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sexta-feira, 14 de abril de 2023

A destruição da razão (Parte I), de György Lukács

Editora: Instituto Lukács

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Bernard Herman Hess, Rainer Patriota, Ronaldo Vielmi Fortes

Páginas: 794

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Sinopse: Junto com outros estudos importantes – como o brilhante ensaio “On Prussianism” e outras obras incluídas no volume Turn of Fate, Contribuições para uma nova ideologia alemã (1948) –, A Destruição da Razão (1954) é uma das maiores contribuições de Georg Lukács para uma teoria e crítica do fascismo em geral e, em particular, do nazismo. Produto de uma prolongada reflexão sobre o tema, o livro se dedica, nas palavras do próprio autor, a examinar a trajetória percorrida pela Alemanha na direção de Hitler no campo da Filosofia. No entanto, à semelhança do que ocorre no volume sobre O romance histórico (1937), o exame dos fenômenos “espirituais” – estéticos num caso, filosóficos no outro – é colocado por Lukács em estreita relação com toda a trajetória histórica do povo alemão; ou seja: com um irracionalismo que se manifesta tão eficazmente no pensamento porque tem suas raízes na vida cotidiana das massas. Não surpreendentemente, o primeiro capítulo do livro apresenta uma anatomia meticulosa das peculiaridades da evolução histórica alemã, apoiando-se, sobretudo, nas considerações de Marx e Engels sobre a “miséria” germânica e suas ideologias particulares. Já não tinha Marx anunciado que a Alemanha “se encontrará uma manhã no nível da decadência europeia, antes mesmo de atingir o nível da emancipação europeia” e que então será possível “compará-la a um adorador de fetiches que sofre da doença do cristianismo”?

O “caminho singular” (Sonderweg) que afastou o povo alemão das tradições burguesas emancipatórias, e que tantas vezes foi idealizado pelos conservadores no período da fundação do Império, durante a Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, pelos fascistas, é visto por Lukács como uma provação que teve sua fatídica consumação nos campos de extermínio.

O questionamento das correntes antidemocráticas que durante séculos acompanharam tanto a evolução política e econômica quanto a evolução filosófica e estética da Alemanha não implica, porém, a adoção de uma perspectiva apocalíptica, nem é um convite a encontrar um refúgio confortável (como já escrevia Lukács em 1933, sobre a capitulação passiva de Stefan George e outros intelectuais alemães ao nazismo) no “Gran Hotel Abismo”. Lukács sabe que existe uma outra Alemanha, a de Lessing e Goethe, a de Hegel e Marx, e por isso apela aos impulsos emancipatórios latentes no povo alemão para iniciar um novo caminho e romper, em suas palavras, com aquela “dança macabra de visões de mundo” que levou à violência hitleriana. Nesse sentido, A destruição da razão é uma obra que encontra seu complemento e sua contrapartida positiva em O jovem Hegel, onde são investigadas as possibilidades que permitiram à Alemanha ser o berço da dialética e a sede de uma tradição de pensamento. autor da Fenomenologia do Espírito e o autor do Capital se destacam na primeira linha.

Ao mesmo tempo em que oferece uma crítica à filosofia irracionalista, Lukács exibe uma intensa reflexão sobre a responsabilidade do filósofo e, em geral, dos intelectuais, e sobre as ramificações capilares que as ideias mais abstratas têm no cotidiano das massas. Essas considerações nos interessam especialmente em nosso tempo, marcado pela expansão de novos direitos e pelo ressurgimento do irracionalismo em nível regional e global. As ideias deste livro podem fornecer elementos fundamentais, não só para entender o fascismo em sua historicidade, mas também para compreender e transformar nosso próprio presente.



