do calvário das dores inenarráveis do extermínio genocida e
etnocida.
Para os índios, a vida era uma tranquila
fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária. Claro que
tinham suas lutas, suas guerras. Mas todas concatenadas, como prélios, em que
se exerciam, valentes. Um guerreiro lutava, bravo, para fazer prisioneiros,
pela glória de alcançar um novo nome e uma nova marca tatuada cativando
inimigos. Também servia para ofertá-lo numa festança em que centenas de pessoas
o comeriam convertido em paçoca, num ato solene de comunhão, para absorver sua
valentia, que nos seus corpos continuaria viva.
Uma mulher tecia uma rede ou trançava um
cesto com a perfeição de que era capaz, pelo gosto de expressar-se em sua obra,
como um fruto maduro de sua ingente vontade de beleza. Jovens, adornados de
plumas sobre seus corpos escarlates de urucu, ou verde-azulados de jenipapo,
engalfinhavam-se em lutas desportivas de corpo a corpo, em que punham a energia
de batalhas na guerra para viver seu vigor e sua alegria.
Para os recém-chegados, muito ao contrário, a
vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que a todos condenava ao trabalho e
tudo subordinava ao lucro. Envoltos em panos, calçados de botas e enchapelados,
punham nessas peças seu luxo e vaidade, apesar de mais vezes as exibirem sujas
e molambentas, do que pulcras e belas.
Armados de chuços de ferro e de arcabuzes
tonitruantes, eles se sabiam e se sentiam a flor da criação. Seu desejo,
obsessivo, era multiplicar-se nos ventres das índias e pôr suas pernas e braços
a seu serviço, para plantar e colher suas roças, para caçar e pescar o que
comiam. Os homens serviam principalmente para tombar e juntar paus-de-tinta ou
para produzir outra mercadoria para seu lucro e bem-estar.
Esses índios cativos, condenados à tristeza
mais vil, eram também os provedores de suas alegrias, sobretudo as mulheres, de
sexo bom de fornicar, de braço bom de trabalhar, de ventre fecundo para
prenhar. A vontade mais veemente daqueles heróis d’além-mar era exercerem-se
sobre aquela gente vivente como seus duros senhores. Sua vocação era a de
autoridades de mando e cutelo sobre bichos e matos e gentes, nas imensidades de
terras de que iam se apropriando em nome de Deus e da Lei.
O contraste não podia ser maior, nem mais
infranqueável, em incompreensão recíproca. Nada que os índios tinham ou faziam
foi visto com qualquer apreço, senão eles próprios, como objeto diverso de gozo
e como fazedores do que não entendiam, produtores do que não consumiam. O
invasor, ao contrário, vinha com as mãos cheias e as naus abarrotadas de
machados, facas, facões, canivetes, tesouras, espelhos e, também, miçangas
cristalizadas em cores opalinas. Quanto índio se desembestou, enlouquecido,
contra outros índios e até contra seu próprio povo, por amor dessas
preciosidades! Não podendo produzi-las, tiveram de encontrar e sofrer todos os
modos de pagar seus preços, na medida em que elas se tornaram indispensáveis.
Elas eram, em essência, a mercadoria que integrava o mundo índio com o mercado,
com a potência prodigiosa de tudo subverter. Assim se desfez, uniformizado, o
recém-descoberto Paraíso Perdido. (...)
Ideologia nenhuma, antes nem depois, foi tão
convincente para quem exercia a hegemonia, nem tão inelutável para quem a
sofria, escravo ou vassalo. Desapossados de suas terras, escravizados em seus
corpos, convertidos em bens semoventes para os usos que o senhor lhes desse,
eles eram também despojados de sua alma. Isso se alcançava através da conversão
que invadia e avassalava sua própria consciência, fazendo-os verem-se a si
mesmos como a pobre humanidade gentílica e pecadora que, não podendo salvar-se
neste vale de lágrimas, só podia esperar, através da virtude, a compensação
vicária de uma eternidade de louvor à glória de Deus no Paraíso. Tal é a força
dessa ideologia que ainda hoje ela impera, sobranceira. Faz a cabeça do
senhorio classista convencido de que orienta e civiliza seus serviçais,
forçando-os a superar sua preguiça inata para viverem vidas mais fecundas e
mais lucrativas. Faz, também, a cabeça dos oprimidos, que aprendem a ver a
ordem social como sagrada e seu papel nela prescrito de criaturas de Deus em
provação, a caminho da vida eterna. Essas linhas de formação correspondem, no
lado nórdico, à formação de um povo livre, dono do seu destino, que engloba
toda a cidadania branca. No nosso sul, o que se engendra é uma elite de
senhores da terra e de mandantes civis e militares, montados sobre a massa de
uma subumanidade oprimida, a que não se reconhece nenhum direito.”
