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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso (Parte I), de Eduardo Galeano

Editora: L&PM Pocket

ISBN: 978-85-254-1942-2

Tradução: Sergio Faraco

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 384

Gravuras: Guadalupe Posada

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Sinopse: Neste livro, através de textos curtos e poéticos, Eduardo Galeano consegue nos mostrar que o mundo está “ao avesso”, e que o comportamento humano não segue uma lógica, já que as pessoas muitas vezes fazer justamente o contrário do que se espera delas. Pode-se dizer que, em certos momento, este livro ganha ares de um guia das barbaridades que o mundo é capaz de ver e de cometer. De pernas para o ar é um exame minucioso sobre a realidade latino-americana que utiliza referências históricas mesclada a profundas reflexões.


 

Mensagem aos pais

Hoje em dia as pessoas já não respeitam nada. Antes, colocávamos num pedestal a virtude, a honra, a verdade e a lei... A corrupção campeia na vida americana de nossos dias. Onde não se obedece outra lei, a corrupção é a única lei. A corrupção está minando este país. A virtude, a honra e a lei se evaporaram de nossas vidas.”

(Declarações de Al Capone ao jornalista Cornelius Vanderbilt Jr. Entrevista publicada na revista Liberty em 17 de outubro de 1931, dias antes de Al Capone ir para a prisão.)

 

 

Os modelos do êxito

O mundo ao avesso gratifica o avesso: despreza a honestidade, castiga o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Seus mestres caluniam a natureza: a injustiça, dizem, é lei natural. Milton Friedman, um dos membros mais conceituados do corpo docente, fala da “taxa natural de desemprego”. Por lei natural, garantem Richard Herrnstein e Charles Murray, os negros estão nos mais baixos degraus da escala social. Para explicar o êxito de seus negócios, John Rockefeller costumava dizer que a natureza recompensa os mais aptos e castiga os inúteis. Mais de um século depois, muitos donos do mundo continuam acreditando que Charles Darwin escreveu seus livros para lhes prenunciar a glória.

Sobrevivência dos mais aptos? A aptidão mais útil para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassino, é uma virtude humana quando serve para que as grandes empresas façam a digestão das pequenas empresas e para que os países fortes devorem os países fracos, mas é prova de bestialidade quando um pobre-diabo sem trabalho sai a buscar comida com uma faca na mão. Os enfermos da patologia antissocial, loucura e perigo de que cada pobre é portador, inspiram-se nos modelos de boa saúde do êxito social. O ladrão de pátio aprende o que sabe elevando o olhar rasteiro aos cumes: estuda o exemplo dos vitoriosos e, mal ou bem, faz o que pode para lhes copiar os méritos. Mas “os fodidos sempre serão fodidos”, como costumava dizer Dom Emílio Azcárraga, que foi amo e senhor da televisão mexicana. As possibilidades de que um banqueiro que depena um banco desfrute em paz o produto de seus golpes são diretamente proporcionais às possibilidades de que um ladrão que rouba um banco vá para a prisão ou para o cemitério.

Quando um delinquente mata por dívida não paga, a execução se chama ajuste de contas; e se chama plano de ajuste a execução de um país endividado, quando a tecnocracia internacional resolve liquidá-lo. A corja financeira sequestra os países e os arrasa se não pagam o resgate. Comparado com ela, qualquer bandidão é mais inofensivo do que Drácula à luz do sol. A economia mundial é a mais eficiente expressão do crime organizado. Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito praticam o terrorismo contra os países pobres e contra os pobres de todos os países, com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham o melhor dos lança-bombas.

A arte de enganar o próximo, que os vigaristas praticam caçando incautos pelas ruas, chega ao sublime quando alguns políticos de sucesso exercitam seus talentos. Nos subúrbios do mundo, chefes de estado vendem saldos e retalhos de seus países, a preço de liquidação de fim de temporada, como nos subúrbios das cidades os delinquentes vendem, a preço vil, o butim de seus assaltos.

