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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Paideia: A formação do homem grego (Parte I), de Werner Jaeger

Editora: WMF Martins Fontes

ISBN: 978-85-7326-410-4

Tradução: Artur M. Ferreira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 1456

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Sinopse: Esta obra famosa de Werner Jaeger, um dos marcos da cultura do nosso tempo, é o estudo mais profundo e completo sobre os ideais de educação da Grécia antiga. Jaeger estudou a interação entre o processo histórico da formação do homem grego e o processo espiritual através do qual os gregos chegaram a elaborar seu ideal de humanidade. A partir da solução histórica e espiritual, foi possível chegar ao entendimento da criação educativa sem par de onde se irradia a imorredoura influência dos gregos sobre todos os séculos.


 

Livro I

 

“Todo povo que atinge certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual. Com a mudança das coisas, mudam os indivíduos; o tipo permanece o mesmo. Homens e animais, na sua qualidade de seres físicos, consolidam a sua espécie pela procriação natural. Só o Homem, porém, consegue conservar e propagar a sua forma de existência social e espiritual por meio das forças pelas quais a criou, quer dizer, por meio da vontade consciente e da razão. O seu desenvolvimento ganha por elas um certo jogo livre de que carece o resto dos seres vivos, se pusermos de parte a hipótese de transformações pré-históricas das espécies e nos ativermos ao mundo da experiência dada.

Uma educação consciente pode até mudar a natureza física do Homem e suas qualidades, elevando-lhe a capacidade a um nível superior. Mas o espírito humano conduz progressivamente à descoberta de si próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior, formas melhores de existência humana. A natureza do Homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições especiais para a manutenção e transmissão da sua forma particular e exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. Na educação, como o Homem a pratica, atua a mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele todas as espécies vivas à conservação e propagação do seu tipo. É nela, porém, que essa força atinge o mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim.”

 

 

“É altamente significativo que seja o velho Fênix, educador de Aquiles, o herói-protótipo dos gregos, quem exprime esse ideal. Numa hora decisiva, Fênix recorda ao jovem o fim para que foi educado:

“Para ambas as coisas: proferir palavras e realizar ações.””

 

 

“Para Homero e para o mundo da nobreza desse tempo, a negação da honra era, em contrapartida, a maior tragédia humana. Os heróis tratavam-se mutuamente com respeito e honra constantes. Assentava nisso toda a sua ordem social. A ânsia de honra era neles simplesmente insaciável, sem que isso seja característica moral peculiar aos indivíduos como tais. Era natural e indiscutível que os heróis maiores e os príncipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta. Ninguém receia, na Antiguidade, reclamar a honra devida a um serviço prestado. A exigência de pagamento é para eles aspecto secundário e de modo nenhum decisivo. O elogio e a reprovação (επã αινος e ψο¿γος) são a fonte da honra e da desonra. Mas o elogio e a reprovação foram considerados pela ética filosófica dos tempos seguintes o fato fundamental da vida social, pelo qual se manifesta a existência de uma medida de valor na comunidade dos homens12. É difícil para o homem moderno imaginar a absoluta exposição da consciência entre os gregos. Para eles não existe, efetivamente, nenhum conceito como a nossa consciência pessoal. No entanto, o conhecimento de tal fato é o pressuposto indispensável à difícil inteligência do conceito de honra e do seu significado na Antiguidade. A ânsia de se distinguir e a aspiração à honra e à aprovação aparecem ao sentimento cristão como vaidade pessoal pecaminosa; os gregos, porém, viram nisso a aspiração da pessoa ao ideal e suprapessoal, onde começa o valor. De certo modo pode-se dizer que a areté heroica só se aperfeiçoa com a morte física do herói. Ela reside no homem mortal, ou melhor, ela é o próprio homem mortal; mas perpetua-se, mesmo depois da morte, na sua fama, isto é, na imagem da sua areté, tal como o acompanhou e dirigiu na vida. Até os deuses reclamam a sua honra e se comprazem no culto que lhes glorifica os feitos, castigando ciosamente qualquer violação dessa honra. Os deuses de Homero são, por assim dizer, uma sociedade imortal de nobres; e a essência da piedade e o culto grego exprimem-se no fato de honrar a divindade. Ser piedoso quer dizer “honrar a divindade”. Honrar os Deuses e os homens pela sua areté é próprio do Homem primitivo.”

12. ARISTÓTELES, Et. Nic., Γ I, 1109 b 30.

 

 

“Conta Platão que era opinião geral no seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia1. Desde então, a sua influência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem a apaixonada crítica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu domínio, quando buscou limitar o influxo e o valor pedagógico de toda a poesia. A concepção do poeta como educador do seu povo – no sentido mais amplo e profundo da palavra – foi familiar aos gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importância. Homero foi apenas o exemplo mais notável dessa concepção geral e, por assim dizer, a sua manifestação clássica. Convém levarmos a sério, o mais possível, essa concepção, e não restringirmos a nossa compreensão da poesia grega com a substituição do juízo próprio dos gregos pelo dogma moderno da autonomia puramente estética da arte. Embora esta caracterize certos tipos e períodos da arte e da poesia, não deriva da poesia grega ou de seus grandes representantes, nem é possível aplicá-la a eles.

A não separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego primitivo. O procedimento de separá-las surge relativamente tarde. Para Platão, ainda, a limitação do conteúdo de verdade da poesia homérica acarreta imediatamente uma diminuição no seu valor. Foi a antiga retórica que fomentou pela primeira vez a consideração formal da arte e foi o Cristianismo que, por fim, converteu a avaliação puramente estética da poesia em atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava rejeitar, como errôneo e ímpio, a maior parte do conteúdo ético e religioso dos antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a forma clássica como instrumento de educação e fonte de prazer. A partir daí, a poesia continuou a conjurar do seu mundo de sombras os deuses e heróis da “mitologia” pagã; mas esse mundo passou a ser considerado como jogo irreal da pura fantasia artística. É fácil contemplar Homero por essa acanhada perspectiva, mas assim impedimo-nos o acesso à inteligência dos mitos e da poesia no seu genuíno sentido helênico. Repugna-nos naturalmente ver a tardia poética filosófica do helenismo interpretar a educação em Homero como uma árida e racionalista fabula docet ou, de acordo com o modelo dos sofistas, fazer da epopeia uma enciclopédia de todas as artes e ciências. Mas essa quimera da escolástica não é senão a degenerescência de um pensamento em si mesmo correto, o qual, como tudo quanto é belo e verdadeiro, se torna grosseiro em mãos grosseiras. Por mais que esse utilitarismo repugne, com razão, nosso sentido estético, não deixa de ser evidente que Homero, e com ele todos os grandes poetas da Grécia, deve ser considerado, não como simples objeto da história formal da literatura, mas como o primeiro e maior criador e modelador da humanidade grega.”

1. Platão, Rep., 606 E, pensa nos “adoradores de Homero”, que o enaltecem não só como fonte de prazer artístico, mas também como guia da vida. Idêntica visão em XENÓFANES, frag. 9 Diehl.

 

 

“Existe e existiu sempre uma arte que prescinde dos problemas centrais do homem e tem de ser compreendida apenas pela sua ideia formal. E mais: existe uma arte que despreza os chamados assuntos elevados ou fica indiferente perante o conteúdo do seu objeto. É claro que essa frivolidade artística deliberada tem por sua vez efeitos “éticos”, pois desmascara sem nenhuma consideração os valores falsos e convencionais, e atua como uma crítica purificadora. Mas só pode ser propriamente educativa uma poesia cujas raízes mergulhem nas camadas mais profundas do ser humano e na qual viva um éthos, um anseio espiritual, uma imagem do humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever. A poesia grega nas suas formas mais elevadas não nos dá apenas um fragmento qualquer da realidade; ela nos dá um trecho da existência, escolhido e considerado em relação a um ideal determinado.