“A História da Filosofia, assim como a da arte e a da literatura, nunca é – como acreditam seus historiadores burgueses – simplesmente a história das ideias filosóficas ou das personalidades que as sustentam. Tanto os problemas quanto as vias de resolução são colocados à filosofia pelo desenvolvimento das forças produtivas, pelo desenvolvimento social, pelo desdobramento das lutas de classe. Os traços fundamentais e decisivos de qualquer filosofia não podem jamais ser revelados exceto por meio do reconhecimento dessas forças motrizes primárias. Quando se pretende estabelecer e compreender as conexões dos problemas filosóficos a partir do assim chamado desenvolvimento imanente da filosofia, chega-se necessariamente à distorção idealista das suas principais conexões, mesmo quando existe por parte dos historiadores o conhecimento necessário ou quando há neles, subjetivamente, a maior boa vontade e empenho para com a objetividade.”

 

 

“É precisamente o caminho que, partindo da vida social, conduz novamente a ela, aquele que confere ao pensamento filosófico a envergadura que lhe é própria e determina sua profundidade, mesmo no sentido estritamente filosófico. Ademais, trata-se de questão inteiramente secundária saber até que ponto cada pensador está consciente dessa sua posição, dessa sua função histórico-social. Tampouco em filosofia deve-se julgar a intenção, julgam-se fatos – a expressão objetivada do pensamento e sua eficácia historicamente necessária. Todo pensador é, nesse sentido, responsável diante da história pelo conteúdo objetivo de sua filosofia.”

 

 

“O desenvolvimento do irracionalismo não apresenta, em quaisquer de suas etapas, um caráter essencial “imanente”, como se, de uma certa maneira de colocar ou resolver os problemas, derivasse outra, impelida pela dialética interna do pensamento filosófico em movimento. Queremos demonstrar, pelo contrário, que as diferentes etapas do irracionalismo surgiram como respostas reacionárias a problemas da luta de classes. O conteúdo, a forma, o método, o tom etc. de sua reação contra o progresso na sociedade não são determinados por tal dialética interna própria ao pensamento, mas, sobretudo, pelo adversário, pelas condições de luta, que são impostas à bourgeoisie reacionária. Isso precisa ser fixado como princípio básico do desenvolvimento do irracionalismo.

Mas isso não significa que o irracionalismo – dentro do quadro social assim definido – não apresente uma unidade ideal. Pelo contrário. Precisamente por esse seu caráter resulta que os problemas metodológicos e de conteúdo, trazidos por ele, tenham uma forte coesão e apresentem uma surpreendente (e estreita) unidade. A depreciação do entendimento e da razão, a glorificação da intuição, a gnosiologia aristocrática, a recusa do progresso sócio-histórico, a criação de mitos são, entre outros, motivos que encontramos em quase todo pensador irracionalista. A reação filosófica dos representantes dos resquícios feudais e da bourgeoisie à ideia do progresso social pode, em certas circunstâncias e da parte de alguns representantes especialmente dotados dessa direção, receber uma forma genial e brilhante; mas o conteúdo filosófico presente em todo o desenvolvimento é extremamente monótono e precário. E como, segundo apontamos acima, a margem de manobra intelectual para a polêmica, a possibilidade de acolher no sistema de pensamento pelo menos alguns reflexos – mesmo que de forma deformada – da realidade, restringe-se continuamente diante da necessidade social, é inevitável o rebaixamento do nível filosófico, enquanto se mantêm invariáveis determinados motivos decisivos do pensamento. Deter-se nessas determinações contínuas do pensamento corresponde ao reflexo dos fundamentos sociais reacionários que formam a unidade do irracionalismo, por maiores que sejam as transformações qualitativas que podem e devem ser verificadas também no desenvolvimento que vai de Schelling até Hitler. O fato de as filosofias irracionalistas terem desembocado no Hitlerismo só pode ser considerado algo necessário na medida em que as lutas de classe concretas produziram tal resultado – naturalmente, não sem a ajuda desse desenvolvimento ideológico. Do ponto de vista dos desdobramentos do irracionalismo, os resultados provocados pelas lutas de classes são, por isso, fatos imutáveis, que recebem um reflexo filosófico correspondente e em relação aos quais o irracionalismo reage de um modo ou de outro; mas eles são – vistos do nosso ângulo – fatos imutáveis. O que não quer dizer, muito menos, que eles – vistos de um plano histórico objetivo – teriam resultado de uma necessidade fatal.

