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segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Globalização: as consequências humanas (Parte I), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-85-378-1924-1

Tradução: Marcus Penchel

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 152

Sinopse: Nesta detalhada história da globalização, Zygmunt Bauman mostra que, embora as ações humanas agora se deem em escala global, não somos capazes de ditar os acontecimentos; podemos apenas observar fronteiras, instituições e princípios deslocando-se de forma veloz e imprevisível.

Numa análise instigante, o autor sustenta que a globalização tanto divide quanto une, abrindo um fosso cada vez maior entre os que têm e os que não têm. Explorando as dimensões de um mundo no qual ― através das novas tecnologias ― o tempo é acelerado e o espaço é comprimido, Bauman evidencia que os reflexos dessa nova condição são radicalmente desiguais.

Ao cotejar obras de filósofos, historiadores sociais, arquitetos e teóricos como Michel Foucault, Claude Lévi-Strauss, Alfred J. Dunlap, Le Corbusier e Oscar Niemeyer, Globalização: As consequências humanas apresenta um panorama histórico dos métodos utilizados para criar e definir espaços humanos e instituições, desde aldeias rurais até grandiosos centros urbanos.



“A mobilidade adquirida por “pessoas que investem” — aquelas com capital, com o dinheiro necessário para investir — significa uma nova desconexão do poder face a obrigações, com efeito uma desconexão sem precedentes na sua radical incondicionalidade: obrigações com os empregados, mas também com os jovens e fracos, com as gerações futuras e com a autorreprodução das condições gerais de vida; em suma, liberdade face ao dever de contribuir para a vida cotidiana e a perpetuação da comunidade. Surge uma nova assimetria entre a natureza extraterritorial do poder e a contínua territorialidade da “vida como um todo” — assimetria que o poder agora desarraigado, capaz de se mudar de repente ou sem aviso, é livre para explorar e abandonar às consequências dessa exploração. Livrar-se da responsabilidade pelas consequências é o ganho mais cobiçado e ansiado que a nova mobilidade propicia ao capital sem amarras locais, que flutua livremente. Os custos de se arcar com as consequências não precisam agora ser contabilizados no cálculo da “eficácia” do investimento.”

 

 

Em vez de homogeneizar a condição humana, a anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais tende a polarizá-la. Ela emancipa certos seres humanos das restrições territoriais e torna extraterritoriais certos significados geradores de comunidade — ao mesmo tempo que desnuda o território, no qual outras pessoas continuam sendo confinadas, do seu significado e da sua capacidade de doar identidade. Para algumas pessoas ela augura uma liberdade sem precedentes face aos obstáculos físicos e uma capacidade inaudita de se mover e agir a distância. Para outras, pressagia a impossibilidade de domesticar e se apropriar da localidade da qual têm pouca chance de se libertar para mudar-se para outro lugar. Com “as distâncias não significando mais nada”, as localidades, separadas por distâncias, também perdem seu significado. Isso, no entanto, augura para alguns a liberdade face à criação de significado, mas para outros pressagia a falta de significado. Alguns podem agora mover-se para fora da localidade — qualquer localidade — quando quiserem. Outros observam, impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés.

A informação agora flui independente dos seus portadores; a mudança e a rearrumação dos corpos no espaço físico é menos que nunca necessária para reordenar significados e relações. Para algumas pessoas — para a elite móvel, a elite da mobilidade — isso significa, literalmente, a libertação em relação ao “físico”, uma nova imponderabilidade do poder. As elites viajam no espaço e viajam mais rápido que nunca — mas a difusão e a densidade da rede de poder que elas tecem não dependem dessa viagem. Graças à nova “incorporeidade” do poder na sua forma sobretudo financeira, os detentores do poder tornam-se realmente extraterritoriais, ainda que corporeamente estejam “no lugar”. Seu poder está, real e integralmente, não “fora deste mundo” — não do mundo físico no qual constroem suas casas e escritórios supervigiados, eles próprios extraterritoriais, livres da intromissão de vizinhos importunos, isolados do que quer que se possa chamar de uma comunidade local, inacessíveis a quem quer que esteja (ao contrário deles) a ela confinado.”

