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domingo, 22 de maio de 2022

Projeto nacional: o dever da esperança (Parte IV), de Ciro Gomes

Editora: LeYa

ISBN: 978-65-5643-003-4

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 272

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Sinopse: Ver Parte I



Além de uma nova burguesia empreendedora, comprometida com o desenvolvimento nacional, é preciso trazer de volta os trabalhadores da pasmaceira generalizada em que caíram nas quase três décadas de neoliberalismo. No avanço neoliberal sobre os direitos trabalhistas, os poucos trabalhadores organizados adotaram uma postura defensiva, cada categoria protegendo as suas conquistas legadas pelo passado. Durante o período dos governos do PT, que sempre se vangloriou de poder legitimar suas ações no controle de amplas bases sociais, o que predominou foi a desmobilização e a passividade, frutos de uma perspectiva de militância inorgânica. Isso sem falar nos trabalhadores precarizados, que, longe do alcance do trabalho formal e da carteira assinada, acabaram também privados de uma participação política mais intensa.

Base social não significa alinhamento passivo de expressões cooptadas da sociedade civil, e sim o empoderamento – respeitada sua autonomia diante das políticas oficiais – de uma interlocução com as entidades legítimas da sociedade. O que quero dizer com isso? Estudante a favor do governo, sindicalista a favor do governo perde o nexo de legitimidade com sua base. Por isso assistimos ao desmonte despudorado dos direitos trabalhistas sem que qualquer reação popular notável tenha acontecido. Isso é fruto do anestesiamento das lideranças da sociedade civil pela cooptação e pelo suborno.

Todo Projeto Nacional emancipatório de um país terceiro-mundista requer mais do que a mera participação dos trabalhadores organizados e desorganizados. Necessita do intenso protagonismo e da mobilização de bases esclarecidas, cientes do ideal de nação que é construído coletivamente. Para tanto, não se deve cair no expediente demagógico das promessas impossíveis nem acreditar em radicalismos meramente retóricos. É preciso mostrar com exemplo, ideia e militância, e não culto à personalidade, o que deve e como deve ser feito, concretamente.

O fortalecimento dos sindicatos e de outros movimentos organizados da sociedade civil é parte integral da consolidação da democracia, sequestrada desde 2013 pela crescente intervenção estrangeira no Brasil. A organização coletiva e democrática é a única vacina contra as fake news e outras modalidades de manipulação de massas que surgiram no alvorecer do século XXI.”

 

 

HÁ AINDA SENTIDO EM FALAR DE ESQUERDA E DIREITA?

É comum ouvirmos a afirmação de que não existem mais esquerda e direita, de que “tudo é a mesma coisa”, ou ainda a piada de que a única diferença entre uma posição e outra é a mão que rouba.

Essa é uma atitude que nega a política, portanto está comprometida com a manutenção da sociedade como ela está. Por quê? Porque, ao negar diferenças entre projetos de sociedade e reduzir a política a um concurso para escolher o melhor gestor ou mesmo o assaltante preferido, se está assumindo a ideia de que não há nada a mudar na estrutura da sociedade ou que mudanças não são relevantes, nem mesmo possíveis. Precisaríamos somente de pessoas honestas e competentes para que tudo funcionasse bem. Pessoas honestas e competentes são fundamentais, mas a política é acima de tudo a escolha entre projetos diferentes para a sociedade.

Entretanto, o mais importante aqui é que a afirmação de que não existem mais esquerda e direita é falsa. A confusão muitas vezes se dá também porque esquerda e direita não são conceitos absolutos, mas relativos. As pessoas só são de “esquerda” ou de “direita” em relação a determinada situação concreta e momento histórico.

A origem desses termos para designar o campo político está na Revolução Francesa. Na primeira Assembleia Nacional, sentavam-se à direita os “girondinos”: a nobreza (defensora do Antigo Regime) e a alta burguesia (banqueiros e grandes empresários), sua aliada. A alta burguesia buscava conservar o status quo, ou seja, eram “conservadores”, e os nobres queriam retroceder ao passado monarquista, ou seja, eram “reacionários”.

À esquerda sentavam-se os defensores de uma nova sociedade, os “jacobinos”. Esses eram constituídos basicamente de profissionais liberais, como médicos e advogados, comerciantes (os pequenos burgueses), camponeses e trabalhadores urbanos (os sans-culottes). Os primeiros, em sua maioria, buscavam apenas a igualdade de todos perante a lei, eram “liberais”; já os segundos pregavam a extinção das hierarquias econômicas e sociais da época.

