Editora: Globo Livros
ISBN: 978-85-2505-790-7
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 760
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Sinopse: No
centenário de um dos conflitos que marcou a história do século XX, a Globo
Livros lança “A Primeira Guerra Mundial”, considerado um dos melhores
lançamentos do ano em não ficção por publicações como The New York Times Book
Review, The Economist, Bloomberg Businessweek e The Globe and Mail. O livro
conquistou em 2014 o prestigiado Political Book Award, na categoria “Questões
Internacionais”.
Com descrições detalhadas, Macmillan analisa como a
Europa de 1900 foi de um clima de confiança no progresso e no futuro a um
conflito que mataria milhões de pessoas, sangraria as economias e acirraria as
rivalidades nacionais.
A autora se debruça sobre o período entre o início do
século 19 até o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono
austro-húngaro, para investigar as transformações políticas e tecnológicas, as
decisões de estado e os deslizes da natureza humana que resultaram na guerra.
Uma leitura fluída e prazerosa, “A Primeira Guerra Mundial” é uma obra de
referência, fundamental para compreender eventos que definiram os rumos do
século XX. A historiadora Margaret MacMillan é uma referência internacional nos
estudos sobre a Primeira Guerra e recebeu recentemente o Harbourfront Festival
Prize, prêmio concedido pelo International Festival of Authors (IFOA),
realizado em Toronto, no Canadá. A premiação já foi concedida outra renomada
autora canadense, a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura 2013, Alice Munro.
O texto resgata líderes políticos, diplomatas, militares,
banqueiros e, sobretudo, cabeças coroadas que à época ainda mantinham laços
familiares de longa data. E conta como todos – do impulsivo kaiser Wilhelm II
ao imperador da Áustria-Hungria Franz Joseph, do czar Nicolau II ao rei inglês
Edward VII – não conseguiram interromper a escalada de hostilidades. O amplo retrato
produzido pela autora não deixa de citar, também, personalidades que fizeram
alertas em favor da paz. Entre elas, o cientista Alfred Nobel, a escritora e
ativista Bertha von Suttner (a primeira mulher a receber o Prêmio Nobel da Paz)
e uma estrela em ascensão na política britânica: Winston Churchill.
Narrado com desenvoltura, o livro mantém o leitor
agarrado ao desenrolar da história, ligando os fios entre os acontecimentos e
revelando como decisões de alguns poucos poderosos podem determinar o destino
de um povo e de vários países. Íntima dos bastidores do poder, Madeleine
Albright, ex-secretária de Estado do governo Clinton, foi enfática ao opinar
sobre o trabalho de McMillan: “Este é um dos melhores livros que já li sobre as
causas da Primeira Guerra Mundial”.
“Guerra não é um acidente, é um resultado. Há que olhar para trás o mais
possível e perguntar: de quê?” (Elizabeth Bowen —Bowen’s Court)
“Também
recordamos a Grande Guerra por ser um enorme quebra-cabeça. Como conseguiu a
Europa impor tal castigo a si mesma e ao mundo? Há muitas explicações
possíveis; na verdade, tantas que é difícil escolher entre elas. Para começar,
a corrida armamentista, rígidos planos militares, rivalidade econômica, guerras
comerciais, o imperialismo com sua busca de colônias ou os sistemas de alianças
dividindo a Europa em campos antagônicos. Ideias e emoções muitas vezes
cruzaram fronteiras nacionais: o nacionalismo, com seus repulsivos cavaleiros
do ódio e desprezo pelos outros; medos de perdas ou revoluções, de terroristas
e anarquistas; esperanças de mudança e de um mundo melhor; exigências de honra
e virilidade mandando não recuar ou parecer fraco; ou Darwinismo Social, que
classificava sociedades como se fossem espécies e promovia uma crença não só na
evolução e no progresso, mas também na inevitabilidade da luta. E que dizer do
papel próprio de cada nação e de seus motivos? Das ambições das ascendentes
como a Alemanha e o Japão; dos temores das declinantes como a Inglaterra; da
vingança, no caso da França e da Rússia; ou da luta pela sobrevivência da
Áustria-Hungria? No cerne de cada nação, ainda as pressões internas: um novel
movimento trabalhista, por exemplo, ou forças abertamente revolucionárias;
exigências de voto para as mulheres ou de independência de nações submetidas;
ou conflitos entre as classes, entre os crentes e os anticlericais, ou entre
militares e civis. Como cada um desses vetores atuou no sentido de preservar a
longa paz da Europa ou de movê-la rumo à guerra?
Movimentos,
ideias, preconceitos, instituições, conflitos são todos, sem dúvida,
importantes. Todavia, ainda restam os indivíduos, no fim não muitos, que
tiveram de dizer “sim,” “em frente” e irromper a guerra, ou “não” e detê-la.
Alguns eram monarcas hereditários com grande poder – o Kaiser da Alemanha, o
Czar da Rússia e o Imperador da Áustria-Hungria; outros – o presidente da
França, os primeiros-ministros da Inglaterra e da Itália – engastados em
regimes constitucionais. Foi, em retrospecto, a tragédia da Europa e do mundo o
fato de nenhum dos personagens-chave em 1914 ser um grande e criativo líder com
coragem para enfrentar as pressões que conduziam ao conflito. De certa forma,
qualquer explicação de como eclodiu a Grande Guerra deve balancear as grandes
correntezas do passado com o papel dos seres humanos levados por ela, mas que
às vezes mudaram seu curso.
É
fácil erguer mãos para o céu e dizer que a Grande Guerra foi inevitável, mas
trata-se de ideia perigosa, especialmente em tempo como o nosso, que em alguns
aspectos, não em todos, parece aquele mundo sumido dos anos anteriores a 1914.
