Lista de Livros no YouTube

Lista Completa

sexta-feira, 9 de maio de 2025

A Primeira Guerra Mundial... que acabaria com as guerras (Parte I), Margaret MacMillan

Editora: Globo Livros

ISBN: 978-85-2505-790-7

Opinião: ★★☆☆

Páginas: 760

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: No centenário de um dos conflitos que marcou a história do século XX, a Globo Livros lança “A Primeira Guerra Mundial”, considerado um dos melhores lançamentos do ano em não ficção por publicações como The New York Times Book Review, The Economist, Bloomberg Businessweek e The Globe and Mail. O livro conquistou em 2014 o prestigiado Political Book Award, na categoria “Questões Internacionais”.

Com descrições detalhadas, Macmillan analisa como a Europa de 1900 foi de um clima de confiança no progresso e no futuro a um conflito que mataria milhões de pessoas, sangraria as economias e acirraria as rivalidades nacionais.

A autora se debruça sobre o período entre o início do século 19 até o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono austro-húngaro, para investigar as transformações políticas e tecnológicas, as decisões de estado e os deslizes da natureza humana que resultaram na guerra. Uma leitura fluída e prazerosa, “A Primeira Guerra Mundial” é uma obra de referência, fundamental para compreender eventos que definiram os rumos do século XX. A historiadora Margaret MacMillan é uma referência internacional nos estudos sobre a Primeira Guerra e recebeu recentemente o Harbourfront Festival Prize, prêmio concedido pelo International Festival of Authors (IFOA), realizado em Toronto, no Canadá. A premiação já foi concedida outra renomada autora canadense, a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura 2013, Alice Munro.

O texto resgata líderes políticos, diplomatas, militares, banqueiros e, sobretudo, cabeças coroadas que à época ainda mantinham laços familiares de longa data. E conta como todos – do impulsivo kaiser Wilhelm II ao imperador da Áustria-Hungria Franz Joseph, do czar Nicolau II ao rei inglês Edward VII – não conseguiram interromper a escalada de hostilidades. O amplo retrato produzido pela autora não deixa de citar, também, personalidades que fizeram alertas em favor da paz. Entre elas, o cientista Alfred Nobel, a escritora e ativista Bertha von Suttner (a primeira mulher a receber o Prêmio Nobel da Paz) e uma estrela em ascensão na política britânica: Winston Churchill.

Narrado com desenvoltura, o livro mantém o leitor agarrado ao desenrolar da história, ligando os fios entre os acontecimentos e revelando como decisões de alguns poucos poderosos podem determinar o destino de um povo e de vários países. Íntima dos bastidores do poder, Madeleine Albright, ex-secretária de Estado do governo Clinton, foi enfática ao opinar sobre o trabalho de McMillan: “Este é um dos melhores livros que já li sobre as causas da Primeira Guerra Mundial”.



Guerra não é um acidente, é um resultado. Há que olhar para trás o mais possível e perguntar: de quê?” (Elizabeth Bowen —Bowen’s Court)

 

 

“Também recordamos a Grande Guerra por ser um enorme quebra-cabeça. Como conseguiu a Europa impor tal castigo a si mesma e ao mundo? Há muitas explicações possíveis; na verdade, tantas que é difícil escolher entre elas. Para começar, a corrida armamentista, rígidos planos militares, rivalidade econômica, guerras comerciais, o imperialismo com sua busca de colônias ou os sistemas de alianças dividindo a Europa em campos antagônicos. Ideias e emoções muitas vezes cruzaram fronteiras nacionais: o nacionalismo, com seus repulsivos cavaleiros do ódio e desprezo pelos outros; medos de perdas ou revoluções, de terroristas e anarquistas; esperanças de mudança e de um mundo melhor; exigências de honra e virilidade mandando não recuar ou parecer fraco; ou Darwinismo Social, que classificava sociedades como se fossem espécies e promovia uma crença não só na evolução e no progresso, mas também na inevitabilidade da luta. E que dizer do papel próprio de cada nação e de seus motivos? Das ambições das ascendentes como a Alemanha e o Japão; dos temores das declinantes como a Inglaterra; da vingança, no caso da França e da Rússia; ou da luta pela sobrevivência da Áustria-Hungria? No cerne de cada nação, ainda as pressões internas: um novel movimento trabalhista, por exemplo, ou forças abertamente revolucionárias; exigências de voto para as mulheres ou de independência de nações submetidas; ou conflitos entre as classes, entre os crentes e os anticlericais, ou entre militares e civis. Como cada um desses vetores atuou no sentido de preservar a longa paz da Europa ou de movê-la rumo à guerra?

Movimentos, ideias, preconceitos, instituições, conflitos são todos, sem dúvida, importantes. Todavia, ainda restam os indivíduos, no fim não muitos, que tiveram de dizer “sim,” “em frente” e irromper a guerra, ou “não” e detê-la. Alguns eram monarcas hereditários com grande poder – o Kaiser da Alemanha, o Czar da Rússia e o Imperador da Áustria-Hungria; outros – o presidente da França, os primeiros-ministros da Inglaterra e da Itália – engastados em regimes constitucionais. Foi, em retrospecto, a tragédia da Europa e do mundo o fato de nenhum dos personagens-chave em 1914 ser um grande e criativo líder com coragem para enfrentar as pressões que conduziam ao conflito. De certa forma, qualquer explicação de como eclodiu a Grande Guerra deve balancear as grandes correntezas do passado com o papel dos seres humanos levados por ela, mas que às vezes mudaram seu curso.

