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segunda-feira, 3 de julho de 2023

O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado (Parte II), de Mariana Mazzucato

Editora: Portfolio Penguin

ISBN: 978-85-8285-003-9

Tradução: Elvira Serapicos

Opinião: ★★☆☆☆

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Páginas: 318

Sinopse: Ver Parte I



 

A constatação de que o impacto do crescimento é diverso para diferentes tipos de empresas tem implicações significativas para a suposição muito comum de que as “empresas pequenas” são importantes (para o crescimento, para a inovação e para o emprego) e, portanto, que muitas políticas diferentes que têm como alvo as pequenas e médias empresas (PME) são necessárias para gerar crescimento e inovação. Hughes (2008) mostrou que no Reino Unido as PME receberam perto de 9 bilhões de libras em apoio direto e indireto do governo, o que é mais do que recebe a força policial. Esse dinheiro é bem gasto? A propaganda que envolve as pequenas empresas surge principalmente devido à confusão entre tamanho e crescimento. Os indícios mais fortes enfatizam não o papel das pequenas empresas na economia, mas principalmente o papel das empresas jovens com grande crescimento. O NESTA, por exemplo, mostrou que as empresas mais importantes para o crescimento no Reino Unido foram as poucas que cresceram rapidamente e que, entre 2002 e 2008, geraram o maior aumento no nível do emprego no país (NESTA, From Funding Gaps to Thin Markets, 2011). E apesar de muitas dessas de crescimento rápido serem pequenas, nem todas as empresas pequenas apresentaram esse crescimento rápido.6  As explosões de crescimento rápido que promovem inovação e criam empregos são em geral causadas por empresas que existem há muitos anos e cresceram gradualmente até decolar. Isso representa um grande problema, já que muitas políticas governamentais enfocam incentivos fiscais e benefícios para PME s, visando tornar a economia mais inovadora e produtiva.

Apesar de se falar muito da criação de empregos pelas pequenas empresas, cada vez mais visadas pelos formuladores de políticas, isso é basicamente um mito. Embora gerem emprego por definição, na verdade as pequenas empresas também eliminam muitos postos de trabalho ao fecharem as portas. Haltiwanger, Jarmin e Miranda (Who Creates Jobs? Small vs. Larger vs. Young, 2010) acreditam que não existe uma relação sistemática entre o tamanho da empresa e o crescimento. A maior parte do efeito está relacionada à idade: empresas jovens (e start-ups) contribuem substancialmente tanto para a criação bruta como líquida de empregos.

O foco deveria ser a produtividade, e as empresas pequenas geralmente são menos produtivas do que as grandes. Evidências recentes sugerem que algumas economias que favoreceram as empresas pequenas, como a Índia, tiveram um desempenho pior. Hsieh e Klenow (Misallocation and Manufacturing TFP in China and India, 2009), por exemplo, sugerem que de 40% a 60% da diferença da produtividade total dos fatores (PTF) entre a Índia e os Estados Unidos se deve à má distribuição da produção entre muitas empresas pequenas e PME s com baixa produtividade na Índia. Como a maioria das start-ups fracassa ou não consegue crescer e ir além do proprietário e único funcionário, a ajuda através de doações, empréstimos em condições favoráveis ou incentivos fiscais certamente envolve bastante desperdício. Embora esse desperdício seja uma aposta necessária no processo de inovação (JANEWAY, Doing Capitalism in the Innovation Economy, 2012), é importante que o processo de financiamento ao menos se guie pelo que sabemos a respeito das empresas inovadoras com “grande crescimento” em vez de se ater a alguma ideia folclórica sobre o valor das PME s como categoria agregada — o que realmente significa muito pouco.

Bloom e Van Reenen (Measuring and Explaining Management Practices across Firms and Countries, 2006) argumentam que as empresas pequenas são menos produtivas do que as grandes porque não são tão bem administradas e estão sujeitas aos favoritismos familiares provincianos. Além disso, as empresas pequenas têm salários médios mais baixos, menos trabalhadores qualificados, menos treinamento, menos benefícios e maiores chances de falência. Eles argumentam que o Reino Unido tem muitas empresas familiares e um desempenho fraco em gestão na comparação com outros países, como Estados Unidos e Alemanha (2006). Entre outros motivos, isso está relacionado ao fato de existir uma distorção no sistema tributário, que dá isenções fiscais na sucessão de empresas familiares.