Como podemos ver, naquela sociedade, recém-saída do absolutismo, um liberal era um representante da “esquerda”.

Mas a definição do que sejam esquerda e direita do ponto de vista político depende geralmente de quem está oferecendo a definição e também de seu contexto histórico e geográfico.

Para a esquerda, que privilegia o valor da igualdade, o termo “esquerda” passa a designar o conjunto das organizações sociais que buscam a transformação da sociedade atual em direção a uma maior igualdade entre os cidadãos, enquanto “direita” passa a designar aqueles que querem conservar ou até ampliar a desigualdade, que é encarada como a justa diferença de riqueza entre pessoas que têm diferentes merecimentos.

Já para a direita, que privilegia o valor da liberdade, geralmente os termos designam a posição acerca do tamanho do Estado na economia. O termo “esquerda”, nessa perspectiva, designaria aqueles que defendem um Estado grande até o extremo de um Estado máximo, e “direita”, aqueles que defenderiam o máximo de autonomia econômica para os indivíduos até o extremo de um Estado mínimo, reduzido praticamente ao sistema judiciário.

Essa definição alternativa, disseminada pelo neoliberalismo, está associada à ideia de que o laissez-faire1 sozinho promoveria o progresso humano. Sem se preocupar com a questão da igualdade ou do mérito, a crença é de que a riqueza gerada pela livre-iniciativa de indivíduos dirigidos por suas motivações individuais seria maior do que aquela que poderia ser gerada e distribuída pelo Estado interventor. Portanto, a desigualdade numa sociedade rica seria melhor que a igualdade numa sociedade mais pobre.

Do ponto de vista individual, a defesa dessa liberdade abstrata muitas vezes é uma retórica vazia assumida por grande parte da parcela mais rica da população para justificar a desigualdade, uma vez que sem condições materiais necessárias mínimas, nenhum indivíduo será livre, que dirá crianças que não pediram para nascer. Do ponto de vista coletivo, sabemos que nação alguma jamais progrediu consistentemente sem interação do mercado com um Estado forte, regulador e indutor. Os EUA, modelo da maior parte da direita brasileira, não existiriam sem a atuação do Estado americano no desenvolvimento tecnológico, nas compras governamentais e na abertura de mercados através da força militar e de sua agência de inteligência.

Embora essas duas definições de esquerda e direita quase sempre classifiquem os mesmos indivíduos nas mesmas posições no espectro político, existem falhas nessa correspondência. Por exemplo, não funciona quando consideramos que um Estado grande e interventor pode também ser colocado a serviço da concentração de renda, como ocorre no fascismo.

As constantes retomadas de discussões teóricas sobre graus de liberdade e igualdade na sociedade sempre tiveram funções políticas muito concretas, inclusive na atual confusão intencional que causam no debate público. Uma das principais é a que confunde esquerda com a mera defesa de liberdades individuais (o liberalismo) e direita com a defesa de valores tradicionais (o conservadorismo).

A defesa de que todos são igualmente livres para exercer sua sexualidade e religiosidade da forma que quiserem – desde que não cerceiem com isso a liberdade de outros – é uma bandeira antiga do liberalismo político que está presente na esquerda, mas também na direita liberal. Não define a disputa entre elas. Isso mostra que essa redução das diferenças entre esquerda e direita pelo viés dos costumes serve mais pelo que esconde do que pelo que revela. Essa ocultação é a fonte e a motivação desse extemporâneo ressurgimento do movimento conservador que hoje tenta se estabelecer como “a verdadeira direita”.

Tentando se vincular ao “reacionarismo” antigo, que designava um movimento de reação a alguns valores modernos e se afirmava como guardião da “tradição”, dos valores e do patrimônio cultural da Antiguidade, a direita conservadora atual cumpre função política muito distinta dos ideais que diz defender. Em sua origem, durante as revoluções do século XVIII, o conservadorismo se caracterizava pela desconfiança da mudança, que quando inevitável deveria ser o menos disruptiva possível, porque a desordem resultante de uma mudança radical desorganizaria a sociedade e destruiria o tecido social, cujo exemplo de fracasso e degradação seria a própria Modernidade. Em sua forma atual, sob pretexto de salvar o “Ocidente”, tem servido principalmente para vocalizar um conveniente discurso dos países centrais, seja para reordenar sua política interna, visando à manutenção das desigualdades dentro de seus países, seja para a política externa, intensificando a exploração dos países periféricos.

