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domingo, 22 de maio de 2022

Aspectos do novo radicalismo de direita, de Theodor W. Adorno

Editora: Unesp

ISBN: 978-65-5711-008-9

Tradução e introdução: Felipe Catalani

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 104

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Sinopse: “Quem não quer falar do capitalismo, deveria calar-se sobre o fascismo.” Essa frase de Horkheimer, extraída de um texto clássico redigido durante a Segunda Guerra Mundial, ainda ressoa nesta análise adorniana de um novo radicalismo de direita que começa a emergir na Alemanha dos anos 1960. Como explicar tal aberração política no seio de uma democracia supostamente bem-consolidada, no auge da “era dourada” do capitalismo europeu? Conforme a boa tradição materialista, Adorno insiste em afirmar que tal fenômeno é menos um sinal de loucura, tolice ou “desinformação”, e mais um sintoma de uma transformação social objetiva em curso. Como um fantasma naquela sociedade pacificada, o potencial fascista aparece então como nada mais nada menos que uma transfiguração ideológica da teoria do colapso de Marx.



Aspectos do novo radicalismo de direita

  

“Os pressupostos sociais do fascismo ainda perduram. Senhoras e senhores, eu quero então partir daí: os pressupostos dos movimentos fascistas, apesar de seu colapso, ainda perduram socialmente, mesmo se não perduram de forma imediatamente política. Em primeiro lugar, penso na tendência ainda dominante de concentração do capital, que se pode eliminar do mundo pelas mais diversas artes da estatística, mas de cuja existência não se pode, seriamente, duvidar. Além disso, essa tendência de concentração ainda significa a possibilidade da desclassificação permanente de camadas que eram completamente burguesas de acordo com sua consciência de classe subjetiva e que querem fixar seus privilégios e seu status social, e possivelmente fortalecê-los. Esses grupos continuam a tender a um ódio ao socialismo ou àquilo que eles chamam de socialismo, isto é, transferem a culpa de sua própria desclassificação potencial não ao aparato que a causa, mas àqueles que se opuseram criticamente ao sistema no qual outrora eles possuíam status, ao menos segundo concepções tradicionais.”

 

 

“Porém, ao mesmo tempo, e aqui eu toco no caráter antagônico que tem o novo nacionalismo ou radicalismo de direita, há nele algo de fictício diante do agrupamento do mundo hoje em alguns blocos gigantescos nos quais as nações e os Estados individuais desempenham tão somente um papel subordinado. Na verdade, ninguém mais acredita totalmente nisso. A nação individual é extraordinariamente restringida em sua liberdade de movimento pela integração nos grandes blocos de poder. Mas não se deveria tirar daí a conclusão simplista de que, por isso, o nacionalismo, devido a seu caráter ultrapassado, não desempenharia mais nenhum papel decisivo. Pelo contrário, com frequência ocorre que convicções e ideologias, justamente quando elas não são mais de fato substanciais devido à situação objetiva, assumem então seu caráter demoníaco, seu caráter verdadeiramente destrutivo. Afinal, a caça às bruxas não ocorreu na época do alto tomismo, mas na época da Contrarreforma, e algo parecido ocorre hoje com o, se eu puder chamar assim, nacionalismo “pático”. Aliás, já na época de Hitler houve esse momento da forçação daquilo em que não se acredita totalmente. E isso já era possível observar na época: essa oscilação, essa ambivalência entre o nacionalismo simulado e a dúvida sobre ele, a qual então torna necessário disfarçá-la, de modo a, ao mesmo tempo, convencer a si e aos outros sobre ele.”

 

 

“Talvez eu possa dizer aqui, do ponto de vista da psicologia social – embora não tome essas coisas como questões primariamente psicológicas –, que, no ano de I945, o verdadeiro pânico, a verdadeira dissolução da identificação com o regime e com a disciplina não ocorreu, como foi o caso na Itália, mas foi algo que permaneceu coeso até o fim. A identificação com o sistema na Alemanha nunca foi de fato radicalmente destruída, e aí reside naturalmente uma das formas pelas quais esses grupos que eu mencionei agora mesmo podem se vincular a isso.

