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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Fé e saber, de Jürgen Habermas

Editora: Unesp

ISBN: 978-85-393-0403-5

Tradução: Fernando Costa Mattos

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 88

Sinopse: Segundo volume da Coleção Habermas, este texto reproduz um discurso do filósofo proferido aproximadamente um mês depois do 11 de setembro de 2001. Embora circunstancial, é de grande importância no conjunto da obra do filósofo que, ao retomar o clássico tema fé e saber, adota uma nova expressão — “pós-secular” — imprimindo mudanças em sua teoria da modernidade, presente em suas obras posteriores.



“Apesar de sua pequena dimensão e seu caráter circunstancial, Fé e Saber ocupa lugar de destaque na vasta e complexa obra de Habermas. O texto reproduz o discurso pronunciado na recepção do Prêmio da Paz concedido pela Associação dos Comerciantes de Livros da Alemanha, cerca de um mês após o acontecimento histórico de 11 de Setembro de 2001. Ocasião propícia para mais uma vez traçar um panorama intelectual de época, exercitando a mediação interpretadora típica da filosofia e, como se poderia esperar, colocando à prova seu próprio pensamento. O diagnóstico de Habermas tem como mira principal o tempo nascente de um novo milênio cuja situação cultural exibiria duas tendências contrárias: de um lado, a propagação de imagens de mundo naturalistas; e, de outro, a revitalização inesperada de comunidades de fé e tradições religiosas e sua politização em escala mundial. Não chega a ser surpreendente, portanto, que o presente ensaio conclua com o exemplo da engenharia genética para ilustrar a atitude correta de uma filosofia racional e profana que, guardando distância da religião, não se fecha às suas perspectivas. A diferença absoluta entre o criador que dá forma à criatura, atribuindo-lhe ao mesmo tempo a capacidade de autodeterminação — de acordo com o relato bíblico do Gênesis, “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou” —, exprime bem a autocompreensão normativa de uma responsabilidade simétrica entre pessoas livres e iguais e serve de inspiração para uma moralidade política baseada na ideia de dignidade humana.” (Luiz Bernardo Leite Araujo — Apresentação)

 

 

No texto que se segue Habermas fala de uma modernidade com cabeça de Jano e de uma secularização dominada por sentimentos ambivalentes. Com isso ele pretende chamar a atenção para a dialética inconclusa de um movimento histórico cuja autocompreensão é resultado de processos de aprendizagem. Permanecendo aferrado à constelação pós-metafísica e secular do pensamento moderno, Habermas propõe uma reavaliação da tese tradicional da secularização com vistas a um questionamento do secularismo como visão de mundo. Não resta dúvida de que a laicização da autoridade política é a viga mestra do processo de secularização, do qual fazem parte a separação entre igreja e Estado, a instauração do pluralismo religioso e a adoção do regime de tolerância mútua entre credos e doutrinas divergentes. Mas a derrocada da unidade substancial das sociedades tradicionais em torno das interpretações míticas e das imagens religiosas e metafísicas de mundo — no seio das sociedades modernas desprovidas de garantias metassociais, funcionalmente diferenciadas e culturalmente heterogêneas — não quer dizer que a “destruição criadora” do processo de secularização equivalha a um “jogo de soma zero” entre poderes mundano e supramundano. E tampouco indica que o “impulso reflexivo” na direção do descentramento e da autonomização das perspectivas de mundo passe ao largo da “profanação do sagrado”, urdida inicialmente pelas grandes religiões surgidas na China, na Índia e em Israel — o chamado “período axial” de Karl Jaspers, quando também teve origem a filosofia na Grécia — em meados do primeiro milênio antes de Cristo.