Se quisermos entender corretamente o desenvolvimento da filosofia irracionalista alemã, então será necessário considerar sempre em sua interdependência os seguintes fatores: a dependência do desenvolvimento do irracionalismo em relação às lutas de classes decisivas na Alemanha e em todo o mundo, o que naturalmente pressupõe a recusa de um desenvolvimento “imanente”; o caráter unitário de conteúdos e métodos e o contínuo estreitamento do campo para um desdobramento filosófico verdadeiro, o que leva ao recrudescimento das tendências apologéticas e demagógicas; e, por fim, como consequência: o rebaixamento necessário, permanente e rápido do nível filosófico. Só assim se torna possível compreender como se deu, com Hitler, a popularização demagógica de todos os motivos intelectuais da reação filosófica mais decidida, o “coroamento” ideológico e político do desenvolvimento do irracionalismo.”

 

 

“Nenhuma análise científica é possível sem descobrir os fundamentos reais da situação histórico-social.”

 

 

“Uma tese fundamental do materialismo dialético é que a prática constitui o critério da verdade teórica. A exatidão ou inexatidão do reflexo teórico da realidade objetiva, que existe independentemente da nossa consciência, ou melhor, o grau de nossa aproximação dela, comprova-se na prática, pela prática.”

 

 

“Jamais uma circunstância permanece a mesma; ela deve necessariamente avançar ou regredir.”

 

 

“(...) O desespero por si só não seria suficiente como elo social e psicológico. Ele precisava – exatamente por sua intenção voltada à prática – recorrer aos elementos da credulidade e da fé em milagres, que já comentamos. Essa ligação existiu efetivamente e não por acaso, pois quanto mais crescia o desespero de cada indivíduo, quanto mais esse desespero expressava o sentimento de ameaça à existência individual, tanto mais nasciam dele, em média – sob as condições do desenvolvimento social e moral-espiritual da Alemanha –, a credulidade e a fé em milagres. Desde Schopenhauer e especialmente desde Nietzsche, o pessimismo irracionalista destruiu a convicção da existência objetiva do mundo exterior e de que o conhecimento imparcial e profundo do mundo possa apontar uma saída para a problemática que produz o desespero. O conhecimento do mundo, assim, converteu-se cada vez mais numa – sempre maior arbitrária – interpretação do mundo. Essa tendência filosófica reforçou naturalmente o comportamento das camadas sociais que se caracterizava pela espera passiva de tudo o que vem de cima, da “autoridade”, pois também não se tratava para elas, mesmo na vida real, da análise concreta de relações concretas, mas da interpretação de decisões, cuja motivação devia permanecer ignorada. É claro que aqui residia uma das fontes sociopsicológicas dessa fé em milagres: a situação pode ser desesperadora, mas o “gênio iluminado pela graça divina” (Bismarck, Guilherme II, Hitler) “certamente” iria encontrar uma saída por meio da “intuição criadora”. E também é claro que, quanto mais ameaçada estivesse a “segurança”, quanto mais a existência individual estivesse em xeque, tanto mais se intensificariam a credulidade e a fé em milagres. Trata-se, portanto, aqui, de uma antiga fraqueza das camadas médias alemãs, abrangendo um campo que se estende desde a filosofia nietzschiana até a psicologia da conduta mediana do filisteu bebedor de cerveja.

Quando se ouve com tanta frequência a pergunta cheia de espanto de como massas tão amplas do povo alemão foram capazes de depositar tanta fé no mito pueril de Hitler e de Rosenberg, então podemos responder do ponto de vista histórico com outra pergunta: como puderam os homens mais cultos e intelectualmente mais elevados da Alemanha acreditar na “vontade” mítica de Schopenhauer, nas profecias do Zaratustra nietzschiano, nos mitos históricos da decadência do Ocidente? E não adianta dizer que o nível intelectual e artístico de Schopenhauer e Nietzsche era incomparavelmente mais elevado do que a demagogia grosseira e contraditória de Hitler e Rosenberg. Porque, quando um homem formado filosófica e literariamente, que podia acompanhar gnosiologicamente as nuanças da reelaboração de Schopenhauer por Nietzsche, que foi capaz de honrar as nuanças de sua crítica da decadência com competência estética e psicológica, mas, mesmo assim, comportava-se de modo crédulo em relação ao mito de Zaratustra, ao mito do super-homem e ao mito do “eterno retorno do mesmo”, isso, no fundo, é mais difícil de entender do que o fato de um jovem trabalhador pouco culto, que nunca ou só temporariamente frequentou uma organização partidária, que após terminar sua formação de aprendiz foi colocado no olho da rua, acreditar, com base em seu desespero, que Hitler vá realizar o “socialismo alemão”.

