Editora: Civilização Brasileira
Tradução: Cristiano M. Oiticica
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 212
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Sinopse: Ver Parte I
“Chamberlain teve a ideia de apoiar-se nos
precedentes do passado para se defender dos ataques que lhe eram feitos pela
sabotagem das negociações. Disse que as negociações relativas à aliança
anglo-japonesa de 1903 haviam durado seis meses: a Entente anglo-francesa
de 1904 exigira nove meses de negociações e a Entente anglo-russa de
1907, quinze meses... A conclusão era clara; as negociações que, então, se
mantinham com a URSS duravam, apenas, quatro meses e meio. Que
era, pois, que se queria dela?46 É difícil de imaginar exemplo mais
claro de inatividade política do que esses argumentos do Primeiro-Ministro
britânico, em um momento no qual estava a ponto de se desencadear uma tormenta
histórica.
Apesar da indignação dos mais vastos setores
da opinião pública inglesa, Chamberlain continuou fiel a sua linha geral, sem
perder a esperança de atirar a Alemanha contra a URSS, conforme provavam todos
os atos do governo britânico, inclusive naquele instante tardio.”
46 Parliamentary
Debates. House of Commons, vol.
350, col. 2.023.
“O quadro geral das forças armadas das três
potências era o seguinte:
A França dispunha de 100 divisões, sem
contar a defesa antiaérea, a defesa costeira e as tropas aquarteladas na África;
havia, além disso, uns 200.000 combatentes da República Espanhola55
que haviam entrado na França depois da vitória de Franco e pedido seu
engajamento no exército francês. O armamento das forças francesas constava de
4.000 tanques modernos e de 3.000 peças de artilharia de grosso calibre, de 150
mm para cima (sem contar a artilharia de divisão). A frota aérea da França
tinha 2.000 aviões de primeira linha, dois terços dos quais eram modernos para
o nível daqueles tempos, entre eles caças com velocidade de 450 a 500 Km/h e
bombardeiros cuja velocidade oscilava entre 400 e 450 Km/h.
A Inglaterra tinha preparadas 6
divisões, podia transferir outras 9 para o continente “em prazo brevíssimo” e
acrescentar “no segundo escalão” mais 16 divisões: quer dizer, 32 divisões ao
todo. As forças aéreas da própria Inglaterra compreendiam mais de 3.000 aviões
de primeira linha.
A União Soviética dispunha, para lutar contra
a agressão na Europa, de 120 divisões de infantaria e 16 de cavalaria, 5.000
canhões pesados, 9.000 a 10.000 tanques e 5.000 a 5.500 aviões de combate.
Além disso, as três grandes potências tinham
a seu serviço Marinhas de Guerra entre as quais se destacava pelo seu
poderio a Esquadra britânica.56
Como vemos, as forças armadas dos eventuais
firmadores do pacto tripartido eram muito consideráveis e superavam de
longe as que tinham, então, a Alemanha e a Itália. Essas forças bastariam ou
teriam bastado, sem dúvida alguma, para conjurar a agressão fascista, mas com
uma condição iniludível: que os três governos quisessem, realmente, criar uma
frente única eficaz contra Hitler e Mussolini. O governo soviético tinha muita
vontade de chegar a essa frente única, mas não se pode dizer o mesmo,
absolutamente, do governo da França e, muito menos, da Inglaterra.”
55 A cifra de espanhóis era muito exagerada.
56 “Negociações das missões militares da
URSS, Inglaterra e França, em Moscou, em agosto de 1939”, revista La Vida
Internacional, Moscou, 1959, n.º 2, págs. 144-158; n.º 3, págs. 139-158.
“Que era que se podia fazer?
O governo soviético se deparou diante de um
agudo dilema: prosseguir nas negociações tripartidas com os governos inglês e
francês, que não desejavam, evidentemente, o pacto, ou procurar outros rumos
para reforçar a sua segurança?
Vinha à memória, involuntariamente,
impressionante episódio dos primeiros tempos da União Soviética.
Logo após a Revolução de outubro, o jovem
Estado Soviético, ainda não fortalecido, viu-se colocado ante a necessidade de
solucionar importante e difícil problema: como pôr fim à guerra em meio a qual
havia nascido? Da solução que se desse a esse problema dependia todo o futuro
da revolução e do povo soviético; mais ainda: todo o futuro da humanidade.