Nosso mundo enfrenta desafios semelhantes, alguns de ordem revolucionária e
ideológica, como o crescimento de religiões militantes e movimentos sociais de
protesto; outros advêm da tensão de nações em crescimento ou em declínio, como
a China e os Estados Unidos. Precisamos considerar seriamente como nascem as
guerras e como podemos preservar a paz. Nações se confrontam, como fizeram antes
de 1914, no que seus líderes imaginavam ser um jogo de blefes e contrablefes
que julgavam manter sob controle. Apesar disso, subitamente a Europa passou da
paz para a guerra, apenas nas cinco semanas que se seguiram ao assassinato do
Arquiduque. Em crises anteriores, tão graves como a de 1914, a Europa não
ultrapassou os limites. Seus líderes – e grande parcela de seus povos os apoiou
– preferiram resolver as questões e preservar a paz. O que aconteceu de forma
diferente em 1914?
—
Comecemos
imaginando uma paisagem com gente a caminhar. O solo, a vegetação, os morros,
os riachos todos são componentes importantes da Europa, desde a economia à
estrutura social; enquanto as brisas são as correntes de pensamento que
modelavam opiniões e pontos de vista europeus. Suponha que você é um dos
caminhantes. Terá opções diante de si. O tempo está bom, embora possa notar
algumas nuvens escuras no céu. O caminho à sua frente é fácil pelo terreno
plano. Você sabe que deve continuar caminhando porque o exercício faz bem e, afinal,
você quer chegar a um destino em segurança. Também sabe que, à medida que
avança, deve tomar certo cuidado. Pode ser que apareçam animais inamistosos,
que haja cursos de água a atravessar e alguma encosta íngreme. Mesmo assim, não
passa por sua cabeça esbarrar num deles de maneira fatal. Você é um andarilho
experiente e muito sensato.
Em
1914, entanto, a Europa desabou do penhasco e mergulhou em um conflito
catastrófico que iria matar milhões de seus homens, exaurir suas economias,
abalar e rebentar impérios e sociedades e solapar definitivamente o domínio
europeu do mundo. As fotografias de multidões aplaudindo nas grandes capitais
são enganosas. A eclosão da guerra pegou de surpresa a maioria dos europeus, e
sua reação inicial foi de espanto e choque. Tinham nascido e vivido acostumados
à paz. O século desde o fim das guerras napoleônicas fora o mais pacífico na
Europa desde o Império Romano. É verdade que guerras houvera, porém de natureza
colonial distante, como a dos zulus na África meridional, ou na periferia
europeia, como a Guerra da Crimeia, ou ainda, curtas e decisivas, como a Guerra
Franco-Prussiana.
O
solavanco final rumo à guerra só precisou de pouco mais de um mês, entre o
assassínio do arquiduque austríaco em Sarajevo, em 28 de junho, e a eclosão de
uma guerra geral europeia em 4 de agosto. No fim, as decisões cruciais daquelas
semanas que levaram a Europa à guerra foram tomadas por um grupo
surpreendentemente pequeno de homens (e eram todos homens). Para entender como
agiram, porém, devemos ir mais para trás e examinar as forças que os moldaram.
Precisamos compreender as sociedades e instituições das quais foram o produto.
Devemos tentar entender os valores e as ideias, as emoções e os preconceitos
que os enformaram quando olharam o mundo. Também devemos nos lembrar de que,
com uma ou duas exceções, mal faziam ideia de aonde estavam levando seus países
e o mundo. Nesse aspecto, estavam muito bem sintonizados com o tempo em que
viviam. Para a maioria dos europeus, uma guerra geral era algo impossível,
improvável ou fadada a terminar rapidamente.
Ao
tentarmos entender o sentido dos eventos do verão de 1914, devemos nos situar
no lugar daqueles que viveram um século atrás, antes de nos apressarmos a
distribuir culpas. Não podemos perguntar aos que decidiram o que tinham em
mente quando deram os passos rumo à destruição, mas podemos fazer uma ideia
bastante razoável consultando os arquivos da época e as memórias escritas
posteriormente. Algo que convém ficar bem claro é que os responsáveis pelas
escolhas sem dúvida pensaram muito nas crises anteriores e nos momentos que as
precederam, quando decisões foram tomadas ou evitadas.
Os
líderes russos, por exemplo, jamais haviam esquecido ou perdoado a anexação da
Bósnia e Herzegovina pelo Império Austro-Húngaro em 1908. Além disso, a Rússia
falhara ao não apoiar sua protegée, a Sérvia, quando este país
confrontou os austro-húngaros, e novamente nas Guerras Balcânicas em 1912-13.
Agora, a Áustria-Hungria ameaçava destruir a Sérvia. O que significaria para a
Rússia e seu prestígio ficar assistindo mais uma vez sem nada fazer? Pois a
Alemanha não apoiara firmemente seus aliados austro-húngaros em confrontos
anteriores? Se nada fizesse dessa vez, não perderia seu único e indiscutível
aliado? O fato de graves crises anteriores entre potências envolvendo colônias
ou os Balcãs terem sido solucionadas pacificamente acrescentou outro fator às
estimativas de 1914. A ameaça de guerra já fora utilizada, mas, no fim, houve
pressões exercidas por terceiros, fizeram-se concessões, conferências foram
convocadas com sucesso para resolver questões de grande perigo. Andar pelo fio
da navalha dera resultado. O mesmo processo certamente começaria a dar certo em
1914. Só que dessa vez o equilibrismo à beira do precipício não funcionou. O
Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia, com apoio da Alemanha. A
Rússia decidiu apoiar a Sérvia e entrou em guerra contra a a Alemanha e a
Áustria-Hungria. A Alemanha atacou a França, aliada da Rússia, e a Inglaterra
veio em socorro de seus aliados. E assim passaram a barreira.