Apesar de esse discurso seduzir pessoas bem-intencionadas entre nós, movidas por respeitáveis preocupações de preservação das tradições e proteção da religiosidade popular, o que esse ideário tem gerado na prática é apenas um neoliberalismo de roupa nova, avesso aos valores do cristianismo. Por isso, acho equivocado e perigoso assumirmos acriticamente ideologias importadas que, normalmente, trazem escondidas intenções que vão contra os interesses do nosso povo e do nosso país.

Na minha opinião, ninguém é de esquerda porque se diz ser ou gostaria de ser. O que determina se alguém é de esquerda é sua prática, é a posição que toma nas lutas concretas da sociedade e a obra que realiza quando tem poder. Da mesma forma, ninguém é de direita só porque pensa diferente de nós ou porque defende valores como eficiência, planejamento, honestidade, patriotismo e segurança pública. Muito pelo contrário, esses deveriam ser valores de toda a sociedade.”

1 Expressão francesa que significa “deixar fazer”. Ficou associada ao liberalismo econômico (que é diferente de liberalismo político), à ideia de que o mercado deve funcionar livremente, sem interferência ou regulação do Estado, que só teria a função de proteger a propriedade.

 

 

A CRISE DA ESQUERDA CONTEMPORÂNEA

Vivemos hoje um quadro de profunda crise capitalista em que o neoliberalismo fracassou rotundamente e a desigualdade volta a avançar no Ocidente. Diante dessa crise cultural profunda, a esquerda ocidental patina e vê parte de seus espaços perdida para a extrema direita.

Diante do imenso fracasso das políticas que têm diminuído o papel do Estado sem planejamento estratégico algum, esperando que o espontaneísmo do mercado seja o motor do desenvolvimento enquanto paga taxas de juros mais altas que o rendimento médio dos negócios, a retórica neoliberal sempre rejeita a responsabilidade pelas consequências nefastas de suas políticas (veja o colapso que aconteceu na Argentina neoliberal de Mauricio Macri2) dizendo que não deixaram dar a dose suficiente de seu remédio. Ou seja, eles sempre alegam que tudo deu errado porque não destruíram o Estado o bastante. Durante os governos neoliberais só a estagnação ou a catástrofe tem vez. A culpa, o neoliberalismo coloca na suposta “gastança” dos governos anteriores, e quando finalmente sai do poder e o país volta a se desenvolver, ele diz que o crescimento foi por causa de seu “ajuste” ou “modernização”.

Mas se o remédio é bom, ou a situação melhora ou o ritmo da piora tem que diminuir. A crença de que tudo tem que piorar muito antes de melhorar não é nada senão misticismo importado para a economia.

Este é o grande paradoxo do liberalismo econômico que precisamos expor: a suposta liberdade individual irrestrita afeta severamente a liberdade da maioria dos indivíduos. A médio prazo, o liberalismo econômico colapsa o liberalismo político, porque ele tira da maior parte da sociedade as condições materiais necessárias para exercer a liberdade. Liberdade absoluta é a lei da selva, portanto, a lei do mais forte. E o ideal do liberalismo político clássico nunca foi garantir a liberdade absoluta, porque isso é o oposto da vida em sociedade, e sim a maior quantidade de liberdade possível para todos os cidadãos igualmente. Deixo a você, caro leitor, a conclusão dessa reflexão.”

2 PRESSE, France. “Economia argentina cai 3,5% no terceiro trimestre e entra em recessão.” O Globo, dez. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/12/18/economia-argentina-cai-35-no-terceiro-trimestre-e-entra-em-recessao.ghtml

 

 

“A globalização, nome nobilitante que deram ao neocolonialismo no fim do século XX, se valeu da revolução da informática e da internet para integrar o mundo inteiro numa gigantesca ciranda financeira sem lastro razoável na economia real, acelerando de forma imensa o fluxo de capitais.

Mas não só. Ao mesmo tempo, entregou o completo inverso de sua promessa de globalizar as condições de empreender, produzir ou buscar trabalho. A única coisa que de fato se generalizou foi a informação em tempo real, e essa informação estava predominantemente direcionada à disseminação e imposição do padrão de aspiração de consumo dos países ricos ao mundo todo.

