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sábado, 12 de fevereiro de 2022

A Cidade Antiga (Parte III), de Fustel de Coulanges

Editora: Editora das Américas

ISBN: 978-85-7232-780-0

Tradução: Frederico Ozanam Pessoa de Barros

Opinião: ★☆☆☆☆

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Páginas: 454

Sinopse: Ver Parte I



“O homem dos primeiros tempos estava continuamente à frente da natureza; os hábitos da vida civilizada ainda não haviam estendido um véu entre ela e o homem. Seu olhar encantava-se com suas belezas, admirava-se por suas grandezas. Gozava da luz, assustava-se com a noite, e quando via voltar “a santa claridade dos céus(1),” sentia-se reconhecido. Sua vida estava nas mãos da natureza: esperava a nuvem benfazeja, da qual dependia a colheita; temia a tempestade, que podia destruir-lhe o trabalho e a esperança de todo um dia. Sentia a todo momento a própria fraqueza, e a incomparável força de tudo o que o rodeava. Sentia perpetuamente um misto de veneração, de amor e de terror, por aquela natureza poderosa.”

(1) Sófocles, Antígone, v. 879. Os Vedas exprimem muitas vezes a mesma ideia.

 

 

Dessas lembranças e tradições tão precisas, que Atenas conservou religiosamente, parece-nos que surgem duas verdades igualmente manifestas: uma é que a cidade era uma confederação de grupos constituídos antes dela; outra é que a sociedade não se desenvolveu senão paralelamente à religião. Não se saberia dizer se foi o progresso religioso que causou o progresso social; o que é certo é que ambos apareceram ao mesmo tempo, e com notável concórdia.

Devemos considerar atentamente a excessiva dificuldade que havia nas populações primitivas para fundarem sociedades regulares. Não é fácil estabelecer um vínculo social entre criaturas humanas tão diversas, tão livres, tão inconstantes. Para dar-lhes regras comuns, para instituir decretos, e fazer aceitar a obediência, para fazer ceder a paixão à razão, e a razão individual à razão pública, é necessário certamente algo mais forte que a força material, algo mais respeitável que o interesse, mais seguro que uma teoria filosófica, mais imutável que uma convenção; algo que esteja igualmente no fundo de todos os corações, algo que se imponha aos mesmos.

Isso é a crença. Não há nada mais poderoso sobre a alma. Uma crença é a obra de nosso espírito, mas nós não temos liberdade para modificá-la a nosso bel-prazer. É nossa criação, mas nós não o sabemos. É humana, e nós a julgamos como um deus. É o efeito de nosso poder, e é mais forte do que nós. Está em nós, não nos abandona, fala-nos a cada instante. Se nos manda obedecer, obedecemos; se nos traça deveres, submetemos-nos. O homem pode muito bem domar a natureza, mas sujeita-se ao pensamento.

Ora, uma antiga crença mandava ao homem que honrasse os antepassados; o culto dos antepassados reuniu a família ao redor de um altar. Daí a primeira religião, as primeiras orações, a primeira ideia do dever, e a primeira moral; daí também a propriedade estabelecida, a ordem de sucessão fixada. Daí enfim, todo o direito privado, e todas as regras da organização doméstica. Depois essa crença progrediu, acompanhada pela sociedade. À medida que os homens sentem que têm divindades comuns, unem-se em grupos mais amplos. As mesmas regras, encontradas e estabelecidas na família, aplicam-se sucessivamente à fratria, à tribo, à cidade.

Abarquemos com o olhar o caminho percorrido pelos homens. Na origem, a família vive isolada, e o homem não conhece senão deuses domésticos, theòi patrõi, dii gentiles. Acima da família forma-se a fratria, com seu deus, theòs phrátrios, Juno curialis. Em seguida vem a tribo, e o deus da tribo theòs phylios. Chega-se, enfim, à cidade, e imagina-se um deus que abraça toda a cidade, theòs polièus, penates publici. Hierarquia de crenças, hierarquia de associações. A ideia religiosa foi, entre os antigos, o sopro inspirador e organizador da sociedade.

As tradições dos hindus, dos gregos, dos etruscos, contavam que os deuses haviam revelado aos homens as leis sociais. Sob essa forma legendária há uma verdade. As leis sociais foram obra dos deuses; mas esses deuses, tão poderosos e tão benfajezos, não eram nada mais que as crenças dos homens.”