Ouve-se com muita frequência, em relação a essas categorias como “os eternamente incorrigíveis” e outros fraseados de consolo, a afirmação de que haveria em toda democracia algo como um resíduo de incorrigíveis ou de idiotas, uma assim chamada lunatic fringe, como dizem nos Estados Unidos. E, quando se diz isso, há aí um certo consolo quietista burguês. Creio que a isso só se pode responder: claro que em toda assim chamada democracia do mundo observa-se algo desse tipo, com intensidade variada, mas somente enquanto expressão de que a democracia, no que concerne ao conteúdo (o conteúdo socioeconômico), até hoje não se concretizou real e totalmente em nenhum lugar, tendo permanecido como algo formal. E, nesse sentido, poderíamos caracterizar os movimentos fascistas como as feridas, as cicatrizes de uma democracia que até hoje ainda não faz justiça a seu próprio conceito.”

 

 

“Eu gostaria de dizer também, em se tratando de corrigir certas concepções clichês sobre esses assuntos, que a relação desses movimentos com a economia é uma relação estrutural que existe naquela tendência de concentração e na tendência à pauperização. Mas isso não pode ser imaginado tanto no curto prazo e, quando se equipara simplesmente radicalismo de direita com os movimentos da conjuntura, pode-se chegar a juízos bastante falsos. Os êxitos do NPD1 na Alemanha já eram um tanto alarmantes antes da retração econômica, e de certo modo eles a anteciparam, ou, se quiserem, eles a descontaram. Eles anteciparam, por assim dizer, um medo e um terror que só então se agudizaram bastante.

Com essa expressão, da antecipação do terror, creio realmente ter tocado algo bastante central que, até onde posso ver, é muito pouco levado em conta nas visões correntes sobre o radicalismo de direita: a relação bastante complexa e difícil que se dá aqui com o sentimento de catástrofe social. Poderíamos falar de uma distorção da teoria do colapso de Marx que se dá nessa consciência bastante deformada e falsa. Por um lado, pergunta-se pela dimensão racional: “Como isso poderá continuar se houver algo como uma grande crise?” – e, para esse caso, esses movimentos recomendam a si mesmos. No entanto, por outro lado, eles possuem algo em comum com aquele tipo de astrologia manipulada de hoje, que é, para mim, um sintoma sociopsicológico extremamente importante e característico, pois eles de certo modo querem a catástrofe, eles se 20 nutrem com fantasias do fim do mundo, que, aliás, como sabemos a partir de documentos, também não eram estranhas à antiga claque dirigente do NSDAP.2

1 Nationaldemokratische Partei Deutschlands (Partido Nacional-Democrático da Alemanha), partido de extrema direita fundado em 1964. (N. T)

2 Nazionalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães). (N. T.)

 

 

“Se eu devesse falar de modo psicanalítico, diria que o desejo inconsciente de desgraça, de catástrofe, não é aqui a menor das forças mobilizadas a que esses movimentos fazem apelo. Mas eu gostaria ainda de adicionar a isso – e com isso falo àqueles que, com razão, são céticos em relação a uma interpretação meramente psicológica de fenômenos sociais e políticos – que esse comportamento de forma alguma é só psicologicamente motivado, ele tem também sua base objetiva. Para quem não vê nada diante de si e para quem não quer a transformação da base social, não sobra na verdade absolutamente nada, senão dizer, como o Wotan (Odin) de Richard Wagner: “Sabes o que Wotan quer? O fim”.3 A partir de sua própria situação social, ele quer a destruição [Untergang]. Mas ele não quer só a destruição de seu próprio grupo, ele quer, se possível, a destruição do todo.”

