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sábado, 23 de outubro de 2021

O tempo das catedrais: a arte e a sociedade (980-1420) (Parte II), de Georges Duby

Editora: Estampa

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: José Saramago

Opinião: ★★★★★

Análise em vídeo: Clique aqui

Páginas: 316

Sinopse: Ver Parte I



“A submissão dos homens para com o Senhor Deus inscreve-se no quadro das relações que sobre a terra e na vida quotidiana submetem ao senhor feudal o conjunto dos seus súbditos. O cristão quer ser o “fiel” do seu Deus — e é por isso que a postura do vassalo prestando homenagem de joelhos, com a cabeça descoberta, as mãos juntas, se torna na época a postura oração. Tal fidelidade obriga à lealdade e ao serviço. Mas como o contrato vassálico compromete os dois seres que liga a socorrerem-se mutuamente, como o senhor feudal é obrigado ajudar o seu “homem” quando este cumpre bem seus deveres, como os senhores dos grandes domínios rurais têm o dever de distribuir alimentos aos seus rendeiros camponeses, como finalmente a liberalidade aparece como primeira virtude dos grandes, o cristão, vassalo de Deus, espera também dele a proteção contra todos os perigos do mundo. Espera sobretudo o feudo eterno: uma parte no Paraíso.

No entanto, os melhores dons dos senhores da terra vão para os guerreiros mais valentes. Eis o preço duma proeza. É por meio de proezas que o homem ganhará os favores divinos. A invasão dos valores cavaleirescos confere ao cristianismo do século XI um ar heroico. Os seus maiores santos são combatentes. Tal como Santo Aleixo, de quem um poema em língua vulgar composto em cerca de 1040 para uma corte principesca da Normandia celebra as proezas ascéticas, eles aparecem, cavaleiros modelos, sob o aspecto de rapazes musculosos que dedicam ao seu senhor a sua tenacidade e os seus sofrimentos físicos. Uma sociedade dominada pela turbulência dos bandos de cavaleiros tinha evidente dificuldade em perceber a mensagem de mansidão e de humildade que o Evangelho contém. Para tocar o seu auditório de jovens guerreiros, para os trazer a Deus, padres que tinham crescido com eles no cercado do castelo e que como eles serviam casa dum amo, descreviam-lhes a Igreja sob o aspecto duma milícia que Jesus, seu chefe, leva ao combate, brandindo a cruz como um estandarte. Contavam-lhes a vida dos santos militares, S. Maurício ou S. Demétrio, exortavam-nos a mostrar valor igual na luta que todo o homem deve travar contra inimigo invisível, mas sempre presente e temível, a corte maligna dos espíritos vassalos do demônio. A empresa da cavalaria introduz as alternativas da ação militar no centro de todas as representações mentais. Todo o universo é combate. Os próprios astros se defrontam. O monge Ademar de Chabannes vê uma noite “duas estrelas no signo do Leão lutarem entre si; a pequena corria para a grande, ao mesmo tempo furiosa e amedrontada; a outra repelia-a para ocidente, com a sua crina de raios”. Os cristãos desse tempo comportam-se perante o mistério como guerra feudal. A piedade concebe-se como uma sentinela perpétua, uma sequência de assaltos, de aventuras, de resistência às agressões pérfidas. Todo o homem vê a sua vida terrestre como uma província invadida que deve defender e que a sua honra lhe ordena que entregue intacta ao seu Senhor. No Último Dia, a sua coragem e as suas fraquezas serão pesadas. Alguns afrescos românicos mostram Cristos ferozes, segurando entre os dentes cerrados o gládio da justiça e da vitória.”

 

 

“Guerra e justiça — a espada e o cetro. O Deus do século XI pouco difere dos chefes de bandos que se embuscam nos pântanos para surpreender os últimos saqueadores normandos do ano mil. Importa a todo o homem juntar-se à tropa que ele conduz e assaltar com eles as sombras, essas forças cuja existência só se apercebe de longe em longe, nas visões premonitórias da morte, em todos os rumores que enchem então a noite, mas que, todos o sabem, governam inteiramente um universo misterioso de que os sentidos do homem nunca descobrem mais do que a casca. Essas forças disfarçadas são aterradoras, irresistíveis. Se se quer distinguir o culpado de um inocente, aplica-se aos dois homens um ferro em brasa, espera-se que o estado das feridas aponte aquele que pecou. Mergulham-nos na água que rejeitará o ser impuro. Fiam-se nos poderes mágicos dos elementos do mundo. Requerem-lhes por tais provas que arbitrem entre o bem e o mal, entre Deus e Satanás. Na sua luta contra o pecado, que os fiéis prosternados não podem impedir-se de julgar incerta, em todo o caso difícil, o Senhor precisa dos homens.

