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quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

A era do Capital Improdutivo (Parte II), de Ladislau Dowbor

Editora: Outras Palavras & Autonomia Literária

ISBN: 978-85-6953-611-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 316

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Sinopse: Ver Parte I



“Entre o engenheiro da Samarco que sugere o reforço na barragem em Mariana (MG) e a exigência de rentabilidade da Billiton, da Vale, da Valepar e do Bradesco, a relação de forças é radicalmente desigual. O que o gestor da Billiton na Austrália, gigante que controla inúmeras mineradoras no mundo, sabe da Samarco e do Rio Doce, onde eu brincava quando criança catando cascudos nas pedras?

Outro exemplo. Sexto grupo farmacêutico do mundo, a GSK está pagando 3 bilhões de dólares de multas por fraudes de diversos tipos em medicamentos. É uma empresa tecnicamente muito competente nas suas dimensões propriamente produtivas, com excelentes laboratórios e pesquisadores, que foram se multiplicando à medida em que o grupo foi comprando empresas pelo mundo afora.

A GSK vendeu Wellbutrin, um poderoso antidepressivo, como pílula de emagrecimento, o que é criminoso. Vendeu Avandia, escondendo os resultados das suas pesquisas que apontavam o aumento de riscos cardíacos provocados pelo medicamento. Vendeu Paxil, um antidepressivo usado para jovens com tendências ao suicídio que, na realidade, não tinha efeito mais pernicioso do que qualquer placebo, com efeitos desastrosos. A condenação da empresa só aconteceu porque quatro técnicos da GSK fizeram uma denúncia. Eles entendem de medicamentos, enquanto a cúpula da empresa entende apenas de negócios. (Time, 2012)

Como uma empresa especializada em saúde conseguiu manter uma imensa fraude em diversos produtos e em grande escala, durante anos de sucessivas gestões? Depois da condenação, das manifestações de indignação de usuários enganados e dos artigos na mídia, as ações da empresa subiram, contrariamente ao que se esperaria se a empresa fosse julgada pelas suas contribuições para a saúde. Com essas fraudes, a GSK obteve lucros incomparavelmente superiores aos custos do acordo judicial obtido em 2012, e os grandes investidores institucionais que detêm o grosso das ações, reagiram positivamente. Em outros termos: o poder financeiro no topo impõe ao grupo os seus critérios de rentabilidade. Critérios que são replicados nos diversos níveis da pirâmide corporativa.

Na publicidade da GSK, o que veremos são fotos de laboratórios com técnicos de bata branca, quando não uma mãe com um bebê nos braços, com mensagem de segurança e proteção. E como a publicidade faz viver a mídia, que se adapta e pouco informa, o círculo se fecha. Em termos de justiça e do julgamento do crime, a prática generalizada hoje é que os responsáveis não precisam reconhecer a culpa, recorrendo-se ao chamado settlement, o acordo judicial, neste caso 3 bilhões de dólares. Em 2015, assumiu um novo presidente na GSK, por acaso antigo presidente do escandaloso Royal Bank of Scotland. Não entende nada de farmácia, nem precisa. Não é este o negócio.

Com o poder muito mais nas mãos dos gigantes financeiros do que nas mãos das empresas produtoras, passou-se a exigir resultados de rentabilidade financeira. Isso impossibilita as iniciativas no nível técnico, por parte das pessoas que conhecem os processos produtivos da economia real e que poderiam preservar um mínimo de decência profissional e de ética corporativa. Gera-se um caos em termos de coerência com os interesses de desenvolvimento econômico e social, mas um caos muito direcionado e lógico quando se trata de assegurar um fluxo maior de recursos financeiros para o topo da hierarquia.