A
eclosão da guerra em 1914 não aconteceu sob céu azul. Nuvens acumularam-se ao
longo das duas décadas anteriores, e muitos europeus viam o fato com
desconforto. Imagens da iminência de tormentas, de barragens prontas para
rebentar e de avalanches a ponto de deslizar eram usuais na literatura da
época. Por outro lado, muitos líderes, tanto quanto cidadãos comuns,
acreditavam ser capazes de afastar o risco de conflitos e criar instituições
internacionais mais fortes e melhores para resolver pacificamente divergências
e tornar obsoleto o instrumento da guerra. Talvez os derradeiros anos de ouro
da Europa pré-guerra sejam imaginação de gerações posteriores, mas, mesmo na
época, a literatura continha imagens de raios de sol mundo afora e da
humanidade marchando para um futuro mais próspero e feliz.
Mui
pouca coisa é inevitável na história. A Europa não precisava ir à guerra em
1914; uma guerra geral poderia ter sido evitada até o último instante, em 4 de
agosto, quando finalmente a Inglaterra decidiu tomar parte. Olhando de hoje,
claro que podemos identificar as forças que tornavam a guerra mais provável: as
rivalidades por colônias, a competição econômica, os nacionalismos étnicos que
iam esfacelando os decadentes impérios Otomano e Austro-Húngaro e o crescimento
de uma opinião pública nacionalista a exercer novas pressões sobre os líderes
em prol de supostos direitos e interesses de suas nações.
Podem-se
ver, como perceberam os europeus naqueles dias, as tensões na ordem
internacional. A questão germânica, por exemplo. A criação da Alemanha, em
1871, de repente apresentou à Europa uma nova grande potência no centro do
continente. Seria a Alemanha o fulcro em torno do qual o resto da Europa
evoluiria ou a ameaça contra a qual se uniria? Como as potências de fora da
Europa – Japão e Estados Unidos em ascensão – se encaixariam num mundo dominado
pela Europa? O darwinismo social, filho bastardo do pensamento evolucionista e
primo do militarismo, alimentou a crença em uma competição entre as nações como
parte das leis da natureza, segundo as quais, no fim, sobreviveriam as mais
aptas. E provavelmente por meio de guerras. A admiração pelos militares criada
no século XIX, reconhecendo-os como a parte mais nobre da nação, e a disseminação
de valores militares pelas sociedades civis incentivaram a crença de que a
guerra era etapa necessária na grande luta pela sobrevivência e que, na
verdade, devia ser salutar para as sociedades afinando-as, por assim dizer.
A
ciência e a tecnologia, que trouxeram tantos benefícios para a humanidade no
século XIX, produziram também armas novas e mais terríveis. Rivalidades entre
nações estimularam uma corrida armamentista que, por sua vez, aprofundou
percepções de insegurança e aumentou o ímpeto dessa corrida. Nações buscavam
aliados para compensar suas fraquezas, e suas decisões ajudaram a levar a
Europa para perto da guerra. A França, que perdia a corrida demográfica para a
Alemanha, fez aliança com a Rússia, em parte para contar com seu gigantesco potencial
humano. Em troca, a Rússia conseguiu tecnologia e capital franceses. A aliança
franco-russa, porém, fez a Alemanha se sentir cercada. Aproximou-se do Império
Austro-Húngaro e, ao fazê-lo, encampou sua rivalidade com a Rússia nos Balcãs.
O fortalecimento naval pretendido pela Alemanha como forma de obrigar a
Inglaterra a manter uma posição amistosa convenceu esta não apenas de que era
necessário superar a Alemanha em força naval, mas também a abandonar sua
preferida indiferença em relação à Europa e se aproximar da França e da Rússia.
(...)
O
medo teve papel relevante nas posições adotadas pelas nações em relação às
outras e na aceitação por seus líderes e suas políticas da guerra como
instrumento de política. A Áustria-Hungria temia desaparecer como potência, a
menos que tomasse alguma medida a respeito do nacionalismo sul-eslavo dentro de
suas fronteiras, e isso exigia fazer algo a propósito da atração de uma Sérvia
sul-eslava e independente. A França temia sua vizinha Alemanha, mais forte
econômica e militarmente. Os alemães encaravam apreensivos o leste. A Rússia
desenvolvia-se rapidamente e se rearmava. Se a Alemanha não lutasse logo com a
Rússia, podia nunca mais ser capaz de fazê-lo. A Inglaterra tinha muito a
ganhar com a continuação da paz, mas temia, como sempre temera, que uma única
potência dominasse o Continente. Cada potência temia outras, mas temia também
seu próprio povo. Ideias socialistas tinham se disseminado pela Europa, e
partidos e sindicatos socialistas ameaçavam o poder das velhas classes
governantes. Seria o prenúncio de uma revolução violenta, como achavam muitos?
O nacionalismo étnico, da mesma forma, era uma força desagregadora na
Áustria-Hungria, mas também na Rússia e na Inglaterra, onde a questão
irlandesa, nos primeiros meses de 1914, foi, para o governo, uma preocupação
maior do que as relações exteriores. Poderia a guerra ser uma ponte para as
divisões internas, unindo o público em uma grande onda patriótica?”
“Por que as coisas saíram tão errado? Cientistas políticos podem dizer
que o fato de Alemanha e Inglaterra ficarem em lados opostos na Grande Guerra
foi premeditado. Foi o resultado do choque entre um poder global superior
sentindo que a supremacia lhe escapava e havia um desafiante que ascendia.