 

 

Se a nova extraterritorialidade da elite parece uma liberdade intoxicante, a territorialidade do resto parece cada vez menos com uma base doméstica e cada vez mais com uma prisão — tanto mais humilhante pela intrometida visão da liberdade de movimento dos outros. Não se trata apenas do fato de que a condição de “estar imobilizado”, incapaz de se mover à vontade e com acesso barrado a pastagens mais verdejantes, exsude o odor acre da derrota, indicando uma condição humana incompleta e implicando ser defraudado na divisão dos esplendores que a vida tem a oferecer. A privação atinge mais fundo. A “localidade” no novo mundo de alta velocidade não é o que a localidade costumava ser numa época em que a informação movia-se apenas junto com os corpos dos seus portadores; nem a localidade nem a população localizada têm muito em comum com a “comunidade local”. Os espaços públicos — ágoras e fóruns nas suas várias manifestações, lugares onde se estabelecem agendas, onde assuntos privados se tornam públicos, onde opiniões são formadas, testadas e confirmadas, onde se passam julgamentos e vereditos — tais espaços seguiram as elites, soltando-se de suas âncoras locais; são os primeiros a se desterritorializar e mudar para bem além do alcance da capacidade comunicativa meramente de wetware de qualquer localidade e seus habitantes. Longe de serem viveiros de comunidades, as populações locais são mais parecidas com feixes frouxos de extremidades soltas.”

 

 

Os shoppings são construídos de forma a manter as pessoas em circulação, olhando ao redor, divertindo-se e entretendo-se sem parar — mas de forma alguma por muito tempo — com inúmeras atrações; não para encorajá-las a parar, a se olhar e conversar, a pensar em analisar e discutir alguma coisa além dos objetos em exposição — não são feitos para passar o tempo de maneira comercialmente desinteressada...

O balanço alegórico de Christie tem o mérito adicional de trazer à luz os efeitos éticos da degradação dos espaços públicos. Os locais de encontro eram também aqueles em que se criavam as normas — de modo que se pudesse fazer justiça e distribuí-la horizontalmente, assim reunindo os interlocutores numa comunidade, definida e integrada pelos critérios comuns de avaliação. Por isso um território despojado de espaço público dá pouca chance para que as normas sejam debatidas, para que os valores sejam confrontados e negociados. Os vereditos de certo e errado, belo e feio, adequado e inadequado, útil e inútil só podem ser decretados de cima, de regiões que jamais deverão ser penetradas senão por um olhar extremamente inquisitivo; os vereditos são inquestionáveis desde que nenhum questionamento significativo possa ser feito aos juízes e desde que os juízes não deixem endereço — sequer um endereço eletrônico, um e-mail — e ninguém saiba com certeza onde residem. Não há espaço para os “líderes de opinião locais”; não há espaço para a “opinião local” enquanto tal.

Os vereditos podem estar inteiramente desligados do curso de vida local, mas não devem ser colocados em teste na experiência das pessoas sobre cuja conduta se pronunciam. Nascidos de um tipo de experiência conhecida pelos receptores locais da mensagem no máximo por ouvir dizer, eles podem redundar em mais sofrimento mesmo que pretendam trazer alegria. Os originais extraterritoriais entram na vida localmente confinada apenas como caricaturas; talvez como mutantes e monstros. No caminho, expropriam os poderes éticos dos habitantes locais, espojando-os de todos os meios para limitar o dano.”

 

 

No seu estudo seminal do “fenômeno burocrático”, Michel Crozier mostrou a íntima conexão entre a escala de certeza/incerteza e a hierarquia de poder. Ficamos sabendo com Crozier que, em qualquer coletividade estruturada (organizada), a posição dominante pertence àquelas unidades que tornam sua própria situação opaca e suas ações impenetráveis aos forasteiros — ao mesmo tempo que as mantêm claras para si mesmas, livres de pontos enevoados e seguras contra surpresas. Em todo o mundo das burocracias modernas, a estratégia de cada setor existente ou com aspirações a existir consiste invariavelmente e de forma consistente em tentativas de desatar as próprias mãos e na pressão para impor regras estritas e rigorosas para a conduta de todos os demais dentro da organização. Tal setor ganha o máximo de influência quando consegue tornar seu comportamento uma variável desconhecida nas equações que outros setores formulam a fim de fazer opções — ao mesmo tempo que consegue tornar constante, regular e previsível a conduta dos outros setores. Em outras palavras, maior poder é exercido por aquelas unidades capazes de permanecer a fonte da incerteza de outras unidades. A manipulação da incerteza é a essência e o desafio primário na luta pelo poder e influência dentro de toda totalidade estruturada — antes e acima de tudo na sua forma mais radical, a da moderna  organização burocrática e particularmente da burocracia do Estado moderno.”

 

 

Agorafobia e o renascimento da localidade

Richard Sennett foi o primeiro analista da vida urbana contemporânea a dar o alarme sobre o iminente “declínio do homem público”. Muitos anos atrás, ele notou a lenta mas inexorável redução do espaço público urbano e a retirada igualmente irrefreável dos habitantes da cidade (e a subsequente devastação) das pálidas sombras da agora que escaparam à destruição.