Criou-se um grande distanciamento entre a empresa que efetivamente produz um alimento por exemplo, e os diversos níveis de holdings a que ela pertence. Os investidores institucionais como fundos de pensão e outros, que pouco se interessam se existem ou não agrotóxicos ou antibióticos nos produtos vendidos, acompanham apenas o rendimento do mix de ações da sua carteira de aplicações. Com tal grau de concentração, hierarquização, burocratização e gigantismo, os grupos econômicos ditos “sistemicamente significativos” são simplesmente ingovernáveis em termos de assegurar a coerência das atividades com os interesses da sociedade. Eles tropeçam de processo em processo judicial, de crise em crise, tendo como único denominador comum de racionalidade a maximização dos resultados financeiros. Na visão de Joseph Stiglitz, trancaram-se em objetivos estreitos e de curto prazo, travando a economia.

Um fator muito importante da crise de responsabilidade é o ambiente fechado em que vivem essas corporações. Elas estão muito presentes na mídia, mas por meio da publicidade, que visa criar uma imagem positiva do grupo. Ao mesmo tempo, elas travam qualquer iniciativa da mídia de divulgar o que acontece nas empresas. A rigorosa proibição dos empregados de divulgarem o que se passa no interior do grupo, inclusive depois de dele saírem; a justificativa do segredo sobre os processos tecnológicos; a perseguição que sofrem os eventuais whistleblowers – empregados que denunciam atividades prejudiciais aos consumidores ou ao meio ambiente – tudo isso gera um ambiente fechado, sem nenhum controle externo ou transparência. Neste ambiente, fica extremamente difícil as corporações se sanearem internamente, reduzirem as burocracias, corrigirem as ilegalidades. Não há governança corporativa decente sem transparência. A autorregulação é uma ficção.

Esta fratura da cadeia de responsabilidade muda profundamente o mundo dos negócios. De certa maneira, numa empresa dos Ermírio de Moraes sabia-se quem era o responsável. Hoje, enfrentamos um departamento jurídico, isto depois de enfrentar o departamento de relações públicas. E descobrimos que há inúmeros níveis hierárquicos e finalmente pouca corda para segurar e puxar. Tudo é fluido. São gigantescos moluscos onde qualquer argumento penetra em meandros intermináveis e se perde no sorriso de um funcionário que diz que não é sua culpa. Na realidade, a culpa está diluída numa massa informe, o sistema. (...)

As tensões e as guerras entre corporações são reais, por exemplo, pela conquista de mercados ou domínio de tecnologias. Neste equilíbrio instável, o Estado poderia ter espaço para introduzir mecanismos de contrapesos e regulação. Porém, quando se trata de proteger o lucro, manter a opacidade, reduzir ou anular impostos sobre lucros financeiros ou regular os paraísos fiscais, as grandes corporações reagem como um corpo só através das instituições e representações que veremos em seguida. Neste caso os Estados, fragmentados e limitados na sua competência pelas fronteiras nacionais, não têm peso suficiente para enfrentar a ofensiva, por mais nefasta que ela seja para o desenvolvimento do país e as populações. Gigantes que geram o caos nas suas atividades, que se unem e arreganham os dentes quando ameaçadas nos seus privilégios, as corporações criaram simplesmente uma nova realidade política.”

 

 

“Estamos acostumados a ler denúncias sobre os paraísos fiscais, mas só muito recentemente começamos a nos dar conta do papel central que eles jogam na economia mundial. Não se trata de “ilhas” no sentido econômico, mas de uma rede sistêmica de territórios que escapam das jurisdições nacionais, permitindo que o conjunto dos grandes fluxos financeiros mundiais fuja das suas obrigações fiscais, escondendo as origens dos recursos ou mascarando o seu destino.

Todos os grandes grupos financeiros mundiais e os maiores grupos econômicos em geral estão hoje dotados de filiais (ou matrizes) em paraísos fiscais. Este recurso de extraterritorialidade (offshore) constitui uma dimensão de praticamente todas as atividades econômicas dos gigantes corporativos, formando um tipo de ampla câmara mundial de compensações, onde os diversos fluxos financeiros entram na zona de segredo, de imposto zero ou equivalente e de liberdade relativamente a qualquer controle efetivo. (...)