Por outro lado, os valores mais elevados ganham, em geral, por meio da expressão artística, significado permanente e força emocional capaz de mover os homens. A arte tem um poder ilimitado de conversão espiritual. É o que os gregos chamaram psykhagogía. Só ela possui ao mesmo tempo a validade universal e a plenitude imediata e viva, que são as condições mais importantes da ação educativa. Pela união dessas duas modalidades de ação espiritual, ela supera ao mesmo tempo a vida real e a reflexão filosófica. A vida possui a plenitude de sentido, mas as suas experiências carecem de valor universal. Sofrem demais a interferência dos sucessos acidentais para que a sua impressão possa alcançar sempre o grau máximo de profundidade. A filosofia e a reflexão atingem a universalidade e penetram na essência das coisas. Mas atuam somente naqueles cujos pensamentos chegam a adquirir a intensidade de uma vivência pessoal. Daqui resulta que a poesia tem vantagem sobre qualquer ensino intelectual e verdade racional, assim como sobre as meras experiências acidentais da vida do indivíduo. É mais filosófica que a vida real (se nos é lícito ampliar o sentido de uma conhecida frase de Aristóteles), mas é, ao mesmo tempo, pela concentração de sua realidade espiritual, mais vital que o conhecimento filosófico.

Essas considerações não são, de modo nenhum, válidas para a poesia de todas as épocas, nem sequer, sem exceção, para a dos gregos. Tampouco se limitam a esta. Mas aplicam-se a ela mais que a nenhuma outra, pois dela derivam, quanto ao fundamental.”

 

 

“O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Há no seu âmago alguma coisa que tem validade universal. Não tem caráter meramente fictício, embora originalmente seja, sem dúvida alguma, o sedimento de acontecimentos históricos que alcançaram a imortalidade através de uma longa tradição e da interpretação enaltecedora da fantasia criadora da posteridade.”

 

 

“Ainda acima do emprego dos epítetos, campeia nas descrições épicas um tom ponderativo, enobrecedor e transfigurante. Tudo quanto é baixo, desprezível e falho de nobreza é suprimido do mundo épico. Já os antigos fizeram notar como Homero eleva àquela esfera até as coisas mais insignificantes. Díon de Prusa, que não chegou a ter consciência clara da profunda ligação do estilo enobrecedor com a essência da épica, contrapõe a Homero o crítico Arquíloco e faz o reparo de que os homens precisam mais de crítica que de louvor para a sua educação5. O seu juízo pouco nos interessa aqui, uma vez que exprime um ponto de vista pessimista, oposto à antiga educação dos nobres e ao culto do exemplo. Veremos mais adiante os seus pressupostos sociais. Mas dificilmente se pode descrever a natureza do estilo épico e a sua tendência idealizante com mais acerto que o das palavras daquele retórico, cheio de fina sensibilidade para as coisas formais. Homero – diz – tudo engrandeceu: animais e plantas, a água e a terra, as armas e os cavalos. Podemos afirmar que não deixou nada sem elogio e sem louvor. Mesmo Tersites, o único que ele difamou, denomina-o orador de voz clara.

5. DÍON de PRUSA, Or., XXXIII, 2.

 

 

“A nova finalidade artística da grande epopeia, ao introduzir um elevado número de cenas dessa natureza e ligá-las a uma ação unitária, não consistia apenas em apresentar, como anteriormente, quadros particulares de uma ação de conjunto que se supunha conhecida; visava também pôr em relevo o valor de todos os heróis famosos. Por meio da ligação de muitos heróis e figuras já parcialmente celebrados nos antigos cantos, o poeta pinta um quadro grandioso: a guerra de Ílion, na sua totalidade. A sua obra mostra bem o que a guerra representava para ele: era a luta prodigiosa de muitos heróis imortais, da mais sublime areté – e não apenas gregos. Os inimigos destes são igualmente um povo de heróis que lutam pela sua pátria e pela sua liberdade. Lutar pela pátria é um bom augúrio: são palavras que Homero põe na boca, não de um grego, mas do herói dos troianos, que tomba pela pátria e com isso atinge uma tão viva qualidade humana. Os grandes heróis aqueus encarnam o tipo da mais alta heroicidade. A pátria, a mulher e os filhos são motivos que atuam sobre eles com menos força. Diz-se ocasionalmente que lutam para vingar o rapto de Helena. Há a intenção de negociar diretamente com os troianos o regresso de Helena ao seu marido legal, e assim evitar o derramamento de sangue, como parece aconselhar uma política razoável. Mas não se faz nenhum uso importante dessa justificação. O que desperta a simpatia do poeta para com os aqueus não é a justiça da sua causa, mas o resplendor imperecível do seu heroísmo.

Do fundo sangrento da peleja heroica destaca-se, na Ilíada, um destino individual de pura tragédia humana: a vida heroica de Aquiles. A ação é para o poeta o laço íntimo pelo qual ele junta numa unidade poética as cenas sucessivas da guerra. A Ilíada deve à trágica figura de Aquiles o não ser para nós um venerável manuscrito do espírito guerreiro primitivo, mas sim um monumento imortal para o reconhecimento da vida e da dor humanas. A grande epopeia não representa apenas um progresso imenso na arte de compor um todo complexo e de amplo traçado; significa também uma consideração mais profunda dos conteúdos íntimos da vida e dos seus problemas, o que eleva a poesia heroica muito acima da sua esfera original e outorga aos poetas uma posição espiritual completamente nova, uma função educadora no mais alto sentido da palavra. Ele já não é um simples divulgador impessoal da glória do passado e de suas façanhas. É um poeta no sentido pleno da palavra: intérprete e criador da tradição.

Interpretação espiritual e criação são, no fundo, uma e a mesma coisa. Não é difícil de compreender que a originalidade incontestavelmente superior da epopeia grega na composição de um todo unitário brota da mesma raiz que a sua ação educadora: da mais alta consciência espiritual dos problemas da vida. O interesse e o prazer cada vez maiores no domínio de grandes massas temáticas – traço típico dos últimos graus de desenvolvimento dos cantos épicos e que também se encontra em outros povos – não leva nestes necessariamente à grande epopeia e, quando tal acontece, cai facilmente no perigo de degenerar em uma narração novelesca, que desde o “ovo de Leda”, e começando na história do nascimento do herói, desenrola-se através de uma fatigante série de contos tradicionais. O acontecer da epopeia homérica, dramático e concentrado, sempre intuitivo e imagético, avançando in medias res, procede apenas por traços justos e precisos. Em vez de uma história da guerra troiana ou da vida inteira de Aquiles, apresenta apenas, com prodigiosa segurança, as grandes crises, alguns momentos de significação representativa e da mais alta fecundidade poética, o que permite concentrar e evocar, em breve espaço de tempo, dez anos de guerra com todos os seus combates e vicissitudes, passadas, presentes e futuras. Já os críticos antigos se admiraram dessa capacidade. Foi ela que fez de Homero, para Aristóteles e Horácio, não apenas o clássico dentre os épicos, mas ainda o mais sublime modelo de força e mestria poéticas. Prescinde do que é meramente histórico, corporifica os acontecimentos e deixa que os problemas se desenvolvam pela força da sua íntima necessidade.”