No seu posterior e brilhante estudo sobre os “usos da desordem”,6 Richard Sennett evoca as descobertas de Charles Abrams, Jane Jacobs, Marc Fried e Herbert Gans — pesquisadores de temperamento variado mas de sensibilidade semelhante para a experiência da vida urbana e com discernimento investigativo — e ele mesmo pinta um quadro assustador do estrago causado às “vidas de pessoas reais em nome da realização de algum plano abstrato de desenvolvimento ou renovação”. Sempre que foi empreendida a execução de tais planos, as tentativas de “homogeneizar” o espaço urbano, de torná-lo “lógico”, “funcional” ou “legível” redundaram na desintegração das redes protetoras tecidas pelos laços humanos, na experiência fisicamente devastadora do abandono e da solidão — combinada com a de um vazio interior, um horror a desafios que a vida pode colocar e o expediente da ignorância ante opções autônomas e responsáveis.

A busca da transparência teve um preço espantoso. Num ambiente artificialmente concebido, calculado para garantir o anonimato e a especialização funcional do espaço, os habitantes da cidade enfrentaram um problema de identidade quase insolúvel. A monotonia impessoal e a pureza clínica do espaço artificialmente construído despojaram-nos da oportunidade de negociar significados e, assim, do know-how necessário para chegar a um acordo com esse problema e resolvê-lo.

A lição que os planificadores puderam aprender com a longa crônica dos sonhos grandiosos e dos abomináveis desastres que combinam para formar a história da arquitetura moderna foi que o segredo primordial de uma “boa cidade” é a oportunidade que ela dá às pessoas de assumir responsabilidade por seus atos “numa sociedade histórica imprevisível” e não “num mundo onírico de harmonia e ordem predeterminada”. Quem quer que resolva operar a invenção de um espaço urbano guiado exclusivamente pelos preceitos da harmonia estética e da razão faria bem em ponderar primeiro que “os homens jamais podem se tornar bons simplesmente seguindo as boas ordens ou o bom plano de outros”.

Podemos acrescentar que a responsabilidade, essa condição última e indispensável da moralidade nas relações humanas, encontraria no espaço perfeitamente planejado um solo infértil, senão inteiramente venenoso. Com toda a certeza, não brotaria nem medraria num espaço higienicamente puro, livre de surpresas, ambivalência e conflito. Só poderiam assumir sua responsabilidade as pessoas que tivessem dominado a difícil arte de agir sob condições de ambivalência e incerteza, nascidas da diferença e variedade. As pessoas moralmente maduras são aqueles seres humanos que cresceram a ponto “de precisar do desconhecido, de se sentirem incompletos sem uma certa anarquia em suas vidas”, que aprenderam a “amar a ‘alteridade’“.

A experiência das cidades americanas analisadas por Sennett aponta para uma regularidade quase universal: a suspeita em relação aos outros, a intolerância face à diferença, o ressentimento com estranhos e a exigência de isolá-los e bani-los, assim como a preocupação histérica, paranoica com a “lei e a ordem”, tudo isso tende a atingir o mais alto grau nas comunidades locais mais uniformes, mais segregadas dos pontos de vista racial, étnico e de classe.

Não admira que nessas localidades o apoio ao sentimento de grupo tende a ser procurado na ilusão da igualdade, garantida pela monótona similaridade de todos dentro do campo visual. A garantia de segurança tende a se configurar na ausência de vizinhos com pensamentos, atitudes e aparência diferentes. A uniformidade alimenta a conformidade e a outra face da conformidade é a intolerância. Numa localidade homogênea é extremamente difícil adquirir as qualidades de caráter e habilidades necessárias para lidar com a diferença humana e situações de incerteza; e na ausência dessas habilidades e qualidades é facílimo temer o outro, simplesmente por ser outro — talvez bizarro e diferente, mas primeiro e sobretudo não familiar, não imediatamente compreensível, não inteiramente sondado, imprevisível.