Isso mostra que o pensamento pós-metafísico, que estabelece uma distinção rigorosa entre fé e saber, não se limita ao legado da metafísica ocidental, mas considera as doutrinas religiosas como integrantes da genealogia da razão, nutrindo-se de seu conteúdo normativo. A expressão “pós-secular” não é uma alternativa ao horizonte pós-metafísico da modernidade, o qual permanece “secular” a despeito daquele prefixo “pós”, correspondendo a uma mudança de mentalidade ou a uma alteração crítica do autoentendimento secularista de sociedades que se tornaram conscientes da persistência da religião, de sua relevante contribuição para a vida política, da necessidade de eliminar sobrecargas mentais e psicológicas desmesuradas para os cidadãos crentes, e ainda do imperativo de acomodação das vozes religiosas na esfera pública democrática. A “tradução cooperativa de conteúdos religiosos”, defendida por Habermas em Fé e saber, remete a uma ética da cidadania cuja realização depende de enfoques epistêmicos mediante os quais as dissonâncias cognitivas sejam tratadas como desacordos razoáveis entre todas as partes engajadas em processos de aprendizagem complementares. Se sobre o cidadão de fé recai a exigência de uma consciência reflexiva que relacione suas convicções com o fato do pluralismo, deixe às ciências institucionalizadas as decisões referentes ao saber mundano e torne as premissas igualitárias de uma moral universalista dos direitos humanos compatíveis com seu credo; o cidadão secular assume, por seu turno, as pressões adaptativas da situação pós-secular, na qual se atualiza a questão kantiana de como assimilar a herança semântica das tradições religiosas sem obliterar a fronteira entre os universos da fé e do saber.

Ressalta-se aqui o exemplo de “uma desconstrução ao mesmo tempo secularizante e salvadora das verdades de fé”. Para Habermas, o pensamento pós-metafísico deve adotar uma atitude simultaneamente agnóstica e receptiva diante da religião, ou seja, que se oponha a uma determinação estritamente secularista das razões publicamente aceitáveis sem, com isso, comprometer sua autocompreensão secular. É uma opção metodológica cogente para um tipo de pensamento que, lidando com a força especial das tradições religiosas no trato de intuições morais profundas e na articulação daquilo que falta ou que se perdeu, não pretende despi-las de possíveis conteúdos racionais, nem desvalorizá-las como resíduos arcaicos de uma figura do espírito superada pelas ciências, mas ainda assim insiste nas diferenças cruciais entre a fé e o saber como modalidades essencialmente distintas do ter algo por verdadeiro. Nesse sentido, a história do cristianismo é particularmente rica na ilustração desse trabalho conflituoso de apropriação racional e transformadora dos conteúdos religiosos veiculados pelas comunidades de crentes, sendo impensável a modernidade ocidental sem a dupla herança da espiritualidade judaico-cristã e da racionalidade grega, isto é, sem a permanente e produtiva relação de tensão entre a (religiosa) de Jerusalém e o saber (filosófico) de Atenas.”

(Luiz Bernardo Leite Araujo — Apresentação)

 

 

“Apesar de sua linguagem religiosa, o fundamentalismo é um fenômeno exclusivamente moderno. O que chama particularmente a atenção nos terroristas islâmicos é a assincronia entre os motivos e os meios. Reflete-se nisso a assincronia entre cultura e sociedade nos países natais desses terroristas, algo que só se constitui em decorrência de uma modernização acelerada e fortemente desenraizadora. Aquilo que em condições mais favoráveis poderia ser vivido, entre nós, como um processo de destruição criadora, não oferece por lá qualquer compensação perceptível para a dor que acompanha o declínio das formas de vida tradicional. Nesses países, a perspectiva de uma melhoria das condições materiais de vida é apenas uma perspectiva. O mais decisivo é que se bloqueia, por meio dos sentimentos de degradação, a transformação espiritual que se expressaria politicamente na separação entre religião e Estado. Também na Europa, que a história levou séculos para tornar sensível à cabeça de Jano da modernidade, a “secularização” continua a ser dominada por sentimentos ambivalentes — como se percebe na disputa em torno da engenharia genética.

Há ortodoxias endurecidas tanto no Ocidente como no Oriente Médio e no Extremo Oriente; entre cristãos e judeus, como entre muçulmanos. Quem quer evitar uma guerra de culturas precisa ter em mente a dialética inconclusa do nosso próprio processo ocidental de secularização. A “guerra contra o terror” não é uma guerra, e no terrorismo também se expressa um choque desastrosamente silencioso de dois mundos que precisariam desenvolver uma linguagem comum, para além da violência muda dos terroristas e dos mísseis. Em vista de uma globalização imposta por meio de mercados sem limites, muitos de nós têm a esperança de um retorno do político sob outra forma — não a forma hobbesiana original de um Estado de segurança globalizado, ou seja, com dimensões de polícia, serviço secreto e forças militares, mas a de um poder mundial de configuração civilizadora. No momento não nos resta muito mais do que a pálida esperança em alguma astúcia da razão — e um pouco de autorreflexão. Pois aquela ruptura muda cinde também a nossa própria casa. Nós só conseguiremos aferir adequadamente os riscos de uma secularização que saiu dos trilhos em outros lugares, se tivermos claro o que significa a secularização em nossas sociedades pós-seculares.”