 

 

“O mito é como um organismo: desenvolve-se, transforma-se e se renova sem cessar. É o poeta que realiza essa transformação. Mas não a realiza em obediência a um simples desejo arbitrário. O poeta estrutura uma nova forma de vida para o seu tempo e interpreta o mito de acordo com as suas novas evidências interiores. O mito só se mantém vivo por meio da contínua metamorfose da sua ideia. Mas a ideia nova é transportada pelo veículo seguro do mito. Isso já é válido para a relação do poeta com a tradição na epopeia homérica. Mas em Hesíodo torna-se ainda muito mais claro, visto que nele a individualidade poética aparece de modo evidente, age com plena consciência e serve-se de tradição mítica como de um instrumento para o próprio desígnio.”

 

 

“Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular, excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a própria forma e o seu éthos exclusivamente a partir das profundezas da própria vida. Porque Homero não é só o poeta de uma classe, mas se eleva desde os fundamentos de um ideal de classe até o nível humano e a amplidão geral do espírito, possui a força capaz de orientar na sua cultura própria uma classe popular que vive em condições de existência totalmente diversas, capaz de fazê-la achar o sentido específico da sua vida humana e de ensiná-la a conformar-se com as suas leis internas. Isso é da maior importância. Mas é ainda mais importante o fato de, por meio desse ato de autoformação espiritual, ela sair do seu isolamento e fazer ouvir a sua voz na ágora dos povos gregos. Assim como a cultura aristocrática adquire em Homero uma influência de tipo humano geral, com Hesíodo a civilização camponesa sai dos acanhados limites da sua esfera social. Embora o conteúdo do poema só possa ser compreendido pelos camponeses e só se aplique a eles e ao trabalho do campo, os valores morais implícitos nessa concepção de vida tornam-se acessíveis ao mundo inteiro. É claro que a concepção agrária da sociedade não deu o cunho definitivo à vida do povo grego. A formação grega encontrou na pólis a sua forma mais característica e acabada. O que contém da cultura do campo, ela passa, espiritualmente intacto, para um plano de fundo. Importância igual ou maior tem o fato de o povo grego considerar definitivamente Hesíodo um educador orientado para o ideal do trabalho e da estrita justiça e de ele, formado no ambiente do campo, conservar o seu valor mesmo em contextos sociais completamente distintos.

É no intuito educativo de Hesíodo que está a verdadeira raiz da sua poesia. Não depende do predomínio da forma épica nem da matéria como tal. Se considerarmos os poemas didáticos de Hesíodo como uma simples aplicação mais ou menos original da linguagem e formas poéticas dos rapsodos a um conteúdo que as gerações posteriores consideravam “prosaico”, surgirão dúvidas sobre o caráter poético da obra. Os filólogos antigos formularam dúvidas idênticas a respeito dos poemas didáticos posteriores16. O próprio Hesíodo encontrou justificação para a sua missão poética na vontade profética de se converter em mestre do seu povo. Os seus contemporâneos contemplavam Homero com esses olhos, pois não podiam imaginar forma mais elevada de influxo espiritual do que a dos poetas e rapsodos homéricos. A missão educativa do poeta estava inseparavelmente ligada à forma da linguagem épica tal qual era sentida sob o influxo de Homero. Quando Hesíodo recolheu a seu modo a herança de Homero, definiu para a posteridade, transpondo os limites da mera poesia didática, a essência da criação poética no sentido social, educador e construtivo. Essa força edificadora brota, para além de qualquer instrução meramente prática ou moral, de uma vontade de atingir a essência das coisas, vontade que nasce do mais profundo saber e que tudo renova. A ameaça iminente de um estado social dominado pela dissensão e pela injustiça deu a Hesíodo a visão dos fundamentos em que se apoiava a vida daquela sociedade e a de cada um dos seus membros. Essa visão essencial que penetra o sentido simples e original da existência determina a função do verdadeiro poeta. Para este não há assuntos prosaicos ou poéticos em si.

Hesíodo é o primeiro poeta grego que fala do seu ambiente em seu próprio nome. Desse modo ergue-se acima da esfera épica, que apregoa a fama e interpreta as sagas, até a realidade e as lutas atuais. Vê-se claramente no mito das cinco idades que ele considera o mundo heroico da epopeia um passado ideal, ao qual contrapõe a presente idade de ferro. No tempo de Hesíodo o poeta esforça-se por exercer uma influência direta na vida. Surge aqui pela primeira vez uma pretensão a guia, que não se fundamenta numa ascendência aristocrática nem numa função oficial reconhecida. Ressalta imediatamente a semelhança com os profetas de Israel, já salientada de tempos antigos. No entanto, é com Hesíodo, o primeiro dos poetas gregos a apresentar-se com a pretensão de falar publicamente à comunidade, baseado na superioridade do seu conhecimento, que o helenismo se anuncia como uma época nova na história da sociedade. É com Hesíodo que começa o domínio e o governo do espírito, que põe o seu selo no mundo grego. É o “espírito” no sentido original, o autêntico spiritus, o sopro dos deuses, que ele próprio descreve como verdadeira experiência religiosa e que por inspiração pessoal recebe das musas, aos pés do Hélicon. São as próprias musas que explicam a sua força inspiradora, quando Hesíodo as invoca, na qualidade de poeta: Na verdade sabemos dizer mentiras que parecem verdades, mas também sabemos, se o quisermos, revelar a verdade17. Assim se exprime no prefácio da Teogonia. No proêmio dos Erga, Hesíodo também tem a intenção de revelar a verdade a seu irmão18. Essa consciência de ensinar a verdade é novidade em relação a Homero, e a ousadia de Hesíodo em usar a forma da primeira pessoa deve ligar-se a ela de algum modo. É característica pessoal do poeta-profeta grego querer guiar o Homem transviado para o caminho correto, por meio do conhecimento mais profundo das conexões do mundo e da vida.”

16. Anecdota Bekkeri, 733, 13.

17. Teóg., 27.

18. Erga, 10.

 

 

“A raiz da ética filosófica de Platão e Aristóteles na ética da velha pólis foi desconhecida dos tempos posteriores, habituados a encará-la como a ética absoluta e intemporal. Quando a Igreja cristã começou a estudá-la, achou estranho que Platão e Aristóteles chamassem virtudes morais à fortaleza, e à justiça. Mas teve de conformar-se com esse fato original da consciência moral dos gregos. Para uma geração alheia à comunidade política e ao Estado, no sentido primitivo da palavra, e do ponto de vista de uma ética meramente individual e religiosa, isso só era compreensível como paradoxo. Fizeram-se, por isso, inúmeras teses sobre a questão de saber se a fortaleza é uma virtude e como é que pode sê-lo. A aceitação consciente da antiga ética da pólis pela moral filosófica posterior e a influência que por meio desta ela exerceu sobre o futuro são para nós um processo perfeitamente natural da história do espírito. Nenhuma filosofia vive da pura razão. É apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilização, tais como se desenrolam na história. Em qualquer dos casos, isso é verdadeiro para a filosofia de Platão e a de Aristóteles. Não podem ser compreendidas sem a cultura grega, nem a cultura grega sem elas.”