As sociedades foram mergulhadas numa avalanche de imagens e mensagens tecnicamente desenvolvidas para disseminar essa aspiração e padrão incompatíveis com os limites econômicos e ecológicos das nações, assim como com a felicidade individual.

Como esbocei no início deste livro, deixamos de encontrar a felicidade em âmbito subjetivo, espiritual, como a busca de justiça social, a fruição estética da arte ou o amor romântico, para tentar fazê-lo no âmbito do mercado, que pergunta quanto de uma expectativa de consumo damos conta de praticar com a renda que temos.

Minha geração foi uma geração de insurgentes, que buscava a felicidade em bens espirituais, no domínio dos valores. No valor do sagrado também, mas igualmente no valor do prazer, do belo, da justiça, da compaixão. Acreditávamos que nossa felicidade seria encontrada na paixão, no romance, no amor, na música, queríamos o contato com o sagrado ou o saber, queríamos a revolução e um mundo melhor.

As novas gerações cresceram sob o estresse imenso do excesso de informações que vem pelas redes sociais, mídias e cinema, impregnadas de estímulos ao consumo e de propaganda. São massacradas dia e noite com imagens e símbolos que buscam seduzi-las, convencê-las a abandonar o mundo dos valores (daquilo que é um fim em si mesmo, e portanto satisfaz de fato) em busca do mundo das coisas (que no máximo são úteis para algo, e, como tal, são meios, não fins em si mesmas).

Hoje somos empurrados para entrar numa espiral de consumo: a criança no morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro, sabe qual é o padrão de consumo ótimo nos países ricos, mas não tem renda nem para o consumo de subsistência em nosso país desigual e pobre. Se essa é sua referência de felicidade e sucesso, então ela aprende a acreditar que é infeliz e fracassada. Grande parte da produção não busca mais primariamente disponibilizar bens úteis, mas sim bens associados a símbolos de status. E status, em nosso tempo, não é mais fruto do saber ou do amor dos outros, mas da posse de produtos caros. Por que outro motivo alguém pagaria R$70 mil numa bolsa Louis Vuitton senão por puro símbolo de status? Para carregar coisas, compra-se uma sacola de R$2.

Então as pessoas passam a acreditar que são felizes caso possam satisfazer suas expectativas de consumo excitadas por essa superoferta. Isso gera numa perna a pirataria e, na outra, a violência.

A pirataria em nosso tempo não é roubo de carga, mas roubo de marca. É a tentativa venial, porém ilegal, de produzir o símbolo desejado e possuir o bom, bonito e barato. Essa é outra raiz da violência urbana, que não pode ser explicada apenas pela pobreza. A cidade cearense de Salitre tem uma renda per capita de um quinto da média nacional e, no entanto, passa dois anos sem ter nenhum homicídio. Na minha opinião, a raiz mais profunda da violência em nossa sociedade é o contraste entre a miséria e a opulência, vinculado às excitações das demandas de consumo. Mais ainda, as terríveis frustrações de se buscar a felicidade na posse de coisas, porque coisas não são fins, são meios para a felicidade. Sempre haverá novos padrões de consumo e produtos a acessar para tornar infeliz aquele que os deseja e não os possui.

Esse é nosso ambiente social e econômico atual. Se a esquerda fracassou, é porque não deu resposta adequada a ele. Como disse o ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica, “a esquerda falhou por criar consumidores e não cidadãos”. Por quê?

 

O consenso neoliberal matou a esquerda tradicional

Ao olhar hoje tanto para a direita liberal quanto para os tradicionais partidos socialdemocratas, a população do mundo democrático identifica a mesma prática globalista e neoliberal que tem piorado sua condição de vida há quarenta anos. Suas atuações no governo têm sido as de meros operadores do mesmo sistema. Além disso, ambos defendem hoje pautas liberais no campo do comportamento, o que torna ainda mais difícil a diferenciação entre eles.

A essência do consenso neoliberal é que o governo existe somente para administrar serviços públicos que não interessem à iniciativa privada, executar programas de renda mínima e operar para o capital financeiro, e que o Estado deve abrir mão de sua capacidade e papel de investimento e coordenação da economia.

Desesperada com a perda de renda, de perspectiva de futuro para seus filhos e de empregos para a tecnologia e a globalização, essa população, principalmente a europeia – que assiste ao progressivo desmonte de seu Estado de bem-estar social –, não vê mais na esquerda democrática, socialdemocrata, uma opção para defender sua nação e seu modo de vida da sanha do sistema financeiro internacional, agravada pelo estresse migratório produzido por suas guerras e pela luz ilusória de seu consumismo. Esse padrão de consumo, além de impossível, vai matar o planeta Terra, como o aquecimento global e as pandemias já estão mostrando.

