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sábado, 23 de outubro de 2021

O tempo das catedrais: a arte e a sociedade (980-1420) (Parte V), de Georges Duby

Editora: Estampa

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: José Saramago

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 316

Sinopse: Ver Parte I



“Contudo, à boca do palco, o teatro da devoção apresenta aos homens uma figura central, a de Deus. Deus em três pessoas. Numerosas confrarias colocaram-se no século XIV sob a invocação da Trindade. Pintores e escultores receberam, por consequência, ordem para figurar as três pessoas divinas. Nos seus extremos mais aventurosos, a ala mercantil do cristianismo punha em evidência a terceira delas, o Espírito Santo. Muitos fiéis pensavam então, com os Fraticelli, que o reino dele chegara. Todos lhe atribuíam o governo das relações entre a alma e o poder divino. Nas imagens da Trindade, porém, a pomba do Espírito Santo nunca é mais do que uma figura acessória, como um traço de união lírico. O próprio Pai não constitui mais do que uma decoração de fundo, uma espécie de trono vivo. No centro da composição ergue-se o Filho crucificado. Depois de cem anos de impregnação franciscana, a arte figurativa do século XIV dispõe-se em redor dum centro donde todo o amor irradia: Jesus. Mas que Jesus? Os Beneditinos da idade românica haviam ordenado o tímpano das abaciais em função do Cristo do Último Dia. No portal das catedrais, os intelectuais do século XIII haviam colocado Jesus doutor. O Cristo que uma cristandade enfim popular reclama é muito simplesmente um homem. Um homem comovedor, pois que a devoção moderna é “uma certa tendência de coração pela qual as pessoas se desfazem facilmente em lágrimas”. O Jesus de que falam os pregadores, aquele que as sacre rappresentazioni mostram, o Jesus do Natal e o Jesus da Páscoa. Isto é, um Deus também “historial”, a personagem duma narrativa: Cristo tornado mais próximo pelas fraquezas duma primeira infância, sobretudo pelo mergulhar na agonia.

Natal, Páscoa. A festa do Inverno é uma festa alegre. Proclama a esperança na profundidade da noite. Mas a sua alegria emana menos do menino do que da Mãe. Mais entregue às mulheres, o cristianismo vulgarizado entrança os seus arabescos um pouco afetados em torno do tema marial. Este desabrochara largamente no cristianismo dos clérigos. Exibe-se e perde qualidade. A arte do século XIV, que multiplica as figuras da Virgem, dessacraliza-as pouco a pouco: Maria ajoelhada diante do Filho recém-nascido, Maria perturbada na sua meditação pela anunciação do anjo, Maria vigiando as brincadeiras na erva macia e nas florinhas dos hortos fechados, Maria protetora, enfim, Virgem do manto levantado sobre a multidão dos santos, assumindo sozinha a função tutelar deles, e protegendo sob a sua capa azul, como única mediadora, todo o povo cristão reunido. Depois das penitências e macerações da Quaresma, a Páscoa irrompe, mas precedida pelo cortejo das dores divinas. Se Cristo, finalmente, leva todos os homens à salvação, é pela acumulação dos sofrimentos: é a vítima, o cordeiro portador do pecado do mundo. Nenhum espetáculo foi então mais popular do que o da Paixão e nenhuma imagem mais espalhada do que a da Cruz, do crucifixo, eixo trágico da religião dos pobres. Pouco a pouco, a atenção transporta-se do Cristo humilhado, do Cristo flagelado, do Cristo pregado na cruz para o Cristo morto. No regaço da Virgem em piedade, não já a mãe feliz dos vergéis floridos, das coroações, das assunções, mas cooperando na redenção pelo aprofundamento da sua própria dor, pelo olhar de amor sofredor fixado no destroço que é o Filho, jaz um cadáver. Cadáver cujo primeiro Santo Sepulcro, esculpido em representação teatral, pôs em cena em 1419 o sepultamento. Com efeito, desempenhar a personagem de Jesus, contemplar as cenas sucessivas do seu suplício, “ver com os olhos da alma uns que cravam a cruz na terra, outros que preparam os pregos e o martelo”, absorver-se nesta contemplação até receber no corpo os estigmas, era identificar-se com ele de maneira suficientemente íntima para finalmente vencer a morte, como ele mesmo a tinha vencido. É o medo da noite eterna que leva à imitação de Cristo.”

 

 

“Mais do que uma arte de viver, o cristianismo do século XIV foi uma arte de bem morrer, e a capela, mais do que o lugar das orações e da contemplação mística, o dum culto funerário. As forças associadas de vulgarização e de laicização colocaram o sentimento da morte nessa posição dominante, pondo no centro dos ritos e da imaginária religiosa esta interrogação primária: que aconteceu aos defuntos? onde estão?