É fácil erguer mãos para o céu e dizer que a Grande Guerra foi inevitável, mas trata-se de ideia perigosa, especialmente em tempo como o nosso, que em alguns aspectos, não em todos, parece aquele mundo sumido dos anos anteriores a 1914. Nosso mundo enfrenta desafios semelhantes, alguns de ordem revolucionária e ideológica, como o crescimento de religiões militantes e movimentos sociais de protesto; outros advêm da tensão de nações em crescimento ou em declínio, como a China e os Estados Unidos. Precisamos considerar seriamente como nascem as guerras e como podemos preservar a paz. Nações se confrontam, como fizeram antes de 1914, no que seus líderes imaginavam ser um jogo de blefes e contrablefes que julgavam manter sob controle. Apesar disso, subitamente a Europa passou da paz para a guerra, apenas nas cinco semanas que se seguiram ao assassinato do Arquiduque. Em crises anteriores, tão graves como a de 1914, a Europa não ultrapassou os limites. Seus líderes – e grande parcela de seus povos os apoiou – preferiram resolver as questões e preservar a paz. O que aconteceu de forma diferente em 1914?

Comecemos imaginando uma paisagem com gente a caminhar. O solo, a vegetação, os morros, os riachos todos são componentes importantes da Europa, desde a economia à estrutura social; enquanto as brisas são as correntes de pensamento que modelavam opiniões e pontos de vista europeus. Suponha que você é um dos caminhantes. Terá opções diante de si. O tempo está bom, embora possa notar algumas nuvens escuras no céu. O caminho à sua frente é fácil pelo terreno plano. Você sabe que deve continuar caminhando porque o exercício faz bem e, afinal, você quer chegar a um destino em segurança. Também sabe que, à medida que avança, deve tomar certo cuidado. Pode ser que apareçam animais inamistosos, que haja cursos de água a atravessar e alguma encosta íngreme. Mesmo assim, não passa por sua cabeça esbarrar num deles de maneira fatal. Você é um andarilho experiente e muito sensato.

Em 1914, entanto, a Europa desabou do penhasco e mergulhou em um conflito catastrófico que iria matar milhões de seus homens, exaurir suas economias, abalar e rebentar impérios e sociedades e solapar definitivamente o domínio europeu do mundo. As fotografias de multidões aplaudindo nas grandes capitais são enganosas. A eclosão da guerra pegou de surpresa a maioria dos europeus, e sua reação inicial foi de espanto e choque. Tinham nascido e vivido acostumados à paz. O século desde o fim das guerras napoleônicas fora o mais pacífico na Europa desde o Império Romano. É verdade que guerras houvera, porém de natureza colonial distante, como a dos zulus na África meridional, ou na periferia europeia, como a Guerra da Crimeia, ou ainda, curtas e decisivas, como a Guerra Franco-Prussiana.

O solavanco final rumo à guerra só precisou de pouco mais de um mês, entre o assassínio do arquiduque austríaco em Sarajevo, em 28 de junho, e a eclosão de uma guerra geral europeia em 4 de agosto. No fim, as decisões cruciais daquelas semanas que levaram a Europa à guerra foram tomadas por um grupo surpreendentemente pequeno de homens (e eram todos homens). Para entender como agiram, porém, devemos ir mais para trás e examinar as forças que os moldaram. Precisamos compreender as sociedades e instituições das quais foram o produto. Devemos tentar entender os valores e as ideias, as emoções e os preconceitos que os enformaram quando olharam o mundo. Também devemos nos lembrar de que, com uma ou duas exceções, mal faziam ideia de aonde estavam levando seus países e o mundo. Nesse aspecto, estavam muito bem sintonizados com o tempo em que viviam. Para a maioria dos europeus, uma guerra geral era algo impossível, improvável ou fadada a terminar rapidamente.

Ao tentarmos entender o sentido dos eventos do verão de 1914, devemos nos situar no lugar daqueles que viveram um século atrás, antes de nos apressarmos a distribuir culpas. Não podemos perguntar aos que decidiram o que tinham em mente quando deram os passos rumo à destruição, mas podemos fazer uma ideia bastante razoável consultando os arquivos da época e as memórias escritas posteriormente. Algo que convém ficar bem claro é que os responsáveis pelas escolhas sem dúvida pensaram muito nas crises anteriores e nos momentos que as precederam, quando decisões foram tomadas ou evitadas.

Os líderes russos, por exemplo, jamais haviam esquecido ou perdoado a anexação da Bósnia e Herzegovina pelo Império Austro-Húngaro em 1908. Além disso, a Rússia falhara ao não apoiar sua protegée, a Sérvia, quando este país confrontou os austro-húngaros, e novamente nas Guerras Balcânicas em 1912-13. Agora, a Áustria-Hungria ameaçava destruir a Sérvia. O que significaria para a Rússia e seu prestígio ficar assistindo mais uma vez sem nada fazer? Pois a Alemanha não apoiara firmemente seus aliados austro-húngaros em confrontos anteriores? Se nada fizesse dessa vez, não perderia seu único e indiscutível aliado? O fato de graves crises anteriores entre potências envolvendo colônias ou os Balcãs terem sido solucionadas pacificamente acrescentou outro fator às estimativas de 1914. A ameaça de guerra já fora utilizada, mas, no fim, houve pressões exercidas por terceiros, fizeram-se concessões, conferências foram convocadas com sucesso para resolver questões de grande perigo. Andar pelo fio da navalha dera resultado. O mesmo processo certamente começaria a dar certo em 1914. Só que dessa vez o equilibrismo à beira do precipício não funcionou. O Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia, com apoio da Alemanha. A Rússia decidiu apoiar a Sérvia e entrou em guerra contra a a Alemanha e a Áustria-Hungria. A Alemanha atacou a França, aliada da Rússia, e a Inglaterra veio em socorro de seus aliados. E assim passaram a barreira.

