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domingo, 3 de novembro de 2013

Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo – Mário Magalhães

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-2170-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 738


“Em tempos de guerra, mentira é como terra.”

 

 

“Um dos mais populares bolcheviques, Nikolai Bukhárin definiu a Rússia soviética como “o primeiro gigantesco laboratório onde se forma o futuro da humanidade”.”

 

 

“O PCB interpretou o confronto de 1932 como uma escaramuça da elite sem mocinhos.”

 

 

“Os comunistas ostentavam a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, arrancada do atraso secular e dos destroços da guerra civil, como exemplo do que o planejamento estatal da economia poderia produzir – mais tarde ficaria claro o custo humano da coletivização forçada do campo e da industrialização acelerada. Contavam histórias de heroísmo: em agosto de 1931, o estivador Herculano de Souza fora baleado pela polícia em um comício do Socorro Vermelho na cidade portuária de Santos, no litoral paulista.

Homenageavam os operários Sacco e Vanzetti, executados na cadeira elétrica dos Estados Unidos. Ferido, Herculano caiu nos braços da escritora e militante comunista Patrícia Galvão. Antes de morrer, ele exclamou:

“Continue o comício! Continue o comício!”

O comício continuou, e Pagu pediu aos presentes para cantar A Internacional. A cavalaria invadiu a praça e a prendeu.”

 

 

“Os comícios que preocupavam Marighella em 1934 atraíam cada vez mais gente. O “foguetão extremista” foi arremessado sobre um deles, da Ação Integralista Brasileira (AIB), versão nacional do fascismo assentada em 1932. Seu líder, Plínio Salgado, deslumbrara-se com o fascio ao visitar a Itália. O chefe das milícias, o germanófilo Gustavo Barroso, apregoava vulgaridades antissemitas. Eles vestiram camisas verdes (os fascistas, pretas) e adotaram a letra grega sigma como emblema (os nazistas, a suástica). Saudavam com o tupi “anauê” (na Alemanha, “heil, Hitler”) e estendiam o braço para o alto (na Itália, à romana, na horizontal). Ultranacionalistas, adotaram a divisa “Deus, Pátria e Família”.

Enxergavam em comunistas e judeus uma coalizão perversa. Extasiaram-se quando o governo brasileiro deportou, em outubro de 1935, a tecelã judia Genny Gleiser, nascida na Bessarábia. Portuários franceses a resgataram e a salvaram do terror. Antiliberais, os integralistas se identificavam com o liberalismo na defesa da propriedade privada. Compartilhavam com o governo a aversão ao comunismo. Mobilizaram 400 mil aderentes em 1.123 núcleos. A posteridade os lembraria como fanfarrões, janotas envaidecidos com suas paradas burlescas. Para a geração do moço Marighella, aparentava uma ameaça do naipe de Hitler e Mussolini.”

 

 

“Afiançado pelas Forças Armadas, Getúlio Vargas deu um golpe e instaurou o Estado Novo. Um colégio eleitoral restrito promulgou a Constituição de 1934 – em 1933, votaram privilegiados 3% dos brasileiros. Os constituintes transformaram o chefe do governo provisório em presidente constitucional sem o submeter ao sufrágio popular. Seria ainda pior: em 1937, as eleições foram canceladas e a Justiça Eleitoral, extinta. A Carta de 1934 foi substituída pela Polaca, assim apelidada porque se inspirava na Constituição do falecido ditador polonês Jósef Pilsudski.

Getúlio se fez ditador sem Legislativo, com o Judiciário manietado pelas cartas marcadas do TSM, partidos banidos, interventores nos estados, polícia sem limites, greves proibidas e sindicatos atrelados ao Ministério do Trabalho. O pretexto para a farra, o “Plano Cohen”, não passara de falsificação. Tratava-se de um estudo datilografado na serie da AIB pelo chefe do seu serviço secreto Olímpio Mourão Filho – que se descrevia como uma “vaca fardada”.”

 

 

“A controvérsia sobre o caráter ideológico de Getúlio, um pragmático, viveria mais que o século. Em 1929, ele interpretou sua diretriz no governo do Rio Grande do Sul: “Assemelha-se ao direito corporativo ou organização das classes promovido pelo regime fascista no período de renovação criadora que a Itália atravessa”. Em junho de 1940, reverenciou os alemães ao argumentar que os povos “fortes têm direito a buscar um lugar ao sol”. Um ano mais tarde, telegrafou a Hitler cumprimentando-o pelo aniversário.