Na verdade, qual era a situação?
Na Rússia, acabava de ocorrer a Grande Revolução,
que se chocara com a furiosa resistência das velhas classes dominantes,
apoiadas por todo o mundo capitalista, e que herdara do regime czarista a grave
ruína econômica, bem como a ignorância das grandes massas populares. Para poder
manter-se e subsistir, a jovem República dos Sovietes, ainda fraca,
necessitava, sobretudo, de paz, ou, pelo menos, de “trégua”.
Como procedeu, então, o governo soviético,
dirigido por Vladimir Ilitch Lenin?
No famoso Decreto da Paz, de 8 de novembro de
1917, e nas subsequentes notas dirigidas a diversos governos, apelou, em
primeiro lugar, para todos os países beligerantes, propondo-lhes que cessassem,
imediatamente, as hostilidades e assinassem uma paz geral, justa e democrática,
sem anexações, nem tributos. O governo soviético achava que essa forma de
acabar com a guerra era a mais desejável, a mais condizente com os interesses
da classe operária e de toda a humanidade.
Sabe-se que a iniciativa do governo soviético
caiu, então, em terreno pedregoso. Nem a Alemanha, nem a Áustria-Hungria, nem a
Inglaterra, nem a França, nem os Estados Unidos deram importância ao apelo do
Estado soviético. Atenazados por luta de morte, prosseguiram a guerra durante
mais de um ano.
Como procedeu, nessa situação, o governo
soviético? Como procedeu Lenin?
O governo soviético não empreendeu o caminho
da “guerra revolucionária”, para o qual o empurravam os chamados “comunistas da
esquerda”, nem o de “nem paz, nem guerra”, que lhe recomendava Trotski;
escolheu outro caminho. Raciocinou assim: se, por motivos alheios à sua
vontade, não se podia conseguir paz democrática geral — que teria sido,
naturalmente, o melhor — pelo menos tinha que se preocupar em tirar, o quanto
antes, da guerra o próprio país. Isso tinha excepcional importância para salvar
a revolução e preservar a pátria do Socialismo. Se não se podia conseguir
“trégua” mediante a assinatura da paz geral, era preciso consegui-la, ao menos,
mediante paz em separado com a Alemanha. Sim, a Alemanha era, efetivamente, uma
potência imperialista agressiva. Que importava, porém? A Rússia soviética não
existia no vazio, mas se via cercada pelo mundo capitalista hostil. E já que,
apesar da aspiração soviética, a paz democrática geral era impossível naquele
momento, tinha-se de conseguir, pelo menos, uma “trégua” temporária mediante
acordo com o imperialismo alemão (mas com a condição iniludível, e claro, de
não se imiscuir nos negócios internos da Rússia Soviética).
E Lenin deu o passo decisivo que, para alguns
pareceu, então, apostasia dos princípios da Revolução de outubro, mas que foi,
na prática, manobra genial, justamente com base nesses princípios.
Nasceu, assim, a paz de Brest-Litovsk, paz
muito dura, com anexações e tributos à custa do povo soviético, paz má, paz
“grosseira”, como a qualificou Lenin. Entretanto, essa paz deu a República
Soviética o que ela mais necessitava, naquele instante: “trégua”, que, como
ficou demonstrado mais tarde, foi a premissa indispensável do pujante
desenvolvimento da URSS, nos decênios seguintes. A história justificou
plenamente a conduta de Lenin, nesses dias difíceis. Lenin revelou ser grande
mestre da causa revolucionária que não sacrifica a sua essência às
frases revolucionárias.65
Vinte e dois anos depois de se assinar a paz
de Brest-Litovsk, em 1939, o governo soviético viu-se, de novo, à frente de
importante e difícil problema. Certamente, durante o tempo transcorrido desde
então, haviam mudado muitas coisas no mundo e, em primeiro lugar, crescera
imensamente o poderio da União Soviética. Todavia, na situação de 1939,
concorriam não poucos elementos semelhantes aos que havia predominado em 1917.