 

 

“O pensamento e o sentimento do poeta grego permanecem sempre, mesmo dentro da esfera do eu recentemente descoberta, submetidos de algum modo a uma norma e a um dever-ser. Explicaremos isso com maior detalhe e rigor. Longamente impregnados daquela ideia, não nos é fácil conceber com clareza e precisão o que Arquíloco e outros poetas da sua espécie entenderam por individualidade. Não é por certo o sentimento cristão e moderno do eu, da alma individual, cônscia do seu íntimo e próprio valor. Para os gregos, o eu está em íntima e viva conexão com a totalidade do mundo circundante, com a natureza e com a sociedade humana, nunca separado e solitário. As manifestações da individualidade nunca são exclusivamente subjetivas. Seria preferível dizer que, numa poesia como a de Arquíloco, o eu individual busca exprimir e representar em si próprio a totalidade do mundo objetivo e suas leis. Não é pelo mero extravasamento da subjetividade que o indivíduo grego alcança a liberdade e a amplidão de movimentos da sua consciência, mas sim pela própria objetivação espiritual. E é na medida em que se contrapõe a um mundo exterior, regido por leis próprias, que ele descobre as suas próprias leis internas.”

 

 

“Da poesia jônica do século e meio posterior a Arquíloco, conserva-se o suficiente para que se veja que trilha o mesmo caminho, embora nenhuma possua a importância espiritual do seu grande iniciador. Os poetas subsequentes são sobretudo influenciados pela forma reflexiva do iambo e da elegia de Arquíloco. Os iambos de Semônides de Amorgos que se conservam são de caráter didático. O primeiro revela claramente a imediata intenção educadora do gênero: Meu filho, Zeus tem na mão o fim de todas as coisas e dispõe-nas como entende. O Homem não tem o mínimo conhecimento delas. Seres de um só dia, como os animais no prado, vivemos ignorantes do modo que a divindade usará para levar cada coisa a seu fim. Vivemos todos da esperança e da ilusão: os seus desígnios, porém, nos são inacessíveis. A velhice, a crença, a morte no campo de batalha ou sobre as ondas do mar atingem os homens, antes de eles terem conseguido o que queriam. Outros ainda põem fim à vida pelo suicídio32. O poeta lamenta-se, com Hesíodo, de que nenhum infortúnio poupa o Homem33. Cercam-no inúmeros espíritos malignos, dores e penas sem conta. Se quisésseis escutar-me, não amaríamos a nossa própria desventura – Hesíodo recorda a mesma coisa34nem nos atormentaríamos na busca de dores fatais.

Perdeu-se a parte final desse poema. Mas, numa elegia que trata quase o mesmo tema deste iambo, revela-se a exortação que Semônides dirigia aos homens35. A base da sua cega perseguição da desgraça está na desenfreada esperança de uma vida sem fim. Foi o homem de Quio quem disse a coisa mais bela: a geração dos homens é como a das folhas. Acolhem, todavia, nos ouvidos esse conselho, mas não o aceitam no seu coração. Todos guardam as esperanças que nascem no coração dos jovens. Enquanto dura a flor dos anos, os mortais andam de coração leve e traçam mil planos irrealizáveis. Ninguém pensa na velhice ou na morte. E, enquanto têm saúde, não curam da enfermidade. Insensatos os que assim pensam e não sabem que para os mortais é breve o tempo da juventude e da existência. Aprende tu isto e, meditando no fim da vida, deixa a tua alma gozar um pouco de prazer. A juventude surge aqui como fonte de todas as ilusões exageradas e de todos os empreendimentos desmedidos, porque não tem presente a sabedoria de Homero, que recorda a brevidade da vida. Singular e nova é a consequência tirada dessa afirmação pelo poeta: a exortação a gozar os prazeres da vida enquanto é tempo. Isso não se encontra em Homero. É a solução de uma geração para a qual as altas exigências dos tempos heroicos perderam muito da sua profunda seriedade e que seleciona das doutrinas da Antiguidade o que melhor convém à própria concepção de vida. Assim, a lamentação sobre a brevidade da vida humana. Essa intuição, transportada do mundo dos mitos heroicos para o mundo mais humano em que o poeta vivia, deve ter gerado, em lugar de um trágico heroísmo, uma sede abrasadora de viver.”

32. SEMÔNIDES, frag. 1.

33. HESÍODO, Erga, 100.

34. HESÍODO, Erga, 58. Também recorda Hesíodo em 29, 10 (Erga, 40).

35. Frag. 29. A atribuição, por BERGK, do poema a Semônides de Amorgos – Estobeu transmite-o como sendo de Simônides de Ceos – é um dos resultados mais seguros da crítica filológica.

 

 

“Com frequência se debateu a questão de saber como foi possível à filosofia grega ter começado com os problemas da natureza e não com os relativos ao Homem. A fim de se tornar compreensível esse fato importante, procurou-se corrigir a história, fazendo derivar do espírito da mística religiosa as concepções da mais antiga filosofia da natureza. Mas não é assim que resolveremos o problema. Limitamo-nos a adiá-lo. Só ficará efetivamente resolvido se reconhecermos que ele nasceu de um falso estreitamento do horizonte da chamada história da filosofia. Se juntarmos à filosofia da natureza tudo o que a poesia jônica a partir de Arquíloco e a poesia de Sólon trouxeram ao pensamento construtivo no campo religioso e ético-político, ficará evidente que nos basta quebrar os limites que separam a prosa da poesia para obtermos uma imagem completa da evolução do pensamento filosófico, na qual também está compreendido o reino humano. A única diferença reside no fato de a concepção do Estado ser, pela própria natureza, de caráter imediatamente prático, ao passo que a investigação da physis, ou gênese, isto é, “origem”, é impulsionada pela “teoria”. O problema do Homem não foi encarado pelos gregos, a princípio, do ponto de vista teórico. Mais tarde, no estudo dos problemas do mundo externo, e particularmente da Medicina e da Matemática, é que se descobriram intuições do tipo de uma tékhne exata, que serviram de modelo para a investigação do Homem interior. Recordemos as palavras de Hegel: o rodeio é o caminho do espírito. Enquanto a alma do Oriente, no seu anseio religioso, se afunda logo no abismo do sentimento, sem ali encontrar, no entanto, um terreno firme, o espírito grego, formado na legalidade do mundo exterior, cedo descobre também as leis internas da alma e chega à concepção objetiva de um cosmo interior. Foi essa descoberta que, num momento crítico da história grega, possibilitou, pela primeira vez, a estruturação de uma nova formação humana, com fundamento no conhecimento filosófico, no sentido proposto por Platão. A prioridade da filosofia da natureza sobre a filosofia do espírito tem um “sentido” histórico profundo, que se torna extremamente claro quando visto à luz da história da educação. No fundo do pensamento dos antigos jônios não há uma vontade consciente de educar. Porém, no meio da decadência da concepção mítica do mundo e no caos gerado pela fermentação de uma nova sociedade humana, encaram de um modo inteiramente novo o mais profundo problema da vida, o problema do ser.

