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sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Os irmãos Karamázov (Volume I), de Fiódor Dostoiévski

Editora: 34

ISBN: 978-85-7326-410-4

Tradução, posfácio e notas: Paulo Bezerra

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 448

Sinopse: Último romance de Dostoiévski, Os irmãos Karamázov representa uma síntese de toda sua produção e é tido por muitos como sua obra-prima. Um marco da literatura universal, influenciou pensadores como Nietzsche e Freud, que o considerava “o maior romance já escrito” – e sucessivas gerações de escritores em todo o mundo.

Um livro ao mesmo tempo filosófico e policial, que trata da conturbada relação entre o devasso Fiódor Karamázov e seus três filhos: Aliócha, “puro” e místico; Ivan, intelectual e atormentado; e Dmitri, orgulhoso e apaixonado.

Com mão de mestre, Dostoiévski conduz o leitor numa viagem única pelos recantos mais sombrios e luminosos da alma humana e, com uma trama hipnotizante, consegue prender nossa atenção ao longo das centenas de páginas do volume – agora traduzido diretamente do russo por Paulo Bezerra.



“Pensando bem, seria estranho exigir clareza das pessoas numa época como a nossa.”

 

 

“Na maioria dos casos, as pessoas, inclusive os facínoras, são muito mais ingênuas e simples do que costumamos achar. Aliás, nós também.”

 

 

Oh, é claro, no mosteiro ele acreditava piamente em milagres, mas a meu ver os milagres nunca desconcertam o realista. Não são os milagres que inclinam o realista para a fé. O verdadeiro realista, caso não creia, sempre encontrará em si força e capacidade para não acreditar no milagre, e se o milagre se apresenta diante dele como um fato irrefutável, é mais fácil ele descrer de seus sentidos que admitir o fato. E se o admite, admite-o como fato natural, que apenas lhe fora até então desconhecido. No realista a fé não nasce do milagre, mas é o milagre que nasce da fé. Se o realista acredita uma vez, é justamente por seu realismo que ele deve forçosamente admitir o milagre. O apóstolo Tomé declarou que não acreditaria sem antes ver, e quando viu disse: “Senhor meu e Deus meu!”. Terá sido o milagre que o fez acreditar? É mais provável que não, mas ele acreditou unicamente porque desejou acreditar, e talvez já acreditasse plenamente, lá no mais recôndito de seu ser, mesmo quando disse: “Se não o vir... de modo algum acreditarei”.19

 

 

“— O principal é não mentir para si mesmo. Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à própria mentira chega a um ponto em que não distingue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros e, portanto, passa a desrespeitar a si mesmo e aos demais.”

 

 

“— Não tenhas medo de nada, e nunca tenhas medo, nem caias em melancolia. Desde que o arrependimento não míngue em tua alma, Deus perdoará tudo. E ademais não há nem pode haver em toda a Terra tamanho pecado que o Senhor não perdoe àquele que em verdade se arrepende. Além disso, um homem não pode, absolutamente, cometer um pecado tão grande que esgote o infinito amor de Deus. Ou será que pode haver um pecado capaz de superar o amor divino? Preocupa-te apenas com o arrependimento, sempre, e quanto ao medo, afugenta-o de todo. Crê que Deus te ama de uma forma que nem imaginas, e te ama mesmo com teu pecado e em teu pecado. Há maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende, do que por dez justos53 isto foi dito há muito tempo. Vai, e não tenhas medo. Não fiques amargurada com as pessoas, nem te zangues com as ofensas. Perdoa tudo do falecido em teu coração, suas ofensas, reconcilia-te de fato com ele. Se te arrependes, é porque também amas. E se amas, então já és de Deus... Com amor tudo se resgata, tudo se salva. Se até eu, um pecador como tu, fiquei comovido e tive piedade de ti, que dirá Deus! O amor é um tesouro tão precioso que com ele podes comprar o mundo inteiro, e ainda redimes não só teus pecados, mas também os dos outros. Vai, e não tenhas medo.”

53 “Digo-vos que assim haverá mais júbilo no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento”. Lucas, 15, 7. (N. da E.)

 

 

“— Se hoje não existisse a Igreja de Cristo, para o criminoso não haveria nenhum impedimento para o crime e nem mesmo castigo posterior, isto é, o castigo verdadeiro, e não o mecânico que acabou de ser mencionado aqui — que não faz senão exasperar o coração na maioria dos casos —, o castigo verdadeiro, o único real, o único que atemoriza e apazigua, que consiste em se ter consciência da própria consciência.”