Em 1939, a União Soviética via-se novamente
ameaçada por grande perigo: o perigo da agressão das potências fascistas,
principalmente, a Alemanha e o Japão. Ainda mais: existia o perigo de se criar
uma frente única capitalista contra o Estado soviético, visto que, segundo
mostrava claramente o desenvolvimento das negociações tripartidas, Chamberlain
e Daladier podiam colocar-se, a qualquer momento, ao lado das potências fascistas
e apoiar, de uma maneira ou de outra, a agressão à URSS. Era preciso conjurar
esse perigo a todo custo: mas como?
A melhor saída, à qual tendia o governo
soviético, com todas as forças e meios, era criar poderosa coligação defensiva
dos países não interessados no desencadeamento da Segunda Guerra Mundial.
Concretamente tratava-se, em primeiro lugar do pacto tripartido de assistência
mútua entre a Inglaterra, a França e a URSS. Nas páginas anteriores, mostramos
com suficiente força de convicção que o governo soviético enveredara, no
começo, precisamente por esse caminho. Fora ele que propusera a Inglaterra e a
França a assinatura de um pacto tripartido. E fora ele também que sustentara,
tenazmente, durante quatro longos meses, negociações com Londres e Paris para a
assinatura desse pacto, revelando paciência quase angélica.
Entretanto, a sabotagem sistemática de
Chamberlain e Daladier — os quais, como assinalamos repetidas vezes, cifravam
as suas esperanças no desencadeamento de uma guerra germano-soviética — fez
afundarem as negociações tripartidas, em agosto de 1939. A disputa relativa à
passagem das tropas soviéticas pelo território da Polônia e da Romênia não foi
mais que um último e definitivo elo da longa cadeia de desilusões precedentes.
Ficou absolutamente claro que o pacto tripartido de luta contra os agressores
era impossível, e não precisamente por culpa da URSS. Mesmo admitindo que, no
fim das contas, esse pacto pudesse ser assinado, surgia, antes de tudo, uma
pergunta: Quanto tempo seria ainda preciso para conseguir esse resultado? Não
chegaria tarde demais para deter a mão, já levantada, dos agressores? Porque a
terra da Europa já ardia debaixo dos pés! Vinha também outra pergunta, mais
importante ainda: como cumpririam a Inglaterra e a França o pacto assinado?
Acabavam de desfilar à nossa vista os dolorosos exemplos da Áustria,
Tchecoslováquia e Espanha. Os três países haviam sido simplesmente traídos pela
Inglaterra e pela França. Onde estava a garantia de que essas duas grandes
potências se portariam melhor, no cumprimento dos seus compromissos com a URSS?
Seria muito mais provável que Chamberlain e Daladier, com um ou outro pretexto,
nos voltassem as costas no momento crítico? Todo o fundamento dessas dúvidas se
viu confirmado três semanas mais tarde, quando a Alemanha atacou a Polônia.
Não, em agosto de 1939, não se podia confiar
na assinatura de um pacto tripartido! Valia a pena, nesse caso, continuar as
negociações tripartidas? Valia a pena fomentar nas massas a ilusão de que era
possível uma aliança defensiva da Inglaterra, França e URSS ante os agressores
fascistas? Não, não valia a pena.
Tinha que se pensar em outra coisa. E a
genial manobra de Lenin nos dias de paz de Brest-Litovsk dava resposta a
indagação do que se devia fazer.
No caso de cessarem as negociações com a
Inglaterra e a França, ao governo soviético se delineavam duas possíveis
perspectivas: a política de isolamento ou o acordo com a Alemanha. Entretanto,
a política de isolamento naquela situação, quando os canhões já disparavam nas
fronteiras da URSS, no Extremo Oriente (Hasan e Halhin-Gol!), quando
Chamberlain e Daladier faziam esforços inauditos para empurrar a Alemanha
contra a URSS, quando na própria Alemanha havia vacilações acerca da direção em
que se devia assestar o primeiro golpe; em situação assim, a política de
isolamento era extremamente perigosa, e o governo soviético repeliu-a com toda
razão. Restava uma só saída: o acordo com a Alemanha.”