 

 

“Não se deve subestimar esses movimentos (radicais de direita) devido a seu baixo nível intelectual e devido a sua ausência de teoria. Creio que seria uma falta total de senso político se acreditássemos, por causa disso, que eles são malsucedidos. O que é característico desses movimentos é muito mais uma extraordinária perfeição dos meios, a saber, uma perfeição em primeiro lugar dos meios propagandísticos no sentido mais amplo, combinada com uma cegueira, com uma abstrusidade dos fins que aí são perseguidos. E creio que justamente essa constelação de meios racionais e fins irracionais, se eu puder expressar de forma abreviada, corresponde de certo modo à tendência geral civilizatória que resulta em uma tal perfeição das técnicas e dos meios, enquanto, na verdade, a finalidade geral da sociedade é ignorada. A propaganda é genial, sobretudo pelo fato de que, nesses partidos e movimentos, ela nivela a diferença, a diferença inquestionável entre os interesses reais e os falsos objetivos simulados. Assim como outrora com os nazistas, a propaganda é realmente a substância mesma da coisa. Se os meios são substituídos pelos fins em uma medida crescente, então pode-se quase dizer que, nesses movimentos de direita radical, a propaganda constitui, por sua vez, a substância da política. E não é nenhum acaso que os assim chamados líderes [Führer] do nacional-socialismo alemão, Hitler e Goebbels, eram justamente, em primeiro lugar, propagandistas; e a produtividade e a fantasia deles entrou na propaganda.”

 

 

“Naturalmente, não se deve escamotear o que há de manipulado e de forçado em todos esses movimentos. Eles têm algo de um fantasma de um fantasma. Seria falso e histérico se imaginássemos hoje na Alemanha que, por trás dessas coisas, há algo como um movimento de massas espontâneo. Entretanto, um tal movimento pode muito bem se formar se o potencial dado pelas condições objetivas for capturado e conduzido a situações agravantes. E, nesse caso, certamente é correto que os grupos extremistas, de acordo com a dinâmica que sempre se mostra nessas situações, ganharão o controle. Hoje, com certeza, não estamos nesse ponto, mas, por outro lado, não se podem tomar como invariantes os números sobre o potencial do radicalismo de direita, que aliás não são nada pequenos, publicados pelos pesquisadores de opinião. O fato de que não se acredita totalmente nessas coisas não torna as coisas melhores. Por um lado, isso contém a possibilidade à qual se deve vincular defensivamente – pode-se usar essa contradição e o fato de que não se acredita plenamente nessas coisas para confrontar essas tendências –, mas há aí a possibilidade e o potencial mesmo desses movimentos de crescerem ao ponto de se tornarem sistemas delirantes, e já não pode haver mais nenhuma dúvida de que os assim chamados movimentos de massa de estilo fascista possuem uma relação bastante profunda com os sistemas delirantes.”

7 No original, “anti-schwarz und anti-rot” [antinegro e antivermelho]: no sistema oficial alemão de identificação política, o negro é a cor da CDU (União Democrático-Cristã), e vermelho do SPD (Partido Social-Democrata alemão), embora “antivermelho” possa ter o sentido também de antiesquerda em sentido mais amplo. (N. T.)

 

 

“A única coisa que me parece realmente prometer algo – eu antecipo isso porque tomo como uma das questões centrais a oposição a esse movimento – é alertar os potenciais apoiadores do radicalismo de direita sobre suas consequências, tornar-lhes claro que essa política inevitavelmente conduzirá seus próprios apoiadores à desgraça e que essa desgraça já é refletida de antemão, tal como Hitler, já no início, empregou a expressão “então prefiro dar um tiro na própria cabeça”, repetindo-a mais tarde em todas as oportunidades. Ou seja, se quisermos seriamente confrontar essas coisas, deve-se referir aos interesses drásticos daqueles a quem a propaganda se dirige. Isso vale especialmente para a juventude, que deve ser alertada da disciplina militar sob todas suas formas, da opressão de sua esfera privada e de seu estilo de vida. E deve-se alertá-los do culto de uma assim chamada ordem, que por seu lado não se verifica pela razão; deve-se alertá-los sobretudo do conceito de disciplina, que é apresentada como um fim em si, sem que sequer a pergunta “disciplina para quê?” seja feita. Por exemplo, a fetichização de tudo que é militar, tal como aparece em belas expressões como “der soldatische Mensch”,9 se insere certamente nesse contexto.”