Ao procurar opções, encontra nos remanescentes da velha esquerda revolucionária a promessa de um socialismo real que se mostrou autoritário e derrotado economicamente, portanto, sem apelo atual. Alternativamente, encontra também uma esquerda forjada no ambiente pós-maio de 1968, que trocou a pauta econômica da luta de classes pelas pautas identitárias, e como resultado se afastou ainda mais dos anseios da classe trabalhadora.

É esse o cenário que acredito ter se tornado fecundo para a extrema direita. Da mesma forma que nos anos 1930 na Europa, ela ressurge no mundo todo prometendo um Estado forte e o retorno a um glorioso passado das tradições perdidas que teria sido roubado pela financeirização da economia e pela mudança nas tradições culturais impostas pela imigração em massa e pela revolução tecnológica. O que entrega, no entanto, é xenofobia e a ampliação da desigualdade social.

Aqueles que votaram em Trump e a favor do Brexit não rejeitaram a democracia ou o Estado de Direito Liberal: eles rejeitaram a globalização, o livre-comércio e a imigração. Diante de um mundo em crise, querem proteger seu país em primeiro lugar, seus empregos imediatamente.

Incrivelmente, o fenômeno de extrema direita brasileiro, Bolsonaro, difere dos outros fenômenos mundiais por querer também destruir o Estado e a indústria nacional, entregando o país de bandeja para os EUA.”

 

 

“Surgiu nos EUA uma abordagem teórica e prática para a luta dessas minorias que buscava mudar a feição das demandas e práticas de parte desses movimentos. De uma luta por direitos e condições materiais igualitárias, portanto universais, a Identity Politics, ou New Left, deixa de lutar para apagar as fronteiras de gênero, etnia, cor e orientação sexual e passa a lutar para acentuar essas fraturas e reafirmá-las. Faz isso por meio de uma fragmentária luta por poder e afirmação de identidades, exigindo que os direitos passem a ser distribuídos diferentemente de acordo com gênero, etnia e orientação sexual. Ao fazê-lo, busca a reparação por genuínos históricos de opressão, mas o faz através da divisão oficial da sociedade em vários grupos.

Partindo do fato de que nossas instituições muitas vezes perpetuam privilégios e opressões sob a falsa promessa de tratamento igualitário, os seguidores dessa abordagem não atribuem essa perpetuação predominantemente à concentração de renda, mas ao gênero, à cor da pele ou à orientação sexual. “Privilégio” é definido como a vantagem de ter nascido num gênero, etnia ou orientação historicamente favorecidos, e “opressão”, definida como as limitações sofridas por ter nascido com uma identidade historicamente desfavorecida. Essa opressão e esse privilégio se exerceriam através da linguagem, da cultura, das instituições e do sistema econômico.

Setores da dita esquerda brasileira importaram essa abordagem norte-americana de forma completamente acrítica, ignorando as diferenças culturais entre nossos países, especialmente o perfil étnico das populações e seu grau de miscigenação. O PT, quando no poder, ao se ver sem margem para manter um discurso de esquerda diante da prostração ao ideário neoliberal e à concentração de renda no país, passou a explorar a generosidade do espírito solidário das pessoas altruístas e a dor dos, de fato, oprimidos. Com sua falta de visão e de projeto nacional, acabou por dar ainda mais centralidade discursiva e descontextualizada a essas pautas, e ao fazê-lo, ao longo do tempo, se enfraqueceu como força unificadora popular. Isso porque essa abordagem de luta pelos direitos das minorias baseada na acentuação das diferenças causa vários atritos entre os diversos grupos de identidade.