65
As reflexões do general alemão Max Hoffmann, que participou da representação
alemã nas negociações de Brest-Litovsk, nos oferecem curiosa confirmação do
acerto da manobra de Lenin; confirmação — e estranho dizê-lo! — procedente dos
nossos inimigos. No seu livro, A guerra das possibilidades perdidas, Hoffmann
diz, em particular: “Tenho pensado muitas vezes se não teria sido melhor que o
Governo Imperial e o Alto Comando Militar tivessem refugado toda espécie de
negociações com as autoridades bolchevistas. Dando-lhes a possibilidade de
concluir a paz e, deste modo, satisfazer o apaixonante desejo das massas
populares, nós as ajudamos a tomar, firmemente, o poder e nele manter-se”. Hoffmann,
la guerra de las possibilidades perdidas, ed. em russo, Edit. do
Estado, 1925, pag. 160.
“Nenhuma das conversações dos representantes
soviéticos em Berlim com os diplomatas alemães continha, absolutamente, nada
que excedesse os limites da natural preocupação cotidiana em melhorar as
relações entre dois países que as têm muito tensas. Nem com microscópio se pode
nelas descobrir sintoma de pérfida conjuração contra a Inglaterra e a França.
À 20 de maio, registrou-se um acontecimento
muitíssimo importante: nesse dia, o embaixador alemão em Moscou, Schulenburg,
visitou o Comissário do Povo dos Negócios Estrangeiros da URSS e procurou
reatar as negociações comerciais germano-soviéticas, interrompidas em
fevereiro. Era uma evidente manifestação de agrado que a Alemanha fazia à URSS.
Que recebeu como resposta? O Comissário do Povo soviético, longe de manifestar
o menor entusiasmo por isso, declarou com bastante rispidez que toda a história
das precedentes negociações comerciais entre ambos os países produziam no
governo soviético impressão de falta de seriedade por parte da Alemanha, cujo
jogo visava, evidentemente, a fins políticos. Daí o Comissário do Povo tirava a
conclusão lógica de que, antes de reatar as negociações, devia-se criar a
necessária “base política”, isto é, melhorar as relações políticas entre ambos
os países.73
O informe de Schulenberg acerca dessa
conversa causou grande desalento em Berlim. A 21 de maio, o secretário de
Estado, Weizsaecker, telegrafou ao embaixador alemão em Moscou:
“Os resultados da sua discussão com Molotov
nos levam à seguinte conclusão: devemos esperar em silêncio para ver se os
russos exprimem o desejo de falar com maior clareza”.74
Este é o verdadeiro quadro das relações
germano-soviéticas em maio de 1939, conforme patenteiam até os documentos do
Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, tendenciosamente selecionados
por incumbência dos nossos adversários nos Estados Unidos. E Daladier
atreveu-se, depois disso, a afirmar gratuitamente que “desde o mês de maio, a
URSS havia mantido duas negociações: uma com a França e outra com a Alemanha”!
Entretanto, as negociações tripartidas
inquietaram enormemente a Alemanha hitlerista, e a “espera em silêncio” não
durou muito. Weizsaecker escreveu a Schulenburg, a 27 de maio: “Aqui (isto é,
em Berlim, — I. M.) sustentamos a opinião de que não será fácil prevenir a
combinação anglo-russa”.75 E a 30 de maio, por indicação especial de
Hitler, chamou Astajov e, depois de dizer-lhe que o estatuto da representação
comercial soviética em Praga afetava grandes problemas de princípio,
formulou-lhe, em toda a sua importância, a questão das relações políticas entre
a Alemanha e a URSS. Isso fazendo, Weizsaecker desenvolveu a seguinte
concepção: em Berlim, não se quer o comunismo e se acabou com ele dentro do país:
em Berlim, não se espera que em Moscou se queira o nacional-socialismo; mas as
diferenças ideológicas não devem ser obstáculo a que se mantenha entre ambos os
países relações práticas normais.
Era nova manifestação alemã a URSS, mas
Astajov reagiu a ela com muita cautela. As notas de Weizsaecker mostram que
Astajov lembrou ao seu interlocutor a desconfiança arraigada em Moscou,
relativamente a Alemanha hitlerista; todavia, como é lógico, declarou-se de
acordo com a opinião de Weizsaecker de que, apesar das diferenças ideológicas,
os dois países podiam normalizar completamente as suas relações; porque essa
era e é, justamente, um dos princípios fundamentais da política externa
soviética, em geral.