9 O homem militar, título de um livro de Werner Picht publicado na Alemanha em I940. Piche trabalhou no serviço de imprensa da Wehrmacht (Picht, Werner, Der soldatische Mensch, Berlim: Fischer, I940). (N. T.)

 

 

“Outra diferença a ser lembrada é o contexto político. Em todo caso, a Alemanha hoje não é mais sujeito político, nem mesmo só potencialmente, tal como foi o caso na época de Weimar. Há até mesmo a ameaça de que, por meio desse movimento, a Alemanha seja excluída da tendência política mundial em geral e acabe então realmente se provincianizando totalmente. Por um lado, isso coloca limites reais muito mais estreitos a esse tipo de política, a não ser que em outros países mais poderosos o radicalismo de direita consiga igualmente se impor. Por outro, é precisamente isso que produz a fúria. E essa fúria deverá então ser descontada sobretudo naquilo que se costuma chamar de “setor cultural”. Por isso, se eu puder só uma vez me calar a respeito dos interesses que se tem aí enquanto intelectual [geistiger Mensch], eu diria que, também do ponto de vista da política, devem ser observados com especial atenção os sintomas da reação cultural e da provincianização posta em movimento, uma vez que, simplesmente porque esses movimentos carecem de liberdade de movimento na política externa, esse é o âmbito no qual eles mais estão à vontade, e certamente tentam e vão tentar ainda mais ficar à vontade. Há aí toda uma série de inimigos designados. Por exemplo, a imago do comunista. Na República de Weimar era assim, o Partido Comunista era um partido numericamente bastante forte e a rivalidade política entre os nazis e os comunistas tinha em todo caso certa plausibilidade, apesar de que o significado real do que na época chamavam de ameaça comunista certamente era bastante exagerado diante da posição da Reichswehr.10 Hoje não há mais um partido comunista na Alemanha,11 e, assim o comunismo assumiu realmente uma espécie de caráter mítico, isto é, ele se tornou completamente abstrato, e esse peculiar caráter abstrato faz que, de novo, simplesmente tudo que de alguma forma não convém é subsumido a esse conceito elástico de comunismo e é rechaçado enquanto comunista. Por exemplo, 0 infame Kongo-Müller, um homem que ficou na Alemanha, um alemão que, dentre os mercenários que atuaram no Congo, teve um papel especialmente horroroso. Também ele declarou que, em qualquer lugar no mundo onde fosse necessário lutar contra o comunismo, ele iria se prontificar imediatamente, pois isso seria o sentido da democracia.

Bom, isso é separado de qualquer conhecimento do assunto. Comunismo tornou-se puramente uma palavra para assustar. Também o conceito de materialismo desempenha um papel como um conceito que assusta, em que se confunde de uma maneira bastante nebulosa o materialismo da busca por lucro e do interesse por vantagem material com a teoria materialista da história, e então agem como se aqueles que querem mudar esse sistema fossem justamente os materialistas vulgares que só querem ter mais posses.”