É absolutamente claro para quem conhece o Brasil com intimidade que nossas mazelas sociais têm definitivamente um corte étnico, de gênero e de idade. Por qualquer ângulo que se queira considerar: vítimas da violência, população carcerária, desigualdade de renda, citando três exemplos trágicos, tudo isso pesa muito mais fortemente sobre negros, caboclos, mulheres e jovens. Assim, a questão da identidade não é algo irrelevante no nosso debate, e, como ouvi em notável reflexão do professor Silvio Almeida, uma coisa é identidade, outra é identitarismo. O exemplo que ele citou foi o do Pelé. Para ele, Pelé foi essencial na afirmação da sua identidade, da sua autoestima, foi um fator motivacional para que superasse estigmas e preconceitos e se tornasse o vencedor que é. O simples fato de ver Pelé cortejado por reis e rainhas, sendo negro, foi um importante fator de construção da sua identidade. Mas, continua ele, dando a mim uma preciosa lição, boa parte dos movimentos que lutam pela causa negra fala mal do Pelé porque não teria o atleta assumido um discurso de defesa dos negros. E isso seria um equívoco do identitarismo. Me parece que o identitarismo é um esforço respeitável, oriundo de um genuíno sentimento de alteridade e solidariedade por pessoas órfãs pelo enfraquecimento da esquerda tradicional, a partir da queda do Muro de Berlim, da falta de um manual que a muitos dava segurança de buscar superar, na luta de classes, a desigualdade.

Esse é um debate extremamente delicado, porque nossa solidariedade à causa de todas as minorias, de todos os perseguidos e injustiçados não nos dá nenhuma vontade de diminuir a energia ou a forma com que cada um entenda melhor lutar. Mas uma coisa eu posso afirmar aqui e agora: por mais relevantes que sejam, a soma dos interesses identitários não é igual ao interesse nacional.

Acredito que essa luta, na qual o PDT é pioneiro no Brasil, deve ser feita dentro dos marcos do universalismo e da busca essencial da esquerda por igualdade. Mais do que isso, deve ser feita dentro de um projeto nacional de desenvolvimento, pois não se fazem políticas públicas contra a discriminação sem emprego, renda e tributos para sustentá-las. No fim das contas, o que permite a qualquer grupo social afirmar sua forma de vida em qualquer sociedade é sua emancipação econômica. E também isso não se faz sem desenvolvimento econômico.”

 

 

O melhor exemplo de projeto nacional de desenvolvimento que posso dar aqui é o de Singapura. Por que o melhor? Porque foi objeto da maior quantidade de mentiras e mistificações liberais. Não é improvável que você tenha ouvido falar que Singapura é um exemplo de sucesso do liberalismo econômico.17 Acho difícil imaginar alguma história mais mentirosa do que essa.

Singapura é uma cidade-estado localizada numa ilha do Sudeste Asiático, ao sul da Malásia. Ela tem um Estado tão forte e um desenvolvimento tão planejado que projeta até sua taxa de natalidade e regula o fluxo de imigrantes de acordo com as carências do mercado de trabalho.

Governada por um partido nacionalista e socialista desde sua independência, em 1959, o Partido de Ação Popular, Singapura tem um alto grau de regulação estatal na economia. O sistema de impostos é altamente progressivo (em que os mais ricos pagam proporcionalmente mais). Dona de dois dos oito maiores fundos soberanos do mundo (GIC e Temasek), seu Estado tem participação acionária ou propriedade em oito das dez maiores empresas do país. A habitação é política de Estado, e não de mercado, e a agência estatal para habitação é responsável por 80% dos imóveis construídos.18 A propriedade privada da terra quase não existe e o direito de posse da maior parte dos imóveis é de 99 anos.19 Além da habitação, o Estado controla todos os outros serviços essenciais. Energia, transportes, saúde, educação básica e superior são quase 100% estatais (com exceção da geração de energia e da operação de algumas linhas de transporte, que tem participação privada).

Mais ainda: também é disseminada a versão de que Singapura não possuiria previdência ou direitos trabalhistas, o que é somente mais um crime que os think tanks neoliberais cometem contra a opinião pública. Singapura possui um fundo de previdência de contribuição obrigatória do empregador e hoje tem mais direitos trabalhistas do que o Brasil, que adotou verdadeiras aberrações com a reforma trabalhista do Governo Temer. Em Singapura, a jornada de trabalho é de 44 horas semanais, há uma hora obrigatória para almoço, no mínimo um dia de descanso remunerado por semana, onze feriados nacionais pagos, quatorze dias de licença remunerada em caso de doença e sessenta dias em caso de internação.20

Singapura, assim como a China, não deve ser um modelo para nós em relação a liberdades individuais ou regime político, mas mais uma vez nos aponta o caminho universal para o desenvolvimento: poupança interna, Estado forte e regulador, crédito nacional, juros baixos, coordenação estatal e privada, política industrial, educação massiva e de qualidade e soberania.”