“No Brasil, de índios e negros, a obra
colonial de Portugal foi também radical. Seu produto verdadeiro não foram os
ouros afanosamente buscados e achados, nem as mercadorias produzidas e
exportadas. Nem mesmo o que tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo.
Seu produto real foi um povo-nação, aqui plasmado principalmente pela
mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em
flor, à espera do seu destino. Claro destino, singelo, de simplesmente ser,
entre os povos, e de existir para si mesmos.
Nada é mais continuado, tampouco é tão
permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena
e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para
lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra.
Desmontam morrarias incomensuráveis, na busca
de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões.
Tudo, nos séculos, transformou-se
incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma,
exercendo sua interminável hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios
novos, super-homogêneos e solidários entre si, numa férrea união superarmada e a
tudo predisposta para manter o povo gemendo e produzindo. Não o que querem e
precisam, mas o que lhes mandam produzir, na forma que impõem, indiferentes a
seu destino.
Não alcançam, aqui, nem mesmo a façanha menor
de gerar uma prosperidade generalizável à massa trabalhadora, tal como se
conseguiu, sob os mesmos regimes, em outras áreas. Menos êxito teve, ainda, em
seus esforços por integrar-se na civilização industrial. Hoje, seu desígnio é
forçar-nos à marginalidade na civilização que está emergindo.”
“Nenhum colono pôs jamais em dúvida a
utilidade da mão-de-obra indígena, embora preferisse a escravatura negra para a
produção mercantil de exportação. O índio era tido, ao contrário, como um
trabalhador ideal para transportar cargas ou pessoas por terras e por águas,
para o cultivo de gêneros e o preparo de alimento, para a caça e a pesca. Seu
papel foi também preponderante nas guerras aos outros índios e aos negros
quilombolas.
A documentação colonial destaca, por igual,
as aptidões dos índios para ofícios artesanais, como carpinteiros, marceneiros,
serralheiros, oleiros. Nas missões jesuíticas tiveram oportunidade de se
fazerem tipógrafos, artistas plásticos, músicos e escritores.
A função básica da indiada cativa foi, porém,
a de mão-de-obra na produção de subsistência. Para isso eram caçados nos matos
e engajados, na condição de escravos, índios legalmente livres, mas apropriados
por seus senhores através de toda sorte de vivências, licenças e subterfúgios.
A rigor, apesar da copiosíssima legislação
garantidora da liberdade dos índios, se pode afirmar que o único requisito
indispensável para que o índio fosse escravizado era ser, ainda, um índio
livre. Mesmo os já incorporados à vida colonial – como ocorreu com os
recolhidos às missões – inúmeras vezes foram assaltados e acossados.
Milhares de índios foram incorporados por
essa via à sociedade colonial. Incorporados não para se integrarem nela na
qualidade de membros, mas para serem desgastados até a morte, servindo como
bestas de carga a quem deles se apropriava. Assim foi ao longo dos séculos, uma
vez que cada frente de expansão que se abria sobre uma área nova, deparando lá
com tribos arredias, fazia delas imediatamente um manancial de trabalhadores
cativos e de mulheres capturadas para o trabalho agrícola, para a gestação de
crianças e para o cativeiro doméstico.
Custando uma quinta parte do preço de um
negro importado, o índio cativo se converteu no escravo dos pobres, numa
sociedade em que os europeus deixaram de fazer qualquer trabalho manual. Toda
tarefa cansativa, fora do eito privilegiado da economia de exportação, que
cabia aos negros, recaía sobre o índio. O apresamento sempre foi tido como
prática louvável e até mesmo como técnica de conversão.