O que logo se evidencia na figura humana desses primeiros filósofos – que, naturalmente, não deram a si próprios esse nome platônico – é a sua típica atitude espiritual: devotamento incondicional ao conhecimento, estudo e aprofundamento do ser em si mesmo. Essa atitude pareceu totalmente paradoxal com relação aos gregos posteriores, e mesmo aos da época, mas suscitou ao mesmo tempo a sua mais alta admiração. A tranquila indiferença daqueles investigadores pelas coisas que aos demais homens pareciam importantes, como o dinheiro, as honras e até o lar e a família, a sua aparente cegueira com relação aos seus próprios interesses e a sua indiferença perante as emoções da praça pública deram origem às conhecidas anedotas sobre a atitude espiritual daqueles pensadores. Recolhidas principalmente pela Academia platônica e pela Escola peripatética, foram propostas como exemplo e modelo do βι¿ος θεωρητικο¿ς, considerado por Platão como a autêntica prâxis dos filósofos3. Nessas anedotas, o filósofo é o grande extravagante, algo misterioso, digno, mas estimado, que se ergue acima da sociedade dos homens ou dela se aparta deliberadamente para se consagrar aos seus estudos. É ingênuo como uma criança, desajeitado e pouco prático, e está fora das condições do espaço e do tempo. O sábio Tales, absorto na contemplação de um fenômeno celeste qualquer, cai dentro de um poço, e a sua criada trácia faz pouco dele, por querer saber as coisas do céu e não ver o que está sob os seus pés. Pitágoras, quando lhe perguntam para que vive, responde: para contemplar o céu e as estrelas. Anaxágoras, acusado de não se interessar pela família nem pela Pátria, aponta com a mão o céu e diz: eis a minha Pátria. É comum a todos aquele incompreensível devotamento ao conhecimento do cosmo, à “meteorologia”, como então se dizia num sentido mais vasto e mais profundo, isto é, à ciência das coisas do alto. A conduta e as aspirações dos filósofos são desmedidas e extravagantes, no sentir do povo, e é crença popular dos gregos que aqueles homens sutis e sonhadores são infelizes porque são περιττο¿ς4. Isso é intraduzível, mas refere-se evidentemente à hybris, pois o pensador ultrapassa os limites impostos ao espírito humano pela inveja dos deuses.”

3. Cf. o meu trabalho sobre a origem e o movimento circular do ideal filosófico da vida, Sitz. Berl. Akad., 1928, pp. 390 ss.

4. Cf. ARISTÓTELES, Metaf., A 2, 983a 1.

 

 

“A resolução e a independência dessas críticas à concepção do mundo dominante são perfeitamente paralelas à ousadia dos poetas jônicos em proclamarem livremente os seus sentimentos e as suas ideias sobre a vida humana e o seu ambiente. São frutos do desenvolvimento crescente da individualidade. O pensamento racional atua como material explosivo já neste primeiro estágio. As mais antigas autoridades perdem o seu valor. Só é verdade o que “eu” posso explicar por razões concludentes, aquilo que o “meu” pensamento consegue justificar perante si próprio. Toda a literatura jônica, desde Hecateu e Heródoto, criador da Geografia e da Etnologia e pai da História, até os médicos, em cujos escritos se encontram os fundamentos da ciência médica durante vários séculos, está impregnada desse espírito e usa nas suas críticas aquela forma pessoal característica. No entanto, realiza-se com o aparecimento do eu racional a superação do individualismo mais rica de consequências: surge o conceito de verdade, o novo conceito de uma validade universal no fluir dos fenômenos, perante a qual se tem de curvar todo arbitrário.

O ponto de partida dos pensadores naturalistas do século VI era o problema da origem, a physis, que deu o seu nome ao movimento espiritual e à forma de especulação que originou. Isso se justifica, se temos presente o significado originário da palavra grega e não misturamos a ele a moderna concepção da física. O seu interesse fundamental era, na realidade, o que na nossa linguagem corrente denominamos metafísica. Era a ele que se subordinavam o conhecimento e a observação física. É certo que foi do mesmo movimento que nasceu a ciência racional da natureza. Mas a princípio estava envolta em especulação metafísica, e só gradualmente se foi libertando dela. No conceito grego de physis estavam, inseparáveis, as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica ( ι¸στορι¿η), do que deriva daquela origem e existe atualmente (ταì οÓντα). Era natural que a tendência inata dos jônios – grandes exploradores e observadores – para a investigação levasse as questões a um maior aprofundamento, no qual aparecem os problemas últimos. É natural também que, uma vez colocado o problema da origem e essência do mundo, se desenvolvesse progressivamente a necessidade de ampliar o conhecimento dos fatos e a explicação dos fenômenos particulares. Pela proximidade do Egito e dos países do Oriente Próximo torna-se mais que verossímil – confirmam-no as tradições mais autênticas – que o contato espiritual dos jônios com as mais antigas civilizações daqueles povos não só tenha levado à adoção das conquistas técnicas na agrimensura, na náutica e na observação do céu, mas tenha também dirigido a atenção daquela raça de navegadores e comerciantes, de espírito vivo, para a consideração dos problemas profundos que aqueles povos resolveram de maneira muito diferente dos gregos, por meio de mitos referentes ao nascimento do mundo e às histórias dos deuses.

Há, porém, algo de fundamentalmente novo na maneira como os gregos puseram a serviço do seu problema último – da origem e essência das coisas – as observações empíricas que receberam do Oriente e enriqueceram com as suas próprias, bem como no modo de submeter ao pensamento teórico e causal o reino dos mitos, fundado na observação das realidades aparentes do mundo sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo. É nesse momento que assistimos ao aparecimento da filosofia científica. É este, aliás, o feito histórico da Grécia. É certo que foi só gradual a sua libertação dos mitos. Porém, o simples fato de ter sido um movimento espiritual unitário, conduzido por uma série de personalidades independentes, mas em íntima e recíproca ligação, já demonstra o seu caráter científico e racional. A conexão do nascimento da filosofia naturalista com Mileto, a metrópole da cultura jônica, torna-se clara, se notamos que os seus três primeiros pensadores – Tales, Anaximandro e Anaxímenes – viveram no tempo da destruição de Mileto pelos Persas (início do século V). Tão evidente como a súbita interrupção de um elevado florescimento espiritual de três gerações, pela irrupção brutal de um destino histórico exterior, é a continuidade do trabalho de investigação e do tipo espiritual dessa magnífica série de grandes homens, um pouco anacronicamente designados de “escola milesiana”. O modo de propor e resolver os problemas segue, nos três, a mesma direção. Abriram o caminho e forneceram os conceitos fundamentais à física grega de Demócrito até Aristóteles.”

 

 

“A grande dificuldade do pensamento puro é obter qualquer conhecimento concreto do conteúdo do seu objeto. Nos fragmentos existentes da sua obra, Parmênides aparece-nos num esforço de dedução de uma série de determinações precisas do seu novo conceito rigoroso do Ser. Essas notas, que se destacam no caminho que conduz à investigação dirigida pelo pensamento puro, ele chama de atributos ou características do Ser. O Ser é alheio ao devir, é imutável e portanto imortal, total e único, inabalável, eterno, onipresente, uno, coerente, indivisível, homogêneo, ilimitado e completo. É perfeitamente notório que todos os predicados positivos e negativos atribuídos por Parmênides ao Ser derivam da contraposição à antiga filosofia naturalista e foram obtidos graças à análise crítica e rigorosa dos pressupostos nela implícitos. Não é este o lugar propício para expô-lo detalhadamente. Infelizmente, a possibilidade de compreendermos Parmênides está limitada pelos lapsos do nosso conhecimento das filosofias mais antigas. É indubitável que ele se refere constantemente a Anaximandro. É provável que o pensamento pitagórico também tenha nas suas discussões um papel muito importante. Mas a esse respeito só podemos fazer conjecturas. Não se pode tentar aqui uma interpretação sistemática do esforço de Parmênides para obter uma concepção global da filosofia da natureza, a partir do seu novo ponto de vista, nem analisar o desenvolvimento das aporias com que o pensamento depara na prossecução coerente do seu caminho. Debatem-se nelas os discípulos de Parmênides, entre os quais têm excepcional importância Zenão e Melisso.