O resultado é que alguns interpretam que o importante é o alto crescimento, e não o tamanho, e que o melhor que o governo pode fazer é proporcionar condições para o crescimento por meio de políticas que incentivem a inovação. Bloom e Van Reenen (2006) argumentam que em vez de conceder benefícios e isenções fiscais para as PME s, a melhor maneira de apoiar as pequenas empresas é “assegurar condições de concorrência equitativas por intermédio da remoção de barreiras à entrada e crescimento, entre empresas de todos os tamanhos, implementando uma política de concorrência e resistindo firmemente às pressões das grandes companhias e seus agentes”. Mas como veremos nos capítulos 3 e 5, em geral as empresas mais inovadoras são exatamente aquelas que mais têm se beneficiado com os investimentos públicos diretos de diferentes tipos, tornando a associação entre tamanho e crescimento muito mais complexa.

A implicação política é que em vez de dar esmolas para as pequenas empresas esperando que elas cresçam, é melhor oferecer contratos para jovens empresas que já demonstraram ambição. É mais eficaz encomendar tecnologias que exijam inovação do que distribuir subsídios esperando que a inovação ocorra. Em uma época na qual os déficits orçamentários estão limitando os recursos disponíveis, essa abordagem poderia render uma economia significativa para os contribuintes se, por exemplo, acabassem as transferências diretas para as empresas, feitas devido apenas ao seu tamanho, como benefícios fiscais para empresas de pequeno porte e isenções fiscais na sucessão de empresas familiares (SCHMIDT, You Cannot Buy Innovation, 2012).”

6 Para não falar do efeito estatístico do tamanho: enquanto uma microempresa de uma pessoa que contrata um funcionário irá apresentar um crescimento de 100% em termos de emprego, uma empresa de 100 mil pessoas que contrata mil funcionários apresentará um crescimento de “apenas” 1% em termos de emprego. Mesmo assim, não há dúvida em relação a qual empresa contribui mais para a redução do desemprego no nível macro.

 

 

O apoio e envolvimento do Estado em biotecnologia tomam várias formas, sendo a mais importante delas o fato de que a enorme base de conhecimento da qual dependem as empresas biofarmacêuticas se desenvolveu mais com investimento do governo do que das empresas. Essa base de conhecimento se expandiu com o investimento fundamental do governo no financiamento da ciência básica. Na linha de frente estão os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) e outros programas governamentais que investiram em muitas das conquistas fundamentais sobre as quais a indústria construiu seu sucesso. Com base nos dados relativos aos gastos do NIH levantados por Lazonick e Tulum (ibid., 2011), é fácil ver como esse financiamento foi crucial para a inovação biotecnológica. De 1978 a 2004, os gastos do NIH com pesquisas em ciências naturais chegaram a 365 bilhões de dólares. Entre 1970 e 2009, com exceção de uma pequena queda em 2006, o financiamento dos NIH cresceu ano a ano em termos nominais, ao contrário dos financiamentos flutuantes do capital de risco e do mercado de ações.

O gráfico 8 mostra que o gasto total dos NIH entre 1936 e 2011 (em dólares de 2011) foi de 792 bilhões de dólares. Só o orçamento para 2012 chegou a 30,9 bilhões de dólares. Assim, enquanto o empresariado continua a pressionar por cortes tributários e menos burocracia, no fim das contas ele se mostra bastante dependente do financiamento das receitas fiscais que tanto combate. E de fato, aqueles países, como o Reino Unido, que estão cada vez mais convencidos de que o que impulsiona os negócios são “impostos baixos e regulamentação fraca” estão sofrendo com a fuga de muitas empresas, como a Pfizer e a Sanofi.”

 

 

[…] desde sua fundação, os Estados Unidos sempre estiveram divididos entre duas tradições, as políticas ativistas de Alexander Hamilton (1755-1804) e a máxima de Thomas Jefferson (1743-1826), segundo a qual “o governo que governa menos, governa melhor!”. Com o tempo e o costumeiro pragmatismo americano, essa rivalidade foi resolvida com os seguidores de Jefferson encarregando-se da retórica e os seguidores de Hamilton cuidando da política.

(Erik Reinert – How Rich Countries Got Rich and Why Poor Countries Stay Poor, 2007, p. 23)

 

 

A Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA)

O papel do engajamento militar para o desenvolvimento e o crescimento econômico não diferencia a história dos Estados Unidos da de outros países modernos. Mas nos Estados Unidos a experiência do desenvolvimento tecnológico necessário para vencer guerras proporcionou grandes lições para aqueles que estão procurando melhorar as políticas de inovação.