Raramente tais transições são administradas pacificamente. O poder dominante é
frequentemente arrogante, querendo dar lições ao resto do mundo sobre como
conduzir seus negócios e muitas vezes insensível aos temores e às preocupações
de potências menores. Tal poder, como era então a Inglaterra e hoje são os
Estados Unidos, inevitavelmente resiste às íntimas percepções de seu declínio,
e o que ascende fica impaciente para conseguir sua parcela do que está em
oferta, sejam colônias, comércio, recursos ou influência.
No
século XIX, a Inglaterra possuía o maior Império do globo, dominando os mares e
o comércio mundial. Talvez compreensivelmente, via com pouca simpatia os
anseios e as preocupações de outras nações. Como escreveu Winston Churchill, um
estadista com agudo senso de história, pouco antes da Grande Guerra:
Ficamos absortos em nós mesmos, enquanto outras
nações poderosas se vêm paralisadas por barbarismo ou guerra interna, uma total
desproporção na partilha de riquezas e dos negócios mundiais. Conseguimos tudo
o que queríamos em termos de território, e as exigências que fazemos para que
não atrapalhem o desfrute de nossas vastas e magníficas possessões,
conquistadas principalmente por meio de violência e em grande parte mantidas
pela força, muitas vezes parecem menos razoáveis para outros do que para nós.
Além
disso, a Inglaterra amiúde irritava outras potências europeias com sua
confiante presunção de superioridade como, por exemplo, diante das instituições
e da política do Continente, por sua relutância em preservar o Concerto da
Europa e pela forma como intervinha cuidadosamente em conflitos apenas quando
via maneira clara de tirar vantagem. Na disputa por colônias, os estadistas
ingleses costumavam alegar que estavam adquirindo mais territórios unicamente
para prover segurança ao que já tinham ou talvez por benevolência para com
povos súditos, enquanto outras nações eram motivadas apenas por ambição.
Em
contrapartida, a Alemanha demonstrava insegurança e ambições próprias de um
poder mundial em ascensão. Era sensível a críticas e profundamente preocupada
por não ser levada a sério como julgava merecer. Era uma grande nação no
coração da Europa, mais forte econômica e militarmente, assim como mais
dinâmica do que seus vizinhos maiores, França, Rússia e Áustria-Hungria. Em
momentos mais sombrios ainda se sentia cercada. Seu comércio crescia em todo o
mundo e cada vez mais conquistava fatia da participação inglesa, mas achava que
ainda não era suficiente. Não possuía colônias e as consequentes bases navais,
portos com abastecimento de carvão e rede telegráfica que caracterizavam uma
potência global. Ademais, quando tentava se apossar de territórios além-mar, na
África ou no Pacífico Sul, invariavelmente a Inglaterra aparecia levantando
objeções. Assim, o veemente discurso que o novo ministro do Exterior, Bernhard
von Bülow, proferiu no Reichstag em 1897, afirmando que a Alemanha exigia seu
lugar ao sol, foi bem recebido por seus compatriotas.
A
Inglaterra, como sempre acontecera com outras potências mundiais, tinha
consciência de que o mundo estava mudando e que enfrentaria novos desafios. Seu
Império era grande demais e muito espalhado, o que gerava argumentos de
imperialistas do país defendendo a conquista de mais territórios para proteger
os já existentes, as rotas vitais de navegação e as linhas telegráficas. A
produção industrial, ainda robusta, diminuíra sua participação na produção
mundial total, enquanto novas potências, como a Alemanha e os Estados Unidos,
se aproximavam rapidamente e outras mais antigas, como o Japão e a Rússia,
entravam velozmente na era industrial. O fato de ser a primeira apontava para
problemas a longo prazo. A infraestrutura da indústria inglesa ia ficando
ultrapassada e não se renovava com a necessária rapidez. Seu sistema educacional
produzia literatos demais e engenheiros e cientistas de menos.
Mas
permanece a pergunta: por que a Inglaterra teve a Alemanha como seu principal
inimigo quando facilmente haveria outros? Afinal, a Alemanha era apenas mais
uma entre as diversas ameaças ao domínio da Inglaterra. Outras potências também
queriam um lugar ao sol. Nos anos que antecederam 1914, poderia ter havido
guerras por questões ligadas a colônias entre Inglaterra e Estados Unidos,
Inglaterra e França, ou Inglaterra e Rússia. Em cada um desses casos quase
houve. Entretanto, as questões potencialmente perigosas foram bem
administradas, e superadas as principais razões para conflitos. (Esperamos que
hoje os Estados Unidos e a China consigam ter a mesma sensibilidade e sucesso.)
É
verdade que ao longo dos anos sempre houve tensão nas relações entre Inglaterra
e Alemanha, uma tendência à desconfiança mútua e a se sentirem ofendidos com
facilidade. O telegrama Kruger em 1896, quando o Kaiser impetuosamente enviou
congratulações ao presidente do pequeno e independente Transvaal por ocasião do
êxito dos afrikaners em rechaçar o raid de Jameson (um bando de
aventureiros ingleses que tentou tomar o controle do Transvaal) provocou
furiosos comentários na Inglaterra. “O Imperador alemão deu um passo muito
grave,” disse o Times, “que deve ser visto como francamente hostil a
este país.”[04] Salisbury estava em um jantar quando
recebeu a notícia, e comentou-se que ele disse a sua vizinha na mesa, uma das
filhas da Rainha Victoria: “Que topete, madame, que topete!”[05] A opinião pública inglesa ficou enfurecida.