A descoberta do pensamento puro e da sua necessidade rigorosa surge em Parmênides como a abertura de um novo “caminho”, mais, do único caminho praticável para chegar à posse da verdade. A partir desse instante, a imagem da via reta (ο¸δο¿ς) da investigação aparece constantemente. E, embora por enquanto não passe de uma imagem, já possui, todavia, uma ressonância terminológica que, especialmente na oposição entre o caminho certo e o errado, se aproxima do sentido do “método”. É aqui que tem raízes esse conceito científico fundamental. Parmênides é o primeiro pensador que levanta conscientemente o problema do método científico e o primeiro que distingue com clareza os dois caminhos principais que a filosofia posterior há de seguir: a percepção e o pensamento. O que não conhecemos pela via do pensamento é apenas “opinião dos homens”. Toda a salvação se baseia na substituição do mundo da opinião pelo mundo da verdade. Parmênides considera essa conversão como algo violento e difícil, mas grande e libertador. Põe na exposição do seu pensamento um ímpeto grandioso e um páthos religioso que transcende os limites do lógico e lhe confere uma emoção profundamente humana. É o espetáculo do Homem que luta por meio do pensamento e, pela primeira vez, liberta-se das aparências sensíveis da realidade e descobre no espírito o órgão para chegar à compreensão da totalidade e da unidade do Ser. Embora entravado e perturbado por uma multiplicidade de problemas, revela-se nesse conhecimento uma força fundamental de concepção do mundo e de formação humana, especificamente helênica. Em tudo que Parmênides escreveu palpita a emocionante experiência dessa conversão da investigação humana ao pensamento puro.

É isso que explica a estrutura da sua obra, dividida em duas partes rigidamente constantes, uma consagrada à “verdade” e outra à “opinião”. Resolve também o velho problema de compreender como se harmoniza a rígida lógica de Parmênides com o seu sentimento de poeta. Dizer apenas que nessa época todos os temas podiam ser tratados em versos homéricos ou hesiódicos é simplificar demais. Parmênides é poeta pelo entusiasmo com que julga ser o portador de um novo tipo de conhecimento, por ele considerado, ao menos em parte, a revelação da Verdade. É algo completamente diferente do procedimento ousado e pessoal de Xenófanes. O poema de Parmênides está impregnado de uma altiva modéstia. E a sua exigência é tanto mais rigorosa e inexorável quanto ele se reconhece um simples servo e instrumento de uma força mais alta a que contempla com veneração. Encontra-se no proêmio a confissão imorredoura dessa inspiração filosófica. Se atentarmos bem para isso, veremos que a imagem do “homem sábio” que caminha para a verdade procede da esfera religiosa. O texto está rasurado em alguns lugares decisivos, mas penso que poderia ser restituído ao sentido original. O “homem sábio” é a pessoa consagrada aos mistérios da Verdade. Compreende-se com esse símbolo o novo conhecimento do Ser. O caminho que o conduz “intacto” – afirmo – ao seu fim, é o caminho da salvação35. Essa tradução do mundo das representações na linguagem dos mistérios, de importância crescente naquela época, tem o maior interesse para a compreensão da consciência filosófica. Quando se afirma que Deus e o sentimento são indiferentes para Parmênides em face das exigências do pensamento rigoroso, é necessário acrescentar que este pensamento e a verdade por ele apreendida são interpretados por Parmênides como algo religioso. Foi esse sentimento da sua elevada missão que o levou a nos oferecer, no prólogo do seu poema, a primeira encarnação humana da figura do filósofo, o “homem sábio” que as irmãs da luz guiam desde as sendas dos homens, pelo difícil caminho que vai dar à mansão da verdade.”

35. Frag. 1, 3. Muitas vezes tem sido feita a observação de que o caminho da verdade que conduz o homem sábio “através das cidades” (κατα¹ πα¿ντ’ αÓστη ϕε¿ρει ει¹δο¿τα ϕωªτα) é uma imagem impossível, a conjetura de WILAMOWITZ κατα¹ τα¿ντα τα¿τη¿ é pouco satisfatória; κατα¹ πα¿ντ’ α¹σινηª é a emenda que proponho, a qual, como mais tarde verifiquei, já tinha sido encontrada por MEINECK.

 

 

“Mas o mundo que Píndaro tinha cantado e ao qual pertencia o seu coração entrara em franca decadência. Parece ser uma lei na vida do espírito que, quando um tipo de existência atinge o seu termo, encontre a força necessária para formular o seu ideal e atingir o seu conhecimento mais profundo; como se da morte se destacasse o seu aspecto imortal. Assim, a decadência da cultura nobre da Grécia produziu Píndaro; a da cidade-Estado, Platão e Demóstenes; e a hierarquia da Igreja Medieval, no momento em que ia transpor a linha do seu apogeu, produziu Dante.”

 

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Livro II

 

“A nova sociedade civil e urbana tinha uma grande desvantagem em relação à aristocracia, porque, embora possuísse um ideal de Homem e de cidadão e o julgasse, em princípio, muito superior ao da nobreza, carecia de um sistema consciente de educação para atingir aquele ideal. A educação profissional, herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofício ou a indústria, não se podia comparar à educação total de espírito e de corpo do nobre καλοìς κα¹γαϑο¿ς, baseada numa concepção total do Homem. Cedo se fez sentir a necessidade de uma nova educação capaz de satisfazer os ideais do homem da pólis. Nisso, como em muitas outras coisas, o novo Estado não teve outro remédio senão imitar. Seguindo os passos da antiga nobreza, que mantinha rigidamente o princípio aristocrático da raça, tratou de realizar a nova areté, encarando como descendentes da estirpe ática todos os cidadãos livres do Estado ateniense e tornando-os membros conscientes da sociedade estatal e obrigados a se colocarem a serviço do bem da comunidade. Era uma simples ampliação do conceito de comunidade de sangue, com a única diferença de que a vinculação a uma estirpe substituíra o antigo conceito aristocrático do Estado patriarcal. Não era possível pensar em outro fundamento. Por mais forte que fosse o sentimento da individualidade, era impossível conceber que a educação se fundamentasse em outra coisa que não a comunidade da estirpe e do Estado. O nascimento da paideía grega é o exemplo e o modelo deste axioma capital de toda a educação humana. A sua finalidade era a superação dos privilégios da antiga educação para a qual a areté só era acessível aos que tinham sangue divino. O que não era difícil de alcançar, para o pensamento racional que ia prevalecendo. Só parecia haver um caminho para a consecução deste objetivo: a formação consciente do espírito, em cuja força ilimitada os novos tempos estavam inclinados a acreditar. Os motejos de Píndaro aos “que aprenderam” pouco podiam perturbá-la. A areté política não podia nem devia depender da nobreza do sangue, se não se quisesse considerar um caminho falso a admissão da massa no Estado, a qual se afigurava já impossível de travar. E se a moderna cidade-Estado se apropriara da areté física da nobreza, por meio da instituição da ginástica, por que não seria possível alcançar, através de uma educação consciente pela via espiritual, as inegáveis qualidades diretivas, que eram patrimônio daquela classe?