O papel do Estado na Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA) vai muito além do mero financiamento da ciência básica. Trata-se de direcionar recursos para áreas e orientações específicas; trata-se de abrir novas janelas de oportunidades; intermediar as interações ente os agentes públicos e privados envolvidos no desenvolvimento tecnológico, incluindo aqueles entre o capital de risco público e privado; e facilitar a comercialização (Block, Swimming against the Current, 2008; Fuchs, Rethinking the Role of the State in Technology Development, 2010).

Ao contrário da ênfase dada pelos fundamentalistas do mercado ao New Deal de Franklin D. Roosevelt como o momento decisivo na história econômica americana, Block (2008) argumenta que a Segunda Guerra Mundial foi um período mais significativo para o desenvolvimento das políticas de inovação nos Estados Unidos. Foi durante o pós-guerra que o Pentágono trabalhou em estreita colaboração com outras agências de segurança nacional, como a Comissão de Energia Atômica e a Agência Espacial Americana (National Aeronautics and Space Agency — NASA). A colaboração entre as agências levou ao desenvolvimento de tecnologias como computadores, jatos, energia nuclear civil, lasers e biotecnologia (Block, 2008). Isso foi feito graças ao pioneirismo da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA), criada pelo Pentágono em 1958. Essa agência, também conhecida como Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA), e por isso o acrônimo usado neste livro, se ligou ao desenvolvimento de iniciativas fundamentais por intermédio de uma ampla gama de tecnologias.1 Mas foi o apoio do governo para o avanço tecnológico no campo da informática que levou ao estabelecimento de um novo paradigma para as políticas de tecnologia.

A DARPA foi criada para dar aos Estados Unidos superioridade tecnológica em diferentes setores, principalmente (mas não apenas) naqueles relacionados à tecnologia, e sempre teve uma atuação bastante agressiva. Conta com um orçamento de mais de 3 bilhões de dólares anuais, 240 funcionários, opera de forma flexível com poucos custos operacionais e é ligada mas separada do governo. Conseguiu recrutar gestores de programas de alta qualidade que estão dispostos a correr riscos por causa de seus contratos de curto prazo, geralmente entre quatro e seis anos. Sua estrutura visa preencher a lacuna entre o trabalho acadêmico sem finalidade prática, com horizontes de longo prazo, e o desenvolvimento tecnológico contínuo que ocorre no interior das Forças Armadas.

Depois de uma vitória na Segunda Guerra Mundial bastante dependente dos desenvolvimentos tecnológicos organizados e patrocinados pelo Estado, o governo federal implementou rapidamente as recomendações do relatório de Vannevar Bush, de 1945, que pedia o apoio público para a pesquisa básica e aplicada. A relação entre o governo e a ciência foi reforçada pelo Projeto Manhattan (o esforço científico mais importante conduzido pelos Estados Unidos, com o Reino Unido e o Canadá, que levou à invenção e ao uso da bomba atômica na Segunda Guerra Mundial), com os físicos orientando os formuladores de políticas sobre as implicações militares da nova tecnologia. Desse ponto de vista, tornou-se tarefa do governo entender quais tecnologias oferecem possíveis aplicações para fins militares e também para fins comerciais.

De acordo com Block (Innovation and the Invisible Hand of Government, 2011, p. 7), durante esse período um número cada vez maior de funcionários do governo assumiu um papel mais direto na promoção da inovação, procurando mais pesquisadores, encorajando-os a resolver problemas específicos e cobrando deles objetivos específicos. O que se descobriu foi que isso era algo que o governo poderia fazer para fins econômicos e civis, além da tradicional função militar.

O lançamento do Sputnik, em 1957, provocou pânico entre os formuladores de políticas americanos, receosos de estarem perdendo a batalha tecnológica para os soviéticos. A criação da DARPA, em 1958, foi consequência direta. Antes disso, os militares controlavam sozinhos todos os dólares investidos em P&D para fins militares. Com a criação da DARPA, uma parte desses recursos passou a ser usada para o “pensamento sem finalidade prática imediata” — ideias que iam além do horizonte, que talvez não produzissem resultados em menos de dez ou vinte anos. Com isso, a DARPA ficou livre para se concentrar no desenvolvimento da inovação tecnológica com novas estratégias. Isso abriu inúmeras perspectivas para cientistas e engenheiros, que propuseram ideias inovadoras e receberam financiamento e colaboração (Block, 2008).