 

 

“— (...) Mas basta de poesia! Derramei lágrimas, mas tu também me deixa chorar. Oxalá isso seja uma bobagem da qual todos hão de rir, mas não tu. Eis que teus olhinhos também estão ardendo. Basta de poesia. Agora quero te falar dos “insetos”, daqueles mesmos a quem Deus deu a lascívia.

Aos insetos, a lascívia!

Meu irmão, eu sou esse mesmo inseto, isso foi dito especialmente a meu respeito. E todos nós, Karamázov, somos assim; até em ti, anjo, esse inseto vive e em teu sangue gera tempestades. São tempestades, porque a lascívia é uma tempestade, é mais que uma tempestade! A beleza é uma coisa terrível e horrível! Terrível porque indefinível, e impossível de definir porque Deus só nos propôs enigmas. Aí os extremos se tocam, aí todas as contradições convivem. Eu, meu irmão, sou muito ignorante, mas tenho pensado muito nisso. Existe um número formidável de mistérios! Um número excessivo de enigmas oprime o homem na Terra. Decifra-os como és capaz e sai enxuto da chuva. A beleza! Não posso, ademais, suportar que algum homem, até de coração superior e de inteligência elevada, comece pelo ideal de Madona mas termine no ideal de Sodoma. Ainda mais terrível é aquele que, já tendo o ideal de Sodoma na alma, não nega o ideal de Madona, e seu coração arde de fato por ele, arde de fato como nos seus puros anos juvenis. Não, o homem é vasto, vasto até demais; eu o faria mais estreito. Até o diabo sabe o que é isso, veja só! O que à mente parece desonra é tudo beleza para o coração. A beleza estará em Sodoma? Podes crer que é em Sodoma que ela está para a imensa maioria dos homens conhecias ou não esse segredo? É horrível que a beleza seja uma coisa não só terrível, mas também misteriosa. Aí lutam o diabo e Deus, e o campo de batalha é o coração dos homens. Aliás, é a dor que ensina a gemer.”

 

 

“— Embora seja baixo em meus desejos e goste da baixeza, todavia não sou desonesto.”

 

 

“— Eu, meu querido Alieksiêi Fiódorovitch, tenho a intenção de viver o máximo que puder no mundo, saibam vocês disto, e por isso preciso de cada copeque, e quanto mais eu viver tanto mais esse copeque me será necessário. (...) Por enquanto ainda sou um homem, apesar de tudo, tenho apenas cinquenta e cinco anos, mas ainda quero permanecer uns vinte no rol dos homens, porque vou envelhecer, ficar um trapo e elas não vão querer vir à minha casa de boa vontade, e é por isso que vou precisar de um dinheirinho. É por isso que venho juntando cada vez mais e mais só para mim, meu amável filho Alieksiêi Fiódorovitch, que fiquem vocês sabendo, porque quero viver até o fim em minha sujeira, fiquem vocês sabendo. Na imundice é que é mais doce: todos falam mal dela, mas nela todos vivem, só que às escondidas, enquanto que eu sou transparente. Pois foi por essa minha simplicidade que todos os sujos investiram contra mim. Já para o teu paraíso, Alieksiêi Fiódorovitch, não quero ir, fica tu sabendo, e para um homem direito é até indecente ir para o teu paraíso, se é que ele existe mesmo. A meu ver, a pessoa dorme e não acorda mais, descobre que não existe nada; lembrem-se de mim se quiserem, e se não quiserem o diabo que os carregue. Eis minha filosofia.”

 

 

“— Na companhia dos patifes eu também sou um patife.”

 

 

“— É duro demais para um homem ofendido quando todos passam a olhar para ele como seus benfeitores...”

 

 

“— Eu estava aqui sentado, e vê o que dizia para mim mesmo: se eu não acreditasse na vida, se perdesse a confiança na mulher querida, se perdesse a confiança na ordem das coisas, se me convencesse até de que tudo, ao contrário, é uma desordem, um caos maldito e talvez até demoníaco, mesmo que todos os horrores da frustração humana me atingissem, ainda assim eu teria vontade de viver, e já que trouxe esse cálice aos lábios não o afastaria de mim enquanto não o esvaziasse! Pensando bem, aí por volta dos trinta anos certamente largarei o cálice mesmo sem esvaziá-lo e me afastarei... não sei para onde. Mas até os trinta anos, disso estou firmemente certo, minha mocidade vencerá tudo qualquer frustração, qualquer aversão à vida. Muitas vezes fiz a mim mesmo esta pergunta: se existirá no mundo um desespero que vença em mim essa sede frenética e talvez indecente de viver, e decidi que tal coisa parece não existir, ou, reiterando, não existe antes dos trinta anos, porque depois eu mesmo já não vou querer, assim me parece. Frequentemente uns moralistas tísicos e ranhosos, principalmente os poetas, chamam de torpe essa sede de viver. Em parte, essa vontade de viver a despeito de qualquer coisa é um traço dos Karamázov, é verdade, e ela também existe infalivelmente em ti, mas por que é torpe? Ainda existe um volume colossal de força centrípeta em nosso planeta, Aliócha. Tenho vontade de viver e vivo, ainda que contrariando a lógica. Vá que eu não acredite na ordem das coisas, mas a mim me são caras as folhinhas pegajosas que desabrocham na primavera, me é caro o céu azul, é caro esse ou aquele homem de quem, não sei se acreditas, às vezes a gente não sabe por que gosta, me é caro um ou outro feito humano no qual a gente talvez tenha até deixado de acreditar há muito tempo e mesmo assim, movido pela lembrança antiga, o respeita de coração.”