 

 

Secularização na sociedade pós-secular

A palavra “secularização” teve, a princípio, o significado jurídico de uma transferência compulsória dos bens da Igreja para o poder público secular. Esse significado foi transmutado para o surgimento da modernidade cultural e social como um todo. Desde então, apreciações opostas têm sido associadas à “secularização”, conforme se coloque em primeiro plano ora a bem sucedida domesticação da autoridade eclesiástica pelo poder mundano, ora o ato de apropriação ilícita. De acordo com primeira leitura, modos de pensar e formas de vida religiosas são substituídos por equivalentes racionais, em todo caso superiores; de acordo com a outra leitura, as formas modernas de vida e pensamento são desacreditadas como bens furtados ilegitimamente. O modelo da substituição sugere uma interpretação otimista e progressista para uma modernidade desencantada; o modelo da apropriação forçada, uma interpretação teórica para o que seria a ruína de uma modernidade desamparada. As duas explicações cometem o mesmo erro. Elas consideram a secularização um jogo de soma zero entre, de um lado, as forças produtivas da ciência e da técnica, liberadas pelo capitalismo e, de outro, os poderes conservadores da religião e da Igreja. Um só pode ganhar à custa do outro, e isto segundo as regras liberais de um jogo que favorece as forças motrizes da modernidade.

Essa imagem não é adequada a uma sociedade pós­secular que se ajusta à sobrevivência de comunidades religiosas em um ambiente cada vez mais secularizante. Não é levado em conta o papel civilizador de um senso comum [Commonsense] democraticamente esclarecido que, em meio aos ânimos exacerbados da luta cultural, funciona como um terceiro partido, pavimentando seu próprio caminho entre a ciência e a religião. É certo que, do ponto de vista do Estado liberal, só merecem o predicado “razoáveis” as comunidades religiosas que, segundo seu próprio discernimento, renunciam à imposição violenta de suas verdades de fé, à pressão militante sobre as consciências de seus próprios membros, e tanto mais à manipulação para atentados suicidas1. Esse discernimento se deve a uma tríplice reflexão dos fiéis sobre a sua posição em uma sociedade pluralista. Primeiramente, a consciência religiosa tem de assimilar o encontro cognitivamente dissonante com outras confissões e religiões. Em segundo lugar, ela tem de adaptar-se à autoridade das ciências, que detêm o monopólio social do saber mundano. Por fim, ela tem de adequar-se às premissas do Estado constitucional, que se fundam em uma moral profana. Sem esse impulso reflexivo, os monoteísmos acabam por desenvolver um potencial destrutivo em sociedades impiedosamente modernizadas. A expressão “impulso reflexivo” [Reflexionsschub] dá a falsa impressão de um processo concluído e realizado unilateralmente. Na verdade, porém, esse trabalho reflexivo dá um novo passo a cada conflito que irrompe nos campos de batalha da esfera pública democrática.”

1 Rawls, Politischer Liberalismus, p. 132-141; Forst, Toleranz, Gerechtigkeit, Vernunft, p. 144-161.

 

 

“É claro que o senso comum, que produz tantas ilusões sobre o mundo, tem de ser esclarecido sem reservas pelas ciências. Mas as teorias científicas que penetram o mundo da vida deixam intacto, em seu cerne, o quadro do nosso saber cotidiano, no qual se constitui a autocompreensão de pessoas capazes de falar e agir. Quando aprendemos algo novo sobre o mundo, e sobre nós como seres no mundo, modifica­se o conteúdo de nossa autocompreensão. Copérnico e Darwin revolucionaram a imagem geocêntrica e antropocêntrica do mundo. Mas a destruição da ilusão astronômica sobre a órbita das estrelas deixou menos sinais no mundo da vida que o fim da ilusão biológica sobre o lugar do homem na história natural. Os conhecimentos científicos parecem inquietar tanto mais nossa autocompreensão, quanto mais próximos eles nos deixam diante do nosso próprio corpo.”