Indo muito além do simples financiamento das pesquisas, a DARPA financiou a formação de departamentos de ciência da computação, deu apoio a start-ups com pesquisas iniciais, contribuiu para a pesquisa de semicondutores, apoiou a pesquisa da interface homem-computador e supervisionou os estágios iniciais da internet. Muitas dessas atividades foram executadas por seu Information Processing Techniques Office (IPTO) [Departamento de Técnicas de Processamento de Informação], criado originalmente em 1962. Essas estratégias contribuíram enormemente para o desenvolvimento da indústria da informática nas décadas de 1960 e 1970, e muitas das tecnologias incorporadas posteriormente ao projeto do computador pessoal foram desenvolvidas por pesquisadores financiados pela DARPA (ABBATE, Inventing the internet, 1999).

Outro acontecimento fundamental desse período foi o novo ambiente de inovação que surgiu depois que um grupo de cientistas e engenheiros deixou, em 1957, a empresa criada por William Shockley (Block, 2011). Esse grupo rebelde, conhecido como Traitorous Eight [Oito Traidores], criou a Fairchild Semiconductor, uma nova empresa que desenvolveu a tecnologia dos semicondutores e deu continuidade a “um processo de fissão econômica que gerava constantemente novos concorrentes” (Block e Keller, State of Innovation, 2011a, pp. 12-3). Lazonick (Sustainable Prosperity in The New Economy?, 2009) acrescenta que a cultura “spin-off” [cisão, em oposição a fusão] começou com a Fairchild Semiconductor — e quase todo o crescimento da empresa ocorreu devido às compras do setor militar. O modelo de negócio spin-off tornou-se viável e se popularizou no setor de pesquisa tecnológica depois da revolta de 1957, ainda assim não teria sido possível sem o envolvimento do Estado e sua atuação como primeiro e principal cliente. Surgiu um novo paradigma que resultou em ideias inovadoras passando dos laboratórios para o mercado em quantidade muito maior.

Antes disso, as possibilidades de os funcionários do governo gerarem avanço tecnológico rápido eram limitadas, pois as grandes empresas de defesa tinham muito poder e driblavam a pressão e as demandas por inovação. Essas possibilidades também eram limitadas pelo pequeno número de empresas habilitadas. Unidas pelo interesse em evitar certos riscos inerentes a rotas tecnológicas incertas, elas resistiam às pressões governamentais por inovação. Entretanto, em um novo cenário com start-ups ambiciosas, aumentaram as oportunidades para gerar concorrência real entre essas empresas.”

1. A literatura refere-se tanto à ARPA quanto à DARPA.

 

 

““Continue faminto, continue louco”. (Steve Jobs)

Em seu conhecido discurso na universidade de Stanford, proferido em 12 de junho de 2005, Steve Jobs, então CEO da Apple Computer e da Pixar Animation Studios, incentivou os formandos a serem inovadores, “indo atrás do que vocês amam” e “continuando loucos”. O discurso foi citado em todo o mundo como epítome da cultura da economia do “conhecimento”, na qual o que se considera importante para a inovação não são apenas grandes laboratórios de P&D, mas também uma “cultura” de inovação e a capacidade dos principais players de mudarem “as regras do jogo”. Enfatizando a parte “tola” da inovação, Jobs destaca o fato de que na base do sucesso de uma empresa como a Apple — no centro da revolução do Vale do Silício — não está (apenas) a experiência e expertise técnica de sua equipe, mas (também) sua capacidade de ser um pouco “maluca”, arriscar e dar ao “design” tanta importância quanto à tecnologia hard-core. O fato de Jobs ter abandonado a escola, estudado caligrafia e de estar sempre vestido como se fosse um universitário simboliza um estilo pessoal para permanecer jovem e “louco”.

Embora o discurso seja inspirador e apesar de Jobs ter sido corretamente chamado de “gênio” pelos produtos visionários que concebeu e comercializou, essa história cria um mito em relação à origem do sucesso da Apple. A genialidade individual, a atenção ao design, o gosto pelo jogo e a loucura foram sem dúvida características importantes. Mas sem o maciço investimento público por trás das revoluções da informática e da internet, esses atributos poderiam ter levado apenas à invenção de um novo brinquedo — e não a produtos revolucionários como o iPad e o iPhone, que mudaram a maneira como as pessoas trabalham e se comunicam. Como discutimos no capítulo 2, em que o capital de risco entrou nas indústrias como a biotecnológica só depois de o Estado ter realizado o atribulado trabalho de base, a genialidade e o “espírito louco” de Steve Jobs só produziram sucesso e lucros maciços porque a Apple conseguiu surfar na onda de investimentos enormes feitos pelo Estado em tecnologias “revolucionárias” que deram sustentação ao iPhone e ao iPad: a internet, o GPS, telas sensíveis ao toque [touch-screen] e tecnologias de comunicação. Sem essas tecnologias financiadas com recursos públicos, não teria havido nenhuma onda para surfar tolamente.”