A cidade, construída originalmente em nome da segurança, para proteger de invasores mal intencionados os que moram intramuros, tornou-se em nossa época “associada mais com o perigo do que com a segurança”, diz Nan Elin. Nos nossos tempos pós-modernos, “o fator medo certamente aumentou, como indicam o aumento dos carros fechados, das portas de casa e dos sistemas de segurança, a popularidade das comunidades ‘fechadas’ e ‘seguras’ em todas as faixas de idade e de renda e a crescente vigilância nos espaços públicos, para não falar nas intermináveis reportagens sobre perigo que aparecem nos veículos de comunicação de massa.”7

Os medos contemporâneos, os “medos urbanos” típicos, ao contrário daqueles que outrora levaram à construção de cidades, concentram-se no “inimigo interior”. Esse tipo de medo provoca menos preocupação com a integridade e a fortaleza da cidade como um todo — como propriedade coletiva e garante coletivo da segurança individual — do que com o isolamento e a fortificação do próprio lar dentro da cidade. Os muros construídos outrora em volta da cidade cruzam agora a própria cidade em inúmeras direções. Bairros vigiados, espaços públicos com proteção cerrada e admissão controlada, guardas bem armados no portão dos condomínios e portas operadas eletronicamente — tudo isso para afastar concidadãos indesejados, não exércitos estrangeiros, salteadores de estrada, saqueadores ou outros perigos desconhecidos emboscados extramuros.

Em vez da união, o evitamento e a separação tornaram-se as principais estratégias de sobrevivência nas megalópoles contemporâneas. Não há mais a questão de amar ou odiar o seu vizinho. Manter os vizinhos ao alcance da mão resolve o dilema e torna a opção desnecessária; isso afasta situações em que a opção entre o amor e o ódio se faz necessária.”

6. Richard Sennett, Uses of Disorder: Personal Identity and City Life (Londres, Faber & Faber, 1996), esp. p.39-43, 101-9, 194-5.

7. Nan Elin, “Shelter from the storm, or form follows fear and vice versa”, em Architecture of Fear, org. Nan Elin (Nova York, Princeton Architectural Press, 1997), p. 13, 26. A coleção de ensaios Architecture of Fear foi inspirada na experiência de Nan Elin durante sua pesquisa de campo realizada na “nova cidade” francesa meticulosamente planejada de Jouy-le-Moutier. Elin ficou espantado de ver que “o tema do medo [l ‘insécurité] era levantado apesar do minúsculo índice de criminalidade da região” (p.7).

 

 

Universalizando... ou sendo globalizado?

Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo ao controle” é que foi articulada (com pouco benefício para a clareza intelectual) num conceito atualmente na moda: o de globalização. O significado mais profundo transmitido pela ideia da globalização é o do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo. A globalização é a “nova desordem mundial” de Jowitt com outro nome.

Esse caráter, inseparável da imagem da globalização, coloca-a radicalmente à parte de outra ideia que aparentemente substituiu, a da “universalização”, outrora constitutiva do discurso moderno sobre as questões mundiais mas agora caída em desuso e raramente mencionada, talvez mesmo no geral esquecida, exceto pelos filósofos.

Assim como os conceitos de “civilização”, “desenvolvimento”, “convergência”, “consenso” e muitos outros termos chaves do pensamento moderno inicial e clássico, a ideia de “universalização” transmitia a esperança, a intenção e a determinação de se produzir a ordem; além do que os outros termos afins assinalavam, ela indicava uma ordem universal — a produção da ordem numa escala universal, verdadeiramente global. Como os outros conceitos, a ideia de universalização foi cunhada com a maré montante dos recursos das potências modernas e das ambições intelectuais modernas. Toda a família de conceitos anunciava em uníssono a vontade de tornar o mundo diferente e melhor do que fora e de expandir a mudança e a melhoria em escala global, à dimensão da espécie. Além disso, declarava a intenção de tornar semelhantes as condições de vida de todos, em toda parte, e, portanto, as oportunidades de vida para todo mundo; talvez mesmo torná-las iguais.

Nada disso restou no significado de globalização, tal como formulado no discurso atual. O novo termo refere-se primordialmente aos efeitos globais, notoriamente não pretendidos e imprevistos, e não às iniciativas e empreendimentos globais.

Sim, ele diz: nossas ações podem ter e muitas vezes têm mesmo efeitos globais; mas não, nós não temos nem sabemos bem como obter os meios de planejar e executar ações globalmente. A “globalização” não diz respeito ao que todos nós, ou pelo menos os mais talentosos e empreendedores, desejamos ou esperamos fazer. Diz respeito ao que está acontecendo a todos nós. A ideia de “globalização” refere-se explicitamente às “forças anônimas” de von Wright operando na vasta “terra de ninguém” — nebulosa e lamacenta, intransitável e indomável — que se estende para além do alcance da capacidade de desígnio e ação de quem quer que seja em particular.

Como é que essa vastidão inculta feita pelo homem (não a terra inculta “natural” que a modernidade se dispôs a conquistar e domar, mas, parafraseando a frase feliz de Anthony Giddens, uma “selva manufaturada”, a terra inculta pós-domesticada que surgiu após a conquista e como resultado dela) saltou à vista? E por que adquiriu esse formidável poder de obstinação e resistência que desde Durkheim é considerado o traço definidor da “dura realidade”?