10 Reichswehr era o nome das forças armadas alemãs de 1919 até 1935, quando foi renomeada para Wehrmacht. (N. T.)

11 O Partido Comunista Alemão (KPD) foi proibido na Alemanha Ocidental entre 1956 e 1968. (N. T.)

 

 

“Agora, no que concerne à ideologia, ela é impedida pela legislação de exprimir-se plenamente. Pode-se dizer que todas as expressões ideológicas do radicalismo de direita são caracterizadas por um conflito permanente entre o não-poder-dizer e aquilo que, como disse um agitador recentemente, deve fazer a audiência ferver – e posso tranquilizá-los, isso não a fez ferver. Ora, esse conflito não é somente externo, mas a coerção à adequação às regras do jogo democrático significa também uma certa alteração nos modos de comportamento, e nessa medida há aí também um momento, como posso dizer, um momento de fragilidade que esses movimentos têm no estágio de seu retorno. Desaparece o que é abertamente antidemocrático. Pelo contrário: evocam sempre a verdadeira democracia e acusam os outros de antidemocráticos. E nas concessões às regras do jogo democrático há uma certa contradição. O elemento demagógico não pode mais se desdobrar de modo tão desinibido.”

 

 

“Também o verdadeiro entra a serviço de uma ideologia não verdadeira e que o truque essencial para resistir a isso consiste em denunciar o abuso da verdade pela inverdade. A técnica mais importante pela qual a verdade é colocada a serviço da inverdade é a de retirar observações verdadeiras ou corretas de seu contexto, isolá-las, como por exemplo quando dizem: “Antes de ele ter feito aquela guerra idiota, com o Hitler estava bastante bom para a gente”, sem que se veja que toda essa conjuntura entre I933 e I939 só foi possível por meio da frenética economia de guerra, da preparação para a guerra. Há diversos exemplos desse tipo. (...)

E isso foi enormemente eficaz, porque as pessoas tinham o sentimento de que, com esse movimento que quer abolir a liberdade, elas ao mesmo tempo alcançam novamente a posse da liberdade, da livre possibilidade de decisão, da espontaneidade.”

 

 

“Eu gostaria de repetir que no fascismo nunca houve realmente uma teoria formada, sempre foi algo sous-entendu; tratava-se de poder, de práxis sem conceito, e, por fim, de dominação incondicional. Diante disso, o espírito, como ele se imprime na teoria, é algo secundário. E justamente isso também proporcionou então a esses movimentos, do ponto de vista ideológico, aquela flexibilidade que se pode observar sob formas diversas. Ademais, reside também no espírito do tempo o predomínio de uma práxis sem conceito, e isso tem consequência para a propaganda.

Por fim, permitam-me dizer-lhes algumas coisas sobre a propaganda, que na verdade é de certo modo, como sugeri, o cerne, a coisa mesma. Essa propaganda serve menos para a disseminação de uma ideologia, que é demasiado pobre, como lhes disse, e mais para tornar as massas engajadas. A propaganda é, portanto, sobretudo uma técnica de psicologia de massas. Subjacente a isso está o modelo da personalidade fixada na autoridade, hoje tal como na época de Hitler ou nos movimentos da lunatic fringe, nos Estados Unidos ou onde for. A unidade reside nesse apelo à personalidade fixada na autoridade. Sempre se diz que esses movimentos prometem algo a todos, e isso está correto enquanto característica da ausência de teoria. Mas isso é falso na medida em que nesse apelo ao caráter fixado na autoridade há uma unidade bastante específica e acentuada. Os senhores nunca encontrarão uma afirmação que não corresponda ao esquema da personalidade fixada na autoridade. E justamente quando se descobre a estrutura do apelo à personalidade fixada na autoridade, os radicais de direita se enfurecem e eu diria que, em todo caso, isso é uma prova de que nessa estrutura há um ponto nevrálgico. As tendências inconscientes que alimentam a personalidade fixada na autoridade não são tornadas conscientes pela propaganda, pelo contrário, elas são ainda mais reprimidas no inconsciente, elas são artificialmente mantidas inconscientes. Recordo apenas a importância fundamental dos assim chamados símbolos, que são característicos de todos esses movimentos.”