Também aqui vale o que disse Marx sobre as doutrinas “cínicas” da economia clássica: que as doutrinas não saíram dos livros para a realidade, mas da realidade para os livros. A questão de se num determinado momento e em determinadas camadas sociais o que prevalece é a atmosfera para uma crítica sadia e sóbria ou para a superstição, para a fé em milagres, para a credulidade irracionalista, não é uma questão que depende do nível intelectual, mas das condições sociais. E é claro que nesse aspecto as ideologias anteriores e tornadas eficazes não desempenham papel de pouca importância, na medida em que fortalecem ou enfraquecem a disposição para a crítica ou para a credulidade. Mas não devemos esquecer que a eficácia ou a ineficácia de uma tendência de pensamento também parte da realidade para os livros e não dos livros para a realidade.

A história ensina-nos que as épocas dominadas especialmente pela credulidade, pela superstição e pela fé em milagres de modo algum precisam coincidir com um grau de civilização especialmente baixo. Muito pelo contrário. Podemos ver uma tendência assim ao final da Antiguidade, durante o auge da civilização greco-latina, no tempo de máxima difusão da cultura alexandrina. E o que vemos é que nesse período não são de modo algum os escravos incultos, os pequenos artesãos ou os portadores do cristianismo em expansão os mais susceptíveis às crenças milagrosas, mas que em eruditos e artistas mais talentosos e evoluídos dessa era, como Plutarco ou Apuleius, Plotino ou Porfírio, a credulidade e a superstição também estiveram presentes; é claro que com um conteúdo totalmente diferente, mais elevado literariamente, mais refinado e culto intelectualmente. E – para citar apenas mais um exemplo característico – o auge do delírio da caça às bruxas não se deu de modo algum nos tempos mais soturnos da Idade Média, mas num momento de grande crise, que marca a transição da Idade Média para a Modernidade, a era de Galileu e Kepler. Também aqui podemos constatar que muitos dos espíritos mais destacados da época não estavam livres das muitas formas de superstição; pense-se em Francis Bacon, em Jacob Böhme, em Paracelso etc.

Todas essas épocas de delírio social, de superstição e fé em milagres levadas ao extremo se caracterizam por terem sido épocas de declínio de uma velha ordem social, de uma cultura arraigada por séculos e simultaneamente épocas em que o novo já provoca as dores do parto. Essa insegurança geral da vida capitalista cresceu nos anos de crise da Alemanha, significando o surgimento de algo qualitativamente novo e especial, que conferiu a essa receptividade a difusão em massa nunca antes vista, explorada de modo inescrupuloso pelo fascismo.

Mais adiante serão descritas e desmembradas as formas de pensamento que foram assumidas concretamente por essa exploração demagógica da situação social desesperadora de amplos setores do povo alemão. Só então – por via da análise concreta – poder-se-á elucidar por que a demagogia e a tirania fascista são apenas a culminância de um longo processo, inicialmente tido como “inocente” (em termos da filosofia pura ou, no máximo, em termos da visão de mundo): A Destruição da Razão.

Esse processo, cujos primórdios devem ser procurados na luta romântico-reacionária, pela restauração do feudalismo, contra a Revolução Francesa, e cuja culminância, como vimos, acontece no período imperialista do capitalismo, não se restringia de maneira alguma apenas à Alemanha. Tanto as suas origens como a sua forma de manifestação hitlerista, bem como a sua permanência no presente têm raízes socioeconômicas internacionais, e por isso a filosofia irracionalista se manifestava igualmente em escala internacional.