 

 

“— Ora, como é que os meninos russos agem até hoje? Quer dizer, os outros? Vê, por exemplo, esta taverna fedorenta, vê aqueles ali, eles se juntaram, sentaram-se no canto. Antes nunca se haviam conhecido, vão sair da taverna e passar mais quarenta e cinco anos sem saber nada uns dos outros; pois bem, o que vão discutir agora nesta taverna? Questões universais, não outra coisa: Deus existe, existe imortalidade? E os que não acreditam em Deus vão falar de socialismo e de anarquismo, da reconstrução de toda a sociedade humana segundo um novo princípio, e então só o diabo sabe o que sairá daí, sempre as mesmas questões, só que vistas de um outro ângulo. E hoje uma infinidade, uma infinidade dos mais originais rapazinhos russos não fazem outra coisa a não ser falar de questões eternas. Por acaso não é assim?

— Sim, a verdadeira questão russa: Deus existe ou não, existe imortalidade ou não, ou, como tu dizes, são questões colocadas de outro ângulo, é claro, as questões primordiais e prioritárias, e é assim que deve ser — pronunciou Aliócha, olhando para o irmão com o mesmo sorriso sereno e escrutador.

— Vê, Aliócha, ser um russo às vezes não é nada inteligente, mas ainda assim não se pode imaginar nada mais tolo que aquilo de que os rapazolas russos se ocupam atualmente. Mas eu gosto muitíssimo de um rapazinho russo — Alióchka.

— Como tu resumiste magnificamente tudo isso — sorriu de repente Aliócha.

— Bem, diz então por onde começar, ordena tu mesmo: por Deus? Se Deus existe ou não, é isso?

— Começa por onde quiseres, mesmo que seja por “outro ângulo”. Porque ontem tu proclamaste em casa de nosso pai que Deus não existe — Aliócha lançou ao irmão um olhar escrutador.

— Ontem, à mesa do almoço com o velho, eu te provoquei de propósito com essa afirmação, e notei como teus olhos chamejaram. Mas agora não tenho nada contra falar de tudo contigo, e digo isso com muita seriedade. Quero fazer amizade contigo, Aliócha, porque não tenho amigos e quero experimentar. Bem, imagina que eu talvez até aceite Deus — Ivan sorriu —, isso é uma surpresa para ti, hein?

— Sim, é claro, contanto que não estejas brincando também agora.