 

 

“Trabalha-se o tempo todo com o acúmulo de dados, em especial com o acúmulo de números, aos quais em geral não se pode opor nada, e que é dito com este tom: “O quê? Mas isso toda criança sabe! E o senhor não sabe que na época o rabino Nussbaum queria que todos os alemães fossem castrados?”. Ou seja, esse tipo de história completamente maluca e fantástica. Eu acabei de inventar o exemplo, certamente, mas os argumentos são mais ou menos desse tipo. Ostentam conhecimentos que dificilmente podem ser verificados, mas que, justamente por sua dificuldade de verificação, dão um tipo especial de autoridade àquele que os enuncia. Creio que por isso será bom que estejamos de antemão especialmente atentos quando se opera com tais afirmações aparentemente bastante concretas. Isso está misturado com a famosa técnica de Hitler da mentira tosca.”

 

 

“Outro momento é a virada para dentro. Isto é, na resistência, tenta-se tomar consciência de que todo esse complexo da personalidade fixada na autoridade e da ideologia de extrema direita na verdade não tem sua substância nos inimigos designados, muito menos naqueles que são atacados, mas trata-se de momentos projetivos, ou seja, os verdadeiros sujeitos de um estudo, aqueles que devem ser compreendidos e transformados, são os radicais de direita, e não aqueles contra os quais eles mobilizaram seu ódio. Ora, senhoras e senhores, não sou tão ingênuo a ponto de acreditar que com essa virada para dentro seria possível alcançar imediatamente muita coisa no que concerne às pessoas em questão, mas não posso entrar agora nos pormenores do porquê. É da essência dessa síndrome que esse caráter fixado na autoridade seja difícil de ser abordado, que eles não permitam que nada se aproxime deles. Apesar disso – e peço que me perdoem se volto a falar de Authoritarian Personality – ficou demonstrado que, simplesmente ao fazer das personalidades que se comportam dessa forma e não de outra um problema sociopsicológico, refletindo sobre elas, sobre o nexo de sua ideologia e sua característica psicológica e psicossocial, ao tornar isso um problema, dissolve-se assim certa ingenuidade do clima social e ocorre certa desintoxicação. (...)

Por fim, devem-se apreender os truques de que falei, deve-se dar a eles nomes bastante drásticos, descrevê-los com precisão, descrever suas implicações e, de certa forma, tentar assim vacinar as massas contra esses truques, pois, por fim, ninguém quer ser um idiota, ou, como se diz em Viena, ninguém quer ser o “pateta” [“Wurzen”]. E o fato de que tudo isto deriva de uma gigantesca técnica de enganação [Wurztechnik] psicológica, de uma grande trapaça psicológica, isso deve ser completamente mostrado.

Bom, minhas senhoras e meus senhores, eu repito que estou consciente de que o radicalismo de direita não é um problema psicológico e ideológico, mas um problema muitíssimo real e político. Mas aquilo que é objetivamente falso, não verdadeiro de sua própria substância, o força a operar com meios ideológicos, isto é, nesse caso, com meios propagandísticos. E por isso, além da luta política e dos meios puramente políticos, ele deve ser enfrentado no seu próprio terreno. Mas não se trata de colocar mentira contra mentira, de tentar ser tão esperto quanto eles, mas de realmente contrapor-se a eles com uma força decisiva da razão, com a verdade realmente não ideológica.”

 

 

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Posfácio à edição alemã – Volker Weiß

 

 

“O pensamento central de sua palestra é uma variação da sua advertência dada em 1959 e até hoje bastante citada de que “a sobrevida do nacional-socialismo na democracia” é “mais ameaçadora que “a sobrevida de tendências fascistas contra a democracia”.”