A eclosão da guerra em 1914 não aconteceu sob céu azul. Nuvens acumularam-se ao longo das duas décadas anteriores, e muitos europeus viam o fato com desconforto. Imagens da iminência de tormentas, de barragens prontas para rebentar e de avalanches a ponto de deslizar eram usuais na literatura da época. Por outro lado, muitos líderes, tanto quanto cidadãos comuns, acreditavam ser capazes de afastar o risco de conflitos e criar instituições internacionais mais fortes e melhores para resolver pacificamente divergências e tornar obsoleto o instrumento da guerra. Talvez os derradeiros anos de ouro da Europa pré-guerra sejam imaginação de gerações posteriores, mas, mesmo na época, a literatura continha imagens de raios de sol mundo afora e da humanidade marchando para um futuro mais próspero e feliz.

Mui pouca coisa é inevitável na história. A Europa não precisava ir à guerra em 1914; uma guerra geral poderia ter sido evitada até o último instante, em 4 de agosto, quando finalmente a Inglaterra decidiu tomar parte. Olhando de hoje, claro que podemos identificar as forças que tornavam a guerra mais provável: as rivalidades por colônias, a competição econômica, os nacionalismos étnicos que iam esfacelando os decadentes impérios Otomano e Austro-Húngaro e o crescimento de uma opinião pública nacionalista a exercer novas pressões sobre os líderes em prol de supostos direitos e interesses de suas nações.

Podem-se ver, como perceberam os europeus naqueles dias, as tensões na ordem internacional. A questão germânica, por exemplo. A criação da Alemanha, em 1871, de repente apresentou à Europa uma nova grande potência no centro do continente. Seria a Alemanha o fulcro em torno do qual o resto da Europa evoluiria ou a ameaça contra a qual se uniria? Como as potências de fora da Europa – Japão e Estados Unidos em ascensão – se encaixariam num mundo dominado pela Europa? O darwinismo social, filho bastardo do pensamento evolucionista e primo do militarismo, alimentou a crença em uma competição entre as nações como parte das leis da natureza, segundo as quais, no fim, sobreviveriam as mais aptas. E provavelmente por meio de guerras. A admiração pelos militares criada no século XIX, reconhecendo-os como a parte mais nobre da nação, e a disseminação de valores militares pelas sociedades civis incentivaram a crença de que a guerra era etapa necessária na grande luta pela sobrevivência e que, na verdade, devia ser salutar para as sociedades afinando-as, por assim dizer.

A ciência e a tecnologia, que trouxeram tantos benefícios para a humanidade no século XIX, produziram também armas novas e mais terríveis. Rivalidades entre nações estimularam uma corrida armamentista que, por sua vez, aprofundou percepções de insegurança e aumentou o ímpeto dessa corrida. Nações buscavam aliados para compensar suas fraquezas, e suas decisões ajudaram a levar a Europa para perto da guerra. A França, que perdia a corrida demográfica para a Alemanha, fez aliança com a Rússia, em parte para contar com seu gigantesco potencial humano. Em troca, a Rússia conseguiu tecnologia e capital franceses. A aliança franco-russa, porém, fez a Alemanha se sentir cercada. Aproximou-se do Império Austro-Húngaro e, ao fazê-lo, encampou sua rivalidade com a Rússia nos Balcãs. O fortalecimento naval pretendido pela Alemanha como forma de obrigar a Inglaterra a manter uma posição amistosa convenceu esta não apenas de que era necessário superar a Alemanha em força naval, mas também a abandonar sua preferida indiferença em relação à Europa e se aproximar da França e da Rússia. (...)

O medo teve papel relevante nas posições adotadas pelas nações em relação às outras e na aceitação por seus líderes e suas políticas da guerra como instrumento de política. A Áustria-Hungria temia desaparecer como potência, a menos que tomasse alguma medida a respeito do nacionalismo sul-eslavo dentro de suas fronteiras, e isso exigia fazer algo a propósito da atração de uma Sérvia sul-eslava e independente. A França temia sua vizinha Alemanha, mais forte econômica e militarmente. Os alemães encaravam apreensivos o leste. A Rússia desenvolvia-se rapidamente e se rearmava. Se a Alemanha não lutasse logo com a Rússia, podia nunca mais ser capaz de fazê-lo. A Inglaterra tinha muito a ganhar com a continuação da paz, mas temia, como sempre temera, que uma única potência dominasse o Continente. Cada potência temia outras, mas temia também seu próprio povo. Ideias socialistas tinham se disseminado pela Europa, e partidos e sindicatos socialistas ameaçavam o poder das velhas classes governantes. Seria o prenúncio de uma revolução violenta, como achavam muitos? O nacionalismo étnico, da mesma forma, era uma força desagregadora na Áustria-Hungria, mas também na Rússia e na Inglaterra, onde a questão irlandesa, nos primeiros meses de 1914, foi, para o governo, uma preocupação maior do que as relações exteriores. Poderia a guerra ser uma ponte para as divisões internas, unindo o público em uma grande onda patriótica?”