Uma explicação plausível é a crescente experiência da fraqueza, mesmo da impotência, dos agentes ordenadores habituais, tidos como seguros.

Entre esses, o orgulho do lugar pertenceu, em toda a era moderna, ao Estado. (Somos tentados a dizer: ao Estado territorial; mas as ideias de Estado e de “soberania territorial” tornaram-se sinônimas na prática e na teoria modernas, de modo que a expressão “Estado territorial” tornou-se um pleonasmo.) O significado de “Estado” foi precisamente o de um agente que reivindicava o direito legítimo de e se gabava dos recursos suficientes para estabelecer e impor as regras e normas que ditavam o rumo dos negócios num certo território; regras e normas que, esperava-se, transformassem a contingência em determinação, a ambivalência em Eindeutigkeit [clareza], o acaso em regularidade — em suma, a floresta primeva em um jardim cuidadosamente planejado, o caos em ordem.

Ordenar um setor do mundo passou a significar: estabelecer um Estado dotado de soberania para fazer exatamente isso. Também significava necessariamente a ambição de impor um certo modelo de ordem preferido em vez de outros modelos alternativos. Isso só podia ser realizado com a aquisição do veículo estatal ou com a captura da direção do Estado existente.

Max Weber definiu o Estado como o agente que reivindica o monopólio dos meios de coerção e do uso deles em seu território soberano. Cornelius Castoriadis alerta contra o hábito muito difundido de confundir o Estado com o poder social enquanto tal: “Estado”, insiste ele, refere-se a uma forma específica de distribuir e condensar o poder social, precisamente tendo em mente a capacidade reforçada de “ordenar”. “O Estado”, diz Castoriadis, “é uma entidade separada da coletividade e instituída de modo tal a garantir a permanência dessa separação.” Deveríamos reservar o nome “Estado” “para os casos em que ele é instituído na forma de Aparelho de Estado — o que implica uma ‘burocracia’ separada, civil, clerical ou militar, ainda que rudimentar: em outras palavras, uma organização hierárquica com área de competência delimitada.”6

Assinalemos, no entanto, que essa “separação do poder social em relação à coletividade” não foi de forma alguma um acontecimento casual, um desses caprichos da história. A tarefa de produzir a ordem requer imensos e contínuos esforços para depurar, transferir e condensar o poder social, o que por sua vez exige recursos consideráveis que somente o Estado, na forma de um aparelho burocrático hierárquico, é capaz de reunir, concentrar e usar. Por necessidade, a soberania legislativa e executiva do Estado moderno apoiou-se no “tripé” das soberanias militar, econômica e cultural; em outras palavras, no domínio estatal dos recursos outrora utilizados pelos focos difusos de poder social, mas todos agora necessários para sustentar a instituição e a manutenção da ordem administrada pelo Estado. Uma eficiente capacidade ordenadora era impensável a menos que apoiada na capacidade de defender com eficiência o território contra os desafios de outros modelos de ordem, tanto internos como externos ao reino; na capacidade de fazer o balanço da Nationalökonomie e de reunir recursos culturais suficientes para sustentar a identidade e distinção do Estado através da distinta identidade dos seus súditos.

Só umas poucas populações que aspiravam à soberania de um Estado próprio eram grandes o bastante e tinham a capacidade necessária para passar num teste tão exigente e assim contemplar a soberania e a condição estatal como uma perspectiva realista. Por essa razão, foram relativamente poucas as vezes em que a tarefa de ordenação foi empreendida e executada primordialmente, talvez exclusivamente, através do agente estatal soberano — eram poucos os Estados. Além disso, o estabelecimento de qualquer Estado soberano exigia em regra a supressão das ambições de formação de um Estado por muitas populações menores, solapando ou expropriando mesmo o pouco que tivessem de capacidade militar incipiente, de autossuficiência econômica e de especificidade cultural.

Nessas circunstâncias, a “cena global” era o teatro da política interestatal, que — através de conflitos armados, de acordos ou ambas as coisas — visava antes e acima de tudo a traçar e preservar (“garantindo internacionalmente”) as fronteiras que separavam e encerravam o território de soberania legislativa e executiva de cada Estado. A “política global”, na medida em que a política externa dos Estados soberanos tinha algum horizonte global, concernia sobretudo à sustentação do princípio de plena e inconteste soberania de cada Estado sobre o seu território, com a eliminação dos poucos “espaços vazios” que restassem no mapa do planeta, e o afastamento do perigo da ambivalência decorrente da ocasional superposição de soberanias ou de importantes reivindicações territoriais. Num tributo indireto mas enfático a essa visão, a principal decisão tomada por unanimidade na primeira sessão da Organização da Unidade Africana foi proclamar sacrossantas e imutáveis as fronteiras de todo Estado novo — que, concordavam todos, eram produtos totalmente artificiais da herança colonial. A imagem da “ordem global” reduzia-se, em suma, ao total das ordens locais, cada uma eficientemente mantida e policiada por um e apenas um Estado territorial. Esperava-se que todos os Estados acorressem em defesa dos direitos de polícia uns dos outros.