 

 

Desde o início humilde vendendo computadores pessoais até sua posição atual como líder da indústria de comunicação e informação mundial, a Apple tem dominado tecnologias de design e engenharia desenvolvidas e financiadas pelo governo americano e pelas Forças Armadas. A habilidade da Apple reside principalmente em sua capacidade de (a) reconhecer tecnologias emergentes com grande potencial, (b) aplicar conhecimentos complexos em engenharia para integrar com sucesso tecnologias emergentes reconhecidas e (c) manter uma visão corporativa clara, priorizando o desenvolvimento de produtos com foco no design para a maior satisfação do usuário. São essas habilidades que permitiram que a Apple se transformasse em uma potência mundial da indústria de eletrônicos e computadores. Durante o período que antecedeu o lançamento de seus produtos mais populares da plataforma iOS, a Apple recebeu enorme apoio direto e/ou indireto do governo proveniente de três áreas principais:

1. Investimento direto de capital nos estágios iniciais de criação e crescimento.

2. Acesso a tecnologias resultantes de programas de pesquisa governamentais, iniciativas militares e contratos públicos, ou desenvolvidas por instituições de pesquisa públicas, todas financiadas com recursos federais ou estaduais.

3. Criação de políticas fiscais, comerciais ou de tecnologia que apoiavam empresas americanas como a Apple, permitindo que elas mantivessem seus esforços voltados para a inovação em períodos nos quais os desafios nacionais e/ou mundiais impediam que as empresas norte-americanas continuassem à frente, ou faziam com que ficassem atrás na corrida pelos mercados mundiais.”

 

 

Estimulando setores locais

Além dos esforços governamentais para alimentar a base científica e fomentar a inovação nos Estados Unidos, o governo americano também desempenhou um papel fundamental na proteção da “propriedade” intelectual de empresas como a Apple e garantiu sua segurança contra outras violações comerciais. O governo federal tem lutado ativamente em nome de empresas como a Apple para permitir seu acesso seguro ao mercado de consumo mundial e é parceiro fundamental para estabelecer e manter vantagens competitivas globais para elas (Prestowitz, Apple Makes Good Products but Flawed Arguments, 2012). Embora as corporações americanas se definam como entidades multinacionais cuja existência transcende fronteiras políticas, Washington é o primeiro lugar a que recorrem quando surgem conflitos no mercado global. O acesso a mercados estrangeiros protegidos por restrições comerciais só foi possível graças à atuação dos Estados Unidos na vanguarda e no apoio. Na década de 1980, por exemplo, a Apple teve dificuldades para entrar no mercado japonês. Ela pediu auxílio ao governo americano argumentando que ele tinha a obrigação de ajudá-la a abrir o mercado japonês para os produtos americanos apelando para o governo do país oriental (Lyons, Apple Caves on Audits, 2012). Quando a competição global irrestrita chegou ao mercado doméstico, empresas como a Apple tiveram o apoio do governo para garantir que as leis de propriedade intelectual fossem aplicadas em todo o mundo. A proteção adicional oferecida à Apple por autoridades locais e federais continua a manter esse tipo de subsídio, o que permite que a empresa siga inovando.

Além disso, o governo americano continua a oferecer muitas outras formas de apoio tributário e contratos públicos que beneficiam enormemente empresas americanas como a Apple. Segundo um documento do Tesouro americano, as empresas em geral (incluindo a Apple) requisitaram 8,3 bilhões de dólares em créditos fiscais em pesquisa e experiência (P&E) em 2008 (Office of Tax Policy, 2011). Além disso, a Califórnia oferece generosos pacotes tributários em P&D, aos quais recorrem empresas de eletrônicos e computadores (Ibele, An Overview of California’s Research and Development Tax Credit, 2003).12 Desde 1996, a Apple teria solicitado 412 milhões de dólares em créditos tributários de todos os tipos para P&D (Duhigg e Kocieniewski, G.E.’s Strategies Let It Avoid Taxes Altogether, 2012).