— “Brincando”. Ontem disseram na cela do stárietz que eu estava brincando. Vê, meu caro, no século XVIII houve um velho pecador que declarou que se Deus não existisse seria preciso inventá-lo: s’il n’existait pas Dieu il faudrait l’inventer34. E o homem realmente inventou Deus. E o estranho, o surpreendente não seria o fato de Deus realmente existir; o que, porém, surpreende é que essa ideia — a ideia da necessidade de Deus — possa ter subido à cabeça de um animal tão selvagem e perverso como o homem, por ser ela tão santa, tão comovente, tão sábia e tão honrosa ao homem. Quanto a mim, há tempos que decidi não pensar na questão: foi o homem que criou Deus ou Deus que criou o homem? É claro que não vou ficar examinando todos os axiomas que os rapazinhos russos de hoje formulam a esse respeito, todos derivados de hipóteses europeias; pois o que lá é hipótese no rapazinho russo se transforma imediatamente em axioma, e não só nos rapazinhos, mas talvez até em seus professores, porque até hoje os professores russos são, muito amiúde, esses mesmos rapazinhos russos. É por isso que eu omito todas as hipóteses. Qual é o nosso objetivo neste momento? O objetivo é que eu possa te explicar o mais depressa a minha essência, ou seja, que pessoa sou eu, em que acredito e em que alimento esperança, não é? Por isso eu te declaro que aceito Deus com franqueza e simplicidade. Mas eis, entretanto, o que preciso ressaltar: se Deus existe e ele realmente criou a Terra, então, como é de nosso conhecimento absoluto, ele a criou com base na geometria euclidiana, e criou a inteligência humana apenas com o conceito das três dimensões do espaço. Por outro lado, houve e há até hoje geômetras e filósofos, e inclusive dos mais notáveis, que duvidam de que todo o universo ou, em termos mais amplos, todo o ser tenha sido criado unicamente com base na geometria euclidiana; eles se permitem inclusive a fantasia de que duas paralelas, que, segundo Euclides, jamais poderão encontrar-se na terra, talvez venham a encontrar-se em algum lugar do infinito. Eu, meu caro, resolvi que se nem isso consigo compreender, então quem sou eu para entender o que toca a Deus? Reconheço humildemente que não tenho nenhuma capacidade de resolver tais problemas, minha inteligência é euclidiana, terrena, portanto, como iríamos resolver aquilo que não é deste mundo? Aliás, eu também te aconselho a nunca pensar nisso, amigo Aliócha, e menos ainda a respeito de Deus: Ele existe ou não? Todas essas questões são absolutamente impróprias para uma inteligência criada apenas com a noção das três dimensões. Portanto, aceito Deus, e não só de bom grado como, além disso, aceito também sua sabedoria e seus fins, que nos são totalmente desconhecidos, acredito na ordem, no sentido da vida, acredito na harmonia eterna na qual nós todos nos fundiríamos, creio no Verbo ao qual aspira o universo, que também “está em Deus” e é o próprio Deus, etc., etc. e assim sucessivamente no sentido do infinito. A esse respeito muito já se escreveu. Parece que estou no bom caminho, não? Pois bem, imagina que o resultado definitivo disso é que eu não aceito esse mundo de Deus e, mesmo sabendo que ele existe, não o admito absolutamente. Não é Deus que não aceito, entende isso, é o mundo criado por ele, o mundo de Deus que não aceito e não posso concordar em aceitar. Faço uma ressalva; estou convencido, como uma criança, de que os sofrimentos hão de cicatrizar e desaparecer, de que toda a injuriosa comédia das contradições humanas desaparecerá como uma miragem deplorável, como uma invencionice torpe de uma inteligência humana euclidiana fraca e pequena como o átomo, de que, enfim, na consumação do mundo, no momento da eterna harmonia, acontecerá e aparecerá algo tão precioso que bastará a todos os corações, para suavizar todas as indignações, para redimir todas as perversidades dos homens, todo o sangue por eles derramado, chegará para que seja possível não só perdoar como também compensará tudo o que aconteceu com os homens — oxalá, oxalá tudo isso aconteça e se revele, mas eu não o aceito nem quero aceitar! Oxalá até as paralelas se encontrem e eu mesmo o veja: verei e direi que se encontraram, mas ainda assim não aceitarei. Eis a minha essência, Aliócha, eis a minha tese. Isto eu já te expus com seriedade. Comecei de propósito esta nossa conversa de um modo que não pode haver mais tolo, mas a conduzi até chegar à minha confissão, porque é disso que precisas. Não era de Deus que tu precisavas; precisavas apenas saber como vive este irmão que amas. E eu o declarei.

Ivan concluiu sua longa tirada com um sentimento particular e inesperado.

— E por que principiaste dizendo que “não se pode começar nada de modo mais tolo”? — perguntou Aliócha, fitando-o com ar pensativo.

— Bem, em primeiro lugar, ao menos por uma questão de russismo: a condução de todas as conversas russas sobre esses temas não poderia ser mais tola. Em segundo, mais uma vez, quanto mais tola mais direta. Quanto mais tola, mais clara. A tolice é curta e ingênua, já a inteligência tergiversa e se esconde. A inteligência é canalha, mas a tolice é franca e honesta. Levei a questão até a beira do meu desespero, e quanto mais tola tenha sido sua condução mais proveitoso terá sido para mim.”

34 Referência à famosa frase de Voltaire: “Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”. (N. do T.)

 

 

“— Para amar uma pessoa é preciso que esta esteja escondida, porque mal ela mostra o rosto o amor acaba.”