Os pistoleiros de aluguel realizam, num plano menor, a mesma tarefa que cumprem, em grande escala, os generais condecorados por crimes elevados à categoria de glórias militares. Os assaltantes que, à espreita nas esquinas, atacam a manotaços, são a versão artesanal dos golpes dados pelos grandes especuladores, que lesam multidões pelo computador. Os violadores que mais ferozmente violam a natureza e os direitos humanos jamais são presos. Eles têm as chaves das prisões. No mundo como ele é, mundo ao avesso, os países responsáveis pela paz universal são os que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos demais países. Os bancos mais conceituados são os que mais narcodólares lavam e mais dinheiro roubado guardam. As indústrias mais exitosas são as que mais envenenam o planeta, e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impunidade e felicitações aqueles que matam mais pessoas em menos tempo, aqueles que ganham mais dinheiro com menos trabalho e aqueles que exterminam mais natureza com menos custo.

Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas grandes cidades do mundo ao avesso. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem por causa da ânsia de ter o que não têm, outros não dormem por causa do pânico de perder o que têm. O mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, nos reduz à solidão e nos consola com drogas químicas e amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de fome, a morrer de medo ou a morrer de tédio, isso se uma bala perdida não vier abreviar nossa existência.

Será esta liberdade, a liberdade de escolher entre ameaçadores infortúnios, nossa única liberdade possível? O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contraescola.”

 

 

 

“São incontáveis os meninos pobres que trabalham, em suas casas ou fora delas, para a família ou para qualquer um. A maioria trabalha ao arrepio da lei e das estatísticas. E os demais meninos pobres? Dos demais, são muitos os que sobram. O mercado não precisa deles, não precisará jamais. Não são rentáveis, jamais o serão. Do ponto de vista da ordem estabelecida, eles começam roubando o ar que respiram e depois roubam tudo o que encontram: a fome e as balas costumam lhes abreviar a viagem do berço à sepultura. O mesmo sistema produtivo que despreza os velhos, teme os meninos. A velhice é um fracasso, a infância um perigo. Há cada vez mais meninos marginalizados que, no dizer de alguns especialistas, nascem com tendência ao crime. Eles integram o setor mais ameaçador dos excedentes populacionais. O menino como perigo público, a conduta antissocial do menor na América, tem sido há muitos anos o tema recorrente dos congressos panamericanos sobre a infância. Os meninos que vêm do campo para a cidade e os meninos pobres em geral são de conduta potencialmente antissocial, segundo nos alertam os congressos desde 1963. Essa obsessão a respeito dos meninos doentes de violência, orientados para o vício e a perdição, é compartilhada pelos governos e alguns entendidos no assunto. Cada niño contém uma possível corrente do El Niño, e é preciso prevenir a devastação que pode provocar. No Primeiro Congresso Policial Sul-Americano, celebrado em Montevidéu em 1979, a polícia colombiana explicou que “o aumento sempre crescente da população com menos de dezoito anos induz à estimativa de maior população POTENCIALMENTE DELINQUENTE.” (Maiúsculas no documento original.)

Nos países latino-americanos, a hegemonia do mercado está rompendo os laços da solidariedade e fazendo em pedaços o tecido social comunitário. Que destino têm os joões-ninguém, os donos de nada, em países onde o direito de propriedade já se torna o único direito? E os filhos dos joões-ninguém? Muitos deles, cada vez mais numerosos, são compelidos pela fome ao roubo, à mendicidade e à prostituição. A sociedade de consumo os insulta oferecendo o que nega. E eles se lançam aos assaltos, bandos de desesperados unidos pela certeza de que a morte os espera: segundo a UNICEF, em 1995 havia oito milhões de meninos abandonados, meninos de rua, nas grandes cidades latino-americanas. Segundo a organização Human Rights Watch, em 1993 os esquadrões parapoliciais assassinaram seis meninos por dia na Colômbia e quatro por dia no Brasil.”

 

 

O medo do meio: o piso range sob os pés, já não há garantias, a estabilidade é instável, evaporam-se os empregos, esfuma-se o dinheiro, chegar ao fim do mês é uma façanha. Bem-vinda, classe média, saúda um cartaz na entrada de um dos bairros mais miseráveis de Buenos Aires. A classe média continua vivendo num estado de impostura, fingindo que cumpre as leis e acredita nelas e simulando ter mais do que tem, mas nunca lhe foi tão difícil cumprir esta abnegada tradição. Está asfixiada pelas dívidas e paralisada pelo pânico, e no pânico cria seus filhos. Pânico de viver, pânico de empobrecer; pânico de perder o emprego, o carro, a casa, as coisas, pânico de não chegar a ter o que se deve ter para chegar a ser. No clamor coletivo pela segurança pública, ameaçada pelos monstros do delito que espreitam, é a classe média que grita mais alto. Defende a ordem como se fosse sua proprietária, embora seja apenas uma inquilina atropelada pelo preço do aluguel e pela ameaça de despejo.”