A doutrina da alta Igreja propunha uma resposta tranquilizadora. A morte é uma passagem, o termo da viagem terrestre, a chegada ao porto. Um dia, talvez próximo, virá o fim dos tempos, o regresso glorioso de Cristo, a ressurreição da carne na sua plenitude. Então os bons serão separados dos maus e a imensa multidão dos ressuscitados repartida em dois grupos, que se encaminharão, um para as alegrias, o outro para as penas eternas. Enquanto esperam este último dia, os defuntos repousam num lugar de refrigério e de calma, dormem o sono da paz. Tal é o ensinamento da liturgia dos funerais. E a Igreja conquistadora da Alta Idade Média perseguira, ao tempo, para as destruir, as práticas funerárias do paganismo. Ameaçara com as mais graves penas os que se obstinassem em levar alimentos aos mortos. Esvaziara os túmulos das joias, das vestes, das armas, de todo o abundante mobiliário colocado junto dos cadáveres, para que o defunto pudesse viver em aprazimento a sua existência misteriosa e não viesse, insatisfeito, importunar os vivos. A morte instalara-se portanto na nudez, no despojamento tranquilo. Discrição surpreendente: nenhum adorno, nenhum emblema sobre os restos das princesas carolíngias inumadas no envasamento da basílica de Santa Gertrudes em Nivelles, e quando os arqueólogos abriram o único túmulo dum rei de França que ficara inviolado, o de Filipe I, em Saint-Benoit-sur-Loire, não descobriram nada junto do corpo defunto, a não ser os restos dum simples revestimento de folhagem.

Os padres haviam tido no entanto que transigir com crenças muito poderosas. Tinham dado cada vez mais amplitude à liturgia dos defuntos. Tinham acolhido o mito dum espaço e dum tempo intermédio entre a morte e o Juízo Final, tinham admitido que as almas dos mortos podiam sair do sono: não era a adormecidos que Dante ia visitar. Sob a incerta fiscalização da Igreja, o Purgatório estende-se como uma província reconquistada pelas concepções pré-cristãs da morte. O campo desta reconquista alarga-se mais na segunda metade do século XIII, quando afrouxou o domínio dos clérigos sobre as manifestações de piedade, quando os frades mendicantes trabalhavam para fazer verdadeiramente do cristianismo a religião do povo. A Igreja recusara durante muito tempo o acesso do santuário a sepulturas que não fossem de santos, de príncipes ou de prelados. A vontade dos vivos de pôr os seus mortos o mais perto possível dos altares venceu pouco a pouco essa repugnância. O cerimonial revestiu-se, para os ricos, de toda a ostentação do luxo. Era preciso que o defunto entrasse no reino dos mortos adornado com todos os prestígios da sua glória. Pois que o poder dum homem se media então pelo número dos seus “amigos”, dos que viviam sob a sua proteção e em dedicação a ele, o longo cortejo da sua casa, seguido por todos os pobres que alimentara com os seus donativos, acompanhou o esquife. O túmulo, finalmente, cobriu-se de numerosos ornamentos. Figurativos. Preocupado com não desaparecer completamente, o defunto quis ficar presente sobre a terra, ao menos em efígie.

A vontade de sobreviver na sepultura manifestava, contra o espírito cristão de renúncia, o desabrochar duma outra tendência, mais essencial, talvez, do espírito profano: o desejo de vencer o aniquilamento corporal e o terror do homem, não só diante dos mortos, mas diante da sua morte, diante da Morte. A Igreja quisera, desde o princípio, domesticar esta tendência e submetê-la aos seus fins. Sempre convidara, portanto, a meditar sobre a podridão do cadáver, apresentando-a como o sinal da imperfeição da carne, da sua inanidade, como a condenação dos prazeres transitórios, como o mais impressionante convite ao verdadeiro caminho, o de Deus, ao abandono do século. A imagem do esqueleto e do corpo decomposto constituiu uma das ilustrações mais persuasivas da pregação da penitência. Por isso, os laudi cantados nas confrarias italianas evocavam frequentemente o isolamento do corpo defunto, entregue aos vermes na fossa escura. Para essa obra de edificação cooperava um tema figurativo construído sobre o poema dos Três Mortos e dos Três Vivos, a representação dos três cavaleiros que esbarram com três sepulcros abertos, revelados os cadáveres no cheiro da podridão e mostrando bruscamente aos vivos a vaidade do mundo. O remexer dos vermes nas carnes destruídas dava um duplo ensinamento. A putrefação atestava, em primeiro lugar, a íntima união do invólucro carnal e do pecado. Não era verdade pensar-se que só o corpo dos santos escapava a esta decadência? E quando os frades pregadores abriram o túmulo de S. Domingos, não esperavam eles com ansiedade o suave “cheiro de santidade” que provaria a todos que o fundador da Ordem alinhava efetivamente entre os bem-aventurados? Mas o espetáculo do aniquilamento corporal devia incitar também o fiel a conduzir a sua vida com prudência, a estar constantemente pronto, como as Virgens sábias, em estado de graça, pois que a morte é um arqueiro cujo dardo fere de imprevisto e atinge o homem quando ele não espera. A visão do cadáver apodrecido erguia-se entre as representações do cristianismo litúrgico como uma muralha contra as seduções perniciosas dum mundo tentador e condenado.