 

 

“— A propósito, um búlgaro me contou recentemente em Moscou — continuou Ivan Fiodórovitch como se não tivesse ouvido o irmão — como os turcos e tcherquesses cometem atrocidades em todas as partes da Bulgária, por temerem uma rebelião geral dos eslavos37 — ou seja, queimam, degolam, violentam mulheres e crianças, pregam as orelhas dos prisioneiros a uma cerca com pregos, os deixam assim até o dia amanhecer e de manhã os enforcam —, etc., é até impossível imaginar tudo. De fato, às vezes se fala da crueldade “bestial” do homem, mas isso é terrivelmente injusto e ofensivo para com os animais: a fera nunca pode ser tão cruel como o homem,38 tão artisticamente, tão esteticamente cruel. O tigre simplesmente trinca, dilacera, e é só o que sabe fazer. Não lhe passaria pela cabeça pregar as orelhas das pessoas com pregos por uma noite, mesmo que pudesse fazê-lo. Esses turcos, a propósito, supliciam com lascívia até as crianças, começando por arrancá-las a punhal do ventre da mãe e terminando por lançar crianças de colo e apará-las na ponta da baioneta à vista das mães. O prazer principal é fazer isso à vista das mães. Mas vê, entretanto, um quadro que me interessou intensamente. Imagina: um bebê nos braços da mãe trêmula, rodeada de turcos que acabam de chegar. Eles tramam uma coisinha divertida: acariciam o bebê, riem para fazê-lo rir, e conseguem, o bebê desata a rir. Nesse instante o turco aponta a pistola para o rosto dele a uns vinte centímetros de distância. O menino dá risadinhas de alegria, estira as mãozinhas para agarrar a pistola e, de repente, o artista aperta o gatilho diretamente contra o rosto e lhe esmigalha a cabecinha... É arte, não é verdade? A propósito, dizem que os turcos gostam muito de doce.

— Irmão, onde estás querendo chegar? perguntou Aliócha.

— Acho que se o diabo não existe e, portanto, o homem o criou, então o criou à sua imagem e semelhança.

— Neste caso, exatamente como Deus.”

37 Entre 1875 e 1876, o movimento de libertação nacional da Bulgária ganhou enormes proporções e suscitou uma repressão sem precedentes dos turcos contra a população local. Dostoiévski escreveu reiteradamente sobre o tema em seu Diário de um escritor. (N. da E.)

38 Veja-se o que Herzen escreve na revista Kólokol, nº 68-69, de 1860, a respeito das atrocidades cometidas pelos latifundiários russos: “Que animais, que feras são essas que vivem por esses fins de mundo... Aliás, por que ofender as feras? Feras assim não existem, só encontramos esse tipo de feras nos latifundiários russos”. (N. da E.)

 

 

“Quando nos formamos oficiais, estávamos prontos a derramar nosso sangue por uma ofensa à honra de nosso regimento, mas entre nós quase ninguém conhecia a verdadeira honra, sequer sabia que ela existia e, se o soubesse, imediatamente seria o primeiro a rir dela.”

 

 

“— Lembra-te particularmente de que não podes ser juiz de ninguém.100 Porque na Terra não pode haver juiz de um criminoso sem que antes esse mesmo juiz saiba que também é tão criminoso como aquele que está à sua frente e, mais do que ninguém, talvez seja o culpado pelo crime que tem diante de si. Quando compreender isto poderá ser juiz. Isso é verdade, por mais insensato que pareça. Pois se eu mesmo fosse um justo, talvez nem houvesse um criminoso diante de mim.101 Se puderes assumir o delito do criminoso que tens à frente e julgas com teu coração, assume-o imediatamente e sofre tu mesmo por ele, liberando-o sem reprimenda. E mesmo que a própria lei tenha te constituído seu juiz, ainda assim procura criar dentro do espírito da lei até onde te for possível, pois ele será liberado e se condenará ainda mais amargamente do que o faria teu julgamento. Se, apesar de teu afago, ele sair insensível e zombando de ti, não te sintas tentado: significará isto que a hora dele ainda não chegou, mas chegará oportunamente; se não chegar, não faz mal: se não for ele, outro o experimentará por ele, e sofrerá, e condenará, e acusará a si próprio, e a verdade será cumprida. Crê nisso, crê sem duvidar, porque é aí mesmo que está toda a esperança e toda a fé dos santos.”

100 “Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois com o critério com que julgardes, sereis julgados [...]”. Mateus, 7, 1-2. (N. da E.)

101 Dostoiévski desenvolve essa mesma ideia no artigo “O meio”, publicado em seu Diário de um escritor de 1873, onde trata da figura do criminoso: “Se ele infringiu a lei que a Terra lhe prescreveu, nós mesmos somos os culpados por tê-lo agora à nossa frente. Porque se todos fôssemos melhores, ele também seria melhor e não estaria agora diante de nós”. (N. da E.).

 

 

Padres e mestres, tenho pensado: “O que é o inferno?”. E julgo assim: “É o sofrimento de não mais se poder amar”.”

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