Mais importante ainda era que Moscou não
reagia de maneira alguma ao novo ato da ofensiva diplomática alemã. Durante o
mês de junho, mantiveram-se animadas negociações comerciais entre a Alemanha e
a URSS, cessando, porém, no fim do mês, por ser impossível superar as
discrepâncias existentes entre as duas partes. A URSS declarou que a posição
alemã não lhe era bastante favorável.
Apesar dessa falência, apesar de o governo
soviético continuar cauteloso em relação à conversa de 30 de maio de
Weizsaecker com Astajov, Schulenburg visitou, em 28 de junho, o Comissário do
Povo dos Negócios Estrangeiros da URSS e voltou a repetir, oficialmente, em
nome de seu governo, que a Alemanha desejava normalizar as relações entre os
dois países. Schulenburg assinalou uma série de fatos que, no seu modo de
pensar, provavam a disposição de Berlim de ir ao encontro da União Soviética:
assinatura de pactos de não-agressão, entre a Alemanha e os países bálticos,
mudança de tom da imprensa alemã relativamente a URSS, etc.
Isso coincidia com os desejos soviéticos e
significava progresso, favorável para nós, na política alemã; entretanto, o
Comissário do Povo soviético não manifestou, também nesse caso, nenhum
entusiasmo especial, mas, a julgar pelas próprias notas de Schulenburg,
respondeu, serenamente, que recebia as suas palavras com satisfação e
considerava necessário sublinhar que a política externa do governo soviético,
em consonância com as declarações dos seus dirigentes, tendia a cultivar as
boas relações com todos os países, o que dizia respeito também a Alemanha, com
a condição, é claro, de que houvesse reciprocidade.76
Passou, depois, um mês inteiro, o aziago mês
de julho, durante o qual os ingleses e franceses sabotaram, obstinadamente, a
unidade do pacto e do convênio militar. Contudo, a compilação citada não contém
um só documento que testemunhe a aproximação progressiva entre a URSS e
a Alemanha no terreno político. Apesar dessa sabotagem, apesar das crescentes
dúvidas do governo soviético acerca da possibilidade de assinar o pacto
tripartido, a URSS continuou firme nas negociações com a Inglaterra e a França,
abstendo-se de fazer a menor demonstração de simpatia à Alemanha.
Completamente diverso foi o comportamento de
Berlim. As negociações tripartidas e, em particular, o acordo quanto a enviar a
Moscou as missões militares inglesa e francesa, despertaram alarma, cada dia
maior, nos meios do governo hitlerista. Este examinou febrilmente e procurou
aplicar diversas medidas que deviam, no seu modo de pensar, frustrar ou, pelo
menos, retardar a assinatura do pacto tripartido. Na segunda quinzena de julho,
reatamos as negociações comerciais com a Alemanha, interrompidas três semanas
antes; dessa vez, o lado alemão acedeu com agrado aos desejos soviéticos.
A 26 de julho, Schnurre, por indicação direta
das altas esferas, deu em Berlim um banquete em honra de Astajov e do
representante comercial soviético na Alemanha, Babarin. Nele, Schnurre fez tudo
para demonstrar que eram perfeitamente possíveis as boas relações entre a
Alemanha e a URSS e até chegou a apontar, de maneira concreta, as etapas
consecutivas da respectiva melhoria. Afirmou, mais adiante, que a Alemanha
estava disposta a fazer com a URSS um acordo de longo alcance sobre todos os
problemas “desde o Báltico ao Mar Negro”.
Que responderam a isso os hóspedes soviéticos
de Schnurre? O próprio Schnurre diz, nas suas notas:
“Astajov, apoiado integralmente por Babarin,
considerou que o caminho traçado (por Schnurre. — I. M.) para a aproximação com
a Alemanha corresponde aos interesses vitais dos dois países. Não obstante, fez
finca-pé para que o ritmo do desenvolvimento venha a ser, provavelmente, muito
lento e gradual. A política externa nacional-socialista ameaça a União
Soviética... Astajov recordou o Pacto Anticomintern, “as nossas relações
com o Japão, Munique e a liberdade de ação que tivemos na Europa Oriental. As
consequências políticas de tudo isso se voltam, inevitavelmente, contra a
URSS... A Moscou não é fácil crer que a política da Alemanha, no que diz
respeito a União Soviética, tome outro rumo. A diferença de estado de espírito
só se pode produzir aos poucos”.77
Como vemos, os representantes soviéticos em
Berlim acolheram com grande reserva os cantos de sereia nazistas e, em todo
caso, não excederam em suas manifestações os limites de uma aspiração
absolutamente legítima: contribuir para melhorar as relações entre os dois
países.