Dois blocos de poder foram sobrepostos por quase meio século ao dividido mundo dos Estados soberanos. Cada um dos blocos promoveu uma crescente coordenação entre as ordens administradas pelo Estado no reino da sua respectiva “meta-soberania”, baseada na suposição da insuficiência militar, econômica e cultural de cada Estado. Gradual mas inexoravelmente, promoveu-se um novo princípio de integração supra-estatal — mais rápido na prática política do que na teoria. O “cenário global” era visto cada vez mais como o teatro da coexistência e da competição entre grupos de Estados e não entre os próprios Estados.

A iniciativa tomada na conferência de Bandung de criar um incongruente “bloco dos sem bloco”, com os recorrentes esforços de alinhamento empreendidos depois pelos Estados não-alinhados, era um reconhecimento indireto daquele princípio. A iniciativa foi, no entanto, firme e eficientemente solapada pelos dois superblocos, que concordavam pelo menos num ponto: ambos tratavam o resto do mundo como o equivalente, no século XX, dos “espaços vazios” da corrida de construção e fechamento dos Estados no século XIX. O não-alinhamento, a recusa de se unir a um ou outro dos dois superblocos, o obstinado apego ao princípio antiquado e cada vez mais obsoleto da suprema soberania do Estado era visto como o equivalente, na era dos blocos, daquela ambivalente “terra de ninguém” combatida com unhas e dentes pelos Estados modernos, competitivamente mas em uníssono, no seu estágio de formação.

A superestrutura política da era do Grande Cisma desviava a atenção para as divergências mais profundas e — como agora ficou claro — mais duradouras e essenciais no mecanismo de ordenação. A mudança afetou acima de tudo o papel do Estado. Os três pés do “tripé da soberania” foram quebrados sem esperança de conserto. A autossuficiência militar, econômica e cultural do Estado — de qualquer Estado —, sua própria auto-sustentação, deixou de ser uma perspectiva viável. Para preservar sua capacidade de policiar a lei e a ordem, os Estados tiveram que buscar alianças e entregar voluntariamente pedaços cada vez maiores de sua soberania. E quando a cortina foi afinal descerrada, descobriu-se um cenário desconhecido, povoado por estranhas personagens.

Havia agora Estados que, longe de serem forçados a desistir de seus direitos soberanos, tentavam com todo afã abrir mão deles e imploravam que sua soberania lhes fosse tirada e dissolvida em formações supra-estatais. Havia “etnias” esquecidas ou de que nunca se ouvira falar — mortas há muito tempo e renascidas ou antes inexistentes e agora devidamente inventadas —, muitas vezes pequenas demais, carentes e incompetentes demais para passar em qualquer dos testes tradicionais de soberania, mas mesmo assim a reivindicar Estado próprio, com todo o aparato de soberania política e o direito de legislar e policiar a ordem no seu próprio território. Havia novas ou velhas nações escapando das gaiolas federalistas em que tinham sido encarceradas contra a vontade pela hoje extinta superpotência comunista, mas usando sua recém-adquirida liberdade de decidir apenas para buscar a dissolução de sua independência política, econômica e militar no Mercado Comum Europeu e na aliança da OTAN.7 A nova oportunidade representada pelo desprezo das duras e exigentes condições do Estado foi usada por dezenas de “novas nações” numa corrida para instalar seus próprios escritórios no já superlotado edifício da ONU, não projetado para acomodar um número tão grande de “iguais”.

Paradoxalmente, foi a morte da soberania do Estado, não o seu triunfo, que tornou tão popular a ideia da condição estatal. Na cáustica estimativa de Eric Hobsbawm, uma vez que as ilhas Seicheles podem ter nas Nações Unidas um voto com o mesmo peso do Japão, “a maioria dos membros da ONU logo consistirá provavelmente de equivalentes (republicanos), no final do século XX, dos Saxe-Coburg-Gotha e Schwarzburg-Sonderhausen”.8

6. Cornelius Castoriadis, “Pouvoir, politique, autonomie”, em Le monde morcelé (Paris, Seuil, 1990), p. 124.

7. Como era de esperar, são as “minorias étnicas” ou, mais genericamente, pequenos e fracos grupos étnicos, incapazes de governar um Estado de forma independente de acordo com os padrões da era do “mundo dos Estados”, que são em geral os mais inequivocamente entusiastas do poder de reunião das formações supra-estatais. Daí a incongruência das reivindicações à condição estatal defendida em termos de fidelidade às instituições cuja missão declarada e, ainda mais, a missão suspeitada é a de limitar essa condição e no final anulá-la completamente.