Mas, como vimos na introdução, ela nunca pôde alcançar aquele efeito diabólico que se deu na Alemanha de Hitler; com algumas raras exceções, ela nunca alcançou tal hegemonia como na Alemanha, e não apenas dentro do território alemão, mas também em escala internacional. Por isso, foi necessário apresentar e analisar brevemente neste capítulo aquelas tendências sócio-históricas que transformaram a Alemanha nesse tipo de pátria, nesse centro de hostilidade à razão.

Assim, a exposição que se segue das tendências histórico-filosóficas – com poucas exceções, como Kierkegaard ou Gobineau – precisou se limitar ao desenvolvimento alemão. Ele, e apenas ele, levou ao hitlerismo. E por isso acreditamos que o fato de termos nos limitado à exposição da história do irracionalismo na Alemanha não minora o seu caráter internacional, pelo contrário, amplia-o. Ela é um Discite moniti, um “aprendam, vocês estão avisados!” aos homens pensantes de todos os povos. Uma advertência de que não existe uma filosofia “inocente”, puramente acadêmica, de que sempre e em todo lugar existe objetivamente o perigo de que algum incendiário, a partir do conteúdo filosófico de “inocentes” conversas de salão e de cafés, de conferências, de folhetins, ensaios etc. cause um incêndio devastador à maneira de Hitler. No epílogo, abordaremos as novas condições da situação mundial de hoje, suas consequências ideológicas. Elas mostram diferenças profundas entre a preparação ideológica da segunda e a da terceira guerra mundial imperialista.

Parece, por motivos que serão detalhados no momento certo, que o irracionalismo puro e simples não desempenha hoje um papel dirigente como o dos tempos da organização da segunda conflagração mundial, porém, mostraremos que o irracionalismo ainda constitui uma atmosfera, por assim dizer, ideológica da nova propaganda de guerra; ao menos não desempenha nela um papel desimportante. A advertência aqui proposta para se aprender com o passado não perdeu de modo algum sua atualidade só porque as condições atuais se modificaram sob muitos aspectos. Tanto menos porquanto uma série de elementos que foram decisivos no irracionalismo “clássico” no tempo de Hitler ainda cumpre um papel em nada reduzido, às vezes até acentuado, na propaganda da “guerra fria” (agnosticismo, relativismo, nihilismo, tendência para a criação de mitos, acriticidade, credulidade, fé em milagres, preconceitos de raça, ódio racial etc., etc.)

A questão do desenvolvimento da razão ou da sua crescente destruição é ainda hoje, ideologicamente, o ponto central no conflito entre progresso e reação, enquanto as lutas, comparadas com o tempo do hitlerismo, são travadas também em relação a outros conteúdos e métodos imediatos. Por isso pensamos que o sentido de uma história dos problemas fundamentais do irracionalismo aponta ainda hoje muito para além do meramente histórico.

Da lição que Hitler deu ao mundo, todo homem singular, como todo povo, deveria tentar aprender algo para a sua própria salvação. E essa responsabilidade precisa existir de modo especialmente agudo nos filósofos, que seriam obrigados a vigiar sobre a existência e o desenvolvimento da razão na medida da sua real participação no processo de desenvolvimento social.

(Com isso, o seu significado real no desenvolvimento social não deve ser superestimado.) Eles perderam a oportunidade de cumprir sua obrigação, dentro e fora da Alemanha; e se até agora ainda não se realizaram em todos os lugares as palavras de Mefistófeles sobre o desesperado Fausto:

Verachte nur Vernunft und Wissenschaft,

Der Menschen allerhöchste Kraft,

So hab ich dich schon unbedingt*

 

Isso não significa – a menos que ocorra uma mudança – para nenhum outro país de economia imperialista, para nenhuma outra civilização burguesa sob o signo do irracionalismo, a menor garantia de que eles não serão amanhã procurados pelo diabo fascista, em comparação com o qual o próprio Hitler talvez pode ter sido apenas um ignorante aprendiz. Ao limitar nossa análise ao desenvolvimento alemão, à filosofia alemã, queremos justamente enfatizar esse Discite moniti.”