Está aqui, agora, a curiosa apreciação da
atitude do governo soviético com relação às manifestações alemãs que
encontramos em telegrama de Weizsaecker a Schulenburg, datado de 29 de julho:
“Teria importância esclarecer se encontram
eco em Moscou as declarações feitas a Astajov e Babarin (durante o banquete de
28 de julho. — I. M.). Se o senhor tiver oportunidade de falar novamente com
Molotov, peco-lhe que o sonde nesse sentido... E se acontecer que Molotov abandone
a reserva que tem mantido até agora, pode dar o seguinte passo adiante (grifado
por mim. — I. M.).78
Assim, pois, na apreciação feita pelo lado
alemão, o governo soviético não fez eco, de abril a julho, a ofensiva
diplomática alemã.
Uma semana depois, a Alemanha deu novo passo,
e muito importante, em direção à URSS. A 3 de agosto, nos mesmos dias em que as
missões militares inglesa e francesa se preparavam sem pressa para partir rumo
a Moscou, Ribbentrop convidou Astajov para visitá-lo e lhe fez uma declaração
da maior importância. Na prática diplomática, o fato de que o “próprio’’
Ministro das Relações Exteriores receba em seu escritório um “encarregado de
negócios” significa que a gestão é de urgência e importância extremas. Ribbentrop
declarou que era possível transformar, radicalmente, as relações
germano-soviéticas à base de duas condições fundamentais: a) não ingerência
recíproca nos negócios internos, e b) renúncia (por parte da URSS — I.M.) à
política orientada contra os interesses alemães. Ribbentrop assegurou a Astajov
que o governo alemão estava predisposto a favor de “Moscou” e acrescentou que
se “Moscou” fosse ao encontro do governo alemão, “não haveria problemas do
Báltico ao Mar Negro que não pudessem ser resolvidos entre nós”.
Astajov, segundo as notas de Ribbentrop, foi
muito comedido nas suas respostas; não se comprometeu em absoluto e se limitou
a declarar que “a seu ver, o governo soviético desejava seguir política de
compreensão mútua com a Alemanha”. Isso, naturalmente, não contradizia em nada
com a possibilidade de assinar o pacto tripartido.
Depois de transmitir a Schulenburg o conteúdo
de sua conversa com Astajov, Ribbentrop acrescentou, para conhecimento do
próprio embaixador:
“O encarregado de negócios, que parecia
interessado, procurou, várias vezes, fazer recair a conversa sobre questões
mais concretas. Contudo, dei-lhe a entender que só estou disposto a ser mais
concreto no caso de o governo soviético declarar oficialmente que reconhece, em
princípio, a conveniência de dar um novo caráter as relações. Se Astajov
receber instruções nesse sentido, nós, de nosso lado, estaremos interessados em
concluir o quanto antes um acordo definitivo”.79
No dia seguinte, 4 de agosto, Schulenburg,
cumprindo as indicações de Ribbentrop, transmitiu ao Comissário do Povo dos
Negócios Estrangeiros da URSS tudo que Ribbentrop havia dito, na véspera, a
Astajov. Como reagiu o Comissário do Povo soviético às palavras do embaixador
alemão? Schulenburg informou a Berlim que o Comissário do Povo lhe havia
comunicado a opinião do governo soviético, favorável a assinatura de acordo
econômico entre os dois países; havia exprimido o critério de que a imprensa
das duas partes devia abster-se de manifestações que pudessem azedar as
relações entre eles, e reconhecido ser desejável o restabelecimento gradual dos
contatos no terreno cultural. Schulenburg escrevia, mais adiante:
“Passando, depois, à questão das relações
políticas, o Comissário do Povo declarou que o governo soviético desejava também
a normalização e a melhoria das relações mútuas. Não é culpa sua que as
relações tenham piorado. Ele (o Comissário do Povo. — I. M.) vê a causa da
piora, sobretudo, na assinatura do Pacto Anticomintern e em tudo o que
se tem dito e feito em relação a ele”.