O PCB festejou o fiasco do ataque integralista ao palácio Guanabara em maio de 1938, no Rio. A política de aliança exprimia a determinação da Internacional de despejar a munição no nazifascismo, suando para impedir que o Eixo cooptasse Getúlio. A orientação das sessões nacionais se subordinava à prioridade de defesa da União Soviética, mesmo que isso implicasse compor com uma ditadura anticomunista. O cerco contra o único Estado socialista do planeta apertou. Alemanha e Japão brindaram, em 1936, a um pacto anti-Komintern, ao qual a Itália se uniu. Em setembro de 1938, Hitler, Mussolini, o britânico Neville Chamberlain e o francês Edouard Daladier se acertaram em Monique. As duas maiores democracias liberais europeias aceitaram entregar territórios da Tchecoslováquia aos nazistas, que já haviam abocanhado a Áustria. Os soviéticos se inquietaram.”

 

 

“A engrenagem do anticomunismo se mantinha robusta, e o seu motor era a Igreja. Em Salvador, levaram a imagem do Senhor do Bonfim para uma concentração contra o partido. Uma publicação católica asseverava que os vermelhos se regozijavam currando freiras. No município pernambucano de Triunfo, o padre avistou uma caravana comunista e ordenou que os sinos da matriz dobrassem finados. Em Catende, no mesmo estado, uma procissão com uma boiada à frente atravessou de propósito uma manifestação do PCB. O ex-sargento Gregório Bezerra berrou do palanque:

“Tenham calma, companheiros! Abram alas e deixem passar a Idade Média”.”

 

 

“No capítulo inicial, a 16 de março de 1946, a Tribuna Popular publicou a reportagem “Prestes em sabatina com funcionários da justiça”. Indagaram o senador “sobre qual a posição dos comunistas se o Brasil acompanhasse qualquer nação imperialista que declarasse guerra à União Soviética”. O secretário-geral não hesitou:

Faríamos como o povo da Resistência francesa, o povo italiano, que se ergueram contra Pétain e Mussolini. Combateríamos uma guerra imperialista contra a União Soviética e empunharíamos armas para fazer a resistência em nossa pátria contra um governo desses, retrógrados, que quisesse a volta do fascismo. Mas acredito que nenhum governo tentará levar o povo brasileiro contra o povo soviético, que luta pelo progresso e bem-estar dos povos. Se algum governo cometesse este crime, nós comunistas lutaríamos pela transformação da guerra imperialista em guerra de libertação nacional.”

 

 

“Nem com o reforço dos comunistas Juscelino atraiu muito mais de um terço dos votos: 36%. Para sua sorte, a regra estabelecia turno único. JK somou 466.956 eleitores a mais que Juarez Távora, da UDN, com 30%. Como o pleito não batia chapa contra chapa, era possível escolher para vice um antagonista do chefe do Executivo. Não foi o que ocorreu em 1955, quando Jango sobrepujou o udenista Milton Campos por 203.670 votos. As diferenças estreitas animaram nova ofensiva golpista. Carlos Lacerda já tentara adiar a eleição. O mais anticomunistas dos ex-comunistas divulgou uma carta de um legislador argentino, Antonio Brandi, a João Goulart. Entre outros desvarios, prescrevia a formação de brigadas de choque operárias. A tal Carta Brandi não passava de falsificação, como julgaram os tribunais. A seguir, os golpistas buscaram impugnar os candidatos. Alegaram que JK e Jango incorriam em crime por ter ao lado uma agremiação proibida (comunista). A justiça autorizou as inscrições, porém vetou o Movimento Nacional Popular Trabalhista, a fachada dos comunistas na campanha. Depois de 3 de outubro, os derrotados voltaram à carga, sustentando que o PCB determinara o resultado, que por isso seria ilegítimo.

Em 1945, com um colégio eleitoral menor, contaram-se 569 mil cédulas, ou 10% para o partido. É provável que, em 1955, enfraquecido, o PCB não tenha decidido o embate presidencial, mas tenha sacramentado o triunfo de Goulart. Como a manobra não prosperou, os udenistas reivindicaram a anulação porque os vitoriosos não tinham obtido maioria absoluta, desempenho que a lei não requeria. Com outro insucesso, apelaram ao recurso empregado no Brasil desde a proclamação da República em 1989, o golpe militar.