*: “Despreza a razão e a ciência, as mais excelsas forças do homem, e eu te terei inteiro sob meu poder.” Fausto. J.W. Von Goethe. (N.T.). “

 

 

“Mesmo o fato de o próprio Hegel não utilizar o termo “irracionalismo” não quer dizer que ele não teria se confrontado com o problema da relação entre dialética e irracionalismo; ele certamente o fez, e não só na polêmica contra o “saber imediato” de Friedrich Heinrich Jacobi. Talvez seja uma coincidência, ainda que uma coincidência significativa, que sua discussão de princípios sobre esse tema se inicie precisamente com a geometria e com a matemática. De qualquer forma, o que está em pauta aqui são os limites das determinações do entendimento, a sua natureza contraditória, o desenvolvimento e o impulso ascendente do movimento dialético aqui surgido em direção à razão. Hegel afirma, a propósito da geometria, que: “Contudo, no seu curso – o que é muito digno de nota –, choca-se finalmente com incomensurabilidades e irracionalidades, onde, se quiser ir adiante no determinar, é impelida para além do princípio do entendimento. Aqui também, como aliás é frequente, apresenta-se uma inversão na terminologia: o que se chama racional é o que pertence ao entendimento, mas se chama irracional o que é, antes, um indício e vestígio da racionalidade.”*

Embora o ponto de partida dessa observação tenha um caráter específico, conquanto Hegel estivesse ainda muito distante de generalizar filosoficamente os termos aqui utilizados, ele já toca aqui no problema filosófico central de todo o desenvolvimento posterior do irracionalismo, isto é, aquelas questões às quais o irracionalismo filosófico sempre esteve ligado. Essas são precisamente as questões, como veremos no decorrer de nossas observações, que resultam dos limites e das contradições do pensamento puramente intelectivo. Esbarrar em tais limites pode significar para o pensamento humano – se este percebe nisso um problema a ser solucionado e, como Hegel notou acertadamente, “indício e sinal da racionalidade”, isso quer dizer, a mais alta forma de conhecimento – um ponto de partida do desenvolvimento do pensamento para a dialética. O irracionalismo, pelo contrário – para resumir antecipadamente algumas questões que mais adiante deverão ser expostas de modo concreto e detalhado – só chegou até esse ponto, absolutizou o problema, petrificou os limites do conhecimento intelectivo e transformou-os em limites absolutos do conhecimento, mistificando até mesmo o problema, convertendo-o artificialmente em problema insolúvel, atribuindo-lhe uma resposta “suprarracional”. A equiparação entre entendimento e conhecimento, entre os limites do entendimento e os limites do conhecimento em geral, a adoção da “suprarracionalidade” (da intuição etc.) ali onde é possível e necessário avançar para um conhecimento racional – essas são as características mais gerais do irracionalismo filosófico.

O que Hegel aqui trouxe à tona num exemplo de importância radical é uma das questões centrais do método dialético. Ele descreveu “o reino das leis” como “a imagem quieta do mundo existente ou fenomênico”. É por isso que – para apenas tocar no essencial de sua linha de raciocínio – o fenômeno, em contraposição à lei, é a totalidade, pois o fenômeno contém a lei; mas também contém algo mais, a saber: o elemento da forma que a faz mover-se a si mesma.1 Com isso, Hegel elaborou aqueles elementos lógicos mais gerais, aquela tendência do método dialético que encerra mais fortemente a sua natureza progressista: o caráter sempre aproximativo do conhecimento dialético. E Lênin, que revelou esse aspecto decisivo do método dialético, naturalmente já materialista, não afetado pelos limites idealistas de Hegel, endossou energicamente a importância da demonstração de Hegel que acabamos de mencionar: “Essa é uma excelente definição materialista, notavelmente apropriada (o uso do termo ‘quieta’). A lei toma o que está quieto – e por isso a lei, toda lei, é estreita, incompleta, aproximativa”.2