As políticas de contratos públicos ajudaram a Apple em vários estágios críticos, permitindo que a empresa sobrevivesse em meio à disputa feroz com seus concorrentes. As escolas públicas dos Estados Unidos têm sido clientes leais, comprando computadores e software todos os anos desde 1990.13 Klooster (Icons of Invention, 2009) afirma que as escolas públicas foram um mercado fundamental para a Apple, que no final da década de 1980 amargou os fracassos do Apple III e Lisa. As disposições do American Recovery and Reinvestment Act (ARRA) de 2009 (pós-crise financeira) garantiram incentivos que beneficiaram as empresas de eletrônicos e computadores nos Estados Unidos. Entre outras coisas, com uma pequena alteração no âmbito do plano 529 do IRS americano, a compra de “tecnologia e equipamento de informática” foi definida como despesa com educação, o que deverá impulsionar as vendas de computadores, tablets e softwares Apple.14

Em suma, “descobrir o que você gosta” enquanto continua sendo “louco” é muito mais fácil em um país em que o Estado desempenha um papel fundamental, assumindo o desenvolvimento das tecnologias de alto risco, fazendo os investimentos iniciais, maiores, mais arriscados e depois sustentando-os até que os atores do setor privado, em um estágio muito mais adiantado, apareçam “para brincar e se divertir”. Assim, enquanto os especialistas do “livre mercado” continuam a alertar para o perigo de o governo “escolher vencedores”, pode-se dizer que várias políticas governamentais americanas lançaram as bases que deram à Apple os instrumentos para se tornar um dos principais integrantes de uma das indústrias mais dinâmicas do século XXI. Sem os investimentos e intervenções do governo americano, é bem provável que muitos dos produtos que viriam a se tornar “Apples” se transformassem em perdedores na corrida global pelo domínio da era da computação e das comunicações. O sucesso organizacional da empresa na integração de tecnologias complexas em dispositivos atraentes e de fácil manuseio complementadas por softwares potentes não deve ser minimizado, no entanto é incontestável o fato de que a maioria das melhores tecnologias da Apple existe devido aos esforços coletivos e cumulativos conduzidos anteriormente pelo Estado, mesmo em face da incerteza e muitas vezes em nome, se não da segurança nacional, da competitividade econômica.

No capítulo 8 voltarei a falar da Apple para perguntar o que o Estado recebeu em troca dos investimentos arriscados que fez tanto na empresa quanto nas tecnologias “revolucionárias” que tornaram o iPhone tão “smart”. Como veremos, esta talvez seja a questão mais crucial que os formuladores de políticas deveriam se fazer no século XXI: quando, por um lado, queremos um Estado “ativo” com coragem para liderar a próxima revolução tecnológica, a “revolução verde”; enquanto, por outro lado, o Estado tem de criar uma revolução com orçamentos limitados e a pressão por medidas de autoridade. Encontrar uma solução para a “relação risco-recompensa” será o segredo desse dilema.”

12. Segundo um relatório legislativo de 2003 do estado da Califórnia avaliando os resultados do programa de créditos tributários em pesquisa e desenvolvimento (RDC), as pequenas e médias empresas são as que mais se candidatam em números de solicitações (mais de 60% das solicitações), enquanto as empresas maiores são as que têm a parcela maior em termos de valor (mais de 60% do valor total dos créditos tributários solicitados).

13. A parcela da Apple na compra total de computadores para escolas de ensino fundamental e médio nos Estados Unidos chegou a 58% em 1994 (Flynn, Apple Holds School Market, Despite Decline, 1995). Os educadores também deram as boas-vindas à iniciativa do “livro escolar” da Apple, que deveria reduzir significativamente o preço dos didáticos com o aumento do uso de livros virtuais nas escolas. Isso exigiria o uso do iPad, contribuindo para o aumento de suas vendas.

14. O artigo 529 do Internal Revenue System (IR americano) inclui certos benefícios fiscais, também conhecidos como qualified tuition programs ou college savings plans. Uma emenda legislativa de 2011 permitiu que pais e alunos usem os recursos da poupança para a faculdade para comprar computadores, além de equipamentos e acessórios para computadores (incluindo iPads). Antes, nenhuma dessas compras era considerada despesa escolar que permitisse o saque (Ebeling, Get Uncle Sam to Help You Buy na iPad in 2011, 2011).

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