Recentemente Wilhelm fora agraciado com o título de coronel honorário dos Royal
Dragoons. Consta que os oficiais dos Dragoons retalharam seu retrato e jogaram
os pedaços no fogo.[06] Paul Hatzfeldt, embaixador
alemão em Londres, informou para Berlim: “O estado de espírito geral é tal –
disso não tenho dúvida – que, se o governo perdesse a cabeça e por alguma razão
quisesse declarar guerra, teria o apoio de todo o povo.”[07]
Às vésperas da Grande Guerra, Sir Edward Goschen, embaixador inglês em Berlim,
disse a um colega que, em sua opinião, o telegrama Kruger marcou o início da
divisão entre Inglaterra e Alemanha.[08]
Mesmo
quando chegavam a acordos, o processo deixava resíduos de amargor e
desconfiança. Quando em 1898 a Inglaterra criou obstáculos nas negociações que
envolviam as colônias portuguesas, o Kaiser escreveu um memorando irado: “A
conduta de Lord Salisbury é absolutamente jesuítica, monstruosa e insolente!”[09] De sua parte, os ingleses ficaram profundamente
ressentidos com o fato de os alemães tentarem explorar a preocupação inglesa
com a deterioração da situação no sul da África para levar o país a recorrer,
desde o coneço, à negociação. Salisbury, que não compartilhava o entusiasmo de
Chamberlain por uma ampla aliança com a Alemanha, disse ao embaixador alemão:
“Vocês pedem demais por sua amizade!”[10]
No
ano seguinte a Alemanha ameaçou retirar seu embaixador de Londres quando
Salisbury se recusou a ceder às reivindicações alemãs nas ilhas Samoa. O
Kaiser, veemente, enviou uma carta extraordinariamente rude a sua avó
criticando o primeiro-ministro inglês. “Essa forma de tratar de interesses e sentimentos
da Alemanha chegou ao povo como um choque elétrico, deixando a impressão de que
Lord Salisbury tem para conosco a mesma consideração que dispensa a Portugal,
Chile ou aos habitantes da Patagônia.” E acrescentou, ameaçando: “Se esse
tratamento arrogante dispensado aos negócios alemães pelo governo de Lord
Salisbury continuar, temo que se transformará em fonte permanente de
desentendimentos e recriminações entre as duas nações, e pode, afinal, causar
incidentes mais graves.”[11] A velha rainha, depois
de consultar Salisbury, replicou com firmeza: “Só posso atribuir esse tom com
que fala de Lord Salisbury a uma irritação temporária de sua parte, pois, não
fosse isso, creio que não escreveria dessa maneira. Também duvido que algum
soberano tenha um dia escrito nesses termos para outro soberano, sobretudo
quando esse soberano é sua própria avó, criticando seu primeiro-ministro.”[12]
A
Guerra dos Bôeres gerou novas tensões. No fim das contas, o governo alemão na
verdade ajudou, ao se recusar a integrar coalizão de países que se propunha a
forçar a Inglaterra a celebrar a paz com as duas repúblicas bôeres. A Alemanha
não recebeu o crédito que merecia, em parte por causa do tom ora
condescendente, ora arbitrário que Bülow, entre outros, adotou com a
Inglaterra. Como disse mais tarde Friedrich von Holstein, chefe efetivo do
Ministério do Exterior alemão: “Agindo amistosamente e falando em tom
inamistoso, nós caimos entre duas cadeiras. (Por ‘nós,’ entenda-se ‘Bülow’).”[13]
Acresce
que o povo alemão, a começar pela Imperatriz, era em grande parte favorável aos
bôeres, confirmando a percepção inglesa de que a Alemanha trabalhava ativamente
pela derrota inglesa. Circularam rumores de que oficiais alemães estavam se
alistando nas fileiras bôeres quando, na verdade, o Kaiser os proibira de se
intrometer. Nos primeiros meses da guerra, a Inglaterra apreendeu três
vapores-correio alemães suspeitos, erradamente como se verificou depois, de
transportar material bélico para os bôeres. (Um deles, de acordo com
Eckardstein, diplomata alemão, nada tinha de perigoso e transportava tão
somente caixas de queijo suíço.) Diante da lentidão dos ingleses na liberação
dos navios, o governo alemão acusou a Inglaterra de violar as leis
internacionais e usou linguagem ameaçadora. Bülow, que por enquanto desejava
manter vivas as conversas com Chamberlain, escreveu para o então Chanceler
Hohenlohe: “A intensidade e a profundidade do lamentável desagrado da Alemanha
pela Inglaterra são muito perigosas para nós. Se o povo inglês perceber com
clareza o sentimento contrário à Inglaterra que hoje domina a Alemanha,
ocorrerá um grande retrocesso nas relações entre os dois países.”[14] Realmente o povo inglês estava ciente do sentimento
que imperava na Alemanha, porque a imprensa inglesa o mantinha detalhadamente
informado. A organização Athenaeum Club de Londres mantinha uma exibição
especial de charges alemãs e artigos antibritânicos.[15]”
[04] The Times, 4 janeiro
1896.
[05] Roberts, Salisbury,
624.
[06] Balfour, M.L.G., The Kaiser and His Times
(Nova York, 1972), 195.
[07] Steiner, Z. ed Neilson, K., Britain and the Origins of the First World War
(Londres, 2003), 21.
[08] Ibid., 195.
[09] Kennedy, P.M., ‘German World Policy and the
Alliance Negotiations with England, 1897-1900,’ Journal of Modern History,
vol. 45, nº 4 (1973), 605-25, p. 614.
[10] Idem, The Rise of the
Anglo-German Antagonism, 1860-1914 (Londres, 1982), 234.