 

 

“O senso comum está entrelaçado, portanto, com a consciência de pessoas que podem tomar iniciativas, cometer erros e corrigi-los. Em oposição às ciências, ele afirma a sua estrutura perspectivística de maneira muito própria. Por outro lado, essa mesma consciência de autonomia, que não é compreensível de forma naturalista, funda a distância em relação a uma tradição religiosa de cujos conteúdos normativos, contudo, também nos nutrimos. Com a exigência de justificativas racionais, o esclarecimento científico parece, por seu turno, trazer para o seu lado um senso comum que firmou seu lugar no edifício — construído segundo o direito racional — do Estado constitucional democrático. Evidentemente, também o direito racional igualitário tem raízes religiosas — raízes naquela revolução do modo de pensar que coincide com a ascensão das grandes religiões mundiais. Mas essa legitimação do direito e da política nos termos do direito racional se alimenta de fontes da tradição religiosa há muito tempo profanadas. Ao contrário da religião, o senso comum democraticamente esclarecido mantém-se sobre bases que são aceitáveis não somente para os membros de uma comunidade religiosa. É por isso que o Estado liberal continua a despertar a suspeita, entre os fiéis, de que a secularização ocidental possa ser uma via de mão única em que a religião será marginalizada.

A liberdade religiosa tem como contrapartida, de fato, uma pacificação do pluralismo das visões de mundo cujos custos se mostraram desiguais. Até aqui, o Estado liberal só exige dos que são crentes entre seus cidadãos que dividam a sua identidade, por assim dizer, em seus aspectos públicos e privados. São eles que têm de traduzir as suas convicções religiosas para uma linguagem secular antes de tentar, com seus argumentos, obter o consentimento das maiorias. É assim que, quando querem reclamar o estatuto de portador de direitos fundamentais para os óvulos fecundados fora do corpo materno, os católicos e protestantes procuram hoje (talvez prematuramente) traduzir a imagem e semelhança a Deus da criatura humana para a linguagem secular do direito constitucional. Mas a procura por argumentos voltados à aceitabilidade universal só não levará a religião a ser injustamente excluída da esfera pública, e a sociedade secular só não será privada de importantes recursos para a criação de sentido, caso o lado secular se mantenha sensível para a força de articulação das linguagens religiosas. Os limites entre os argumentos seculares e religiosos são inevitavelmente fluidos. Logo, o estabelecimento da fronteira controversa deve ser compreendido como uma tarefa cooperativa em que se exija dos dois lados aceitar também a perspectiva do outro.”

 

 

“A política liberal não deve externalizar o persistente conflito sobre a autocompreensão secular da sociedade, ou seja, deslocando-o para a cabeça dos religiosos. O senso comum democraticamente esclarecido não é algo singular, mas algo que descreve a constituição mental de uma esfera pública com muitas vozes. As maiorias seculares não devem chegar a conclusões, em questões desse tipo, antes de dar ouvidos à objeção dos oponentes que se sentem lesados em suas convicções religiosas; elas devem considerar essa objeção como uma espécie de veto suspensivo e verificar o que podem aprender com isso. No que diz respeito à origem religiosa de seus fundamentos morais, o Estado liberal deveria contar com a possibilidade de que, diante de desafios inteiramente novos, a “cultura do comum entendimento humano” (Hegel) possa não alcançar o nível de articulação da história de seu próprio surgimento. A linguagem do mercado penetra hoje todos os poros, forçando todas as relações entre seres humanos a encaixar-se no esquema de uma orientação autorreferente de acordo com as próprias preferências. No entanto, o vínculo social que se prende ao reconhecimento recíproco não se ajusta aos conceitos do contrato, da escolha racional e da maximização da utilidade.8

Por isso Kant não queria deixar o dever categórico desaparecer sob a onda do interesse autoesclarecido. Ele ampliou a liberdade de arbítrio de modo a abarcar a autonomia e, com isso, forneceu o primeiro grande exemplo — após a metafísica — de uma desconstrução ao mesmo tempo secularizante e salvadora das verdades de fé. A autoridade dos mandamentos divinos tem um eco na validade incondicional dos deveres morais que não podemos deixar de escutar. Com o seu conceito de autonomia, Kant certamente destrói a representação tradicional da nossa filiação divina.9 Mas ele só percebeu as consequências mais banais dessa deflação esvaziante através de uma apropriação do conteúdo religioso. Sua tentativa de traduzir o mal radical da linguagem bíblica para a linguagem da religião racional pode parecer-nos pouco convincente. Tal como mostra hoje, uma vez mais, o uso desenfreado dessa herança bíblica, nós ainda não dispomos de um conceito apropriado para a diferença semântica entre o moralmente incorreto e o profundamente mal. Não existe o demônio, mas o anjo caído segue seu curso calamitoso — seja nos bens invertidos da ação monstruosa, seja também no incontornável ímpeto de vingança que o segue de perto.”