Schulenburg tocou na questão da Polônia.
Disse que a Alemanha procurava resolver as suas divergências com a Polônia por
via pacífica. Entretanto, se a obrigassem a proceder de outra forma, levaria em
conta os interesses soviéticos. O Comissário do Povo respondeu que o ajuste
pacífico entre a Polônia e a Alemanha dependia, sobretudo, da Alemanha. Como se
vê pelas notas posteriores de Schulenburg, esta resposta aborreceu-o muito.
O embaixador alemão não deixou de se referir
às negociações tripartidas, ao que o Comissário do Povo soviético respondeu que
visavam a fim puramente defensivo.
Comentando essa conversa, Schulenburg
escreveu a Berlim que, a julgar por todos os sintomas, “o governo soviético se
sente agora mais inclinado a melhoria das relações germano-soviéticas;
entretanto, a velha desconfiança em relação a Alemanha continua muito forte”.80
Vemos, pois, que durante a primavera e o
verão de 1939, o governo soviético revelou plena lealdade nas relações com as
potências que participavam das negociações tripartidas. Não houve confabulação
secreta alguma com a Alemanha dirigida contra elas. Não houve, do lado
soviético, intenção alguma de formar bloco com Berlim por trás da Inglaterra e
da França e “trair” a Londres e Paris. Não houve nada que recordasse, sequer
remotamente, as conversações de Horace Wilson com Wohlthat. Até o mês de
agosto, as relações germano-soviéticas tiveram o caráter de relações
diplomáticas corriqueiras, com tintas, certamente, não muito “amistosas”. E as
conversações entre os representantes de ambos os governos foram também
conversações corriqueiras, daquelas que mantêm, todos os dias, em todos os
pontos da Terra, os ministros e os embaixadores sobre diversos problemas da
atualidade. Assim o provam, de maneira indubitável, os próprios documentos
compilados pelos nossos adversários nos Estados Unidos para denegrir ao máximo
o governo soviético.81
Só em agosto, quando as negociações
tripartidas definitivamente desmoronaram em consequência da sabotagem
anglo-francesa; quando se desvaneceu por completo a esperança de ser assinado
um pacto eficaz de assistência mútua entre a URSS, Inglaterra e França, o
governo soviético viu-se obrigado a fazer uma alteração geral de sua
política, coisa plenamente natural e legítima, se um governo
considera que circunstâncias alheias à sua vontade o obrigam a fazê-lo. Eis
porque, na primavera e no verão de 1939, não existia o jogo com pau de dois
bicos de que acusam o governo soviético os seus adversários estrangeiros, mas
um afã claro, firme e absolutamente leal para com a Inglaterra e a França de
concluir com elas um pacto tripartido contra os agressores. E se, em
definitivo, a ele não se conseguiu chegar, não é, em todo caso, sobre a URSS
que recai a culpa.
Porém, nem nessa situação, o governo
soviético quis queimar, de imediato, as pontes. A 3 de agosto, a Alemanha
(justamente a Alemanha, e não a União Soviética) fez, oficialmente, ao governo
soviético, propostas de longo alcance acerca da transformação radical das
relações entre os dois países. Isso devia levar primeiramente, à sua
normalização e, depois, de modo gradual, ao que, em linguagem diplomática, se
chama “amizade”. Semelhante perspectiva correspondia inteiramente às aspirações
pacíficas do governo soviético e sua realização podia fortalecer, em alto grau,
a segurança do povo soviético. Contudo, “Moscou”, também nesse caso, não se
deixou seduzir pelas tentações de Berlim. “Moscou” continuou pensando no pacto
tripartido e quis fazer mais um esforço, o último, para levar à prática a
melhor variante da luta contra a agressão. Apesar de todas as dúvidas
engendradas pela história precedente das negociações tripartidas, “Moscou” não
perdeu a esperança de que os governos da Inglaterra e França soubessem, talvez,
refletir profundamente e enveredar pelo caminho certo, embora fosse só cinco
minutos antes da catástrofe.