Ora, os progressos do espírito laico vieram no limiar do século XIV infletir o tema até o virar completamente. O grande afresco pintado no Campo Santo de Pisa justapõe à imagem dos Três Mortos e dos Três Vivos uma outra cena de espírito radicalmente oposto, a do Triunfo da Morte. Brandindo uma gadanha, a figura da morte precipita-se em turbilhões furiosos sobre o vergel deleitável onde, entre as suavidades da vida cortês, uma sociedade de damas e senhores canta o amor e a alegria terrestres. Vai quebrar de um golpe esta alegria e, como a peste, como a morte negra, confundir esta assembleia cantante com os cadáveres que já se amontoam. A imagem não atua aqui como exemplo da vaidade dos prazeres. Grita a angústia do homem mortal diante das forças do seu destino. O recuodos cavalos, empinados diante dos Três Mortos e dos seus sarcófagos descobertos, esboçava um movimento de renúncia, de desprendimento. Os namorados, pelo contrário, desatentos, inconscientes do furor convulsivo que vai de repente ceifar a sua felicidade, agarram-se às suas alegrias, à sua vida. Para eles, como para os trovadores cujas canções acompanham as danças, este mundo é belo, cheio de delícias. Escândalo é ser arrancado a ele. Se a morte, a donna involta in vesta negra de Petrarca, arrebatada, como em Pisa, cerca de 1350, nos tumultos dum furacão, cavalgando, como em Palermo, cerca de 1450, o esqueleto dum cavalo, aparece na força inelutável dum terrível triunfo, é porque antes triunfara na cultura do século XIV a sede da felicidade carnal duma sociedade que se libertava da moral dos padres. Quando se levantou da sua prosternação, o homem encontrou diante de si, ameaçadora, uma morte à sua exata medida. A sua.

Os novos símbolos foram inscritos nas paredes das igrejas. Os pregadores, os animadores da vida piedosa, viam-se impotentes para reprimir o amor do mundo, para conter o surgimento do otimismo laico. Ao menos, procuraram utilizar na sua pastoral a perturbação inerente a esse mesmo otimismo, o horror da morte, destruidora dos prazeres do mundo. O afresco de Pisa é como a ilustração dum sermão que tivesse reforçado os efeitos dum antigo tema, cuja eficácia se atenuara, com um outro, mais perturbador porque tocava na sua profundidade trágica a mola duma sensibilidade nova. Assim se estabeleceram no fim do século XIV, no centro da iconografia religiosa, as formas renovadas do macabro. Cerca de 1400 aparecem na Alemanha as primeiras Artes de Morrer, conjuntos de gravuras que descrevem em cenas sucessivas o drama da agonia, o moribundo dilacerado pelo pesar do que deixa, atormentado pelos demônios que tentam uma última ofensiva e que finalmente são derrotados pelo Cristo irmão, a Virgem e os santos. Na mesma época, talvez em França, organizava-se a Dança Macabra. No mais fundo das crenças populares, a figura da morte vitoriosa juntava-se por vezes à do flautista enfeitiçador. Tocadora de música, encadeava com as suas melodias sorrateiras homens e mulheres, velhos e novos, ricos e pobres, o papa, o imperador, o rei, o cavaleiro, os membros de cada um dos “estados” do mundo. Irresistível, arrebatava-os a todos. Os pregadores imaginaram talvez fazer mimar esta sarabanda triunfante e terrível e depois a representação sacra foi fixada em imagens. Em 1424, o novo símbolo da mortalidade do homem erguia-se em Paris no cemitério dos Inocentes, não longe do grupo, agora menos persuasivo, dos Três Mortos e dos Três Vivos, que o duque João de Berry não havia muito tempo aí mandara colocar. Expressão da angústia de ser homem, o tema impôs-se por toda a parte, de Coventry a Lubeque, de Nuremberg a Ferrara. Atingia a inquietação no seu ponto mais sensível. Não a transportava já para o além longínquo e confuso dos Juízos Finais. Situava-a na certeza presente, atual, perante um fato de experiência, a agonia. “Quem morre, morre na dor”. A morte já não aparece como o adormecimento tranquilo do viajante que chega ao porto de salvação. É abertura vertiginosa para um abismo escancarado. Ora, não foi a miséria dos tempos, o redobrar dos flagelos, da guerra ou da epidemia que asseguraram o triunfo do macabro, mas o desenvolvimento do longo movimento que, desde há dois séculos, conciliava pouco a pouco o cristianismo com as aspirações religiosas dos laicos. Tremer perante a agonia não é resultado duma cristandade mais deprimida, menos segura de si mesma e menos crente, mas duma cristandade muito menos seletiva, largamente aberta a homens simples, de fé também sólida mas mais curta e menos capaz de abstração. A Dança Macabra, tal como o tema italiano do Triunfo, tal como a imagem de Cristo morto no regaço de sua mãe, convinha a uma sensibilidade religiosa que já não era a dos monges ou dos professores da Universidade, mas do povo. Dos ricos e dos pobres que, na igreja franciscana ou nas capelas, rezavam cercados de túmulos.