 

 

“Não é raro encontrarmos entre os antigos fatos que nos espantam; seria isso motivo para falar em fábulas, sobretudo se esses fatos, que tanto se afastam das ideias modernas, concordam perfeitamente com as dos antigos? Vimos em sua vida privada uma religião que regrava todos os atos; vimos em seguida que essa religião os havia constituído em sociedade; depois disso, por que nos deveremos admirar se a fundação de uma cidade constituiu ato sagrado, e que o próprio Rômulo tenha obedecido a ritos que eram observados em toda parte?”

 

 

“Assim, em tempo de paz como em tempo de guerra, a religião intervinha em todos os atos. Achava-se presente em toda parte, como que envolvendo o homem. A alma, o corpo, a vida privada, a vida pública, os banquetes, as festas, as assembleias, os tribunais, os combates, tudo estava sob o império da religião da cidade. A religião regulava todas as ações do homem, dispunha todos os instantes de sua vida, fixava todos os seus hábitos. A religião governava a criatura humana com autoridade tão absoluta, que nada lhe escapava.”

 

 

Não foi, portanto, a força que constituiu os chefes e reis nessas cidades antigas. Nem seria verdade dizer-se que o primeiro rei foi apenas um soldado feliz. A autoridade derivava, como o diz formalmente Aristóteles, do culto do lar. A religião fez o rei na cidade, assim como constituíra o chefe de família em cada casa. A crença, a indiscutível e imperiosa crença, dizia que o sacerdote hereditário do lar era o depositário das coisas sagradas e o guarda dos deuses. Como hesitar em obedecer a tal homem? O rei era um ser sagrado; basiléis hierói — diz Píndaro. Nele se vê, não um deus propriamente, mas, pelo menos, “o homem mais poderoso para conjurar a cólera dos deuses(6),” o homem sem cuja assistência nenhuma prece seria eficaz, nenhum sacrifício seria aceito.

Essa realeza semirreligiosa e semipolítica estabeleceu-se em todas as cidades, desde seu nascimento, sem esforços da parte dos reis, sem resistência da parte dos súditos. Na origem dos povos antigos não vemos as flutuações e lutas que assinalam o doloroso nascimento das sociedades modernas. Sabemos quanto tempo foi necessário, depois da queda do império romano, para que se reencontrassem as regras de uma sociedade regular. A Europa viu durante séculos, princípios opostos disputando o governo dos povos, e os povos às vezes recusando qualquer organização social. Tal espetáculo não se vê nem na antiga Grécia, nem na antiga Itália; sua história não se inicia por conflitos; as revoluções somente apareceram no fim. Entre essas populações a sociedade formou-se lentamente, gradualmente, longamente, passando da família à tribo, e da tribo à cidade, mas sem choques, sem lutas. A realeza estabeleceu-se naturalmente, primeiro na família, depois na cidade. Não foi imaginada pela ambição de alguns, mas nasceu de uma necessidade que era manifesta aos olhos de todos. Durante longos séculos ela foi pacífica, honrada e obedecida. Os reis não tinham necessidade de força material; não tinham exércitos nem finanças; mas, sustentados por crenças que tinham grande poder sobre a alma, sua autoridade era santa e inviolável.”

(6) Sófocles, Édipo rei, 34.

 

 

“A lei antiga nunca teve considerandos. Por que haveria de tê-los? Ela não tinha necessidade de explicar suas razões; existe porque os deuses a fizeram. A lei não se discute, impõe-se; não é obra da autoridade; os homens lhe obedecem por que creem nela.”

 

 

A pátria não foi para o homem somente domicílio. Transpondo suas santas muralhas, ultrapassando os limites sagrados do território, ele não encontra mais nem religião, nem vínculo social de espécie alguma. Por toda parte, fora da pátria, ele está excluído da vida regular e do direito; por toda parte está sem deus, e fora da vida moral. Somente na pátria ele tem sua dignidade de homem e seus deveres. O cidadão não pode ser homem em outro lugar.