 

 

“O saber de que se pode ser mais, mas não se é, ainda leva as pessoas a atos de narcisismo coletivo. Stefan Breuer resume esse fenômeno, que desempenha um papel já na conferência de Adorno sobre a “elaboração do passado”: “Na medida em que os indivíduos transformam o sujeito coletivo da nação ou o líder em um ideal e o dotam com qualidades fantásticas, eles realizam algo daquele grande eu arcaico, cuja realização na existência do indivíduo lhes é negada; ao mesmo tempo, eles se liberam, por meio de projeção, de suas próprias agressões ligadas ao ideal do eu, com a consequência inevitável de que o mundo se povoa com objetos perigosos e vingativos, contra o qual o sujeito, por sua vez, tem de se defender: o avesso das gratificações, que o ‘narcisismo socializado’ produz, é a mania de perseguição.”19

18 Horkheimer, Die Juden und Europa; em Dubiel; Sóllner orgs.), op. cit., p3 3-53, aqui p. 34.

19 Breuer, Adornos Anthropologie, Leviathan, v. 12, n. 3, p. 336-53, 1984, aqui p. 346ss.

 

 

“Esses aspectos marcam uma grande lacuna no debate sobre a revolta autoritária atual, que justamente não é marcada só pelo racismo. Antes, entram em jogo ressentimentos que se estendem, por exemplo, a socialistas e liberais. Os ameaçados pela desclassificação social com frequência deslocam a culpa pela miséria não ao aparato que a causa, mas àqueles que se opuseram criticamente relação ao sistema no qual outrora eles possuíam status. Aqueles que propõem outros modelos tornam-se objeto especial da fúria, como mostra a atual fixação da extrema direita com uma esquerda há décadas impotente. O bicho-papão de uma “Alemanha meia-oitista contaminada pela esquerda e pelos verdes”24 quase ditatorial mostra que as imagens tradicionais do inimigo podem espalhar seu terror mesmo sob condições sociais completamente alteradas. Diante da perda de tais categorias, a União Europeia é classificada como “EUSSR”, a República Federal Alemã como “DDR 2.0” e toda a paisagem política, até mesmo o conservadorismo democrático, é tida como “de esquerda”. O comunismo, que já em 1967 era mais imago que conceito e, portanto, descolado de todo conhecimento do assunto, continua a servir para a conjuração.

O entrelaçamento entre anti-intelectualismo, antimarxismo e antissemitismo, a bête noire de Adorno e conhecido desde o capítulo da Dialética do esclarecimento sobre o antissemitismo, continua a marcar o discurso. Ele torna-se hoje novamente virulento na figura do assim chamado marxismo cultural. Esse termo, tomado de empréstimo da extrema direita norte-americana como cultural marxism, assumiu nesse meio-tempo o legado da propaganda nazista sobre o “bolchevismo cultural”. Ele está espalhado por todo o mundo e constrói uma teoria da conspiração, cujo centro é, curiosamente, a própria teoria crítica.25

23 Eribon, Rückkehr nach Reims, p. 39.

24 Jörg Meuthen na convenção do partido da AfD de Stuttgart em 2016.

25 Cf. Weidel, Die Angst der Kulturmarxisten vor der Aufklärung und der Aflo, em Junge Freiheit online, 23 jan. 2018, disponível em: <https://jungefreiheit.de/debatte/kommentar/2018/ die-angst-der-kulturmarxisten-vor-der-aufklaerung-und-der-afd/>, último acesso em: 30 mar. 2019. O conceito de “marxismo cultural” também é central no manifesto “2083” do norueguês Anders Breivik, que cometeu um assassinato em massa em 2011. Sua concepção de mundo era inspirada pelo blogueiro norueguês Fjordman, cujos textos propagam igualmente uma luta contra o “marxismo cultural”. Depois do massacre de Breivik, eles foram traduzidos para o alemão: Fjordman, Europa verteidigen: Zehn Texte [Defender a Europa: dez textos] , organizado por Martin Lichtmesz e Manfred Kleine-Hartlage, Schnellroda, 2011. Robert Bowers, que é acusado de ter em 2018 assassinado onze pessoas na sinagoga de Pittsburgh, colocava-se igualmente em uma luta contra o cultural marxism. Cf Moyn, The Alt-Right’s Favorite Meme is 100 Years Old, New York Times online, disponível em: <https://wwvv.nytimes.com/2018/11/13/opinion/cultural-marxism-anti-semitism.html>, último acesso em: 16 abr. 2019.