No dia 1º de novembro, o coronel Jurandir de Bizarria Mamede discursou no enterro do general Canrobert Pereira da Costa. Sugeriu cancelar a posse de JK, marcada para janeiro de 1956. Café Filho sofreu uma crise cardíaca, e o presidente da Câmara, Carlos Luz, ocupou seu lugar. O ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott, quis punir Bizarria Mamede por indisciplina, porém, o presidente em exercício não aceitou. A recusa implicava a queda do general Lott, passo final para bloquear Juscelino. Em 11 de novembro de 1955, o ministro colocou os blindados nas ruas do Rio, depôs Carlos Luz, e a Câmara aprovou a entrega provisória do governo ao vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Marighella se defrontara com o senador catarinense na Constituinte de 1946, mas em 1955 se aliara pela submissão às urnas.

Lott comandou um golpe sui generis para os padrões nacionais, com conteúdo de contragolpe legalista para que prevalecesse a vontade dos eleitores.”

 

 

“Khruschóv arrematou:

“Quando falamos em luta armada, falamos de luta de grandes massas, e não de ações sectárias de alguns comunistas. Porque isto seria uma aventura. A luta armada só de comunistas é sempre uma aventura. Realizar o trabalho de massas é a melhor forma de preparar a insurreição. Não se chega à luta armada sem se passar pelas lutas de massas”.”

 

 

“Enquanto o PCB se entretinha com as idas e vindas do inquilino do Planalto, quem aspirava despejá-lo perseverava. Os militares que malograram em 1954, 1955 e 1961 ensaiavam novo coup de main. Em março de 1963, o general Olímpio Mourão Filho, arraigado integralista, já traçara no papel um roteiro de golpe. Em setembro e outubro daquele ano, foram descobertos ao menos três arsenais de opositores, um deles com dez metralhadoras Thompson, munição para 12 mil tiros e cinquenta granadas. Também se movimentavam conspiradores mais graúdos. No dia 30 de julho de 1962, dois homens haviam conversado no salão da Casa Branca sobre o destino no Brasil. O presidente John Kennedy e seu embaixador no Rio de Janeiro, Lincoln Gordon, trataram do financiamento oculto de 8 milhões de dólares a candidatos que em outubro enfrentariam nas urnas os correligionários de Jango. A dinheirama, ao lado da qual o ouro de Moscou configurava ninharia, cooperou para manter Goulart minoritário – seu PTB saltou de 66 para 104 deputados federais, mas UDN e PSD amealharam 54% das cadeiras. Philip Agee, agente da CIA, estimou que o agrado a candidatos pode ter alcançado 20 milhões de dólares – 149 milhões em 2012, muito mais do que todos os gastos oficiais da campanha vitoriosa à presidência em 2010.”

 

 

“O descontrole dos preços vitaminava demonstrações como a da praça da Sé, mas a popularidade de Jango não era anêmica. Foi o que constatou pesquisa de opinião em oito capitais, de 9 a 26 de março de 1964. Seis em cada dez entrevistados pelo Ibope concordaram com a desapropriação de terras às margens de rodovias, contra a reprovação de 1,9%. Porém, 76% rejeitaram a legalização do PCB – o anticomunismo não pelejara em vão. À indagação sobre se votariam em Jango se ele concorresse, a maioria respondeu positivo em Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre. O sim perdeu, mas oscilou de 39 a 41% em Belho Horizonte e Curitiba. Contribuíram para o desempenho viçoso novidades como o 13º salário, instituído em 1962, coroando a campanha na qual o deputado Marighella se batera. Sem reeleição, entre sete opções, Juscelino Kubitschek venceu em quatro capitais e nas outras foi segundo. Só no Rio Carlos Lacerda passou dos 20%. O governador mineiro, Magalhães Pinto, mal beirou os 6% em Belo Horizonte.”

 

 

“Consumava-se a humilhação suprema de Prestes e do PCB. Em 1924, o capitão tinha 26 anos, havia troteado sua coluna e estabelecera sua legenda; em 1935, aos 37, comandara uma tentativa de revolução; aos 66, em 1964, implorava para resistirem. No levante comunista, o partido “vanguarda da classe operária” fora esmagado, mas pelejara – agora, nem isso; em 1961, a crise encontrou-o perplexo, contudo o desvario janista surpreendera; três anos depois, a gestão do coup de force saltou à vista, e mesmo assim o PCB se prostrou.”