O volume de recursos em paraísos fiscais passou a ser mais conhecido desde a crise de 2008. Com a pressão das sucessivas reuniões do G20, e os trabalhos técnicos do TJN (Tax Justice Network), do GFI (Global Financial Integrity), do ICIJ (International Consortium of Investigative Journalists) e do próprio The Economist, além de vazamentos mais recentes sobre o Panamá, passamos a ter ordens de grandeza: são cifras da ordem de 21 trilhões a 32 trilhões de dólares em paraísos fiscais, para um PIB mundial de 73,5 trilhões (2013). O Brasil participa com algo como 520 bilhões de dólares, equivalente a 27% do PIB (estoque acumulado, não fluxo anual).”

 

 

“A lógica da acumulação de capital mudou. Os recursos, que vêm em última instância do nosso bolso (os custos financeiros estão nos preços e nos juros que pagamos), não só não são reinvestidos produtivamente nas economias como sequer pagam impostos. Não se trata apenas da ilegalidade da evasão fiscal e da injustiça que gera a desigualdade. Em termos simplesmente econômicos, de lucro, reinvestimento, geração de empregos, consumo e mais lucros – o ciclo de reprodução do capital –, o sistema trava o desenvolvimento. É o capitalismo improdutivo.”

 

 

A visão que temos, em grande parte fruto dos comentários desinformados ou interessados da imprensa econômica, é que as flutuações de preços das commodities resultam das variações da oferta e da demanda. Ou seja, mecanismos de mercado. Na realidade, não se pode imaginar que uma commodity com níveis tão amplos e equilibrados de produção e consumo como o petróleo sofra variações entre 17 e 148 dólares o barril em poucos anos, quando se trata sempre dos mesmos 95-100 milhões barris diários, com variações mínimas. É um comércio que lida com bens vitais para a economia mundial, mas cujos preços e fluxos resultam essencialmente de mecanismos de especulação econômica e de poder político.

O estudo de Schneyer cita o comentário de Chris Hinde, editor do Mining Journal de Londres: “A maior parte dos compradores de commodities no mundo são tomadores de preços (price takers). As maiores empresas de trading são formadoras de preços (price makers). Isto as coloca numa posição tremenda [de poder]”.

O fato é que um conjunto de produtos que constituem o “sangue” da economia, como alimentos, minérios e energia, não são regulados nem por regras, nem por mecanismos de mercado. E muito menos por qualquer sistema de planejamento que pense os problemas de esgotamento de recursos ou de impactos ambientais. A regulação formal, por leis, acordos e semelhantes, não se dá antes de tudo porque se trata de um mercado mundial e não existe um governo mundial. Os países individualmente não têm como enfrentar o processo. Quando a Argentina quis restringir as exportações de grãos para priorizar a alimentação da própria população, caiu o mundo em cima dela, como se a produção de alimentos não devesse satisfazer prioritariamente as necessidades alimentares da população. (...)

A oligopolização significa que, na prática, além das cinco operadoras principais, poucas são as que têm importância sistêmica. Isto significa que estas corporações têm como definir os preços e manipular a oferta de maneira organizada. Chamam isto de “mercado” na imprensa, mas não se trata de mercado no sentido econômico, de livre jogo de oferta e procura. Na ausência de concorrência efetiva, os mecanismos de manipulação tornam-se prática corrente. Um exemplo: em 2010, a Glencore controlava 55% do comércio mundial de zinco e 36% do comércio de cobre. Naquele ano, Vitol e Trafigura venderam 8,1 milhões de barris de petróleo por dia, o equivalente às exportações de petróleo da Arábia Saudita e da Venezuela juntas. (Schneyer, p.2) Para a população em geral, inclusive a bem-informada, a impressão é de que as variações de preço que atingem o nosso bolso são fruto de mecanismos imprevisíveis, e não de um grupo de corporações que simplesmente vêm buscar o dinheiro no nosso bolso. Quem vai culpar um mecanismo impessoal e anônimo?