A pátria conserva o homem ligado por um vínculo santo. Deve amá-la como se ama uma religião, obedecer-lhe como se obedece a um Deus. “É necessário que se dê a ela inteiramente, entregando-lhe tudo, dedicando-lhe tudo.” — Deve amá-la gloriosa ou obscura, próspera ou desgraçada. Deve amá-la por seus benefícios, e amá-la ainda por seus rigores. Sócrates, condenado por ela sem razão, não deve amá-la menos por isso. É necessário amá-la, como Abraão amava a seu Deus, até sacrificar-lhe o filho. É necessário, sobretudo, saber morrer por ela. O grego ou o romano não morre apenas por devotamento a um homem, ou por questões de honra, mas deve sua vida à pátria, porque, se a pátria é atacada, a religião é a atacada. O cidadão combate verdadeiramente por seus altares, por seu lar: pro aris et focis(1); porque, se o inimigo se apoderar de sua cidade, seus altares serão derrubados, seus lares extintos, seus sepulcros profanados, seus deuses destruídos, seu culto, esquecido. O amor da pátria é a piedade dos antigos.”

(1) Daí a fórmula de julgamento pronunciada pelo jovem ateniense: Amynó ypèr tõn hierõn. — Pólux, VIII, 105. Licurgo, In Leocratem, 78.

 

 

“O lacedemônio Fébidas, em plena paz, apoderara-se da cidadela dos tebanos. Perguntaram a Agesilau a respeito da justiça dessa ação: “Examinai apenas se ela é útil — diz o rei — porque desde que uma ação é útil à pátria, é belo praticá-la”.”

 

 

“Os deuses — diz Teógnís — abandonaram a terra; ninguém mais os teme. A raça dos homens piedosos desapareceu; ninguém mais se importa com os imortais.”

 

 

“Seja qual for a forma de governo, monarquia, aristocracia, democracia, há dias em que a razão é que governa, e outros em que é a paixão. Nenhuma constituição jamais suprimiu as fraquezas e vícios da natureza humana. Quanto mais minuciosas as regras, mais elas acusam que o governo da sociedade é difícil e cheio de perigos. A democracia não podia durar senão à força de prudência.”

 

 

Procuramos pôr à luz esse regime social dos antigos, no qual a religião era senhora absoluta na vida particular e na vida pública; onde o Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula santa; onde o patriotismo era a piedade, o exílio uma excomunhão; onde a liberdade individual era desconhecida, onde o homem estava sujeito ao Estado por sua alma, por seu corpo, por seus bens; onde o ódio era obrigatório contra o estrangeiro, onde a noção do direito e do dever, da justiça e do afeto paravam nos limites da cidade; onde a associação humana era necessariamente limitada dentro de certa circunferência ao redor do pritaneu, e onde não se via a possibilidade de fundar sociedades maiores. Tais foram os traços característicos das cidades gregas e italianas durante o primeiro período de sua história.

Mas, pouco a pouco, como vimos, a sociedade se modificou. O direito e o governo se transformaram, ao mesmo tempo que a religião. Já nos cinco séculos que precedem o cristianismo, a aliança não era mais tão íntima entre a religião, de uma parte, e o direito e a política de outra. Os esforços das classes oprimidas, a decadência da casta sacerdotal, o trabalho dos filósofos, o progresso do pensamento haviam abalado os velhos princípios da associação humana. Fizeram-se incessantes esforços para libertar o homem do império da antiga religião, à qual o homem não podia mais crer; o direito e a política, como a moral, haviam-se pouco a pouco desembaraçado de seus laços.

Devemos notar apenas que essa espécie de divórcio provinha do desgaste da antiga religião; se o direito e a política começavam a ser algo independentes, é porque os homens deixavam de crer; se a sociedade não era mais governada pela religião, é porque sobretudo a religião não tinha mais forças. Ora, dia veio em que o sentimento religioso retomou vida e vigor, e em que, sob a forma cristã, a crença reconquistou o império sobre a alma. Não iria, no entanto, reaparecer a antiga confusão do governo e do sacerdócio, da fé e da lei?