 

 

“Nos estertores da quarta-feira, João Goulart já se conformara com a queda. Com seu governo desenganado, ele viajou de Brasília para Porto Alegre, onde o Avro da FAB pousou pelas três e meia da madrugada de 2 de abril. Disposto a reeditar 1961, Brizola reivindicou sua nomeação para o Ministério da Justiça e a do general Ladário Telles, removido na véspera para o comando do III Exército, para a pasta da Guerra – em vez de envergar o uniforme de campanha, o ministro Jair Dantas Ribeiro, internado no Rio, não tirava o pijama de enfermo. Goulart não atendeu ao cunhado. E foi abordado pelo general Ladário, que um dia antes se mostrara desesperançoso aos sargentos na Vila Militar carioca. Ajudante-de-ordens do presidente, o capitão Ernani Corrêa de Azambuja testemunhou o diálogo dramático:

“Se nós iniciarmos a reação, isso se alastra, e o Rio Grande do Sul se torna uma nova legalidade”, vaticinou Ladário.

Jango se precaveu: “Uma pergunta só: vai correr sangue?”.

“Ah, vai!”, disse o general com sinceridade.

“Então eu não concordo”, encerrou Goulart.

A Câmara acabara de encenar uma pantomina, declarando vaga a presidência e empossando no cargo o deputado Ranieri Mazzilli. Eram golpistas e motivos demais: militares contrariados com a indisciplina nos quartéis; latifundiários com a reforma agrária; empresários com a contestação dos assalariados e o espectro de uma “república sindicalista”; o capital estrangeiro com as restrições à remessa de lucros para o exterior; e os Estados Unidos com a ameaça de uma nova China. O comunismo configurava uma obsessão, porém, o putsch focou no presidente e seu PTB.

A despeito do ódio de certos oligarcas, Goulart seria renegado na posteridade também por segmentos da esquerda. Brizola diria que, em 1964, seu comportamento foi o de quem renunciou. Marighella escreveu: “Estávamos confiados em que o governo resistiria. Nem ao menos denunciamos insistentemente o golpe de direita”. Mário Alves comentou: “Como já ocorrera em 1964 e 1961, o setor nacionalista da burguesia não se dispôs a enfrentar uma eventualidade de uma guerra civil, temendo que ela se convertesse em uma revolução popular”. A leitura marxista podia ter fundamento, mas o coração de Jango influiu: ele não admitia irmão sangrando irmão.”

 

 

“A obsessão com o espectro subversivo estimulou um burocrata de Brasília a interditar o consumo de vodca (o Leste Europeu destilava as supimpas) e o Dops carioca a interrogar sobre o grego Sófocles, tomando-o como um dramaturgo vivo, e não falecido quatro séculos antes de Cristo.”

 

 

“Para gáudio da Casa Branca, Castelo Branco amenizou as restrições à remessa de lucros ao exterior e anulou a encampação das refinarias particulares de petróleo, cancelando medidas de Jango. Com reajustes salariais que esqueciam a inflação, o governo desenvolveu o que os seus economistas difundiam como austeridade e a oposição criticava como arrocho. A Voz Operária, órgão clandestino do PCB calculou: com o salário mínimo de 1964, trabalhavam-se sete horas para comprar um quilo de manteiga; em setembro de 1965, onze horas. Nem por isso pululavam greves: com a intervenção oficial em 433 entidades, o movimento sindical hibernava.”

 

 

“Em “Rondó da liberdade”, poema político publicado em 1966, Marighella conclamou:

É preciso não ter medo

é preciso ter a coragem de dizer.

 

Há os que têm vocação para escravo,

mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Foi o formato em versos para sua prosa inflamável de Por que resisti à prisão, livro de 1965: “Os brasileiros estão diante de uma alternativa. Ou resistem à situação criada com o golpe de 1º de abril ou se conformam com ela. O conformismo é a morte”.”

 

 

“Marighella vaticinou: “A ditadura surgiu da violência empregada pelos golpistas contra a nação, e não pode esperar menos do que a violência por parte do povo”.”

 

 

“O Agrupamento divulgou seus princípios: “São três: o primeiro é que o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença para praticar atos revolucionários; e o terceiro é que só temos compromisso com a revolução”. Marighella simplificou: “O conceito teórico pelo qual nos guiamos é o de que a ação faz a vanguarda”. E encerrou a conversa: “A mesa das discussões hoje em dia já não une os revolucionários. O que une os revolucionários brasileiros é desencadear a ação, e a ação é a guerrilha”.”