 

 

Por que as coisas saíram tão errado? Cientistas políticos podem dizer que o fato de Alemanha e Inglaterra ficarem em lados opostos na Grande Guerra foi premeditado. Foi o resultado do choque entre um poder global superior sentindo que a supremacia lhe escapava e havia um desafiante que ascendia. Raramente tais transições são administradas pacificamente. O poder dominante é frequentemente arrogante, querendo dar lições ao resto do mundo sobre como conduzir seus negócios e muitas vezes insensível aos temores e às preocupações de potências menores. Tal poder, como era então a Inglaterra e hoje são os Estados Unidos, inevitavelmente resiste às íntimas percepções de seu declínio, e o que ascende fica impaciente para conseguir sua parcela do que está em oferta, sejam colônias, comércio, recursos ou influência.

No século XIX, a Inglaterra possuía o maior Império do globo, dominando os mares e o comércio mundial. Talvez compreensivelmente, via com pouca simpatia os anseios e as preocupações de outras nações. Como escreveu Winston Churchill, um estadista com agudo senso de história, pouco antes da Grande Guerra:

Ficamos absortos em nós mesmos, enquanto outras nações poderosas se vêm paralisadas por barbarismo ou guerra interna, uma total desproporção na partilha de riquezas e dos negócios mundiais. Conseguimos tudo o que queríamos em termos de território, e as exigências que fazemos para que não atrapalhem o desfrute de nossas vastas e magníficas possessões, conquistadas principalmente por meio de violência e em grande parte mantidas pela força, muitas vezes parecem menos razoáveis para outros do que para nós.

Além disso, a Inglaterra amiúde irritava outras potências europeias com sua confiante presunção de superioridade como, por exemplo, diante das instituições e da política do Continente, por sua relutância em preservar o Concerto da Europa e pela forma como intervinha cuidadosamente em conflitos apenas quando via maneira clara de tirar vantagem. Na disputa por colônias, os estadistas ingleses costumavam alegar que estavam adquirindo mais territórios unicamente para prover segurança ao que já tinham ou talvez por benevolência para com povos súditos, enquanto outras nações eram motivadas apenas por ambição.

Em contrapartida, a Alemanha demonstrava insegurança e ambições próprias de um poder mundial em ascensão. Era sensível a críticas e profundamente preocupada por não ser levada a sério como julgava merecer. Era uma grande nação no coração da Europa, mais forte econômica e militarmente, assim como mais dinâmica do que seus vizinhos maiores, França, Rússia e Áustria-Hungria. Em momentos mais sombrios ainda se sentia cercada. Seu comércio crescia em todo o mundo e cada vez mais conquistava fatia da participação inglesa, mas achava que ainda não era suficiente. Não possuía colônias e as consequentes bases navais, portos com abastecimento de carvão e rede telegráfica que caracterizavam uma potência global. Ademais, quando tentava se apossar de territórios além-mar, na África ou no Pacífico Sul, invariavelmente a Inglaterra aparecia levantando objeções. Assim, o veemente discurso que o novo ministro do Exterior, Bernhard von Bülow, proferiu no Reichstag em 1897, afirmando que a Alemanha exigia seu lugar ao sol, foi bem recebido por seus compatriotas.

A Inglaterra, como sempre acontecera com outras potências mundiais, tinha consciência de que o mundo estava mudando e que enfrentaria novos desafios. Seu Império era grande demais e muito espalhado, o que gerava argumentos de imperialistas do país defendendo a conquista de mais territórios para proteger os já existentes, as rotas vitais de navegação e as linhas telegráficas. A produção industrial, ainda robusta, diminuíra sua participação na produção mundial total, enquanto novas potências, como a Alemanha e os Estados Unidos, se aproximavam rapidamente e outras mais antigas, como o Japão e a Rússia, entravam velozmente na era industrial. O fato de ser a primeira apontava para problemas a longo prazo. A infraestrutura da indústria inglesa ia ficando ultrapassada e não se renovava com a necessária rapidez. Seu sistema educacional produzia literatos demais e engenheiros e cientistas de menos.

Mas permanece a pergunta: por que a Inglaterra teve a Alemanha como seu principal inimigo quando facilmente haveria outros? Afinal, a Alemanha era apenas mais uma entre as diversas ameaças ao domínio da Inglaterra. Outras potências também queriam um lugar ao sol. Nos anos que antecederam 1914, poderia ter havido guerras por questões ligadas a colônias entre Inglaterra e Estados Unidos, Inglaterra e França, ou Inglaterra e Rússia. Em cada um desses casos quase houve. Entretanto, as questões potencialmente perigosas foram bem administradas, e superadas as principais razões para conflitos. (Esperamos que hoje os Estados Unidos e a China consigam ter a mesma sensibilidade e sucesso.)

É verdade que ao longo dos anos sempre houve tensão nas relações entre Inglaterra e Alemanha, uma tendência à desconfiança mútua e a se sentirem ofendidos com facilidade. O telegrama Kruger em 1896, quando o Kaiser impetuosamente enviou congratulações ao presidente do pequeno e independente Transvaal por ocasião do êxito dos afrikaners em rechaçar o raid de Jameson (um bando de aventureiros ingleses que tentou tomar o controle do Transvaal) provocou furiosos comentários na Inglaterra. “O Imperador alemão deu um passo muito grave,” disse o Times, “que deve ser visto como francamente hostil a este país.”[04] Salisbury estava em um jantar quando recebeu a notícia, e comentou-se que ele disse a sua vizinha na mesa, uma das filhas da Rainha Victoria: “Que topete, madame, que topete!”[05] A opinião pública inglesa ficou enfurecida. Recentemente Wilhelm fora agraciado com o título de coronel honorário dos Royal Dragoons. Consta que os oficiais dos Dragoons retalharam seu retrato e jogaram os pedaços no fogo.[06] Paul Hatzfeldt, embaixador alemão em Londres, informou para Berlim: “O estado de espírito geral é tal – disso não tenho dúvida – que, se o governo perdesse a cabeça e por alguma razão quisesse declarar guerra, teria o apoio de todo o povo.”[07] Às vésperas da Grande Guerra, Sir Edward Goschen, embaixador inglês em Berlim, disse a um colega que, em sua opinião, o telegrama Kruger marcou o início da divisão entre Inglaterra e Alemanha.[08]