17 Há um ranking que supostamente fornece “índices de liberdade econômica”, o da Heritage Foundation, que foi construído com parâmetros que, em sua maioria, não tem relação com o neoliberalismo. Para a elaboração do ranking, usa-se critérios que na verdade definem pontuações altas para países que já estão na ponta econômica e, portanto, podem ter baixas taxas alfandegárias e câmbio livre. Outros parâmetros que medem direitos de propriedade, inflação, corrupção e burocratização também não têm relação com o neoliberalismo. Esses índices são as maiores fontes da difusão dessa ficção sobre Singapura.

18 “Public Housing – A Singapore Icon.” HDB. Disponível em: https://www.hdb.gov.sg/cs/infoweb/about-us/our-role/public-housing--a-singapore-icon

19 Singapore Government Agency. Disponível em: https://www1.sla.gov.sg/property-boundary-n-ownership/property-ownership. Acessado em 18 de maio de 2018.

20 Guide on Employment Laws – Ministry of Manpower. Disponível em: https://www.mom.gov.sg/~/media/mom/documents/employment-practices/workright/workright-brochure-for-employees.pdf

 

 

Ecologia para salvar o planeta

Estima-se que se o padrão de consumo do norte-americano fosse generalizado para toda a humanidade, precisaríamos de 4,5 planetas Terra para sustentá-lo. Mesmo sem generalizar o consumismo norte-americano, o Banco Mundial avalia que nosso consumo global hoje já é 1,5 maior que a capacidade da Terra de reproduzi-lo, e que se a população mundial chegar a cerca de 10 bilhões de pessoas em 2050 serão necessários quase três planetas Terra para sustentar o atual estilo de vida da humanidade.21

Desnecessário é lembrar que só temos uma Terra.

Não devemos ser ingênuos quanto aos alertas de insustentabilidade emitidos por esses certos organismos. Eles também são usados como instrumentos na luta contra nosso desenvolvimento.

Mas parece evidente que a Terra, há algum tempo, já passou de seu estado de equilíbrio. Estamos alterando significativamente nosso meio ambiente com consequências dificilmente previsíveis.

O cenário esboçado anteriormente se coordena com minha reflexão sobre os padrões de consumo excitados pela globalização e pelas novas mídias. E ele nos lembra de que a salvação ecológica de nosso planeta passa por uma reespiritualização da sociedade, seu retorno à vivência dos valores e à rejeição ao consumismo, que abordarei no próximo item.

Mas isso não será suficiente.

O avanço tecnológico também é parte indissociável da luta ecológica. Ele pode ser voltado para diminuir o impacto de nossas ações sobre o planeta, ou, até mesmo, revertê-las.

Mas acima de tudo precisamos eliminar aquilo que é uma das maiores causas de impacto ambiental: a miséria. Não que os pobres, eles mesmos, possam ser responsabilizados pela degradação urbana ou pelo ataque à floresta. A falta de saneamento também polui rios, lagoas e mares. A falta de dinheiro para comprar gás (como hoje assistimos no Brasil por causa da política de preços da Petrobras submetida à lógica do mercado) obriga as pessoas a cortar lenha para fazer comida. A falta de emprego qualificado força a expansão da fronteira agrícola.

Sem desenvolvimento não há preservação ecológica, pois para sobreviver os excluídos da economia têm que recorrer a formas mais primitivas e ineficientes de exploração dos recursos naturais.

O exemplo do Brasil talvez seja o mais importante para ilustrar essa tese. Um fato oculto nas disputas em torno da questão ambiental é o papel da desindustrialização na devastação de nossos biomas. Um país que vem reprimarizando aceleradamente sua economia continua a precisar de divisas para equilibrar sua balança de pagamentos. Sem o recurso das exportações de bens manufaturados de maior valor agregado, resta ao país essa contínua pressão que vivemos hoje para a expansão da fronteira agrícola e exploração mineral descuidadas. Por mais que a grande produtividade do agronegócio continue crescendo, uma economia baseada em exportação de commodities vai sempre ser refém das bruscas oscilações de preços. O resultado não é trágico apenas para a vida econômica, o meio ambiente também sente esse impacto.