[11] Massie, R. K., Dreadnought: Britain, Germany, and the Coming of
the Great War (New York, 1992), 358.
[12] Ibid., 259.
[13] Kröger, M., ‘Imperial Germany and the Boer War,’
in K. M. Wilson (ed.), The International Impact of the Boer War
(Londres, 2001), 25-42, p. 38.
[14] Balfour, M.L.G., The Kaiser and His Times
(Nova York, 1972), 222-3.
[15] Kennedy, Rise of the
Anglo-German Antagonism, 246-7.
“Bülow,
que tinha a missão nada invejável de conseguir dinheiro para o programa de
construção naval de Tirpitz, começava a achar que a Alemanha não estava em
condições de sustentar o exército mais poderoso e a segunda maior marinha da
Europa. “Não podemos enfraquecer o exército,” escreveu em 1908, “pois nosso
destino será decidido em terra.”[80] Seu governo
enfrentava séria crise financeira. A dívida nacional da Alemanha quase dobrara
desde 1900, e estava difícil aumentar a receita. Cerca de 90% de toda a despesa
do governo central ia para o exército e a marinha, e, nos doze anos entre 1896
e 1908, graças em grande parte às despesas com a marinha, o gasto total com
forças armadas duplicara, e o futuro era bem previsível. Quando Bülow tentou
discutir o caso de maior conteção das despesas navais, um membro do entourage
de Wilhelm pediu-lhe que não o fizesse, porque isso deixaria o Kaiser “muito
triste.”[81] Bülow lutou durante o ano inteiro de
1908, tentando elaborar um plano de reforma tributária cuja aprovação poderia
conseguir via Reichstag, mas suas propostas de aumentar o imposto sobre
heranças enfureceram a direita, e novos impostos sobre consumo produziram
reação semelhante na esquerda. Por fim, em julho de 1909, não conseguindo
resolver o problema, apresentou sua demissão a Wilhelm. Tirpitz prevaleceu
porque no fim teve o Kaiser a seu lado.”
[80] Epkenhans, M., Tirpitz: Architect of the
German High Seas Fleet (Washington, D.C., 2008), versão Kindle, loc. 758-61.
[81] Bülow, B., Memoirs of Prince von Bulow
(Boston, 1931), vol. I, 357.
“A corrida naval é o fator-chave para entender a crescente hostilidade
entre Inglaterra e Alemanha. Rivalidade comercial, disputa por colônias,
opiniões públicas nacionalistas, todas influíram, mas eram fatores já
existentes, parcial ou totalmente, nas relações entre a Inglaterra e vários
outros países, como a França, a Rússia e os Estados Unidos. Mas nenhum levou à
profunda desconfiança e aos temores que marcaram as relações entre Inglaterra e
Alemanha nos anos que antecederam 1914. E poderia ter sido bem diferente.
Alemanha e Inglaterra eram as maiores parceiras comerciais uma da outra antes
de 1914 (o fato contradiz que, quanto mais as nações comerciam entre si, menor
seja a probabilidade de entrarem em conflito). Seus interesses estratégicos
poderiam se entrosar com facilidade, com a Alemanha sendo a maior potência
terrestre na Europa e a Inglaterra a maior nos mares.
Porém,
ao começar a Alemanha a construção de uma esquadra poderosa, tinha de
intranquilizar a Inglaterra. A Alemanha talvez apenas desejasse uma esquadra de
alto-mar destinada a, como afirmou repetidamente, proteger seu comércio
exterior e suas colônias, e porque grandes marinhas assinalavam o status de
grande potência, tal como é o caso hoje de armas nucleares. Os ingleses
poderiam conviver com isso, como conviviam com o poder naval russo, americano
ou japonês. O que não podiam aceitar eram os reflexos geográficos. Quer
estivesse no Báltico ou em portos na costa alemã do Mar do Norte, a marinha
alemã estaria muito próxima às Ilhas Britânicas. (...)
Longe
de forçar a Inglaterra a ser amiga, como planejava Tirpitz, a corrida naval
criou um fosso profundo entre os dois países e levou ao endurecimento da
opinião das elites e dos públicos de um contra o outro. Igualmente importante,
persuadiu a Inglaterra a buscar novos aliados para contrabalançar a ameaça
alemã. Bülow estava certo ao escrever a Tirpitz após a Grande Guerra afirmando
que, embora a Alemanha tenha sido levada à guerra pelo “nosso tosco tratamento
de um problema nos Balcãs (...) resta indagar se a França e particularmente a
Rússia se deixariam arrastar para a guerra se a opinião pública na Inglaterra
não tivesse reagido com tanta veemência à construção de nossos grandes navios
de guerra.”[96]
E se
parte dos recursos derramados na marinha tivesse ido para o exército? Tivesse
servido para aumentar efetivos e poder de fogo, tornando as forças terrestres
alemãs mais poderosas em 1914, sua ofensiva na França naquele verão teria
alcançado êxito, como quase aconteceu? O que isso teria significado para a
Grande Guerra e a Europa? A corrida naval também levanta a questão de como
indivíduos são importantes na história. Não teria havido corrida naval sem a
capacidade econômica, industrial e tecnológica de cada um dos dois países para
sustentá-la. Nem teria continuado sem apoio popular. Mas nem teria acontecido,
em primeiro lugar, sem a determinação e o ativismo de Tirpitz e sem a vontade
do Kaiser de apoiá-lo até a raiz – e a possibilidade de fazê-lo que lhe dava a
imperfeita constituição alemã. Quando Tirpitz se tornou ministro da Marinha,
não havia um lobby das elites dirigentes a favor da construção de uma
grande esquadra, tampouco forte apoio popular. Ambos vieram mais tarde, quando
a marinha cresceu.