Com o cristianismo, não somente o sentimento religioso foi reavivado, mas tomou ainda uma expressão mais alta e menos material. Enquanto outrora se haviam feito deuses da alma humana ou das grandes forças físicas, começou-se então a conceber Deus como verdadeiramente estranho, por sua essência, à natureza humana de uma parte, e ao mundo de outra. O divino foi decididamente colocado fora da natureza visível e acima dela. Enquanto que outrora cada homem fizera seu deus, tendo tantos deuses quantas as famílias e as cidades, Deus apareceu então como ser único, imenso, universal, animando sozinho os mundos, satisfazendo sozinho à necessidade de oração que há no homem. Enquanto outrora a religião, entre os povos da Grécia e da Itália, nada mais era que um conjunto de práticas, uma série de ritos que se repetiam sem ter nenhum sentido, uma sequência de fórmulas que muitas vezes já não se compreendiam mais, porque a língua envelhecera, uma tradição que se transmitia de idade em idade, e não recebia seu caráter sagrado senão de sua antiguidade, em vez disso a religião foi um conjunto de dogmas e um grande objetivo proposto à fé. A religião deixou de ser exterior, e limitou-se sobretudo ao pensamento humano. Não foi mais material, tornou-se espírito. O cristianismo mudou a natureza e a forma da adoração: o homem não deu mais a Deus alimento e bebida; a oração não foi mais uma fórmula de encantamento; foi um ato de fé e um pedido humilde. A alma manteve outras relações com a divindade; a crença dos deuses foi substituída pelo amor de Deus.

O cristianismo trazia ainda outras novidades. Não era a religião doméstica de uma família, a religião nacional de uma cidade ou de uma raça. Ele não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o início, chamara a si a humanidade inteira. Jesus Cristo dizia a seus discípulos: “Ide e ensinai a todos os povos.”

Esse princípio era tão extraordinário e tão inesperado que os primeiros discípulos tiveram um momento de hesitação; pode-se ver nos Atos dos Apóstolos que muitos deles se recusaram a princípio a propagar a nova doutrina fora do povo no qual nascera. Seus discípulos pensavam, como os antigos judeus, que o Deus dos judeus não queria ser adorado por estrangeiros; como os romanos e os gregos dos tempos anteriores, eles acreditavam que cada raça tinha seu deus, que propagar o nome e o culto desse deus era o mesmo que privar-se de um bem próprio e de um protetor especial, e que tal propaganda era ao mesmo tempo contrária ao interesse e ao dever. Mas Pedro replicou a seus discípulos: “Deus não faz diferenças entre os gentios e nós.” — São Paulo gostava de repetir esse grande princípio em todas as ocasiões e sob todas as formas: “Deus — diz ele — abre aos gentios as portas da fé. Não será ele Deus senão dos judeus? Não, certamente, pois o é também dos gentios... Os gentios são chamados à mesma herança que os judeus.”

Havia em tudo isso algo de muito novo, porque em toda parte, desde os primeiros tempos da humanidade, concebera-se a divindade como ligada especialmente a uma raça. Os judeus haviam acreditado no Deus dos judeus, os atenienses em Palas ateniense, os romanos em Júpiter Capitolino. O direito de praticar o culto era privilégio. O estrangeiro havia sido rejeitado pelos templos; o que não era judeu não podia entrar no templo dos judeus; o lacedemônio não tivera o direito de invocar Palas ateniense. É justo dizer que nos cinco séculos que precederam o cristianismo todo o homem que pensava já se insurgia contra essas regras muito restritas. A filosofia havia ensinado tantas vezes, desde Anaxágoras, que o Deus do universo recebia indistintamente as homenagens de todos os homens. A religião de Elêusis admitira iniciados de todas as cidades. Os cultos de Cibele, de Serápis, e de alguns outros haviam aceitado indiferentemente adoradores de todas as nações. Os judeus haviam começado a admitir o estrangeiro em sua religião; os gregos e os romanos admitiram-nos em suas cidades. O cristianismo, surgindo depois de todos esses progressos do pensamento e das instituições, apresentou à adoração de todos os homens um Deus único, um Deus universal, um Deus que era de todos, que não tinha mais povo escolhido, e que não distinguia nem raças, nem famílias, nem estados.

Para esse Deus não havia mais estrangeiros. O estrangeiro não profanava mais o templo, não maculava mais o sacrifício apenas com sua presença. O templo foi aberto para todos os que creem em Deus. O sacerdócio deixou de ser hereditário, porque a religião não era mais um patrimônio. O culto não foi mais mantido em segredo; os ritos, as orações, os dogmas não se mantiveram mais escondidos; pelo contrário, passou a existir um ensinamento religioso, que não somente se dá, mas que se oferece, que se leva aos lugares mais afastados, que vai em busca dos mais indiferentes. O espírito de propaganda substituiu a lei de exclusão.