Mesmo quando chegavam a acordos, o processo deixava resíduos de amargor e desconfiança. Quando em 1898 a Inglaterra criou obstáculos nas negociações que envolviam as colônias portuguesas, o Kaiser escreveu um memorando irado: “A conduta de Lord Salisbury é absolutamente jesuítica, monstruosa e insolente!”[09] De sua parte, os ingleses ficaram profundamente ressentidos com o fato de os alemães tentarem explorar a preocupação inglesa com a deterioração da situação no sul da África para levar o país a recorrer, desde o coneço, à negociação. Salisbury, que não compartilhava o entusiasmo de Chamberlain por uma ampla aliança com a Alemanha, disse ao embaixador alemão: “Vocês pedem demais por sua amizade!”[10]

No ano seguinte a Alemanha ameaçou retirar seu embaixador de Londres quando Salisbury se recusou a ceder às reivindicações alemãs nas ilhas Samoa. O Kaiser, veemente, enviou uma carta extraordinariamente rude a sua avó criticando o primeiro-ministro inglês. “Essa forma de tratar de interesses e sentimentos da Alemanha chegou ao povo como um choque elétrico, deixando a impressão de que Lord Salisbury tem para conosco a mesma consideração que dispensa a Portugal, Chile ou aos habitantes da Patagônia.” E acrescentou, ameaçando: “Se esse tratamento arrogante dispensado aos negócios alemães pelo governo de Lord Salisbury continuar, temo que se transformará em fonte permanente de desentendimentos e recriminações entre as duas nações, e pode, afinal, causar incidentes mais graves.”[11] A velha rainha, depois de consultar Salisbury, replicou com firmeza: “Só posso atribuir esse tom com que fala de Lord Salisbury a uma irritação temporária de sua parte, pois, não fosse isso, creio que não escreveria dessa maneira. Também duvido que algum soberano tenha um dia escrito nesses termos para outro soberano, sobretudo quando esse soberano é sua própria avó, criticando seu primeiro-ministro.”[12]

A Guerra dos Bôeres gerou novas tensões. No fim das contas, o governo alemão na verdade ajudou, ao se recusar a integrar coalizão de países que se propunha a forçar a Inglaterra a celebrar a paz com as duas repúblicas bôeres. A Alemanha não recebeu o crédito que merecia, em parte por causa do tom ora condescendente, ora arbitrário que Bülow, entre outros, adotou com a Inglaterra. Como disse mais tarde Friedrich von Holstein, chefe efetivo do Ministério do Exterior alemão: “Agindo amistosamente e falando em tom inamistoso, nós caimos entre duas cadeiras. (Por ‘nós,’ entenda-se ‘Bülow’).”[13]

Acresce que o povo alemão, a começar pela Imperatriz, era em grande parte favorável aos bôeres, confirmando a percepção inglesa de que a Alemanha trabalhava ativamente pela derrota inglesa. Circularam rumores de que oficiais alemães estavam se alistando nas fileiras bôeres quando, na verdade, o Kaiser os proibira de se intrometer. Nos primeiros meses da guerra, a Inglaterra apreendeu três vapores-correio alemães suspeitos, erradamente como se verificou depois, de transportar material bélico para os bôeres. (Um deles, de acordo com Eckardstein, diplomata alemão, nada tinha de perigoso e transportava tão somente caixas de queijo suíço.) Diante da lentidão dos ingleses na liberação dos navios, o governo alemão acusou a Inglaterra de violar as leis internacionais e usou linguagem ameaçadora. Bülow, que por enquanto desejava manter vivas as conversas com Chamberlain, escreveu para o então Chanceler Hohenlohe: “A intensidade e a profundidade do lamentável desagrado da Alemanha pela Inglaterra são muito perigosas para nós. Se o povo inglês perceber com clareza o sentimento contrário à Inglaterra que hoje domina a Alemanha, ocorrerá um grande retrocesso nas relações entre os dois países.”[14] Realmente o povo inglês estava ciente do sentimento que imperava na Alemanha, porque a imprensa inglesa o mantinha detalhadamente informado. A organização Athenaeum Club de Londres mantinha uma exibição especial de charges alemãs e artigos antibritânicos.[15]

[04] The Times, 4 janeiro 1896.

[05] Roberts, Salisbury, 624.

[06] Balfour, M.L.G., The Kaiser and His Times (Nova York, 1972), 195.

[07] Steiner, Z. ed Neilson, K., Britain and the Origins of the First World War (Londres, 2003), 21.

[08] Ibid., 195.

[09] Kennedy, P.M., ‘German World Policy and the Alliance Negotiations with England, 1897-1900,’ Journal of Modern History, vol. 45, nº 4 (1973), 605-25, p. 614.

[10] Idem, The Rise of the Anglo-German Antagonism, 1860-1914 (Londres, 1982), 234.

[11] Massie, R. K., Dreadnought: Britain, Germany, and the Coming of the Great War (New York, 1992), 358.

[12] Ibid., 259.

[13] Kröger, M., ‘Imperial Germany and the Boer War,’ in K. M. Wilson (ed.), The International Impact of the Boer War (Londres, 2001), 25-42, p. 38.