Outro vetor de deformação é o segredo. As empresas gozam de pouca visibilidade mundial, apenas especialistas acompanham o que acontece neste pequeno clube. E ninguém tem autoridade formal para exigir os dados neste espaço globalizado. Dados necessários para dar visibilidade a práticas que seriam ilegais em qualquer país que tenha regulação contra manipulação do mercado, inclusive no Brasil. O resultado é a acumulação de imensas fortunas nas mãos de quem não produziu riqueza nenhuma, mas cobra pedágio sobre todas as transações significativas.”

 

 

Controle da informação

Outro eixo poderoso de captura do espaço político se dá por meio do controle organizado da informação, construindo uma fábrica de consensos sobre a qual Noam Chomsky nos trouxe análises preciosas.50 O alcance planetário dos meios de comunicação de massa e a expansão de gigantes corporativos de produção de consensos permitiram, por exemplo, que se atrasasse em décadas a compreensão popular do vínculo entre o fumo e o câncer, que se travasse nos Estados Unidos a expansão do sistema público de saúde, que se vendesse ao mundo a guerra pelo controle do petróleo como uma luta para libertar a população iraquiana da ditadura e para proteger o mundo de armas de destruição em massa. A escala das mistificações é impressionante.

Ofensiva semelhante em escala mundial, e em particular nos EUA, foi organizada para vender ao mundo não a ausência da mudança climática – os dados são demasiado fortes – mas a suposição de que “há controvérsias”, adiando ou travando a inevitável mudança da matriz energética.

James Hoggan realizou uma pesquisa interessante sobre como funciona essa indústria. A articulação é poderosa, envolvendo os think tanks, instituições conservadoras como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise Institute (AEI), o Information Council for Environment (ICE), o Fraser Institute, o Competitive Enterprise Institute (CEI), o Heartland Institute, e evidentemente o American Petroleum Institute (API) e o American Coalition for Clean Coal Electricity (ACCCE), além do Hawthorne Group e tantos outros. A ExxonMobil e a Koch Industries são poderosos financiadores, esta última aliás grande articuladora do Tea Party e da candidatura Trump. Sempre petróleo, carvão, produtores de carros e de armas, muita finança, muitos republicanos e a direita religiosa.51

Campanhas deste gênero são veiculadas por gigantes da mídia. No âmbito mundial, Rupert Murdoch assumiu tranquilamente ter sido o responsável pela ascensão e suporte a Margareth Thatcher nos anos 1980. Ele financiou um sistema de escutas telefônicas em grande escala na Grã-Bretanha e ainda usa a Fox para sustentar um clima de ódio de direita, sem receber mais que um tapinha nas mãos quando se revelam as ilegalidades que pratica.

No Brasil, 97% dos domicílios têm televisão, que ocupa três a quatro horas do nosso dia e está presente nas salas de espera, nos meios de transporte, um incessante bombardeio que parte de alguns poucos grupos. Com controle da nossa visão de mundo essencialmente por quatro grupos privados – os Marinho, Civita, Frias e Mesquita – o próprio conceito de imprensa livre se torna surrealista. Os impactos na Argentina, no Chile, na Venezuela e outros países são impressionantes em termos de promoção das visões mais retrógradas e de geração de clima de ódio social.

A vinculação da dimensão midiática entre o poder e o sistema corporativo mundial é em grande parte indireta, mas muito importante. As campanhas de publicidade veiculadas empurram incessantemente comportamentos e atitudes centrados no consumo obsessivo dos produtos das grandes corporações. Isto amarra a mídia de duas formas: primeiro, porque pode-se dar más notícias sobre o governo, mas nunca sobre as empresas,mesmo quando entopem os alimentos de agrotóxicos, deturpam a função dos medicamentos ou nos vendem produtos associados com a destruição da floresta amazônica.