Devido
à corrida naval, as opções para preservar a longa paz europeia foram se
estreitando, e o caminho para a guerra ficou mais visível. A primeira
iniciativa de vulto da política externa inglesa como resultado da corrida naval
– seu movimento de acertar as relações com a França – foi uma medida de caráter
defensivo, mas, em retrospecto, é fácil constatar quanto influiu na inclinação
para a guerra. Também é interessante salientar, focalizando a década anterior a
1914, a frequência e a facilidade com que a possibilidade de uma guerra, até
mesmo geral, fazia parte das discussões em toda a Europa.”
[96] Kennedy, Rise of the
Anglo-German Antagonism, 423.
“O caso Dreyfus também teve repercussão internacional. Defensores de
ambos os lados acreditavam que a questão era parte de uma grande conspiração
internacional. Um proeminente nacionalista espelhou a suspeição da direita ao
afirmar que “um grupo de maçons, judeus e estrangeiros está tentando
desacreditar o exército para entregar nossa nação aos ingleses e aos alemães.”[25] Dreyfusards anticlericais, ao contrário, viam a mão
do Papa por trás de tudo, particularmente por intermédio dos jesuítas. Fora da
França a questão produziu um efeito particularmente desfavorável na opinião
pública inglesa, justamente quando as relações entre Inglaterra e França
estavam tensas devido ao incidente de Fashoda e à eclosão da Guerra dos Bôeres
em 1899, pouco depois do desfecho insatisfatório do novo julgamento de Dreyfus.
De modo geral os ingleses eram dreyfusards e viam a questão como nova prova, se
é que era necessária, da falta de confiabilidade e torpeza moral dos franceses.
No Hyde Park, 50 mil pessoas compareceram a uma manifestação de apoio a
Dreyfus. A Rainha Victoria enviou seu Lord Presidente do Supremo Tribunal a
Rennes para acompanhar os processos do tribunal e reclamou com Salisbury da
“monstruosa e terrível condenação do pobre mártir Dreyfus.” Em sinal de
protesto, cancelou seu habitual período de férias na França, e muitos súditos
ingleses seguiram seu exemplo. Empresários consideraram seriamente a
possibilidade de boicotar a Exposição de Paris em 1900.[26]
“Uma coisa pelo menos se pode dizer em favor dos alemães,” disse o chefe do
Conselho Municipal de Paris para Barclay, “eles são des ennemis francs.
Não escondem que querem nos engolir tão logo possam. Com eles, sabemos onde
estamos pisando. Mas com os ingleses ninguém sabe. Sua hipocrisia e sua
perfídia não são inconscientes. Premeditadamente engabelam você com promessas e
palavras doces e, depois que o empurram para o precipício, levantam os olhos
para o céu, agradecem a Deus por serem um povo moralista e rezam por sua alma!”[27]
Ao
ingressar no novo século a França estava em posição vulnerável, interna e
externamente. Suas relações com a Inglaterra eram imprevisíveis, com os
alemães, corretas, embora frias, tensas com a Espanha, Itália e Império
Austro-Húngaro, todos esses estados seus rivais no Mediterrâneo. Mesmo assim a
França conseguiu romper a quarentena que lhe fora imposta por Bismarck e fazer
aliança muito importante com a Rússia. Era uma amizade improvável entre uma
república de passado revolucionário e uma potência autocrática do leste. Também
foi um passo importante no caminho que levou a Europa à Grande Guerra. Embora a
França e a Rússia tentassem disfarçá-la com uma fachada defensiva, como
normalmente acontece, essa aliança foi vista sob perspectiva muito diferente.
Como a Polônia ainda não fora reconstituída no mapa da Europa, os alemães
podiam ver, e viram muitas vezes, seu país cercado de potências hostis, tanto
na fronteira leste quanto na oeste. Muita coisa aconteceria em consequência da
aliança franco-russa, como a Alemanha buscar aproximação com a Áustria-Hungria,
estado que via como o único aliado com que poderia contar para não se ver
totalmente cercada.
Nem
mesmo Bismarck conseguiria manter a França indefinidamente isolada, mas o
fracasso de seus sucessores na revalidação do Tratado de Ressegurança com a
Rússia em 1890 abriu uma porta, e os franceses rapidamente aproveitaram para
entrar. A Rússia oferecia uma saída do isolamento, e sua posição geográfica
significava que, em qualquer conflito futuro em que a França se envolvesse, a
Alemanha teria de olhar para leste por cima do ombro. Ademais, a Rússia tinha o
que faltava à França – fartos recursos humanos. O pesadelo demográfico que os
franceses enfrentavam e continuariam vivendo nas décadas de 1920 e 1930 era o
fato de sua população não crescer, ao contrário da alemã. Em 1914, para 39
milhões de franceses, havia 60 milhões de alemães. Numa época em que os
exércitos dependiam mais de quantidade do que qualidade, isso significava maior
potencial militar da Alemanha.