Quando a ideia da morte foi acolhida, em suas formas frustes, no coração da vida de piedade, autorizada a governá-la completamente, quando a angústia de desaparecer e a obstinação de sobreviver fizeram da imitação de Jesus Cristo a imitação, acima de tudo, da sua agonia, o túmulo apareceu à luz do dia o que era desde há séculos, por trás do biombo de serenidade disposto pela alta Igreja: o objeto de preocupações essenciais. No século XIV, as disposições do mecenato revelam-se principalmente orientadas para a pompa funerária. De todas as encomendas feitas aos artistas, as mais numerosas, as mais atentas, referem-se ao túmulo. A cláusula inicial de todos os testamentos contém a eleição da sepultura, a escolha do lugar que receberá o despojo mortal, que o abrigará até ao Último Dia. Todo o homem que pensa erigir uma capela, que concebe a decoração, que constitui rendas para assegurar o serviço, pensa menos nas suas orações do que no seu túmulo. É costume preparar com grande antecedência essa última morada, vigiar em pessoa a edificação e o ornamento, tal como regular em pormenor a ordenação do seu próprio funeral. A cerimônia fúnebre é, com efeito, concebida como uma festa, como a principal festa da existência. Ora, numa festa, exibe-se, desperdiça-se. As exéquias desse tempo desenrolam-se no aparato dum cortejo ruinoso.”

 

 

“Espezinhado pelos homens de armas, dizimado pelas pestes, o século XIV foi na Europa uma das grandes épocas da canção. Essas canções são naturalmente pastoris e rústicas e sempre primaveris. Foram compostas para os jardins. As moças dançam ao ritmo delas no prado, e, pela roda das donzelas de vestidos salpicados de flores, a graça das planícies vizinhas introduz-se no universo mineral e cubista da Siena de Lorenzetti. A alegria mundana encontra o seu pleno desabrochar na natureza, no ar dos campos e dos bosques, e a arte que suscita dispõe sobre as paredes das salas fechadas e sobre as páginas dos livros um simulacro dos prazeres agrestes. O sonho que ela propõe vai divagando em direção aos campos e às florestas familiares.