Segundo, como a publicidade é remunerada em função de pontos de audiência, a apresentação de um mundo cor-de-rosa de um lado, e de crimes e perseguições policiais de outro, tudo para atrair a atenção pontual e fragmentada, torna-se essencial, criando uma população desinformada ou assustada, mas sobretudo obcecada com o consumo, o que remunera com nosso dinheiro as corporações que financiam estes programas. O círculo se fecha, e o resultado é uma sociedade desinformada e consumista. A publicidade, o tipo de programas e de informação, o consumismo e o interesse das corporações passam a formar um universo articulado e coerente, ainda que desastroso em termos de funcionamento democrático da sociedade.52 (p.217)”

50 Ver em particular o documentário Chomsky&Cia, legendado em português, https://www.youtube.com/watch?v=IHSe9FRGpJU

51 James Hoggan – The Climate Cover-up: the Cruzade to Deny Global Warming – ver http://dowbor.org/2009/12/climate-cover-up-the-cruzade-to-deny-global-warming-2.html/; sobre os financiadores, ver http://dowbor.org/2010/04/petroleira-dos-eua-deu-us-50-mi-a-ceticos-do-clima-6.html/; ver também o ver artigo de Jane Mayer The Dark Money of the Koch Brothers, 2016, http://www.truth-out.org/news/item/35450-the-dark-money-of-the-koch-brothers-is-the-tip-of-a-fully-integrated-network

52 Ver o curto e excelente comentário de George Monbiot, How Did We Get Into this Mess, no livro do mesmo nome – Verso, London/New York, http://www.monbiot.com/2007/08/28/how-did-we-get-into-this-mess/

 

 

A dimensão política dos paraísos fiscais

Vimos acima a dimensão absolutamente avassaladora que assumiram os paraísos fiscais, manejando um estoque da ordem de um quarto a um terço de PIB mundial. Proporção semelhante do nosso PIB, cerca de 520 bilhões de dólares, é a participação estimada de capitais brasileiros. Interessa-nos aqui a dimensão política do processo. Vimos no nosso caso, em 2016, o governo conceder vantagens e implorar a grandes grupos para repatriarem os seus recursos, e se felicitou na mídia o feito de ter conseguido que 46 bilhões de reais voltassem ao país, sobre um total da ordem de 1.700 bilhões. Uma miséria.

Na realidade a existência dos paraísos fiscais significa que qualquer decisão de política fiscal e monetária tem de se submeter à realidade de que se as grandes fortunas forem apertadas, têm a opção de simplesmente sumir do mapa do Ministério da Fazenda, ao se colocarem ao abrigo do segredo offshore. Mais importante ainda é o fato de que isso torna precário qualquer controle de evasão fiscal, de fraude nas notas fiscais, de mecanismos como transfer pricing, do próprio controle de quem é dono de que nos complexos sistemas de propriedade cruzada com segmentos enrustidos nos paraísos.

Tampouco é secundário que nesta era de expansão do crime organizado, em grande parte de colarinho branco, a repressão torne-se pouco eficiente, enquanto o crime financeiro passa a penetrar na própria máquina política e no Judiciário. Nos tempos da pirataria, existiam ilhas no Caribe onde os piratas eram considerados intocáveis, tendo portanto sempre uma garantia de refúgio, podendo inclusive trocar e negociar os produtos dos roubos. Francamente, os paraísos fiscais de hoje são pouco diferentes.

Mais grave é que gigantes financeiros como o HSBC e outros desempenhem um papel fundamental na gestão dos recursos da criminalidade, disponibilizando não só a sua expertise de acobertamento como suas poderosas assessorias jurídicas. A fluidez do dinheiro, hoje simples representação digital nos computadores, dinheiro imaterial que pode ser transferido e redirecionado em segundos entre diversas praças, torna a repressão cada vez mais precária. E o fato de o crime navegar no espaço planetário enquanto o controle está limitado aos espaços nacionais dificulta ainda mais o processo. A Interpol impressiona, mas apenas impressiona.

A redução da capacidade dos governos promoverem políticas monetárias e financeiras adequadas para fomentar o desenvolvimento impacta todas as nações. Isso gera a erosão da governança e a desmoralização da própria política e da democracia. Esses recursos são hoje vitalmente necessários para financiar uma reconversão tecnológica que nos permita de parar de destruir o planeta e assegurar a inclusão produtiva de bilhões de marginalizados, reduzindo a desigualdade que atingiu níveis explosivos.”