 

 

“É absolutamente válida a afirmação de Adorno de que, nos movimentos de extrema direita, a propaganda constitui a substância da política. Aqui ele se vincula diretamente ao Prophets of Deceit [Profetas da farsa] de Leo Löwenthal, cuja análise da agitação fascista nos EUA, que era também um estudo parcial do grande projeto do IFS sobre o preconceito, ressalta o quão fundamental é, para a propaganda, a evocação de um estado de exceção.34 Já as descobertas de Löwenthal aniquilavam a esperança de que a extrema direita iria se moderar assim que ela tivesse se habituado a determinadas regras discursivas ou se integrado politicamente. O estímulo sistemático da personalidade autoritária é descrito por Löwenthal como uma psicanálise posta “de ponta-cabeça”. Vale para a técnica da agitação o mesmo que para a “cultura de massas” em geral: “Torna-se a pessoa neurótica e psicótica, e por fim dependente de seu assim chamado líder”.35

Adorno já havia apresentado os resultados de Löwenthal em um simpósio do psicanalista Ernst Simmel em 1944.36 Ele sabia que as destruições políticas produzidas pelos demagogos de direita não eram deslizes que podiam ser contidos, mas um cálculo. Para ele, não restavam dúvidas de que a propaganda fascista é conscientemente planejada e organizada com sua lógica deturpada e suas distorções fantasiosas”. Ela não segue “nenhuma lógica discursiva”, mas é “um tipo de fluxo organizado de ideias”, que mobiliza afetos.37 Isso torna sem sentido chamar o agitador à razão. O posterior lamento de Adorno, segundo o qual é preciso realmente estar já dominado pelo espírito do formalismo para não ver o que eles querem dizer, pode ser aplicado sem dificuldade às discussões de hoje.

O efeito da agitação é garantido pelo enquadramento da indústria cultural, ao qual ela mesma corresponde até no detalhe. Na era da internet, aparece com ainda mais evidência a combinação, constatada por Adorno, de uma extraordinária perfeição dos meios com uma completa abstrusidade dos fins. Muita atenção tem sido dada às suas formas de manifestação enquanto bots, trolls e fake news. Sob essa superfície, torna-se visível exatamente a constelação de meios racionais e fins irracionais, que para Adorno constitui, para além de tais excessos, uma tendência geral civilizatória. É ainda válida a ideia de que, sem uma reflexão sobre os mecanismos das informações e da cultura produzidas em massa, a resistência contra a propaganda permanece um esforço em vão, uma vez que a propaganda só pode funcionar nesse quadro. Diante dessa estrutura, o silêncio discreto ou a banalização, a tática do hush-hush*, não ajudam em nada.”

33 Horkheimer; Adorno, Dialektik der Aufklärung, p. 181.

34 Löwenthal, Falsche Propheten. Studien zur faschistischen Agitation, em Schriften 3, P. 11-159.

35 Idem, “Mitmachen wollte ich nie”. Gesprächt mit Helmut Dubiel, em Schriften 4, p. 271-98, aqui o. 294.

36 Adorno, Antisemitismus und faschistische Propaganda, em Simmel (org.), Antisemitismus, org. por Elisabeth Dahmer-Kloss, com um posfácio de Helmut Dahmer, p. 148-61. Ali, diz Adorno: “Dado que toda ênfase dessa propaganda é promover os meios, ela mesma se torna o conteúdo último”. [Na edição brasileira: Antissemitismo e propaganda fascista, em Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p. 140.]

37 Ibidem, p. 153. [ed. bras. p 143.]

* Hush-hush: Manter escondido, manter em segredo.

 

 

“Assim como seus predecessores históricos, a extrema direita contemporânea é capaz de combinar virtuosamente propaganda e técnica. O uso bem-sucedido dessa combinação nas eleições presidenciais de Trump nos EUA serve como modelo para os movimentos de direita na Europa, que desde então se americanizaram completamente no estilo e nos conteúdos.”

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