A cultura cavaleiresca, com efeito, nascera num mundo que praticamente ignorava as cidades. A riqueza senhorial assentava na terra e no trabalho camponês. Os príncipes viajavam constantemente de domínio em domínio e reuniam as suas cortes solenes em pleno campo. Sabe-se que, para administrar justiça, S. Luís gostava de se sentar debaixo dum carvalho, e as rudes volúpias que a guerra proporcionava aos guerreiros do século XIV resultavam em grande parte de a arte de combater se desenvolver como um desporto de ar livre. Travava-se o combate nas vinhas, na orla dos bosques e no perfume da terra calcada. As batalhas começavam sobre o orvalho, aqueciam pouco a pouco com o subir do sol. Por isso, quando a torre desapertou os seus cintos de muralhas e se aprestou para abrigar as doçuras da vida, logo se abriu para um jardim. O papa em Avignon teve o seu pomar no recinto do palácio, Karlstein ergueu-se longe de Praga, e Windsor longe de Londres. Em Paris, porque o velho palácio da Cité, porque o próprio Louvre se encontravam demasiado longe das verduras, Carlos V mandou comprar hortas no Marais para construir o palácio de Saint-Paul. A fim de viverem como nobres, no lazer rural, todos os mercadores ricos quiseram também possuir um domicílio fora das muralhas da cidade. Porque colocara a figura do senhor feudal no centro do seu ideal de felicidade terrestre, a civilização do Ocidente, que porém era governada cada vez mais pelos costumes, pelo trabalho e pelos gostos urbanos, não escaparia às seduções dos folguedos rústicos. Ora acontecia que o redescoberto Virgílio os celebrara já. O humanismo nascente começou então a cantar as alegrias bucólicas, a celebrar a felicidade dos pastores. Incitou os seus adeptos a trocar o luxo adulterado das cortes pela simplicidade dos prazeres campestres. Instalou, também ele, longe das cidades, os lugares ordenados das conversações ociosas. A companhia feliz do Decameron não se reuniu em Florença, e Petrarca trocava Avignon pela Fonte de Vaucluse. Mesmo as atitudes religiosas tendiam, entre as pessoas do mundo, a transportar-se para o ar livre. As únicas personagens que nos romances corteses tinham uma mensagem cristã eram ermitas retirados, com os feiticeiros, para as solidões silvestres. Talvez em parte alguma o otimismo cavaleiresco tenha encontrado melhor o seu Deus que no seio da natureza virgem. Para um cristão que se liberta das liturgias e tende a atingir o puro amor, Deus, diz Mestre Eckhart, “resplende em todas as coisas, porque todas as coisas têm para ele o gosto de Deus e ele vê a sua imagem em toda a parte”. A iluminação mística transporta a alma ao centro dum vergel, rodeado de muros, mas cheio de flores, de pássaros e do canto das fontes. A Igreja das catedrais coroara a Virgem, apresentara-a ao povo como uma rainha rodeada duma corte de anjos e das pompas litúrgicas do poder. O século XIV trouxe-a para si. Mergulhou-a, é certo, na dor redentora dos homens prosternados diante do seu Deus morto, mas fez dela também a imagem duma mulher feliz. A Virgem exultante da Visitação, da Natividade e da Infância de Cristo preside entre os ramos de flores e essas mesmas coroas que Joana d’Arc, com as suas companheiras, ia nas noites de Verão pendurar nas árvores das fadas. Sentada na erva dum jardim, preside como a rainha duma natureza reconciliada.

Quando falavam de Natureza, os monges e os padres da idade litúrgica evocavam a ideia abstrata duma perfeição inacessível aos sentidos. Para eles, a natureza era a forma conceitual em que a substância de Deus se revela. Não os aspectos transitórios e fictícios que a vista, o ouvido, o olfato podem captar. Não as aparências incertas e desordenadas do mundo —mas o que fora o Jardim do Paraíso para Adão antes da sua falta: um universo de paz, de medida e de virtude, posto em ordem pela razão divina e que escapa às alterações, às decadências mais tarde introduzidas ao mesmo tempo que os poderes do sexo e da morte. No seu espírito, natura opunha-se à gula, à voluptas, isto é, à natureza física desviada, rebelde aos mandamentos de Deus, indócil e por isso condenada, por isso desprezível, por isso indigna de atenção. Os intelectuais dos séculos XII e XIII formavam da natureza uma ideia espiritual e não carnal. Para desvendar os seus mistérios, o melhor era seguir pelos caminhos do raciocínio, de dedução em dedução, de abstração em abstração, até chegar à razão de Deus. A sua física era conceitual, e fora por isso que o seu pensamento acolhera tão bem o sistema de Aristóteles.

Mas no ponto de partida da física aristotélica colocava-se a observação. O caminho do conhecimento tendia por vezes a erguer-se, num movimento muito semelhante ao da lógica escolástica, do particular, do acidental, ao mais geral. A ciência ultrapassava assim, pouco a pouco, a superfície, para chegar, para além do movente e do mutante, à substância, sustentáculo e causa de todos os efeitos observados. Chegava desta maneira às formas, por três graus sucessivos de abstração, física, matemática e depois metafísica. Em Aristóteles, a física, ciência do que, no universo, é ainda mudança, encontrava-se estritamente separada da matemática, conhecimento do que, no universo, se torna estável, quando a abstração atinge o nível superior em que o movimento se elimina. Quando os tradutores do árabe a revelaram, os mestres e os estudantes de artes da Universidade de Paris deram uma adesão entusiasta a esta filosofia. Deixaram-se seduzir por uma cosmologia completa, hierarquizada, perfeitamente racional, e pela ciência do homem microcosmos que lhe era simetricamente conjunta. Esta conceitualização do mundo convinha à elucidação duma natureza em que os intelectuais viam a forma da razão divina. Dominada por homens que desprezavam o carnal, que o diziam infectado de pecado, que renegavam a observação direta e a experiência e que alimentavam a sua sede de conhecer com o silogismo e a razão pura, a arte do primeiro gótico, tal como a arte românica, foi abstrata. Não representava uma árvore, mas a ideia duma árvore, tal como não representava Deus, que não tinha aparência, mas a ideia de Deus.