Isso teve grandes consequências, tanto para as relações entre os povos como para o governo dos Estados.

Entre os povos, a religião não mandava mais o ódio; não obrigou mais o cidadão a detestar o estrangeiro; pelo contrário, pertencia à sua essência ensinar que ele tinha para com o estrangeiro, para com o inimigo, deveres de justiça, e até de benevolência. As barreiras entre os povos e as raças ficaram assim diminuídas; desapareceu o pomoerium — “Jesus Cristo — diz o apóstolo — derrubou a muralha da separação e da inimizade.” — “Os membros são muitos — diz ele ainda — mas todos fazem um só corpo. Não há nem gentio, nem judeu; nem circuncidados, nem incircuncisos; nem bárbaro, nem cita. Todo o gênero humano está disposto na unidade.” — Passou-se até a ensinar aos povos que todos descendiam de um mesmo pai comum. Com a unidade de Deus, a unidade da raça humana apareceu aos espíritos; e desde então passou a ser necessidade da religião proibir o homem de odiar os outros homens.

Quanto ao governo do Estado, pode-se dizer que o cristianismo transformou-o em sua essência, precisamente porque não cuidou disso. Nas velhas idades, religião e Estado eram uma só coisa; cada povo adorava a seu Deus, e cada deus governava o seu povo; o mesmo código regulava as relações entre os homens e os deveres para com os deuses da cidade. A religião dominava o Estado, e indicava-lhe os chefes pela voz da sorte ou dos auspícios; o Estado, por sua vez, intervinha no domínio da consciência, e punia toda infração aos ritos e ao culto da cidade. Em lugar disso Jesus Cristo ensina que seu império não é deste mundo. Separa a religião do governo. Como a religião não é mais terrestre, imiscui-se nas coisas da terra o menos possível. Jesus Cristo acrescenta: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” — É a primeira vez que se distingue tão nitidamente Deus do Estado. Porque César, nessa época era ainda o sumo pontífice, o chefe e órgão principal da religião romana; era o guarda e o intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o culto e o dogma. Sua pessoa era sagrada e divina; porque constituía precisamente uma das características da política dos imperadores, desejosos de reconquistar os atributos da antiga realeza, não esquecer esse caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes-fundadores. Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império queriam renovar, proclamando que a religião não é mais o Estado, e que obedecer a César não é o mesmo que obedecer a Deus.

O cristianismo acaba com os cultos locais, extingue os pritaneus, destrói definitivamente as divindades políadas. Faz mais ainda: não toma para si o império que esses cultos haviam exercido sobre a sociedade civil. Professa, que religião e Estado nada têm em comum; separa o que toda a antiguidade havia confundido. Podemos aliás notar que durante três séculos a nova religião viveu completamente fora da ação do Estado; soube passar sem sua proteção, e até lutou contra ele. Esses três séculos estabeleceram um abismo entre o domínio do governo e o domínio da religião. E como a lembrança dessa época gloriosa não podia ser esquecida, aconteceu que essa distinção tornou-se verdade vulgar e incontestável, que os esforços de uma parte do clero não foi capaz de desarraigar.

Esse princípio foi fecundo em grandes resultados. De uma parte, a política viu-se definitivamente livre das regras acanhadas que a antiga religião lhe havia traçado. Os homens puderam ser governados sem ter que se sujeitar a costumes sagrados, sem pedir a opinião dos auspícios e dos oráculos, sem conformar todos os atos às crenças e necessidades do culto. A política foi mais livre em seus métodos; nenhuma outra autoridade, com exceção da lei moral, a constrangia. Por outra parte, se o Estado dominou mais em certas coisas, sua ação também foi mais limitada. Toda uma metade do homem lhe escapava. O cristianismo ensinava que o homem não pertencia mais à sociedade senão em parte, que não está ligado a ela senão por seu corpo e por seus interesses materiais; que, sujeito a um tirano, deve submeter-se; que, cidadão de uma república, deve dar sua vida por ela; mas que, quanto à alma, o homem é livre, e não tem obrigações senão para com Deus.

O estoicismo já havia marcado essa separação, restituindo o homem a si mesmo, e criando a liberdade interior. Mas, do que não era nada mais que o esforço da energia de uma seita corajosa, o cristianismo fez a regra universal e inabalável das gerações seguintes; do que não era senão consolo de alguns, fez o bem comum da humanidade.