8 Honneth, Kampf um Anerkennung.

9 O prefácio à primeira edição de A religião nos limites da simples razão começa com a frase: “Na medida em que está fundada no conceito do ser humano como um ser livre que, justamente por isso, prende-se a si mesmo, através de sua razão, em limites incondicionados, a moral não precisa nem da ideia de um outro ser sobre ele, para reconhecer seus deveres, nem de um outro motivo que não a própria lei”. (Kant, Die Religion..., p.649.)

 

 

A história da filosofia alemã desde Kant pode ser compreendida como um processo judicial em que são tratadas essas questões de partilha da herança. A helenização do cristianismo havia conduzido a uma simbiose entre a religião e a metafísica, Kant volta a separá-las. Ele traça um limite preciso entre a fé moral da religião raciona e a fé revelada positiva, que teria conduzido a um melhoramento da alma, mas, “com seus amuletos, estatutos e prescrições”, teria acabado por tornar-se “uma amarra”.10 Para Hegel, isso é puro “dogmatismo do Esclarecimento”. Ele zomba da vitória de Pirro de uma razão que, como os bárbaros vencedores que se subordinam ao espírito da nação vencida, só mantém “a supremacia no que diz respeito à dominação exterior”.11 No lugar de uma razão que traça limites, aparece uma razão que toma para si. Hegel faz da morte do filho de Deus na cruz o centro de um pensamento que quer incorporar o conteúdo positivo do cristianismo. O tornar-se homem de Deus simboliza a vida do espírito filosófico. Também o Absoluto tem de externalizar-se no outro de si mesmo, pois ele só tem a experiência de si como poder absoluto quando se reelabora a partir da dolorosa negatividade da autolimitação. Assim, com efeito, os conteúdos religiosos são  superados na forma do conceito filosófico. Mas Hegel sacrifica a dimensão histórica de salvação do futuro em nome de um processo do mundo que gira em torno de si mesmo.

Os discípulos de Hegel rompem com o fatalismo dessa desesperadora antevisão de um eterno retorno do mesmo. Eles não querem mais superar a religião no pensamento, mas sim realizar os seus conteúdos profanados através do esforço solidário. Esse pathos de uma efetivação dessublimadora do reino de Deus na Terra move a crítica à religião desde Feuerbach e Marx até Bloch, Benjamin e Adorno: “Nenhum conteúdo teológico permanecerá sem modificação; todos terão de passar pela prova e transformar-se em conteúdos seculares, profanos”.12 Nesse meio tempo, o curso da história havia tratado de mostrar que a razão se vê sobrecarregada com esse projeto. Na medida em que, com isso, a razão acaba por desesperar-se consigo mesma, Adorno se socorreu, mesmo que para fins estritamente metodológicos, do ponto de vista messiânico: “a única luz que o conhecimento possui é aquela que a redenção faz brilhar sobre o mundo”.13 A esse Adorno se aplica a frase que Horkheimer cunhou para a teoria crítica como um todo: “Ela sabe que Deus não existe, mas ainda assim acredita nele”.14 Sob outras premissas, Jacques Derrida (também deste ponto de vista um merecido ganhador do Prêmio Adorno) adota hoje uma posição semelhante. Ele só quer conservar do messianismo “o mais mínimo elemento messiânico, que tem de estar despido de tudo”.15

Evidentemente, a região limítrofe entre a filosofia e a religião é um terreno minado. Uma razão que desmente a si mesma cai facilmente na tentação de simplesmente tomar para si a autoridade e o gesto de um sagrado desessencializado, tornado anônimo.”

12 Adorno, Vernunft und Offenbarung, p.20.

13 Adorno, Minima Moralia, p.480.

14 Horkheimer, Gesammelte Schriften, v.14, p.508.

15 Derrida, Glauben und Wissen, p.33; cf. também Derrida, Den Tod Geben.

 

 

“Na controvérsia sobre como lidar com os embriões humanos, por exemplo, muitas vozes se remetem a Moisés I,27: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou”. Não é preciso acreditar que Deus, que é amor, atribui a Adão e Eva um ser livre semelhante ao seu, para compreender o que significa algo ser criado à imagem de algo. O amor não pode existir sem o reconhecer-se em um outro, a liberdade não pode existir sem o reconhecimento recíproco.”

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