[14] Balfour, M.L.G., The Kaiser and His Times (Nova York, 1972), 222-3.

[15] Kennedy, Rise of the Anglo-German Antagonism, 246-7.

 



“A corrida naval entre Alemanha e Inglaterra contribuiu para que a Europa caminhasse para a guerra. A decisão alemã de desafiar a supremacia naval inglesa fez com que os ingleses reagissem aumentando as despesas com a marinha e superando divergências com antigos antagonistas, como a França e a Rússia, com o intuito de criar a Tríplice Entente. Esta charge, de 1909, no auge da corrida armamentista naval, mostra Inglaterra e Alemanha correndo em uma estrada feita de cartuchos, com a morte à espreita.”

 

 

“Bülow, que tinha a missão nada invejável de conseguir dinheiro para o programa de construção naval de Tirpitz, começava a achar que a Alemanha não estava em condições de sustentar o exército mais poderoso e a segunda maior marinha da Europa. “Não podemos enfraquecer o exército,” escreveu em 1908, “pois nosso destino será decidido em terra.”[80] Seu governo enfrentava séria crise financeira. A dívida nacional da Alemanha quase dobrara desde 1900, e estava difícil aumentar a receita. Cerca de 90% de toda a despesa do governo central ia para o exército e a marinha, e, nos doze anos entre 1896 e 1908, graças em grande parte às despesas com a marinha, o gasto total com forças armadas duplicara, e o futuro era bem previsível. Quando Bülow tentou discutir o caso de maior conteção das despesas navais, um membro do entourage de Wilhelm pediu-lhe que não o fizesse, porque isso deixaria o Kaiser “muito triste.”[81] Bülow lutou durante o ano inteiro de 1908, tentando elaborar um plano de reforma tributária cuja aprovação poderia conseguir via Reichstag, mas suas propostas de aumentar o imposto sobre heranças enfureceram a direita, e novos impostos sobre consumo produziram reação semelhante na esquerda. Por fim, em julho de 1909, não conseguindo resolver o problema, apresentou sua demissão a Wilhelm. Tirpitz prevaleceu porque no fim teve o Kaiser a seu lado.”

[80] Epkenhans, M., Tirpitz: Architect of the German High Seas Fleet (Washington, D.C., 2008), versão Kindle, loc. 758-61.

[81] Bülow, B., Memoirs of Prince von Bulow (Boston, 1931), vol. I, 357.

 

 

A corrida naval é o fator-chave para entender a crescente hostilidade entre Inglaterra e Alemanha. Rivalidade comercial, disputa por colônias, opiniões públicas nacionalistas, todas influíram, mas eram fatores já existentes, parcial ou totalmente, nas relações entre a Inglaterra e vários outros países, como a França, a Rússia e os Estados Unidos. Mas nenhum levou à profunda desconfiança e aos temores que marcaram as relações entre Inglaterra e Alemanha nos anos que antecederam 1914. E poderia ter sido bem diferente. Alemanha e Inglaterra eram as maiores parceiras comerciais uma da outra antes de 1914 (o fato contradiz que, quanto mais as nações comerciam entre si, menor seja a probabilidade de entrarem em conflito). Seus interesses estratégicos poderiam se entrosar com facilidade, com a Alemanha sendo a maior potência terrestre na Europa e a Inglaterra a maior nos mares.

Porém, ao começar a Alemanha a construção de uma esquadra poderosa, tinha de intranquilizar a Inglaterra. A Alemanha talvez apenas desejasse uma esquadra de alto-mar destinada a, como afirmou repetidamente, proteger seu comércio exterior e suas colônias, e porque grandes marinhas assinalavam o status de grande potência, tal como é o caso hoje de armas nucleares. Os ingleses poderiam conviver com isso, como conviviam com o poder naval russo, americano ou japonês. O que não podiam aceitar eram os reflexos geográficos. Quer estivesse no Báltico ou em portos na costa alemã do Mar do Norte, a marinha alemã estaria muito próxima às Ilhas Britânicas. (...)

Longe de forçar a Inglaterra a ser amiga, como planejava Tirpitz, a corrida naval criou um fosso profundo entre os dois países e levou ao endurecimento da opinião das elites e dos públicos de um contra o outro. Igualmente importante, persuadiu a Inglaterra a buscar novos aliados para contrabalançar a ameaça alemã. Bülow estava certo ao escrever a Tirpitz após a Grande Guerra afirmando que, embora a Alemanha tenha sido levada à guerra pelo “nosso tosco tratamento de um problema nos Balcãs (...) resta indagar se a França e particularmente a Rússia se deixariam arrastar para a guerra se a opinião pública na Inglaterra não tivesse reagido com tanta veemência à construção de nossos grandes navios de guerra.”[96]

E se parte dos recursos derramados na marinha tivesse ido para o exército? Tivesse servido para aumentar efetivos e poder de fogo, tornando as forças terrestres alemãs mais poderosas em 1914, sua ofensiva na França naquele verão teria alcançado êxito, como quase aconteceu? O que isso teria significado para a Grande Guerra e a Europa? A corrida naval também levanta a questão de como indivíduos são importantes na história. Não teria havido corrida naval sem a capacidade econômica, industrial e tecnológica de cada um dos dois países para sustentá-la. Nem teria continuado sem apoio popular. Mas nem teria acontecido, em primeiro lugar, sem a determinação e o ativismo de Tirpitz e sem a vontade do Kaiser de apoiá-lo até a raiz – e a possibilidade de fazê-lo que lhe dava a imperfeita constituição alemã. Quando Tirpitz se tornou ministro da Marinha, não havia um lobby das elites dirigentes a favor da construção de uma grande esquadra, tampouco forte apoio popular. Ambos vieram mais tarde, quando a marinha cresceu.