Se nos lembrarmos agora do que ficou dito acima sobre a onipotência do Estado entre os antigos, se pensarmos a qual ponto a cidade, em nome de seu caráter sagrado, e da religião que lhe era inerente, exercia império absoluto, veremos que esse princípio novo foi a fonte de onde brotou a liberdade do indivíduo. Uma vez que a alma se sentiu livre, o mais difícil estava feito, e a liberdade tornou-se possível na ordem social.

Os sentimentos e os costumes então se transformaram, assim como a política. A ideia que se fazia acerca dos deveres do cidadão se enfraquecera. O dever por excelência não consistia mais em dar o tempo, as forças e a vida ao Estado. A política e a guerra já não são tudo para o homem; todas as virtudes não estão mais compreendidas no patriotismo, porque a alma não tinha mais pátria. O homem sentiu que tinha outras obrigações além das de viver e morrer pela cidade. O cristianismo distinguiu as virtudes particulares das virtudes públicas. Diminuindo estas, elevou aquelas; colocando Deus, a família, a pessoa humana acima da pátria, e o próximo abaixo do concidadão.

Também o direito mudou de natureza. Em todas as nações antigas o direito estava sujeito à religião, recebendo dela todas as suas regras. Entre os persas e os hindus, entre os judeus, entre os gregos, os italianos e os gauleses, a lei estava contida nos livros sagrados ou na tradição religiosa. Por isso cada religião criara o direito à sua imagem. O cristianismo é a primeira religião que não pretendeu que o direito derivasse dela, ocupando-se dos deveres dos homens, e não de suas relações de interesse. O cristianismo não regulou nem o direito de propriedade, nem a ordem das sucessões, nem as obrigações, nem os processos. Colocou-se fora do direito, como fora de tudo o que fosse puramente terrestre. O direito, portanto, tornou-se independente; pôde procurar suas regras na natureza, na consciência humana, na ideia poderosa de justiça que está em nós. Pôde desenvolver-se com toda a liberdade, reformar-se, melhorar-se sem nenhum obstáculo, seguir o progresso da moral, dobrar-se aos interesses e necessidades sociais de cada geração.

A feliz influência da nova ideia é bem visível na história do direito romano. Durante os poucos séculos que precederam o triunfo do cristianismo, o direito romano já procurava libertar-se da religião, e aproximar-se da equidade e da natureza; mas procedia apenas por sutilezas e artifícios, que enervavam e enfraqueciam sua autoridade moral. A obra de regeneração do direito, anunciada pela filosofia estoica, continuada pelos nobres esforços dos jurisconsultos romanos, esboçadas pelos artifícios e sutilezas do pretor, não pôde obter êxito completo senão com a ajuda da independência que a nova religião dava ao direito. Podemos ver, à medida que o cristianismo conquistava a sociedade, os códigos romanos admitirem novas regras, não mais por subterfúgios, mas abertamente, e sem hesitação. Destruídos os penates domésticos, extintos os fogos sagrados, a antiga constituição da família desapareceu para sempre, e com ela as regras que dela derivavam. O pai perdeu a autoridade absoluta que seu sacerdócio lhe outorgara outrora, conservando apenas as que a natureza lhe confere para as necessidades da criança. A mulher, que o velho culto colocava em posição inferior ao marido, tornou-se moralmente sua igual. O direito de propriedade foi mudado em sua essência; os limites sagrados dos campos desapareceram; a propriedade não derivou mais da religião, mas do trabalho; a aquisição tornou-se mais fácil, e as formalidades do antigo direito foram definitivamente esquecidas.

Assim, apenas porque a família não possuía mais sua religião doméstica, sua constituição e seu direito foram modificados, do mesmo modo que, só porque o Estado não tinha mais sua religião oficial, as regras do governo dos homens foram modificadas para sempre.

Nosso estudo deve parar nesse limite que separa a política antiga da política moderna. Contamos a história de uma crença. Essa crença se estabelece, e a sociedade humana se constitui. Ela se modifica, e a sociedade humana atravessa uma série de revoluções. Ela desaparece, e a sociedade humana muda de aspecto. Esta foi a lei dos tempos antigos.”

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