Contudo, Deus encarnara. Por isso, na arte das catedrais a figuração da essência dos seres criados se aproximou, pouco a pouco, da das aparências. Em breve se pôde identificar na flora dos capitéis as folhagens da alface, do morangueiro e da vinha. A lenta propagação do novo cristianismo, aquele que S. Francisco pregara e que, num otimismo próximo da alegria cavaleiresca, propunha reabilitar o mundo carnal, o irmão Sol e as outras criaturas, contribuiu em muito para trazer para o concreto a atenção dos homens de cultura. Na Universidade de Paris, na corte de S. Luís, os Frades Menores eram numerosos e influentes. Falavam duma Natureza visível, que não era já culpada e para a qual podiam voltar-se os olhares. Mas intervieram também, no próprio seio da escola, certas reticências para com o sistema de Aristóteles, que não se mostrava completamente sem fissura. A lógica escolástica forjara-se para pôr em evidência as contradições das autoridades e para as resolver. Depressa descobriu que a cosmologia de Aristóteles não concordava exatamente com outros sistemas, como o de Ptolomeu, que as traduções do Almagesto revelavam. Para reduzir essas discordâncias, para decidir entre as opiniões diversas dos autores, era forçoso observar o mundo. No século XIII, os astrônomos de Merton College, em Oxford, os da Universidade de Paris, foram os primeiros sábios do Ocidente a recorrer deliberadamente à experiência.

A física de Aristóteles apresentava um outro defeito, mais grave. Não se conciliava com o dogma cristão. Colocando o homem prisioneiro do cosmos, negava-lhe a liberdade. Propondo a noção duma matéria eterna, não podia dar lugar nem à criação nem ao fim dos tempos. O comentário de Averróis iluminava claramente o que se mostrava irredutível ao cristianismo na física do Filósofo. Esta foi, por consequência, solenemente condenada em 1277, ao mesmo tempo que o averroísmo, pelo bispo de Paris, Étienne Tempier. Este ato de polícia intelectual, rejeitando um sistema confortável, que dava clara resposta a tudo, mergulhava outra vez o mundo no mistério. Incitava os sábios a procurar. Já nas escolas de Oxford os mestres franciscanos seguiam novos caminhos. Propondo, contra Aristóteles, ver na luz a substância comum a todo o universo, Roberto Grosseteste permitira conceber o mundo criado como não fechado, não encerrado, restituí-lo ao infinito. E pois que a luz pudera ter brotado e podia extinguir-se, o mundo pudera um certo dia ter começado e poderia um certo dia acabar. Este sistema trazia sobretudo um método. Pois que o universo era considerado como luz, para compreender as estruturas do mundo físico convinha estabelecer leis da ótica. Ora estas dependiam duma geometria e duma aritmética. A ciência matemática achava-se assim reunida à ciência física. Toda a mística dos números que o neoplatonismo veiculava podia legitimamente contribuir para a explicação do mundo e o novo sistema convidava, por outro lado, a medir o universo. Nesta via, a ciência exata tomou depois de 1280 o seu impulso. O sistema de Aristóteles atribuía aos quatro elementos apenas qualidades conceituais. Os sábios de Oxford e de Paris procuraram dar a essas qualidades valor quantitativo. Como, por outro lado, a luz era irrupção e dinamismo, a reflexão sobre o movimento levou a propor, contra a matemática grega, que era a do repouso, uma matemática da mudança. A nova doutrina, enfim, voltava a dar toda a sua importância ao olhar e situava na vanguarda da investigação a visão precisa, a observação direta. A ciência, desta maneira, tornou-se lúcida. E quando no limiar do século XIV um outro franciscano de Oxford, Guilherme d’Ockham, encheu o vazio aberto pela recusa do aristotelismo, quando convenceu a gente das escolas de que todo o conhecimento conceitual é ilusório, de que atingir a substância das coisas é proibido à inteligência do homem, de que esta só pode captar os atributos e os acidentes por uma experiência dos sentidos, dava ao espetáculo da natureza visível o seu valor essencial Todo o movimento de pensamento que leva ao ockhamismo e que irrompe com ele no século XIV trazia a natureza do abstrato ao concreto e reabilitava as aparências. Aliado à alegria franciscana e à alegria das cortes, incitava os artistas a olhar.