 

 

“A realidade é que a captura dos processos decisórios das empresas da economia real pelo sistema financeiro se generalizou. A capacidade de resistência dos tradicionais empresários produtivos não só é pequena, como desaparece quando a sua maior rentabilidade vem não da linha de montagem, mas das aplicações financeiras. Os governos passam, assim, a enfrentar resistências poderosas e articuladas quando tentam fomentar a economia. Recuperar a “confiança” do “mercado” não significa mais gerar melhores condições de produção, mas melhores condições de rentabilidade das aplicações financeiras. A produção, o emprego, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar das famílias não estão no horizonte das decisões.”

 

 

Será preciso lembrar que a ONU dispõe de 40 bilhões de dólares para todas as suas atividades, enquanto cada um dos gigantes financeiros SIFIs que vimos acima maneja em média 1,8 trilhão de dólares? O BIS, o FMI e o BM hoje, francamente, apenas acompanham o que acontece. Publicam relatórios interessantes, e por vezes surpreendentemente explícitos.

As chamadas agências de avaliação de risco Standard&Poor, Moody’s e Fitch, que concedem notas de confiabilidade a países e corporações, vendem nota melhor por dinheiro. Simples assim. Moody’s, condenada, aceitou pagar 864 milhões de dólares. Standad&Poor já pagou mais de 1 bilhão. Ninguém é preso, não precisa reconhecer culpa. Tudo limpo. O dinheiro sai das empresas que contribuem. Está nos preços que pagamos. Corrupção sistêmica, justiça cooptada (dinheiro pago absolve a culpa). E nos dão lições de responsabilidade fiscal e financeira.”

 

 

“Se há uma coisa que não falta no mundo são recursos. O imenso avanço da produtividade planetária resulta essencialmente da revolução tecnológica que vivemos. Mas não são os produtores destas transformações – desde a pesquisa fundamental nas universidades públicas e as políticas públicas de saúde, educação e infraestruturas, até os avanços técnicos nas empresas efetivamente produtoras de bens e serviços – que aproveitam. Pelo contrário, ambas as esferas, pública e empresarial, encontram-se endividadas nas mãos de gigantes do sistema financeiro, que rende fortunas a quem nunca produziu e consegue, ao juntar nas mãos os fios que controlam tanto o setor público como o setor produtivo privado, nos desviar radicalmente do desenvolvimento sustentável, hoje vital para o mundo.

Quanto à população de um país como o Brasil, que busca resgatar um pouco de soberania na sua posição periférica, o que parece restar é um sentimento de impotência. Perplexas e endividadas, as famílias vêm aparecer o seu ‘nome sujo’ na Serasa-Experian – aliás uma multinacional – caso não respeitem as truncadas regras do jogo. Na confusão das regras financeiras, contribuem para a concentração de riqueza e de poder com os altos juros que pagam nos crediários e nos bancos, com juros surrealistas da dívida pública, e pelas políticas ditas de “austeridade”, que as privam dos seus direitos.

Estas regras do jogo profundamente deformadas serão naturalmente apresentadas como fruto de um processo democrático e legítimo, porque está escrito na Constituição que todo poder emana do povo. Na prática, poderemos ter democracia, conquanto a usemos a favor das elites. A construção de processos democráticos de controle e a alocação de recursos constitui hoje um desafio central. Boaventura de Souza Santos fala muito justamente na necessidade de aprofundar a democracia. Mas, na realidade, precisamos mesmo é resgatá-la da caricatura que se tornou.”

 

 

“A expansão da dívida pública se generalizou pelo planeta, ao mesmo tempo que se reduziam os impostos sobre as fortunas e as operações financeiras. Os Estados Unidos têm hoje uma dívida da ordem de 15 trilhões de dólares. Como vimos, a dívida pública no mundo atinge 50 trilhões de dólares. São estoques da dívida, que rendem juros. Lembremos que o PIB mundial é da ordem de 80 trilhões de dólares, cifra que representa o fluxo anual, mas ajuda para ter uma ordem de grandeza, um ponto de referência. Lembremos ainda que o PIB do Brasil, sétima potência econômica mundial, é da ordem de 1,7 trilhão de dólares.