 

 

A igualação e a desigualdade

A ditadura da sociedade de consumo exerce um totalitarismo simétrico ao de sua irmã gêmea, a ditadura da organização desigual do mundo.

A maquinaria da igualação compulsiva atua contra a mais bela energia do gênero humano, que se reconhece em suas diferenças e através delas se vincula. O melhor que o mundo tem está nos muitos mundos que o mundo contém, as diferentes músicas da vida, suas dores e cores: as mil e uma maneiras de viver e de falar, crer e criar, comer, trabalhar, dançar, brincar, amar, sofrer e festejar que temos descoberto ao longo de milhares e milhares de anos.

A igualação, que nos uniformiza e nos apalerma, não pode ser medida. Não há computador capaz de registrar os crimes cotidianos que a indústria da cultura de massas comete contra o arco-íris humano e o humano direito à identidade. Mas seus demolidores progressos saltam aos olhos. O tempo vai se esvaziando de história e o espaço já não reconhece a assombrosa diversidade de suas partes. Através dos meios massivos de comunicação, os donos do mundo nos comunicam a obrigação que temos todos de nos contemplar num único espelho, que reflete os valores da cultura de consumo.

Quem não tem, não é: quem não tem carro, não usa sapato de marca ou perfume importado está fingindo existir. Economia de importação, cultura de impostação: no reino da tolice, estamos todos obrigados a embarcar no cruzeiro do consumo, que sulca as agitadas águas do mercado. A maioria dos navegantes está condenada ao naufrágio, mas a dívida externa vai pagando, por conta de todos, as passagens dos que podem viajar. Os empréstimos, que permitem a uma minoria se empanturrar de coisas inúteis, atuam a serviço do boapintismo de nossas classes médias e da copiandite de nossas classes altas, e a televisão se encarrega de transformar em necessidades reais, aos olhos de todos, as demandas artificiais que o norte do mundo inventa sem descanso e, exitosamente, projeta sobre o sul.”

 

 

Pontos de vista/1

Do ponto de vista da coruja, do morcego, do boêmio e do ladrão, o crepúsculo é a hora do café da manhã.

A chuva é uma maldição para o turista e uma boa notícia para o camponês.

Do ponto de vista do nativo, pitoresco é o turista.

Do ponto de vista dos índios das ilhas do Mar do Caribe, Cristóvão Colombo, com seu chapéu de penas e sua capa de veludo encarnado, era um papagaio de dimensões nunca vistas.”

 

 

Sociedades divididas em bons e maus: nos infernos suburbanos espreitam os condenados de pele escura, culpados de sua pobreza e com tendência hereditária ao crime. A publicidade lhes dá água na boca e a polícia os expulsa da mesa. O sistema nega o que oferece: objetos mágicos que transformam sonhos em realidade, luxos que a tevê promete, as luzes de neon anunciando o paraíso nas noites da cidade, esplendores de riqueza virtual. Como sabem os donos da riqueza real, não há valium que possa atenuar tanta ansiedade nem prozac capaz de apagar tanto tormento. A prisão e as balas são a terapia dos pobres.

Até vinte ou trinta anos passados, a pobreza era fruto da injustiça, denunciada pela esquerda, admitida pelo centro e raras vezes negada pela direita. Mudaram muito os tempos, em tão pouco tempo: agora a pobreza é o justo castigo que a ineficiência merece. A pobreza sempre pode merecer compaixão, mas já não provoca indignação: há pobres pela lei do jogo ou pela fatalidade do destino. Tampouco a violência é filha da injustiça. A linguagem dominante, imagens e palavras produzidas em série, atua quase sempre a serviço de um sistema de recompensas e castigos que concebe a vida como uma impiedosa disputa entre poucos ganhadores e muitos perdedores nascidos para perder. A violência se manifesta, em geral, como fruto da má conduta de maus perdedores, os numerosos e perigosos inadaptados sociais gerados pelos bairros pobres e pelos países pobres. A violência está em sua natureza. Ela corresponde, como a pobreza, à ordem natural, à ordem biológica ou, talvez, zoológica: assim eles são, assim foram e assim serão. A injustiça, fonte do direito que a perpetua, é hoje mais injusta do que nunca no sul do mundo, no norte também, mas tem pouca ou nenhuma existência para os grandes meios de comunicação que fabricam a opinião pública em escala universal.