8. Ver Eric Hobsbawm, “Some reflections on the ‘break-up of Britain’“, New Left Review, 105 (1977). Preste-se atenção na data dessa publicação: desde 1977 o processo intuído por Hobsbawm ganhou velocidade e suas palavras tornam-se rapidamente realidade.

 

 

A Nova expropriação: dessa vez, do Estado

Com efeito, não se espera mais que os novos Estados, exatamente como os mais antigos na sua condição atual, exerçam muitas funções outrora consideradas a razão de ser das burocracias da nação-estado. A função mais notória abandonada pelo Estado ortodoxo ou arrancada de suas mãos foi a manutenção do “equilíbrio dinâmico” que Castoriadis descreve como uma “igualdade aproximada entre os ritmos de crescimento do consumo e de elevação da produtividade” — tarefa que levou os Estados soberanos em diversas épocas a impor intermitentes proibições de importação ou exportação, barreiras alfandegárias ou estimulação estatal keynesiana da demanda interna.9 Qualquer controle desse “equilíbrio dinâmico” está hoje além do alcance e mesmo das ambições da imensa maioria dos Estados de outro modo soberanos (estritamente no sentido de policiamento da ordem). A própria distinção entre o mercado interno e o global ou, mais genericamente, entre o “interior” e o “exterior” do Estado, é extremamente difícil de manter senão no sentido mais estreito, de “policiamento do território e da população”.

O tripé da soberania foi abalado nos três pés. Claro, a perna econômica foi a mais afetada. Já incapazes de se manter se guiados apenas pelos interesses politicamente articulados da população do reino político soberano, as nações-estados tornam-se cada vez mais executoras e plenipotenciárias de forças que não esperam controlar politicamente. No veredito incisivo do radical analista político latino-americano, graças à nova “porosidade” de todas as economias supostamente “nacionais” e à condição efêmera, ilusória e extraterritorial do espaço em que operam, os mercados financeiros globais “impõem suas leis e preceitos ao planeta. A ‘globalização’ nada mais é que a extensão totalitária de sua lógica a todos os aspectos da vida.” Os Estados não têm recursos suficientes nem liberdade de manobra para suportar a pressão — pela simples razão de que “alguns minutos bastam para que empresas e até Estados entrem em colapso”:

No cabaré da globalização, o Estado passa por um strip-tease e no final do espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas: seu poder de repressão. Com sua base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de segurança para as mega-empresas...

Os novos senhores do mundo não têm necessidade de governar diretamente. Os governos nacionais são encarregados da tarefa de administrar os negócios em nome deles.10

Devido à total e inexorável disseminação das regras de livre mercado e, sobretudo, ao livre movimento do capital e das finanças, a “economia” é progressivamente isentada do controle político; com efeito, o significado primordial do termo “economia” é o de “área não política”. O que quer que restou da política, espera-se, deve ser tratado pelo Estado, como nos bons velhos tempos — mas o Estado não deve tocar em coisa alguma relacionada à vida econômica: qualquer tentativa nesse sentido enfrentaria imediata e furiosa punição dos mercados mundiais. A impotência econômica do Estado seria então mais uma vez flagrantemente exposta para horror da equipe governante. De acordo com os cálculos de René Passet, as transações financeiras intercambiais puramente especulativas alcançam um volume diário de US$ 1,3 bilhão — cinquenta vezes mais que o volume de trocas comerciais e quase o mesmo que a soma das reservas de todos os “bancos centrais” do mundo, que é de US$ 1,5 bilhão. “Nenhum Estado”, conclui Passet, “pode portanto resistir por mais de alguns dias às pressões especulativas dos ‘mercados’.”