As operações financeiras, juros sobre dívidas e semelhantes, representam apenas transferências, movimento de papéis, mudança de quem tem direito sobre bens e serviços: “O nível do capital nacional em primeira aproximação não mudou. Simplesmente, a sua repartição entre capital público e privado inverteu-se totalmente” (p.294). Na realidade, “a dívida pública não constitui mais do que um direito de uma parte do país (os que recebem os juros) sobre a outra parte (os que pagam os impostos): portanto deve-se excluí-la do patrimônio nacional e incluí-la somente no patrimônio privado”. (p.185)

Trata-se de rentismo público (rentes publiques), que tem um impacto particularmente desastroso quando um país enfrenta dificuldades, porque os aplicadores em títulos públicos forçam os juros para cima, agravando a situação, como se viu na própria Itália, na Grécia, Espanha e tantos outros países. E evidentemente no Brasil.

O Estado, neste sentido, transformou-se em mais um vetor do aumento do patrimônio dos mais afortunados. “Existem duas formas principais de um Estado financiar os seus gastos: pelo imposto, ou pela dívida. De maneira geral, o imposto é uma solução infinitamente preferível, tanto em termos de justiça como de eficácia”. (p.883)

Esta opção pelo imposto é explicitada: “O imposto sobre o capital põe a carga nos que detêm patrimônio elevado, enquanto as políticas de austeridade buscam em geral poupá-los” (p.894). Dadas as relações de forças internacionais, a opção geral que se viu, na Europa em particular, foi a da política de austeridade, com restrições das aposentadorias e das políticas sociais, atingindo o elo mais fraco tanto em termos econômicos como políticos. Não é secundário que a prioridade do governo Trump seja excluir milhões de pobres americanos do acesso aos serviços de saúde, liquidando o chamado “Obamacare”.

O caso brasileiro é emblemático e poderia muito bem ilustrar as análises do pesquisador francês. A maior apropriação privada de recursos públicos no Brasil, além de legal, usa como justificação ética “o combate à inflação”: trata-se da taxa Selic. Como muitos sabem – mas a imensa maioria não sabe – a Selic é a taxa de juros que o governo paga aos que aplicam dinheiro em títulos do governo, gerando a dívida pública. A invenção da taxa Selic elevada é uma iniciativa dos governos nos anos 1990. A partir de 1996, passou-se a pagar entre 25% e 30% sobre a dívida pública, para uma inflação da ordem de 10%. A partir disto, os intermediários financeiros passaram a dispor de um sistema formal e oficial de acesso aos nossos impostos. Isso permitiu ao governo comprar, com os nossos impostos, o apoio da poderosa classe de rentistas e dos grandes bancos situados no país, inclusive dos grupos financeiros transnacionais. Assim, os governantes brasileiros organizaram a transferência massiva de recursos públicos para grupos financeiros privados.

Veremos este mecanismo em detalhe mais adiante, ao analisarmos a dinâmica particular que este processo assumiu no Brasil. Para que fique clara a dimensão do mecanismo, veja a explicação de Amir Khair, um dos melhores especialistas em finanças do país: “O Copom é que estabelece a Selic. Foi fixada pela primeira vez em 1º de julho de 1996 em 25,3% ao ano e permaneceu em patamar elevado, passando pelo máximo de 45% em março de 1999, para iniciar o regime de metas de inflação. Só foi ficar abaixo de 15% a partir de julho de 2006, mas sempre em dois dígitos até junho de 2009, quando devido à crise foi mantida entre 8,75% e 10,0% durante um ano”.67

Em 2015, cerca de 500 bilhões de reais (9% do PIB) foram tirados dos nossos impostos e transferidos essencialmente para bancos e outros “investidores”. E se trata, como se constatou na Grécia de maneira mais escandalosa, de um processo cumulativo, pois grande parte dos juros que o Estado não consegue pagar é transformada no aumento do estoque da dívida. Gera-se uma monumental transferência de recursos públicos para rentistas. Além de nos custar muito dinheiro, isso desobriga os bancos de realizar investimentos produtivos que gerariam produto e emprego.