O apoio da Coroa aos jesuítas, aos seus
esforços por regulamentar o cativeiro dos índios, não se fundava sempre nas
razões religiosas e morais que alegava. Tinha base, de fato, no interesse da
administração. Com efeito, as aldeias missionárias eram concentrações de gente
recrutável e disponível a qualquer tempo, a custo nulo para as guerras aos
índios hostis, ao invasor estrangeiro e aos negros alçados. Era também uma
importante fonte de provimento de gêneros a uma população famélica, porque se
ocupava fundamentalmente da produção de gêneros alimentícios. Os engenhos só
cuidavam das mercadorias de exportação. A concentração de índios nas missões
coincidiu também, muitas vezes, com os interesses dos escravizadores que, num
só ataque, faziam farta colheita de cativos.
A contradição entre os propósitos políticos da
Coroa e dos jesuítas, de um lado, e o imediatismo dos traficantes de índios, do
outro, não se resolveu nunca por uma decisão real pela liberdade ou pelo
cativeiro. A legislação que regula a matéria é a mais contraditória e hipócrita
que se possa encontrar. Decreta dezenas de vezes guerra justa contra índios
tidos como culpados de grandes agravos ou simplesmente hostis para, a seguir,
coibi-las e, depois, tornar a autorizá-las, num ciclo sem fim de iniquidade e
falsidade.
Os atos administrativos que regiam a
escravidão dos índios são igualmente um vai-e-vem de engodos e chicanas que,
proibindo o cativeiro, de fato o instituíam. O índio podia ser legalmente
escravizado porque aprisionado numa guerra justa; ou porque obtido num justo
resgate; ou porque capturado num ataque autorizado; ou porque libertado do
cativeiro de alguma tribo que ameaçava comê-lo; ou ainda porque compunha um
lote de que se pagara o quinto ao governo local.”
Chegaram finalmente os missionários e, não
podendo contrastar o sentimento geral [em favor da escravização indígena],
pactuaram com ele. Por uma dessas capitulações de consciência, em que os
jesuítas são exímios, acharam meio de entender que “quanto mais larga fosse a
porta dos cativeiros lícitos, tanto mais escravos entrariam na Igreja e se
poriam a caminho da salvação” (Padre Antônio Vieira, Resposta aos Capítulos,
25). Assim, concordando com a prática da escravidão, acompanhavam as tropas e,
como árbitros, decidiam da justiça das presas. Nessa concessão estava a ruína
da sua obra e, o que mais foi, também da sua fama. Ninguém jamais os livrará da
pecha de haverem diretamente concorrido para a destruição da raça infeliz, que
pretendiam salvar (João Lúcio d’Azevedo, Os jesuítas
no Grão‐Pará, suas
missões e a colonização)”.
Pior, ainda, que os jesuítas foram os outros
missionários, uma vez que nenhum deles jamais entrou em qualquer conflito com
quem quer que fosse por manifestar indignação contra o extermínio ou cativeiro
dos índios. Mais ainda que os jesuítas, os curas regulares foram acusados
reiteradamente de cobiça vil, chegando alguns a serem disciplinados e punidos
pelo governo colonial pelo abuso com que exploravam os índios que caíam em suas
mãos.
“Apesar do seu papel como agente cultural ter
sido mais passivo que ativo, o negro teve uma importância crucial, tanto por
sua presença como a massa trabalhadora que produziu quase tudo que aqui se fez,
como por sua introdução sorrateira mas tenaz e continuada, que remarcou o
amálgama racial e cultural brasileiro com suas cores mais fortes.
Os negros do Brasil, trazidos principalmente
da costa ocidental da África, foram capturados meio ao acaso nas centenas de
povos tribais que falavam dialetos e línguas não inteligíveis uns aos outros. A
África era, então, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa Babel de
línguas. Embora mais homogêneos no plano da cultura, os africanos variavam
também largamente nessa esfera. Tudo isso fazia com que a uniformidade racial
não correspondesse a uma unidade linguístico-cultural, que ensejasse uma unificação,
quando os negros se encontraram submetidos todos à escravidão. A própria
religião, que hoje, após ser trabalhada por gerações e gerações, constituiu-se
uma expressão da consciência negra, em lugar de unificá-los, então, os desunia.