A única tarefa econômica permitida ao Estado e que se espera que ele assuma é a de garantir um “orçamento equilibrado”, policiando e controlando as pressões locais por intervenções estatais mais vigorosas na direção dos negócios e em defesa da população face às consequências mais sinistras da anarquia de mercado. Como assinalou recentemente Jean-Paul Fitoussi,

Tal programa, no entanto, não pode ser executado a não ser que a economia, de uma maneira ou de outra, seja retirada do campo da política. Certamente um Ministério da Fazenda continua sendo um mal necessário, mas idealmente se poderia ter um Ministério dos Assuntos Econômicos (isto é, que governasse a economia). Em outras palavras, o governo deveria ser despojado de sua responsabilidade pela política macroeconômica.12

Ao contrário de opiniões sempre repetidas (embora não mais verdadeiras por isso), não há contradição lógica nem pragmática entre a nova extraterritorialidade do capital (absoluta no caso das finanças, quase total no caso do comércio e bem avançada no da produção industrial) e a nova proliferação de Estados soberanos frágeis e impotentes. A corrida para criar novas e cada vez mais fracas entidades territoriais “politicamente independentes” não vai contra a natureza das tendências econômicas globalizantes; a fragmentação política não é um “trava na roda” da “sociedade mundial” emergente, unida pela livre circulação de informação. Ao contrário, parece haver uma íntima afinidade, mútuo condicionamento e reforço entre a “globalização” de todos os aspectos da economia e a renovada ênfase do “princípio territorial”.

Por sua independência de movimento e irrestrita liberdade para perseguir seus objetivos, as finanças, comércio e indústria de informação globais dependem da fragmentação política — do morcellement [retalhamento] — do cenário mundial. Pode-se dizer que todos têm interesses adquiridos nos “Estados fracos” — isto é, nos Estados que são fracos mas mesmo assim continuam sendo Estados. Deliberada ou subconscientemente, esses interEstados, instituições supralocais que foram trazidas à luz e têm permissão de agir com o consentimento do capital mundial, exercem pressões coordenadas sobre todos os Estados membros ou independentes para sistematicamente destruírem tudo que possa deter ou limitar o livre movimento de capitais e restringir a liberdade de mercado. Abrir de par em par os portões e abandonar qualquer ideia de política econômica autônoma é a condição preliminar, documente obedecida, para receber assistência econômica dos bancos mundiais e fundos monetários internacionais. Estados fracos são precisamente o que a Nova Ordem Mundial, com muita frequência encarada com suspeita como uma nova desordem mundial, precisa para sustentar-se e reproduzir-se. Quase-Estados, Estados fracos podem ser facilmente reduzidos ao (útil) papel de distritos policiais locais que garantem o nível médio de ordem necessário para a realização de negócios, mas não precisam ser temidos como freios efetivos à liberdade das empresas globais.

A separação entre economia e política e a proteção da primeira contra a intervenção regulatória da segunda, o que resulta na perda de poder da política como um agente efetivo, auguram muito mais que uma simples mudança na distribuição do poder social. Como assinala Claus Offe, o agente político como tal — “a capacidade de fazer opções coletivamente impositivas e executá-las” — tornou-se problemático. “Em vez de perguntar o que deve ser feito, devemos com mais proveito investigar se há alguém capaz de fazer o que deve ser feito.” Uma vez que “as fronteiras se tornaram permeáveis” (de maneira altamente seletiva, com certeza), “as soberanias tornaram-se nominais, o poder anônimo e o lugar, vazios”. Ainda estamos bem longe do destino final; o processo continua, aparentemente de forma inexorável. “O padrão dominante pode ser descrito como ‘afrouxamento dos freios’: desregulamentação, liberalização, flexibilidade, fluidez crescente e facilitação das transações nos mercados financeiros imobiliário e trabalhista, alívio da carga tributária etc.”13 Quanto mais consistente a aplicação desse padrão, menos poder é retido nas mãos do agente que o promove e menos ele poderá, por ter cada vez menos recursos, evitar aplicá-lo caso o deseje ou seja pressionado a fazê-lo.

Uma das consequências mais fundamentais da nova liberdade global de movimento é que está cada vez mais difícil, talvez até mesmo impossível, reunir questões sociais numa efetiva ação coletiva.”

9. Ver Cornelius Castoriadis, “La crise des sociétés occidentales”, em La montée de I’insignificance (Paris, Seuil, 1996), p. 14-15.

10. Ver “Sept pieces du puzzle néolibéral: Ia quatrième guerre mondiale a commence”, Le Monde Diplomatique, agosto 1997, p.4-5. O artigo é assinado pelo “Subcomandante Marcos” e é proveniente do território de rebelião rural em Chiapas, México.

11. Ver René Passet, “Ces promesses des technologies de rimmatériel”, Le Monde Diplomatique, julho de 1997, p.26.

12. Ver Jean-Paul Fitoussi, “Europe: le commencement d’une aventure”, Le Monde, 29 de agosto de 1997.

13. Ver Claus Offe, Modernity and the State: East, West (Cambridge, Polity Press, 1996), p.vii, ix, 37.

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