Por isso, “Moscou” esperou dez dias mais.
Berlim, impaciente, queria acelerar, de qualquer modo, os acontecimentos. Uma
semana após a conversa de Ribbentrop com Astajov, em 10 de agosto, Schnurre
insistiu, conversando com Astajov, em que se fixasse com a maior rapidez a
atitude da URSS ante as propostas que lhe havia feito a Alemanha.
“Moscou”, porém, continuou a se abster, como
vinha fazendo desde a conversa de Ribbentrop com Astajov a 3 de agosto, de
adotar decisão definitiva. “Moscou” esperou, enquanto as missões militares
inglesa e francesa faziam a travessia de Londres a Leningrado em navio
misto. “Moscou” esperou, enquanto se realizavam, na capital soviética, as
primeiras reuniões com as missões militares. Mas, quando no decorrer dessas
reuniões, se formulou o problema da passagem das tropas soviéticas pelos
territórios da Polônia e da Romênia (questão central de todo o acordo
militar); quando se viu claramente que nem as missões militares inglesa e
francesa, nem os governos inglês e francês davam resposta a esta questão;
quando Londres e Paris só reagiram com longo silêncio aos telegramas que lhe
foram enviados, por esse motivo, a longa paciência soviética acabou-se. Ficou
absolutamente claro que Chamberlain e Daladier eram incorrigíveis e que não se
podia criar com eles nenhuma segurança coletiva das potências pacíficas.
O melhor método de luta contra a agressão
fascista falhou por culpa exclusiva de Chamberlain e Daladier. Chegou o momento
de passar à única saída que ainda restava.
A situação do governo soviético, no decorrer
das negociações tripartidas, podia comparar-se a de um homem acossado cada vez
mais pela maré alta: a água lhe chega aos joelhos, depois à cintura, depois ao
peito, à garganta... Um momento mais, e a água lhe cobrirá a cabeça, se o homem
não der um salto rápido e decidido, capaz de fazê-lo alcançar uma rocha
inacessível à maré.
Com efeito, o perigo da Segunda Guerra
Mundial se aproximava mais e mais; em março e abril, apenas se vislumbrava; em
maio e junho, começou a adquirir contornos mais definidos; em julho, o seu
terrível alento começou a empeçonhar toda a atmosfera da Europa; e, em meados
de agosto, já ninguém duvidava de que faltavam poucos dias para que troassem os
canhões e caíssem as bombas dos aviões.
Não se podia esperar mais. Só então, em
meados de agosto, o governo soviético viu-se obrigado a resolver,
definitivamente, o que devia fazer. O dilema que tinha formulado antes se
converteu em amarga necessidade de entrar em acordo com a Alemanha. Os cinco
meses de sabotagem dos governos da Inglaterra e França, apoiados pelos Estados
Unidos, às negociações tripartidas não deixaram outra saída à URSS.”
72
NSR, pág. 5.
73 Ibid.,
pág. 6.
74 Ibid.,
pág. 7.
75 NSR, pág. 9.
76 NSR, págs. 26-27.
77 NSR, págs. 33-36.
78 NSR, pág. 36.
79 NSR, págs. 33-36.
80 NSR, págs. 40-41.
81 Aqui está um curioso testemunho,
procedente de fontes pouco amistosas, de que o governo soviético não cometeu
nenhum ato desleal. O embaixador norte-americano em Paris, William Bullit,
disse, entre outras coisas, em seu informe de 28 de junho de 1939, acerca da
conversa mantida com o Primeiro-Ministro Francês, Daladier: “Daladier disse que
não acreditava, naturalmente, nas declarações russas (acerca da lealdade das
relações com os ingleses e os franceses. — I. M.); mas nem as embaixadas, nem
os serviços secretos franceses e ingleses puderam receber, até agora,
informação alguma indicadora de que os russos mantenham negociações com a
Alemanha (Foreign Relations of the United States, 1939, vol. I. Wash.,
1956, pag. 278).
A coisa é bem simples: essas negociações não
existiram. Como ajustar essas declarações de Daladier às suas afirmações,
citadas anteriormente (veja-se a pag. 169 do presente volume), de que a URSS
mantinha negociações com a Alemanha “desde maio de 1939” por trás da França?