A olhar o mundo e a sua diversidade. A sociedade cavaleiresca que, para dirigir a criação artística, ocupava então o lugar do escol da Igreja, era espontaneamente curiosa e tinha prazer na contemplação das coisas. Tinha o gosto do estranho. O exotismo abria para ela uma das portas da evasão. Pelo seu estado, o cavaleiro vagueia à aventura e diverte-se a descobrir países novos. A cruzada fora pretexto, de fato, para maravilhosas viagens. A maior parte dos cruzados tinham, pelo caminho, passeado um olhar de turistas pelas regiões do Oriente mediterrânico. Quando para auditórios cavaleirescos uma literatura se formara, logo ela evocara as terras distantes. Já nas primeiras canções de gesta se erguiam o pinheiro e a oliveira, ao mesmo tempo como lembrança duma recordação e como incitamento a novas viagens. As narrativas de viagens autênticas fizeram concorrência aos contos que teciam em redor da demanda cortês um universo de fábula e de sonho. Os Espelhos do Mundo, os Livros das Maravilhas, os Livros do Tesouro, os Bestiários, os Lapidários apresentavam em dialeto vulgar, para a roda dos grandes senhores, a descrição minuciosa de criaturas desconhecidas. Estas, ao contrário dos dragões ou dos licornes, tinham o mérito de existir. Todos os príncipes do século XIV reuniram para seu divertimento, mas também por desejo de possuir todo o universo, coleções de objetos estranhos que os mercadores traziam do cabo do mundo. Nos seus jardins podiam-se ver, vivos, macacos e leopardos.

Entretanto, a curiosidade cavaleiresca incidia também na natureza próxima, familiar, e contudo também ela misteriosa e matéria para descobertas apaixonantes. A caça era igualmente conquista, e esta quotidiana, maneira do homem se apropriar da criação, de a submeter ao seu poder. Caçadores, estes homens tiravam dos animais selvagens, dos seus costumes e dos seus abrigos, um conhecimento direto e muito preciso. Alguns deles, o imperador Frederico II em primeiro lugar, quiseram fixar a soma das suas experiências em tratados. Com as canções amorosas e as relações das expedições longínquas, os livros de montaria foram as primeiras obras literárias compostas por cavaleiros. Continham as primeiras histórias naturais. Tiveram imenso êxito. Os seus leitores comprazeram-se em encontrar nas margens dos saltérios e nas “sebes” dos livros de horas uma imagem fiel dos animais e das plantas que observavam durante as suas batidas, Os pintores mostraram-na, misturada com a dos animais de fábula, fechada nos arabescos divagantes duma flora sonhada.

A cultura cavaleiresca, com efeito, apelava para uma figuração precisa da realidade, mas duma realidade fragmentária. Queria que lhe mostrassem objetos imediatamente reconhecíveis na singularidade da sua aparência, mas isolados, estreitamente imbricados na trama da recordação ou da irrealidade poética. Nas festas corteses, a nobreza não organizava a natureza em espetáculo. Tirava dela elementos isolados que dispunha sobre os seus atavios em ornamentos ligados pela gratuidade dos bordados, com que semeava a decoração irreal, o fundo de ouro ou o enxadrezado vermelho e azul dos vitrais, estendido para a apresentação dos seus ritos. A unidade coerente dum universo conceitual era substituída pela dispersão, pela multiplicidade dos fenômenos da física ockhamista. Destruíra o espaço cheio de Aristóteles, enchia o vazio do mundo com as acumulações dum tesouro de colecionador, e apenas sonhava animar as peças separadas com o movimento do impetus, do impulso, cuja teoria matemática o mestre parisiense construía então, da mesma maneira que as sinuosidades das caroles arrastavam os chapéus de flores, que a justa e a sua fogosidade arrastavam em turbilhões os brilhos das montadas. Por isso não foi junto dos matemáticos de Oxford, apesar de descobrirem a ótica, que os pintores encontraram as regras da perspectiva. A natureza figurada nas ilustrações da alegria cavaleiresca não é estruturada pelo cálculo, como o são as basílicas românicas e as catedrais. O seu espaço dispersa-se na descontinuidade de olhares agudos, lúcidos, mas múltiplos. As primeiras tentativas para construir racionalmente uma paisagem não foram parisienses, mas italianas.