 

 

“No opúsculo A crise brasileira, de 1966, Marighella estimulou “a aliança com os católicos”. Ele acompanhara a pregação do frei Carlos Josaphat, editor do jornal Brasil Urgente. Em 1963, o dominicano escrevera no periódico que “a concentração das riquezas [...], lei inexorável do capitalismo, [...] é abominável e diabólica”. Agora, Marighella aprendia que a encíclica Populorum progressio, emitida pelo papa Paulo VI em março de 1967, admitia a “insurreição revolucionária”, “em caso de tirania evidente e prolongada, que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa”. São Tomás de Aquino, teólogo dominicano do século XII, legitimara o direito de resistir ao governante injusto. Os sacerdotes já tinham um mártir: o padre Camilo Torres, que aderiu à guerrilha socialista na Colômbia em nome do amor ao próximo e morreu combatendo em 1966.

Pouco importava a Marighella que os frades não referendassem as súmulas do socialismo científico. “Nós levávamos muito mais a sério Marx que muita gente do Partido Comunista, porque pelo menos nos dávamos ao trabalho de ler”, cutucou frei Oswaldo. “Descobria-se que não era necessário ser marxista. Poderia ser um bom católico e estar a favor da revolução social.” Que virada em relação à Inquisição medieval, encabeçadas por dominicanos, os “cães do Senhor” em latim, entre os quais o inquisidor-geral, Tomás Torquemada. Marighella pensava na Igreja contemporânea, não nas fogueiras do passado.”

 

 

“Se a proibição imposta pelo governo impediu certos órgãos jornalísticos de cumprir o dever de informar a ação da ALN contra a vinda do governador de Nova York, Nelson Rockefeller ao Brasil, muitos veículos nem chiaram, e outros, mesmo sem o veto, omitiriam o episódio por iniciativa própria, tal seu fervor bajulatório pela ditadura.”

 

 

“Marighella advertiria: “Na luta revolucionária devemos evitar a distorção dessa finalidade política, impedindo que a guerrilha urbana ou rural se transforme em instrumento de banditismo e que nos juntemos aos bandidos ou empreguemos seus métodos. (...) Os atos terroristas revolucionários e a sabotagem não visam inquietar, amedrontar ou matar o povo. Eles devem ser utilizados como tática para combater a ditadura. (...) Ao terrorismo que a ditadura emprega contra o povo nós contrapomos o terrorismo revolucionário”. E prossegue em seu Minimanual do guerrilheiro urbano: “Quanto ao sistema de transporte e comunicações do inimigo (...) o único cuidado (ao fulminá-lo) é não causar mortes e danos fatais aos passageiros”.”

 

 

“Com o pretexto de debelar a herança inflacionária, o governo corroera a remuneração pelos trabalhadores. O poder de compra do salário mínimo despencou 27% de 1964 para 1969. Além de anêmicos pela intervenção oficial, os sindicatos murcharam em número. Nenhum operário se arriscava a abrir faixa de protesto, para não ser demitido pelo patrão, processado pelo Estado, surrado pela polícia e, como aconteceu, torturado e morto. O arrocho tabelava com a pobreza: a mortalidade infantil estacionou, oscilando de 116 por mil bebês nascidos vivos, em 1965, para 115 em 1970. Até que a economia entorpecida despertou: de 1969 a 1973, vitaminou-se ao fabuloso ritmo médio anual de 11,4%. No dito “milagre econômico”, o bolo cresceria, mas poucos devorariam as fatias maiores. Ainda assim, a ditadura capitalizou as novas oportunidades de emprego e renda.”

 

 

“Em dezembro de 1979, ainda sob as nuvens da ditadura, os restos mortais de Marighella foram transferidos para Salvador. No cemitério Quinta dos Lázaros, centenas de velhos companheiros e camaradas se despediram. O arquiteto Oscar Niemeyer desenhou-o na lápide com um braço erguido, cinco balas no peito e a inscrição “Não tive tempo para ter medo”. O deputado cassado Fernando Sant’Anna leu uma mensagem de Jorge Amado:

Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo, da desrazão e da infâmia e desembarcas na aurora da Bahia, trazido em mãos de amor e de amizade. Aqui estas e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente. Aqui estas entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue.

Muitos haviam ficado pelo caminho.”

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