Por mais engajado ecologicamente que seja um governo no Brasil, se não enfrentar o problema da desindustrialização, em médio prazo, a desorganização das finanças externas cuidará de recompor a correlação de forças em prol do desmatamento. Em última instância, só no enfrentamento do subdesenvolvimento e da dependência é que conseguiremos resolver de fato a questão ambiental brasileira. Do contrário, até podemos conseguir vitórias temporárias nessa área, mas a força dos ciclos econômicos mundiais, especialmente cruéis com os países subdesenvolvidos, promoverá retrocessos seculares. Industrializar para preservar deveria ser um dos lemas de quem luta pelo meio ambiente na periferia do capitalismo.

Entretanto, seja na periferia ou no centro do capitalismo, é tarefa progressista assumir a questão ecológica sem negar sua urgência insofismável para o futuro da humanidade e de toda a vida na Terra.”

21 ONU. “Banco Mundial: serão necessários três planetas para manter atual estilo de vida da humanidade.” Publicado em 19 ago. 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/banco-mundial-serao-necessarios-3-planetas-para-manter-atual-estilo-de-vida-da-humanidade/

 

 

O consumismo grotesco que infelicita nossa juventude hoje é uma verdadeira fábrica de infelicidade, alimentado por uma máquina publicitária que existe para criar carências que não existiam. Tal aberração só faz sentido numa sociedade que quer viver para criar e consumir o máximo possível de bens materiais.

Mas o objetivo último de uma economia e de um governo não é esse, e sim o de criar as condições para o nascimento e o sustento de seres humanos e de sua felicidade.

Como exemplo de uma de muitas ações que deveríamos fazer para ajudar nessa reespiritualização está o investimento maciço numa educação criativa, libertadora e contínua, que desenvolva o pensamento crítico e rejeite o niilismo disseminado em nossa sociedade.

A escola pública não é lugar para realizar revolução cultural ou doutrinação moral de nenhuma natureza, mas sim de transmissão do legado do conhecimento humano bem estabelecido.

Mas ela é também lugar para desenvolver as habilidades básicas de argumentação, raciocínio, crítica e solução de problemas de nossas crianças, e, por que não dizer, de nós mesmos, caso queiramos passar a vida em aprendizado contínuo.

E serão essas habilidades que propiciarão essa revolução cultural.

Pois a tarefa de reespiritualizar nossa cultura é política.

Como parte da luta ecológica, por exemplo, devemos generalizar o esforço de reflexão sobre o ato de consumo. Levar os cidadãos a se perguntarem sobre qualquer produto ou serviço não só “quanto custa?”, mas “preciso mesmo dele?”, “Quem aproveita comunitariamente meu ato de consumo? Minha região? Meu país? Minha comunidade?”, “Meu ato de consumo é fraterno à natureza na origem e no rejeito?”

Não deveríamos optar por um produto menos belo, barato ou mais caro caso ele tenha um adicional felicitante para mim, que é ajudar a dar renda à minha comunidade ou proteger a natureza?

Humanizar o capitalismo não é só criar um Estado de bem-estar social, mas proteger nossas crianças de uma cultura de consumo que cria carências artificiais e infelicidade. Para isso, temos que debater formas de desestimular o uso das novas tecnologias pela máquina de moer publicitária – produtora de desejos, carências, infelicidade, cultura da ostentação, sentimento de inferioridade, individualismo e indiferença à miséria.

Temos que salvar as novas gerações de uma vida sob estresse permanente causado, de um lado, por subemprego, exploração e insegurança de um mercado selvagem e, de outro, pelo massacre cientificamente planejado da enxurrada de imagens e sons publicitários que produzem a frustração e a infelicidade.

Ao mesmo tempo, é o Estado, e não o mercado, que deve buscar recompensar manifestações de altruísmo, generosidade e espírito cooperativo, porque a lógica do capitalismo nunca as recompensará.

Conquistar para o ócio e a vida na dimensão dos valores o tempo que a automação e a tecnologia da informação vão eliminar do trabalho humano é uma das principais tarefas do progressismo para ajudar nessa reespiritualização. E isso deve ser feito através da paulatina diminuição da jornada de trabalho.

E essas conquistas jamais serão medidas pelo PIB.

Precisamos julgar as sociedades mais pelo bem-estar atingido do que pela riqueza material produzida. Temos que produzir mais felicidade do que bens.

Não estou falando de religião, embora as virtudes da parcimônia, da austeridade, do amor ao próximo, do compromisso com a vida, da solidariedade com os mais pobres sejam pontos de absoluta convergência entre o que penso e o que pregam os melhores líderes espirituais e religiosos da humanidade.”

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