Devido à corrida naval, as opções para preservar a longa paz europeia foram se estreitando, e o caminho para a guerra ficou mais visível. A primeira iniciativa de vulto da política externa inglesa como resultado da corrida naval – seu movimento de acertar as relações com a França – foi uma medida de caráter defensivo, mas, em retrospecto, é fácil constatar quanto influiu na inclinação para a guerra. Também é interessante salientar, focalizando a década anterior a 1914, a frequência e a facilidade com que a possibilidade de uma guerra, até mesmo geral, fazia parte das discussões em toda a Europa.”

[96] Kennedy, Rise of the Anglo-German Antagonism, 423.

 

 

O caso Dreyfus também teve repercussão internacional. Defensores de ambos os lados acreditavam que a questão era parte de uma grande conspiração internacional. Um proeminente nacionalista espelhou a suspeição da direita ao afirmar que “um grupo de maçons, judeus e estrangeiros está tentando desacreditar o exército para entregar nossa nação aos ingleses e aos alemães.”[25] Dreyfusards anticlericais, ao contrário, viam a mão do Papa por trás de tudo, particularmente por intermédio dos jesuítas. Fora da França a questão produziu um efeito particularmente desfavorável na opinião pública inglesa, justamente quando as relações entre Inglaterra e França estavam tensas devido ao incidente de Fashoda e à eclosão da Guerra dos Bôeres em 1899, pouco depois do desfecho insatisfatório do novo julgamento de Dreyfus. De modo geral os ingleses eram dreyfusards e viam a questão como nova prova, se é que era necessária, da falta de confiabilidade e torpeza moral dos franceses. No Hyde Park, 50 mil pessoas compareceram a uma manifestação de apoio a Dreyfus. A Rainha Victoria enviou seu Lord Presidente do Supremo Tribunal a Rennes para acompanhar os processos do tribunal e reclamou com Salisbury da “monstruosa e terrível condenação do pobre mártir Dreyfus.” Em sinal de protesto, cancelou seu habitual período de férias na França, e muitos súditos ingleses seguiram seu exemplo. Empresários consideraram seriamente a possibilidade de boicotar a Exposição de Paris em 1900.[26] “Uma coisa pelo menos se pode dizer em favor dos alemães,” disse o chefe do Conselho Municipal de Paris para Barclay, “eles são des ennemis francs. Não escondem que querem nos engolir tão logo possam. Com eles, sabemos onde estamos pisando. Mas com os ingleses ninguém sabe. Sua hipocrisia e sua perfídia não são inconscientes. Premeditadamente engabelam você com promessas e palavras doces e, depois que o empurram para o precipício, levantam os olhos para o céu, agradecem a Deus por serem um povo moralista e rezam por sua alma!”[27]

Ao ingressar no novo século a França estava em posição vulnerável, interna e externamente. Suas relações com a Inglaterra eram imprevisíveis, com os alemães, corretas, embora frias, tensas com a Espanha, Itália e Império Austro-Húngaro, todos esses estados seus rivais no Mediterrâneo. Mesmo assim a França conseguiu romper a quarentena que lhe fora imposta por Bismarck e fazer aliança muito importante com a Rússia. Era uma amizade improvável entre uma república de passado revolucionário e uma potência autocrática do leste. Também foi um passo importante no caminho que levou a Europa à Grande Guerra. Embora a França e a Rússia tentassem disfarçá-la com uma fachada defensiva, como normalmente acontece, essa aliança foi vista sob perspectiva muito diferente. Como a Polônia ainda não fora reconstituída no mapa da Europa, os alemães podiam ver, e viram muitas vezes, seu país cercado de potências hostis, tanto na fronteira leste quanto na oeste. Muita coisa aconteceria em consequência da aliança franco-russa, como a Alemanha buscar aproximação com a Áustria-Hungria, estado que via como o único aliado com que poderia contar para não se ver totalmente cercada.

Nem mesmo Bismarck conseguiria manter a França indefinidamente isolada, mas o fracasso de seus sucessores na revalidação do Tratado de Ressegurança com a Rússia em 1890 abriu uma porta, e os franceses rapidamente aproveitaram para entrar. A Rússia oferecia uma saída do isolamento, e sua posição geográfica significava que, em qualquer conflito futuro em que a França se envolvesse, a Alemanha teria de olhar para leste por cima do ombro. Ademais, a Rússia tinha o que faltava à França – fartos recursos humanos. O pesadelo demográfico que os franceses enfrentavam e continuariam vivendo nas décadas de 1920 e 1930 era o fato de sua população não crescer, ao contrário da alemã. Em 1914, para 39 milhões de franceses, havia 60 milhões de alemães. Numa época em que os exércitos dependiam mais de quantidade do que qualidade, isso significava maior potencial militar da Alemanha.