Na Itália, a ala móvel do franciscanismo professava a pobreza em espírito e lançava o anátema contra a investigação científica. As Universidades ficaram, no seu conjunto, impermeáveis ao ockhamismo e continuaram a comentar Aristóteles e Averróis. Ficaram-se na antiga filosofia, até que apareceu em Florença, subvertedora mas tardia, a mensagem de Platão. Todas as conquistas científicas do século XIV, exceto as dos médicos, operaram-se por consequência fora das escolas italianas. Os mestres de pensamento deste país, os prelados e os frades pregadores por quem o escol da sociedade urbana acedia ao saber escolar e que redigiam os programas iconográficos dos empreendimentos de decoração, propunham a imagem dum universo conceitual e uno, coordenado em todas as suas partes. Na península, porém, a linguagem dos artistas, renovada nas fontes da pintura antiga, descobrira, mais cedo do que em outros lugares, os antigos processos da ilusão. À grande arte teatral das representações da majestade civil e da imitação de Jesus Cristo convinha um cenário simples de símbolos, alguns sinais elementares que colocavam a ação dramática no seu lugar. Esta arte utilizou, por consequência, como o haviam feito a arte românica e a pintura de Bizâncio, um vocabulário abstrato. Implantou ao redor das suas personagens ideias de árvores, de rochedos, de construções e de tronos. Mas uma vez que se tratava agora de um teatro, era preciso que os elementos do cenário fossem ordenados racionalmente num espaço fechado, delimitado por um enquadramento, e que não surgissem, diante da verdade dos atores, numa irrealidade demasiado discordante. Sobre o vasto palco do seu drama, Giotto dispunha as figuras de Deus e dos santos numa materialidade plástica que lhes dava o peso e a presença corporal das estátuas. Mas importava ainda dispor em redor delas uma certa profundidade de campo. Giotto não procurou rodeá-las de atmosfera, tal como não procurou abrir o muro por trás delas para a fuga duma paisagem. Mas, pelo menos, quis pelos artifícios duma perspectiva ainda balbuciante que a imagem dos objetos simbólicos que localizavam a narrativa tomasse aos olhos dos espectadores a aparência de se desdobrar na terceira dimensão. A transferência, inerente à expressão teatral, que substituía então a expressão litúrgica, excluía a intrusão brutal do realismo. Convidava, em compensação, numa abstração quase aristotélica do acidente e do movimento, a não desprezar as leis óticas. Elas abriam os caminhos da ilusão.

Giotto estava longe de procurar o verismo. Contudo, poucos anos depois da sua morte, Bocácio louvava-o pela destreza em figurar a realidade: “A natureza não produz nada que ele não tenha pintado semelhante a ela e mesmo idêntico, de tal maneira que muitas vezes os homens se enganam vendo as coisas que ele fez, tomando por verdade o que é pintura”. Ora, a verdade de que fala Bocácio não é a verdade transcendente, e, por natureza, ele está a entender as aparências do mundo. Entretanto, também os mecenas italianos se tinham aberto à curiosidade pela natureza das coisas. Esperavam da arte que passasse a apresentar-lhes uma ilustração verídica do real.

É aqui que se deve fazer intervir a influência duma mentalidade a que não se poderá chamar burguesa sem trair as suas aspirações profundas, mas que era partilhada, com os práticos da medicina, do direito e da gestão pública, por todos os homens enriquecidos pelo trabalho que se tinham instalado no poder nos senhorios urbanos. Estes práticos não haviam frequentado as Universidades. Mas tinham adquirido no seu mister uma acuidade visual indispensável para avaliar ao primeiro relance a qualidade dos números objetos da mercatura. Os seus negócios, dispersos por toda a parte, exigiam-lhes uma vista de conjunto do mundo, exata e precisa. Tinham o sentido do número e para eles a palavra ratio designava também uma operação de contabilidade. Estes homens quiseram que o cenário das cenas pintadas refletisse mais fielmente a realidade do mundo, conservando a coerência, a unidade e a profundidade de campo teatrais. As alegorias do Bom Governo são conceitos. Estão situadas na abstração cênicas. Mas, em baixo, ao nível das curiosidades profanas, apareceu em Siena, para um senhorio coletivo de mercadores de panos e de especiarias e de manejadores de fundos, no mesmo momento em que Giovanni Villani utilizava, para descrever a cidade de Florença, os métodos da estatística, a primeira paisagem racionalmente construída. Forneceu um modelo. Após as desordens da peste, os imaginários da Lombardia inspiraram-se nele. Transportado em seguida de Milão a Paris, permitiu aos irmãos Limbourg, herdeiros da visão realista, fragmentária mas mais carnal, da imaginária de cavalaria, figurarem na sua verdade a natureza. Esta já não é um labirinto, um entrelaçado de interstícios, onde podemos insinuar-nos, perder-nos no mistério, de conquista em conquista, de surpresa em surpresa, para esbarrar finalmente no simulacro de céu que a fecha como uma tapeçaria. Jogando através da espessura da atmosfera, a luz rompe em profundidade o pano de fundo do teatro. Reúne os olhares descontínuos lançados sobre as coisas numa unidade que, contudo, não tem limites.”

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