O que
contribuiu para tornar a Rússia receptiva à ideia de uma aliança foi a França
poder oferecer aquilo de que o país precisava desesperadamente: capital. A
economia russa estava se expandindo rapidamente e necessitava de mais recursos
financeiros do que o governo era capaz de levantar dentro do país. Embora
fossem, até então, a principal fonte de empréstimos estrangeiros à Rússia, os
bancos alemães agora estavam emprestando dentro da própria Alemanha. Londres
era outra possibilidade para levantar empréstimos, mas a fase desfavorável que
atravessavam as relações entre Rússia e Inglaterra indicava que o governo e os
bancos ingleses relutariam em emprestar dinheiro a um país que de uma hora para
outra podia se tornar inimigo. Esse fato incluiu a França no rol das maiores
potências europeias. Graças à parcimônia de seu povo, havia dinheiro de sobra à
procura de bom investimento. Em 1888, dois anos antes de expirar o Tratado de
Ressegurança, os bancos franceses concederam o que seria o primeiro de muitos
empréstimos ao governo russo. Em 1900, a França era, de longe, o maior
investidor estrangeiro na Rússia (maior do que Inglaterra e Alemanha juntas),
alimentando a rápida expansão da infraestrutura e das indústrias russas. Em
1914, as linhas ferroviárias usadas pelo exército russo para chegar a suas
fronteiras tinham sido construídas, em sua maior parte, com dinheiro francês.
Investidores franceses logo descobririam, quando os bolcheviques assumiram o
poder e consideraram nulos todas as dívidas externas, que um quarto de todos os
seus investimentos no estrangeiro estava na Rússia.[28]”
[25] Tombs, R. e Tombs, I., That Sweet Enemy: The
French and the British from the Sun King to the Present (Nova York, 2008), 426.
[26] Ibid., 426-7.
[27] Barclay, T., Thirty Years: Anglo-French
Reminiscences, 1876-1906 (Londres, 1914), 140-41.
[28] Lincoln, W. B., In War’s Dark Shadow: The
Russians before the Great War (Oxford, 1994), 17.
“Ambos os lados tiveram de superar o passado: Napoleão incendiando Moscou
em 1812, o Czar Alexandre I e suas tropas marchando triunfalmente pelas ruas de
Paris dois anos mais tarde ou a Guerra da Crimeia. Ambos tiveram de engolir as
desconfianças: as da Rússia em relação ao republicanismo e anticlericalismo da
França; e as da França em relação à autocracia e à ortodoxia czaristas. Não
obstante, a classe alta russa admirava os modos franceses e falava francês com
maior facilidade do que o russo, e no último quarto do século XIX os franceses
tomaram gosto pelos grandes romances e pela música da Rússia. Mais importante,
no fim dos anos 1880, o ministro do Exterior russo e os chefes militares começavam
a se alarmar com a possibilidade de a Inglaterra, considerada potência nada
amistosa, juntar-se a Tríplice Aliança de Alemanha, Áustria-Hungria e Itália.
Nesse caso, a Rússia acabaria isolada como a França. Incidentalmente, pois a
ele cabia a última palavra, o Czar de então, Alexandre III, começava a aceitar
a ideia de uma aliança com a França, influenciado pela esposa, que, como membro
da família real dinamarquesa, detestava a Prússia por ter derrotado seu país e
se apossado dos ducados de Schleswig-Holstein. O Czar também parecia
profundamente ofendido pela decisão alemã de não renovar o Tratado de
Ressegurança em 1890. Um mês após a expiração do tratado, os generais russos
conversaram sobre um possível acordo militar com um general francês que assistia
às manobras anuais do exército russo.[29]
No
ano seguinte, França e Rússia negociaram um acordo militar secreto pelo qual se
comprometiam à defesa mútua caso um dos dois países fosse atacado por um membro
da Tríplice Aliança. Parece ter havido certa precipitação, pois as duas partes
levaram um ano e meio para ratificar o acordo, e durante a década seguinte
houve momentos em que a aliança franco-russa esteve por um fio, quando os
interesses dos dois países eram
divergentes ou entravam em choque. Em 1898, por exemplo, os franceses ficaram
profundamente desapontados quando os russos se negaram a apoiá-los na questão
de Fashoda. A aliança não foi propriamente causa da guerra em 1914, mas sua
existência contribuiu para aumentar as tensões na Europa.
Embora
o acordo fosse secreto, os observadores logo puderam perceber que ocorrera
significativa mudança nas relações internacionais na Europa. Em 1891, o Czar
concedeu a mais importante condecoração russa ao presidente francês. No verão
do mesmo ano, a esquadra francesa visitou a base naval russa em Kronstadt, logo
a oeste de São Petersburgo, e o mundo viu o Czar em posição de sentido enquanto
era tocada a Marselhesa, embora proibida na Rússia por ser canção revolucionária.
Dois anos depois, a esquadra russa foi a Toulon, retribuindo a visita.
Multidões de franceses gritavam “Vive la Russie! Vive le Tsar!” e
ofereciam jantares, recepções, almoços, brindes e discursos aos visitantes.
“Praticamente não havia uma só mulher em Paris,” relatou um jornalista, “que
não estivesse disposta a esquecer seus deveres e satisfazer os desejos dos
marinheiros russos.”[30] O embaixador inglês ficou
admirado com o entusiasmo de genuínos republicanos pelo Czar e seu regime, mas
compreendia a explosão emocional da França: “O povo francês, como as nações
celtas, é sensível e morbidamente ávido por simpatia e admiração. A guerra com
a Alemanha e suas consequências tinham ferido agudamente sua vaidade e, embora
tivesse enfrentado essa humilhação com paciência e dignidade, a ofensa não
desaparecera.”[31]”
[29] Keiger, J., France and the Origins of the
First World War (Basingstoke, 1983); Fuller,
W.C., Strategy and Power in Russia, 1600-1914 (Nova York, 1992), 353-4.
[30] Sanborn, J., ‘Education for War, Peace, and
Patriotism in Russia on the Eve of World War I,’ in H. Afflerbach e D.
Stevenson (eds.), An Improbable War? The Outbreak of World War I and
European Political Culture before 1914 (Nova York, 2007), 213-29, pp. 213-14.
[31] BD, vol. II, 35, pgs. 285-8.
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