Foi até utilizada como fator de discórdia, segundo confessa o conde dos Arcos.
A diversidade linguística e cultural dos
contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades
recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar a concentração de
escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos
navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o
patrimônio cultural africano.
Encontrando-se dispersos na terra nova, ao
lado de outros escravos, seus iguais na cor e na condição servil, mas
diferentes na língua, na identificação tribal e frequentemente hostis pelos
referidos conflitos de origem, os negros foram compelidos a incorporar-se
passivamente no universo cultural da nova sociedade. Dão, apesar de
circunstâncias tão adversas, um passo adiante dos outros povoadores ao aprender
o português com que os capatazes lhes gritavam e que, mais tarde, utilizariam
para comunicar-se entre si. Acabaram conseguindo aportuguesar o Brasil, além de
influenciar de múltiplas maneiras as áreas culturais onde mais se concentraram,
que foram o nordeste açucareiro e as zonas de mineração do centro do país.
Hoje, aquelas populações guardam uma flagrante feição africana na cor da pele,
nos grossos lábios e nos narigões fornidos, bem como em cadências e ritmos e
nos sentimentos especiais de cor e de gosto.
Nos dois casos, o engenho e a mina, os negros
escravos se viram incorporados compulsoriamente a comunidades atípicas, porque
não estavam destinados a atender às necessidades de sua população, mas sim aos
desígnios venais do senhor. Nelas, à medida que eram desgastados para produzir
o que não consumiam, iam sendo radicalmente deculturados pela erradicação de
sua cultura africana. Simultaneamente, vão se aculturando nos modos brasileiros
de ser e de fazer, tal como eles eram representados no universo cultural
simplificado dos engenhos e das minas. Têm acesso, desse modo, a um corpo de
elementos adaptativos, associativos e ideológicos oriundo daquela protocélula
étnica tupi que se consentiu sobreviver nas empresas, para o exercício de
funções extraprodutivas.
Concentrando-se em grandes massas nas áreas
de atividade mercantil mais intensa, onde o índio escasseava cada vez mais, o
negro exerceria um papel decisivo na formação da sociedade local. Seria, por
excelência, o agente de europeização que difundiria a língua do colonizador e
que ensinaria aos escravos recém-chegados as técnicas de trabalho, as normas e
valores próprios da subcultura a que se via incorporado. Consegue, ainda assim,
exercer influência, seja emprestando dengues ao falar lusitano, seja
impregnando todo o seu contexto com o pouco que pôde preservar da herança
cultural africana.
Essa parca herança africana – meio cultural e
meio racial –, associada às crenças indígenas, emprestaria entretanto à cultura
brasileira, no plano ideológico, uma singular fisionomia cultural. Nessa esfera
é que se destaca, por exemplo, um catolicismo popular muito mais discrepante
que qualquer das heresias cristãs tão perseguidas em Portugal.”
Não pude citar tudo que gostaria (ou, mais bem dizendo, tudo que necessitaria), por questões de espaço. Em “O Povo Brasileiro” tive a mesma dificuldade de outras obras (“A Era dos Extremos” de Eric J. Hobsbawm e “João Goulart: uma biografia”, de Jorge Ferreira), em que havia tanto a citar que descaracterizaria uma postagem de um blog. Porém, diferentemente do que fiz nestes outros dois casos, resolvi cortar na carne e deixar pra trás trechos talvez tão importantes quanto os que acabaram sendo citados nas postagens. De toda forma, ao menos algumas partes deles puderam vir pra cá: eram demasiado preciosos para que ficassem escondidos.
ResponderExcluirDentre outros, cito, por exemplo, o fenomenal capítulo “Razões desencontradas” que acabou não sendo incluído aqui.
De qualquer modo, fica a indicação (ou demanda, ou súplica): a leitura deste livro é essencial. Em sua integralidade.
Muito obrigada por seu empenho, foi-me muito útil. Esse livro deveria ser lido por todos os brasileiros, princialmente pelos negros e índios, para que saibam de sua importância para o progresso do Brasil e de como são injustiçados ainda hoje.
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