O que contribuiu para tornar a Rússia receptiva à ideia de uma aliança foi a França poder oferecer aquilo de que o país precisava desesperadamente: capital. A economia russa estava se expandindo rapidamente e necessitava de mais recursos financeiros do que o governo era capaz de levantar dentro do país. Embora fossem, até então, a principal fonte de empréstimos estrangeiros à Rússia, os bancos alemães agora estavam emprestando dentro da própria Alemanha. Londres era outra possibilidade para levantar empréstimos, mas a fase desfavorável que atravessavam as relações entre Rússia e Inglaterra indicava que o governo e os bancos ingleses relutariam em emprestar dinheiro a um país que de uma hora para outra podia se tornar inimigo. Esse fato incluiu a França no rol das maiores potências europeias. Graças à parcimônia de seu povo, havia dinheiro de sobra à procura de bom investimento. Em 1888, dois anos antes de expirar o Tratado de Ressegurança, os bancos franceses concederam o que seria o primeiro de muitos empréstimos ao governo russo. Em 1900, a França era, de longe, o maior investidor estrangeiro na Rússia (maior do que Inglaterra e Alemanha juntas), alimentando a rápida expansão da infraestrutura e das indústrias russas. Em 1914, as linhas ferroviárias usadas pelo exército russo para chegar a suas fronteiras tinham sido construídas, em sua maior parte, com dinheiro francês. Investidores franceses logo descobririam, quando os bolcheviques assumiram o poder e consideraram nulos todas as dívidas externas, que um quarto de todos os seus investimentos no estrangeiro estava na Rússia.[28]”

[25] Tombs, R. e Tombs, I., That Sweet Enemy: The French and the British from the Sun King to the Present (Nova York, 2008), 426.

[26] Ibid., 426-7.

[27] Barclay, T., Thirty Years: Anglo-French Reminiscences, 1876-1906 (Londres, 1914), 140-41.

[28] Lincoln, W. B., In War’s Dark Shadow: The Russians before the Great War (Oxford, 1994), 17.

 

 

Ambos os lados tiveram de superar o passado: Napoleão incendiando Moscou em 1812, o Czar Alexandre I e suas tropas marchando triunfalmente pelas ruas de Paris dois anos mais tarde ou a Guerra da Crimeia. Ambos tiveram de engolir as desconfianças: as da Rússia em relação ao republicanismo e anticlericalismo da França; e as da França em relação à autocracia e à ortodoxia czaristas. Não obstante, a classe alta russa admirava os modos franceses e falava francês com maior facilidade do que o russo, e no último quarto do século XIX os franceses tomaram gosto pelos grandes romances e pela música da Rússia. Mais importante, no fim dos anos 1880, o ministro do Exterior russo e os chefes militares começavam a se alarmar com a possibilidade de a Inglaterra, considerada potência nada amistosa, juntar-se a Tríplice Aliança de Alemanha, Áustria-Hungria e Itália. Nesse caso, a Rússia acabaria isolada como a França. Incidentalmente, pois a ele cabia a última palavra, o Czar de então, Alexandre III, começava a aceitar a ideia de uma aliança com a França, influenciado pela esposa, que, como membro da família real dinamarquesa, detestava a Prússia por ter derrotado seu país e se apossado dos ducados de Schleswig-Holstein. O Czar também parecia profundamente ofendido pela decisão alemã de não renovar o Tratado de Ressegurança em 1890. Um mês após a expiração do tratado, os generais russos conversaram sobre um possível acordo militar com um general francês que assistia às manobras anuais do exército russo.[29]

No ano seguinte, França e Rússia negociaram um acordo militar secreto pelo qual se comprometiam à defesa mútua caso um dos dois países fosse atacado por um membro da Tríplice Aliança. Parece ter havido certa precipitação, pois as duas partes levaram um ano e meio para ratificar o acordo, e durante a década seguinte houve momentos em que a aliança franco-russa esteve por um fio, quando os interesses  dos dois países eram divergentes ou entravam em choque. Em 1898, por exemplo, os franceses ficaram profundamente desapontados quando os russos se negaram a apoiá-los na questão de Fashoda. A aliança não foi propriamente causa da guerra em 1914, mas sua existência contribuiu para aumentar as tensões na Europa.

Embora o acordo fosse secreto, os observadores logo puderam perceber que ocorrera significativa mudança nas relações internacionais na Europa. Em 1891, o Czar concedeu a mais importante condecoração russa ao presidente francês. No verão do mesmo ano, a esquadra francesa visitou a base naval russa em Kronstadt, logo a oeste de São Petersburgo, e o mundo viu o Czar em posição de sentido enquanto era tocada a Marselhesa, embora proibida na Rússia por ser canção revolucionária. Dois anos depois, a esquadra russa foi a Toulon, retribuindo a visita. Multidões de franceses gritavam “Vive la Russie! Vive le Tsar!” e ofereciam jantares, recepções, almoços, brindes e discursos aos visitantes. “Praticamente não havia uma só mulher em Paris,” relatou um jornalista, “que não estivesse disposta a esquecer seus deveres e satisfazer os desejos dos marinheiros russos.”[30] O embaixador inglês ficou admirado com o entusiasmo de genuínos republicanos pelo Czar e seu regime, mas compreendia a explosão emocional da França: “O povo francês, como as nações celtas, é sensível e morbidamente ávido por simpatia e admiração. A guerra com a Alemanha e suas consequências tinham ferido agudamente sua vaidade e, embora tivesse enfrentado essa humilhação com paciência e dignidade, a ofensa não desaparecera.”[31]”

[29] Keiger, J., France and the Origins of the First World War (Basingstoke, 1983); Fuller, W.C., Strategy and Power in Russia, 1600-1914 (Nova York, 1992), 353-4.

[30] Sanborn, J., ‘Education for War, Peace, and Patriotism in Russia on the Eve of World War I,’ in H. Afflerbach e D. Stevenson (eds.), An Improbable War? The Outbreak of World War I and European Political Culture before 1914 (Nova York, 2007), 213-29, pp. 213-14.

[31] BD, vol. II, 35, pgs. 285-8.

Nenhum comentário:

Postar um comentário