Não podemos nos deter aqui de modo mais detalhado na exposição de Hegel, cada vez mais concreta, sobre as relações dialéticas de reciprocidade entre lei (essência) e fenômeno. Temos apenas de apontar para o fato de que Hegel superou no decorrer dessa concretização os limites do idealismo subjetivo, para o qual as determinações universais (essência etc.) não podem residir na objetividade, na própria objetividade, e fundamentou filosoficamente a objetividade da essência: “A essência ainda não tem ser aí algum; mas ela é, e num sentido mais profundo do que o ser” [...] “A lei é, portanto, o fenômeno essencial”,3 uma determinação, cujo significado básico Lênin também destacou energicamente em suas notas marginais à Ciência da Lógica de Hegel.

Com essas constatações já podemos determinar um pouco melhor a relação geral e metodológica entre o irracionalismo e a dialética. Como a realidade objetiva em princípio é mais rica, mais variada e mais complexa do que jamais podem ser os conceitos mais bem desenvolvidos do nosso pensamento, são inevitáveis confrontos, do tipo que acabamos de assinalar, entre o pensamento e o ser. E, com isso, em tempos em que o desenvolvimento objetivo da sociedade e a descoberta de novos fenômenos naturais por ele produzidos avançam tempestuosamente, surgem grandes possibilidades para o irracionalismo transformar esse progresso, por meio da sua mistificação, em um movimento retrógrado. Tal situação foi produzida na virada do século XVIII para o século XIX, em parte pela mudança da sociedade, determinada pela Revolução Francesa e pela revolução industrial, na Inglaterra, em parte como consequência das crises que se manifestaram no pensamento das ciências naturais, do desenvolvimento da química, da biologia etc. em função das então novas descobertas geológicas, paleontológicas etc. A dialética de Hegel, na medida em que procura compreender historicamente os problemas aqui levantados, é o mais alto estágio da filosofia burguesa. É dessa filosofia o empreendimento mais enérgico para dominar intelectualmente essas dificuldades: produzir um método que possa garantir tal – até então a mais completa – aproximação entre o pensamento, entre a representação intelectual da realidade e a própria realidade. (Não trataremos aqui dos conhecidos limites idealistas de Hegel, sobre suas mistificações idealistas, sobre a contradição entre método e sistema; a crítica feita a esses limites por parte dos clássicos do marxismo-leninismo é de conhecimento geral e vem aqui pressuposta.) O irracionalismo interpõe-se aqui nessa – necessária, insuperável, mas sempre relativa – discrepância entre a representação intelectual e o original objetivo. O ponto de partida consiste no fato de que as tarefas colocadas imediatamente ao pensamento, enquanto são ainda tarefas, enquanto são ainda problemas não resolvidos, aparecem de uma forma que as faz parecer como se o ato do pensar, a formação conceitual diante da realidade fosse fracassar, como se a realidade contraposta ao ato de pensar constituísse um para além da ratio (da racionalidade do sistema de categorias, até então próprio ao método conceitual). Hegel, como vimos, analisou corretamente essa situação. Sua dialética de fenômeno e essência, existência e lei, mas, antes de tudo, sua dialética dos conceitos do entendimento, das determinações de reflexão, de transição entre entendimento e razão mostra com bastante nitidez o caminho efetivo para a solução dessas dificuldades.”

* Hegel: Enzyklopädie, § 231. Sämtliche Werke, Berlim, 1832, t. VI, p. 404 (ed.bras.: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. São Paulo: Loyola, 1995. v. I, A Ciência da Lógica, p. 363).

1 Ibid., t. IV, p. 145 s. (ed. bras.: Ciência da Lógica, Livro II: A Doutrina da Essência. Tradução de Christian G. Iber e Federico Orsini. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2017. E-book, p. 209).

2 Lenin: Aus dem philosophischen Nachlaß, Berlim, 1949, p. 70.

3 Hegel : Gesammelte Werke, t. IV, p. 150 e 145 (ed. bras.: Ciência da Lógica, Livro II: A Doutrina da Essência. Tradução de Christian G. Iber e Federico Orsini. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2017. E-book, p. 210 e 215, modif.).

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