O código moral do fim do milênio não condena a injustiça, condena o fracasso. Robert McNamara, um dos responsáveis pela Guerra do Vietnã, escreveu um livro onde reconheceu que a guerra foi um erro. Mas essa guerra, que matou mais de três milhões de vietnamitas e 58 mil norte-americanos, não foi um erro por ter sido injusta, mas porque os Estados Unidos a levaram adiante mesmo sabendo que não a ganhariam. O pecado está na derrota, não na injustiça. Segundo McNamara, já em 1965 havia esmagadoras evidências da impossibilidade do triunfo das forças invasoras, mas o governo norte-americano continuou agindo como se o contrário fosse possível. Não se questiona o fato de que os Estados Unidos tenham passado quinze anos praticando o terrorismo internacional, tentando impor no Vietnã um governo que os vietnamitas não queriam: a primeira potência militar do mundo descarregou sobre um pequeno país mais bombas do que todas as bombas lançadas na Segunda Guerra Mundial, mas este é um detalhe sem maior importância.

Naquele interminável morticínio, afinal, os Estados Unidos nada fizeram senão exercer o direito das grandes potências de invadir e dobrar qualquer país. Os militares, os comerciantes, os banqueiros e os fabricantes de opiniões e de emoções dos países dominantes têm o direito de impor aos demais países ditaduras militares ou governos dóceis, podem lhes ditar a política econômica e todas as políticas, podem lhes dar ordens de aceitar intercâmbios ruinosos e empréstimos extorsivos, podem exigir servidão ao seu estilo de vida e determinar suas tendências de consumo. É um direito natural, consagrado pela impunidade com que é exercido e pela rapidez com que é esquecido.”

 

 

A linguagem/3

Na era vitoriana, era proibido fazer menção às calças na presença de uma senhorita. Hoje em dia, não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública:

o capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;

o imperialismo se chama globalização;

as vítimas do imperialismo se chamam países em vias de desenvolvimento, que é como chamar meninos aos anões;

o oportunismo se chama pragmatismo;

a traição se chama realismo;

os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;

a expulsão dos meninos pobres do sistema educativo é conhecida pelo nome de deserção escolar;

o direito do patrão de despedir o trabalhador sem indenização nem explicação se chama flexibilização do mercado de trabalho;

a linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria;

em lugar de ditadura militar, diz-se processo;

as torturas são chamadas constrangimentos ilegais ou também pressões físicas e psicológicas;

quando os ladrões são de boa família, não são ladrões, são cleptomaníacos;

o saque dos fundos públicos pelos políticos corruptos atende ao nome de enriquecimento ilícito;

chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos motoristas de automóveis;

em vez de cego, diz-se deficiente visual;

um negro é um homem de cor;

onde se diz longa e penosa enfermidade, deve-se ler câncer ou Aids;

mal súbito significa infarto;

nunca se diz morte, mas desaparecimento físico;

tampouco são mortos os seres humanos aniquilados nas operações militares: os mortos em batalha são baixas, e os civis, que nada têm a ver com o peixe e sempre pagam o pato, são danos colaterais;

em 1995, quando das explosões nucleares da França no Pacífico sul, o embaixador francês na Nova Zelândia declarou: “Não gosto da palavra bomba. Não são bombas. São artefatos que explodem”;

chamam-se Conviver alguns dos bandos assassinos da Colômbia, que agem sob a proteção militar;

Dignidade era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e Liberdade o maior presídio da ditadura uruguaia;

chama-se Paz e Justiça o grupo paramilitar que, em 1997, matou pelas costas 45 camponeses, quase todos mulheres e crianças, que rezavam numa igreja do povoado de Acteal, em Chiapas.”