O Estado do século V é assim o ponto de partida histórico necessário do grande movimento educativo que imprime o caráter a este século e ao seguinte, e no qual tem origem a ideia ocidental da cultura. Como os gregos a viram, é integralmente político-pedagógica. Foi das necessidades mais profundas da vida do Estado que nasceu a ideia da educação, a qual reconheceu no saber a nova e poderosa força espiritual daquele tempo para a formação de homens, e a pôs a serviço dessa tarefa. Não tem importância para nós, agora, a apreciação da forma democrática da organização do Estado ático, da qual surgiu, no século V, esse problema. Fosse como fosse, não há dúvida de que o ingresso da massa na atividade política, causa originária e característica da democracia, é um pressuposto histórico necessário para se colocarem conscientemente os problemas eternos que com tanta profundidade o pensamento grego se colocou naquela fase da sua evolução e legou à posteridade. Nos nossos dias brotaram de análogo desenvolvimento e foi só por ele que voltaram a ganhar atualidade. Problemas como os da educação política do Homem e da formação de minorias dirigentes, da liberdade e da autoridade, só nesse grau da evolução espiritual podem surgir e só nele podem alcançar a sua plena urgência e importância para o destino. Nada têm a ver com uma forma primitiva da existência, a vida social formada por bandos e por estirpes, que desconhece qualquer individualização do espírito humano. Nenhum dos problemas nascidos da forma do século V restringe a sua importância à esfera da democracia da cidade grega. São os problemas do Estado apenas. Prova disso é o pensamento dos grandes educadores e filósofos nascido daquela experiência ter conseguido prontas soluções, que transcendem ousadamente as formas existentes do Estado e cuja fecundidade é inesgotável para qualquer outra situação análoga.

O caminho do movimento educacional, que agora passamos a considerar, parte da antiga cultura aristocrática e, depois de descrever um amplo círculo, volta de novo a ligar-se, em Platão, Isócrates e Xenofonte, à velha tradição aristocrática e à sua ideia de areté, que adquirem vida nova sobre um fundamento muito mais espiritualizado. Mas, no início e em meados do século V, ainda este regresso está muito longe. Era preciso, antes de mais nada, romper com a estreiteza das velhas concepções: o seu preconceito mítico das prerrogativas de sangue, o qual já só se podia justificar onde se firmava na preeminência espiritual e na força moral, isto é, na σοϕι¿α e na δικαιοσυ¹νη. Xenófanes mostra o quanto a “força espiritual” e a política se enlaçavam vigorosamente já desde o início na ideia da areté e se baseavam na ordem e no bem-estar da comunidade estatal. Também em Heráclito, se bem que em sentido diverso, a lei se fundamentava no “saber”, onde tinha origem; e o possuidor terrestre dessa sabedoria divina aspirava a uma posição especial na pólis ou com ela entrava em conflito. Sem dúvida, esses grandes exemplos manifestavam com a maior clareza o aparecimento do problema das relações Estado-espírito, pressuposto necessário à existência da sofística; tornam igualmente patente como a superação da velha nobreza do sangue e das suas aspirações por meio do espírito substitui o antigo por um novo problema. É o problema das relações das grandes personalidades espirituais com a comunidade, problema que preocupou todos os pensadores até o fim da cidade-Estado, sem que chegassem a entrar em acordo. No caso de Péricles, foi encontrada uma feliz solução para o indivíduo e para a sociedade.”

 

 

“O objetivo da educação sofista, a formação do espírito, encerra uma extraordinária multiplicidade de processos e de métodos. No entanto, podemos encarar essa diversidade pelo ponto de vista unitário da formação do espírito. Basta para tanto que nos figuremos o conceito de espírito na multiplicidade dos seus aspectos possíveis. Por um lado, o espírito é o órgão através do qual o Homem apreende o mundo das coisas e se refere a ele. Porém, se abstraímos de qualquer conteúdo objetivo (e essa é uma nova faceta do espírito, naquele tempo), também o espírito não é vazio, mas revela pela primeira vez a sua própria estrutura interna. É esse o espírito como princípio formal. De acordo com esses dois aspectos, deparamos nos sofistas com duas modalidades distintas de educação do espírito: a transmissão de um saber enciclopédico e a formação do espírito nos seus diversos campos. Claramente se vê que o antagonismo espiritual desses dois métodos de educação só pode alcançar unidade no conceito superior de educação espiritual. Ambas as formas de ensino sobreviveram até o presente, mais sob a forma de compromisso que na sua unilateralidade. Em grande parte, era o mesmo que acontecia na época dos sofistas. Mas não nos deve iludir a união dos dois métodos na atividade de uma mesma pessoa: trata-se de dois modos fundamentalmente distintos de educação do espírito. Ao lado da formação meramente formal do entendimento, existiu igualmente nos sofistas uma educação formal no mais alto sentido da palavra, a qual não consistia já numa estruturação do entendimento e da linguagem, mas partia da totalidade das forças espirituais. É Protágoras quem a representa. A poesia e a música eram para ele as principais forças modeladoras da alma, ao lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que mergulham as raízes desta terceira forma de educação sofística4. Distingue-se da formal e da enciclopédica, porque já não considera o homem abstratamente, mas como membro da sociedade. É dessa maneira que coloca a educação em sólida ligação com o mundo dos valores e insere a formação espiritual na totalidade da areté humana. Também sob essa forma é educação espiritual; simplesmente, o espírito não é considerado através do ponto de vista puramente intelectual, formal, ou de conteúdo, mas sim em relação com as suas condições sociais.

Em todo o caso, é uma afirmação superficial dizer que aquilo que de novo e de único liga todos os sofistas é o ideal educativo da retórica ε,˜υ λε¿γειν: isso é comum a todos os representantes da sofística, ao passo que diferem na apreciação do resto das coisas, a ponto de ter havido sofistas, como Górgias, que só foram retóricos, e não ensinaram outra coisa5. Comum a todos é antes o fato de serem mestres da areté política6 e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de realizá-la. Nunca podemos deixar de nos maravilhar diante da riqueza dos novos e perenes conhecimentos educativos que os sofistas trouxeram ao mundo. Foram os criadores da formação espiritual e da arte educativa que a ela conduz. É claro que, em contrapartida, a nova educação, precisamente porque ultrapassava o meramente formal e material e atacava os problemas mais profundos da moralidade e do Estado, se arriscava a cair nas maiores parcialidades, caso não se fundamentasse, numa investigação séria e num pensamento filosófico rigoroso, que buscassem a verdade por si mesma. Foi a partir desse ponto de vista que Platão e Aristóteles impugnaram mais tarde o sistema total da educação sofística e o abalaram nos próprios fundamentos.

Isso nos leva ao problema da posição dos sofistas na história da filosofia e da ciência gregas. É fato notável e curioso que tradicionalmente se tenha aceitado como evidente que a sofística constituía um membro orgânico do desenvolvimento filosófico, como fazem as histórias da filosofia grega. Não se pode invocar Platão, porque sempre que faz os sofistas intervirem nos seus diálogos é pela sua aspiração a serem mestres da areté, quer dizer, em ligação com a vida e com a prática, e não com a ciência. A única exceção é a crítica da teoria do conhecimento feita por Protágoras no Teeteto7. Existe aqui, de fato, uma conexão entre a sofística e a filosofia, mas limita-se a um só representante, e a ponte é bastante estreita. A história da filosofia que Aristóteles nos dá na Metafísica não inclui os sofistas. As mais recentes histórias da filosofia consideram-nos como fundadores do subjetivismo e do relativismo filosóficos. O esboço de uma teoria por parte de Protágoras não justifica tais generalizações e é um erro evidente de perspectiva histórica pôr os mestres da areté ao lado de pensadores do estilo de Anaximandro, Parmênides ou Heráclito.”

4. PLATÃO, Prot., 325 E ss. Platão faz o próprio Protágoras formular a sua posição e a da sua ideia política e ética da educação, contra a polimatia de Hípias de Élis, Prot., 318 E.

5. GOMPERZ, Sophistik und Rethorik. Das bildungsideal des ε,˜υ λε¿γειν in seinem Verhältnis zur Philosophie des 5. Jhrh. (Leipzig, 1912).