É muito mais simples aplicar em títulos: liquidez total, risco zero. Realizar investimentos produtivos, financiando uma fábrica de sapatos, por exemplo, envolve análise de projetos, acompanhamento, enfim, atividades que vão além de aplicações financeiras. No mínimo, seria o que os intermediários deveriam fazer: fomentar, irrigar as atividades econômicas, sobretudo porque estão trabalhando com o dinheiro dos outros. Mas, tecnicamente, o que eles fazem é a esterilização da poupança. Tiram o dinheiro do circuito econômico, transferindo-o para a área financeira.

No nosso caso, a justificação política é que se trata, ao manter juros elevados, de proteger a população da inflação. Neste ponto, o argumento de Piketty coincide com o que Amir Khair e outros têm repetido: “A inflação depende de múltiplas outras forças, e nomeadamente da concorrência internacional sobre preços e salários”. (p.905) Mas, para uma população escaldada com inflações passadas, o argumento é poderoso, ainda que falso. Com um massacre midiático impressionante, os juros altos aparecem como bons (nos protegem da inflação), enquanto os impostos aparecem como negativos (inchaço da máquina pública e semelhantes). Na prática, os mais afortunados que deveriam pagar os seus impostos aplicam na dívida pública e fazem render o que deveriam devolver à sociedade.

O absurdo de se utilizar o pretexto da inflação para elevar a taxa de juros só faz sentido quando temos uma inflação de demanda, ou seja, quando há muita pressão de consumo sem que os produtores consigam aumentar a produção em ritmo correspondente, gerando a chamada economia aquecida. Ao se elevar os juros, que atraem recursos para aplicações financeiras em vez de consumo, a economia ‘esfria’. Naturalmente, no caso brasileiro, em que os empresários produtivos não sabem o que fazer com os seus estoques parados, o argumento não faz nenhum sentido. Não é argumento, é pretexto. A grande mídia e até economistas apoiarem tal raciocínio é simplesmente vergonhoso.

As análises que o livro de Piketty nos traz sobre problema da dívida pública apontam ainda um outro problema: o caos financeiro gerado. Chipre é parte da União Europeia, no entanto, ninguém tinha informações precisas sobre o tipo de origem ou interesses dos detentores da sua dívida pública. De certa forma, esses grupos são donos de parcelas do sistema público. Em Chipre, revelou-se que são dominantemente oligarcas russos, e que desarticularam completamente as tentativas do país de equilibrar as suas contas. E mais: de ponta a ponta em seu trabalho, Piketty nos traz exemplos da ausência geral de transparência sobre os estoques e fluxos financeiros. “Os países não dispõem nem de transmissões automáticas de informações bancárias internacionais nem de cadastro financeiro que lhes permita repartir de forma transparente e eficaz os ganhos e os esforços.” (p.908)

O sistema financeiro atua no planeta, os Estados atuam em espaços delimitados por fronteiras nacionais. As próprias finanças públicas, como resultado, se vêm jogadas na ciranda. A ideia mestra que sobressai é que a aplicação financeira, o mover papéis, rende mais do que produzir. O resultado evidente é que o dinheiro vai correr para onde rende mais, engordando as fortunas financeiras, e travando as iniciativas que dinamizam a economia, como o consumo das famílias, o investimento empresarial e os investimentos públicos nas áreas sociais e de infraestruturas. O desequilíbrio entre quem produz e quem lucra torna o sistema inoperante, ou no mínimo muito truncado, perdendo-se o imenso potencial de avanço que as modernas tecnologias poderiam proporcionar. Enfrentar as finanças improdutivas constitui hoje o principal vetor de resgate da produtividade sistêmica do país.”

67 Amir Khair, O Estado de São Paulo, 9 de setembro de 2012; ver também A Taxa Selic é o Veneno da Economia, http://criseoportunidade.wordpress.com/2014/04/09/a-taxa-selic-e-o-veneno-da-economia-entrevista-especial-com-amir-khair-abril-2014-2p/

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