 

 

“Segundo o dúplice discurso racista, é perfeitamente possível aplaudir os negros de sucesso e maldizer os demais. Na Copa do Mundo de 1998, vencida pela França, eram imigrantes quase todos os jogadores que vestiam a camisa azul e iniciavam as partidas ao som da Marselhesa. Uma pesquisa realizada na época confirmou que, de cada dez franceses, quatro têm preconceitos raciais, mas todos os franceses comemoraram o triunfo como se os negros e os árabes fossem filhos de Joana d’Arc.”

 

 

Nas Américas, a cultura real é filha de várias mães. Nossa identidade, que é múltipla, realiza sua vitalidade criadora a partir da fecunda contradição das partes que a integram. Mas temos sido adestrados para não nos enxergarmos. O racismo, que é mutilador, impede que a condição humana resplandeça plenamente com todas as suas cores. A América continua doente de racismo: de norte a sul, continua cega de si mesma. Nós, os latino-americanos da minha geração, fomos educados por Hollywood. Os índios eram uns tipos de catadura amargurada, emplumados e pintados, mareados de tanto dar voltas ao redor das diligências. Da África, só sabemos o que nos ensinou o professor Tarzan, inventado por um romancista que nunca esteve lá.

As culturas de origem não europeia não são culturas, mas ignorâncias, úteis, no melhor dos casos, para comprovar a impotência das raças inferiores, atrair turistas e dar a nota típica nas festas de fim de curso ou nas datas pátrias. Na verdade, a raiz indígena ou a raiz africana, e em alguns países as duas ao mesmo tempo, florescem com tanta força como a raiz europeia nos jardins da cultura mestiça. São evidentes seus frutos prodigiosos, nas artes de alto prestígio e também nas artes que o desprezo chama de artesanato, nas culturas reduzidas ao folclore e nas religiões depreciadas como superstição. Essas raízes, ignoradas mas não ignorantes, nutrem a vida cotidiana de gente de carne e osso, embora muitas vezes as pessoas não saibam ou prefiram não saber, e estão vivas nas linguagens que a cada dia revelam o que somos através do que falamos e do que calamos, em nossas maneiras de comer e de cozinhar o que comemos, nas músicas que dançamos, nos jogos que jogamos e nos mil e um rituais, secretos ou compartilhados, que nos ajudam a viver.”

 

 

Justiça

Em 1997, um automóvel de placa oficial trafegava em velocidade normal por uma avenida de São Paulo. No carro, que era novo e caro, iam três homens. Num cruzamento, um policial mandou o carro parar. Fez com que os três desembarcassem e os manteve durante uma hora de mãos para cima, e de costas, enquanto os interrogava insistentemente, querendo saber onde tinham furtado o veículo.

Os três homens eram negros. Um deles, Edivaldo Brito, era o Secretário de Justiça do governo de São Paulo. Os outros dois eram funcionários da Secretaria. Para Brito, aquilo não era uma novidade. Em menos de um ano, já lhe acontecera cinco vezes a mesma coisa.

O policial que os deteve também era negro.”

 

 

Assim se prova que os índios são inferiores

(Segundo os conquistadores dos séculos XVI e XVII)

Suicidam-se os índios das ilhas do Mar do Caribe? Porque são vadios e não querem trabalhar.

Andam desnudos, como se o corpo todo fosse a cara? Porque os selvagens não têm pudor.

Ignoram o direito de propriedade, tudo compartilham e não têm ambição de riqueza? Porque são mais parentes do macaco do que do homem.

Banham-se com suspeitosa frequência? Porque se parecem com os hereges da seita de Maomé, que com justiça ardem nas fogueiras da Inquisição.

Acreditam nos sonhos e lhes obedecem as vozes? Por influência de Satã ou por crassa ignorância.

É livre o homossexualismo? A virgindade não tem importância alguma? Porque são promíscuos e vivem na antessala do inferno.

Jamais batem nas crianças e as deixam viver livremente? Porque são incapazes de castigar e de ensinar.

Comem quando têm fome e não quando é hora de comer? Porque são incapazes de dominar seus instintos.

Adoram a natureza, considerando-a mãe, e acreditam que ela é sagrada? Porque são incapazes de ter religião e só podem professar a idolatria.”

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