6. PLATÃO, Prot., 318 E ss.; Men., 91 A ss. e outros.

7. PLATÃO, Teeteto, 152, A.

 

 

“O que para os sofistas é decisivo é a ideia consciente da educação como tal. Se voltarmos os olhos para o caminho percorrido pelo espírito grego desde Homero até o período ático, não surgirá essa ideia como algo de surpreendente, mas sim como o fruto histórico necessário e amadurecido de toda aquela evolução. É a manifestação do esforço constante da poesia e do pensamento grego para conseguirem uma expressão normativa da forma do Homem. Este esforço essencialmente educativo tinha de levar, sobretudo num povo de consciência filosófica tão viva, à formação do ideal consciente da educação, no sentido elevado que aqui lhe descobrimos. Torna-se assim muito natural que os sofistas tenham vinculado o ideal da educação às antigas criações do espírito grego e as tenham considerado como conteúdo próprio dele. A força educativa da obra dos poetas era algo que se pressupunha sem contestação para o povo grego. A sua íntima interpenetração com o conteúdo total da educação tinha de operar-se forçosamente no instante em que a ação educativa (παιδευ¿ειν) deixou de limitar-se exclusivamente à infância (παιªς) e se passou a aplicar com especial vigor ao homem adulto, não deparando já com limites fixos na vida do homem. Foi então que pela primeira vez surgiu uma paideía do homem adulto. O conceito, que originariamente designava apenas o processo da educação como tal, estendeu ao aspecto objetivo e de conteúdo a esfera do seu significado, exatamente como a palavra alemã Bildung (formação) ou a equivalente latina cultura, do processo da formação passaram a designar o ser formado e o próprio conteúdo da cultura, e por fim abarcaram, na totalidade, o mundo da cultura espiritual: o mundo em que nasce o homem individual, pelo simples fato de pertencer ao seu povo ou a um círculo social determinado. A construção histórica desse mundo da cultura atinge o seu apogeu no momento em que se chega à ideia consciente da educação. Torna-se assim claro e natural o fato de os gregos, a partir do século IV, quando este conceito encontrou a sua cristalização definitiva, terem dado o nome de paideía a todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos por Bildung ou, com a palavra latina, cultura.

Os sofistas constituem, sob este ponto de vista, um fenômeno central. São os criadores da consciência cultural em que o espírito grego alcançou o seu télos e a íntima segurança da sua própria forma e orientação. O fato de terem contribuído para o aparecimento desse conceito e dessa consciência é muito mais importante que a circunstância de não terem alcançado a sua expressão definitiva. Num momento em que todas as formas tradicionais da existência se esboroavam, ganharam e deram ao povo a consciência de que a formação humana era a grande tarefa histórica que lhe fora confiada. Descobriram assim o centro em torno do que deve partir toda a estruturação consciente da vida. Adquirir consciência é uma grandeza, mas é a grandeza da posteridade. É este outro aspecto do fenômeno sofístico. Talvez não seja preciso justificar a afirmação de que o período que vai da sofística a Platão e Aristóteles alcança uma vasta e permanente elevação na evolução do espírito grego; ainda assim, porém, conserva toda a sua força a frase de Hegel que diz que a coruja de Atena só levanta voo ao declinar o dia. Foi só à custa da sua juventude que o espírito grego, cujos mensageiros são os sofistas, alcançou o domínio do mundo. Assim se compreende que Nietzsche e Bachofen tenham visto na época de Homero ou na tragédia, antes do despertar da ratio, o apogeu dos tempos. Mas não se pode aceitar essa valoração absoluta e romântica dos tempos primitivos. O desenvolvimento do espírito das nações, como o dos indivíduos, segue uma lei inexorável, e tem de ser forçosamente divergente a sua impressão sobre a posteridade histórica. Sentimos com dor a perda que acarreta o desenvolvimento do espírito. Mas não podemos desprezar nenhuma das suas forças e sabemos muito bem que é só por isso que somos capazes de admirar sem restrições o primitivo. É necessariamente essa a nossa posição; encontramo-nos num estágio avançado da cultura, e em muitos aspectos procedemos também dos sofistas. Estão muito mais “próximos” de nós que Píndaro ou Ésquilo. Por isso é que precisamos tanto destes. Foi precisamente com os sofistas que ganhamos íntima consciência de que a “continuidade” dos estágios primitivos na estrutura histórica da cultura não é uma palavra vazia, pois não podemos afirmar e admirar os novos estágios sem que neles estejam assumidos os primeiros.”

 

 

“Na paz, mais facilmente se dão ouvidos à razão, porque os homens não estão oprimidos por necessidades prementes. A guerra, porém, restringe em muito as possibilidades exteriores da vida e força a massa a adaptar as suas convicções às necessidades de momento. No decurso das revoluções que a guerra acarreta, mudam bruscamente as opiniões e sucedem-se as conjuras de atos de vingança; e a recordação das revoluções passadas e das paixões associadas a elas aumenta a gravidade dos nossos próprios transtornos.

A esse propósito, Tucídides fala da transformação dos valores vigentes, revelada na total mudança do significado das palavras. Palavras que antigamente designavam os mais altos valores passam a significar, no uso corrente, ideias e ações vergonhosas, e outras que exprimiam coisas reprováveis fazem agora carreira e chegam a designar os mais nobres predicados. Agora, considera-se coragem e lealdade a temeridade insensata, e a reserva prudente é considerada como covardia disfarçada em belas palavras. A circunspecção é pretexto para a fraqueza, e a reflexão, falta de energia e de eficiência. A loucura decidida é encarada como sinal de autêntica virilidade, a reflexão madura, como hábil evasão. Quanto mais alto alguém insulta e injuria, tanto mais leal é considerado, e logo se olha como suspeito quem se atreve a contradizê-lo. A intriga sagaz é tida por inteligência política e quem a consegue tecer é o gênio supremo. Aquele que prudentemente se esforça por não precisar fazer apelo a esses meios é acusado de falta de espírito de grupo e de medo perante o inimigo. O parentesco de sangue é considerado um laço mais frágil que o pertencimento a um partido. Assim os camaradas de partido estão mais dispostos à aventura desenfreada. Não é para apoiar as leis existentes que associações como essas entram em concordância, mas sim para ir contra todo o direito e aumentar o poder e a riqueza pessoal. Até os juramentos que unem os membros do mesmo partido valem menos pelo seu caráter sagrado do que pela consciência do crime comum. Em nenhum lugar existe uma centelha de lealdade e de confiança entre os homens. Quando os partidos contendores veem-se forçados por esgotamento ou por circunstâncias desfavoráveis a concluir pactos e a selá-los com o juramento, todos sabem que isso é só um sinal de fraqueza e que não se devem sentir ligados por eles, mas que o inimigo se servirá do juramento apenas para se reforçar, e aproveitará a primeira ocasião para atacar com maior segurança o seu adversário incauto e inerme. Os chefes, tanto democratas como aristocratas, tinham na boca as grandes palavras do seu partido, mas, na realidade, não era por um alto ideal que se batiam. Os únicos móveis da ação eram o poder, a ambição e o orgulho, e mesmo quando invocavam os antigos ideais políticos só se tratava de palavras.

A decomposição da sociedade era apenas a aparência exterior da íntima decomposição do Homem. A própria dureza da guerra atua de modo completamente diverso num povo interiormente são e numa nação cujas escalas de valor estejam corroídas pelo individualismo. Assim, nunca a formação estética e intelectual atingiu um nível tão alto como na Atenas daquele tempo.”

1. TUCÍDIDES, III, 82.

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