Contudo, ao cristão do século XI a força do Evangelho revela-se acima de tudo, como ao camponês a do senhor da sua tenência, como ao cavaleiro a do senhor do seu feudo, por um ato de justiça. Deus castiga. A sua figura mais familiar é a que os escultores acabaram, no final do século XI, por colocar, majestosa, nas portas dos mosteiros: o Todo-Poderoso sobre o trono do juiz, presidindo rodeado de vassalos. Estes barões assessores não foram primeiro os Apóstolos, mas os Velhos das visões apocalípticas e sobretudo os Arcanjos, duques do exército celeste. Um deles, S. Miguel, está diante do trono como um senescal: ordena o pleito. Porque o tribunal de Deus dá as suas sentenças como o dos senhores da terra.

Perante as assembleias numerosas que se encarregam neste mundo de reconciliar os cavaleiros e de apagar as vinganças dos clãs em discórdia, o acusado nunca comparece sozinho. Assistem-no amigos. Por juramento, vêm testemunhar a sua inocência. O pleiteador entrevê sempre, entre os membros da corte, os homens que lhe estão ligados pelo sangue ou por fidelidades mútuas. Conta com eles. Falarão por ele. Talvez mudem a sentença. Eis por que os homens desse tempo, no temor do Juízo Final, se mostraram tão cuidadosos em captar a benevolência dos santos. Estes heróis da fé formam a corte de Deus que escutará os seus pareceres. Desarmarão a sua ira. Ora qualquer poderá conquistá-los para a sua causa, assegurar a sua intercessão, e isto pelos mesmos meios que se usam na terra para adquirir complacências, por meio de presentes. “Fazei amigos no céu com as riquezas da iniquidade”, a fórmula aparece constantemente no preâmbulo das cartas que, nos armários dos mosteiros, guardavam a memória das oferendas dos nobres. Santos, havia-os por toda a parte. Povoavam os espaços invisíveis, mas também na terra, em certos lugares, se podia entrar em comunicação com eles: eram-lhes dedicadas igrejas, algumas conservavam os restos do seu corpo carnal. Pelas mãos dos homens de oração que serviam todos estes santuários, os santos receberam pois esmolas, os dons que deviam ligá-los aos doadores e verdadeiramente capturá-los. Foi pela oferenda, distribuída por inúmeras instituições religiosas, que os cavaleiros do século XI, incapazes de refrear a sua violência instintiva nem mesmo distinguir o que o Senhor esperava deles, que se sentiam culpados fizessem o que fizessem e todos ameaçados de castigo, procuraram colocar-se em melhor posição perante a corte sobrenatural onde um dia teriam de comparecer.

Nas práticas da justiça terrestre, era por meio duma doação que conseguia também conciliar o próprio senhor. As cortes de cavaleiros, com efeito, raramente infligiam penas corporais. No fim do pleito falava-se sempre de dinheiro. Oferecer algumas moedas era restaurar a concórdia que a malfeitoria destruíra, apagar o espírito de desforra que toda agressão suscitava nas suas vítimas, mas também nos seus próximos e no príncipe de quem dependia a ordem pública. Porque este sentia-se insultado quem tivesse quebrado, cometendo uma violência, a paz de que ele aparecia como guardião. A sentença condenava pois o culpado a pagar. Além das compensações monetárias que a linhagem adversa esperava, pagava uma multa: esta reparava o prejuízo que o rei, o conde ou o castelão, que todos os responsáveis pela segurança coletiva tinham sofrido por sua culpa. Da mesma maneira se comprava o perdão de Deus. “A esmola lava do pecado como a água apaga o fogo”: a doação piedosa foi então o gesto de piedade fundamental duma cristandade que vivia esmagada pelo sentimento duma inevitável culpabilidade.

Dar a Deus não era dar aos pobres. Quem, exceto os senhores, não era miserável nestes campos ingratos? A indigência era a sorte comum. Ela encontrava os seus remédios no jogo normal das instituições senhoriais e na liberalidade natural dos grandes. É certo que Roberto, o Piedoso, vivia rodeado de pobres. Em Quinta-Feira Santa, “de joelho em terra, entregava com a sua santa mão às mãos de cada um deles legumes, peixe, pão, e um dinheiro”; doze deles acompanhavam-no por toda a parte e “para substituir os que morriam, tinha uma reserva considerável, de modo que o seu número nunca diminuía”. Erraríamos sobre tais gestos de caridade se os separássemos do símbolo. De fato, o rei-Cristo mimava ritualmente uma cena evangélica: distribuía o alimento sagrado em comemoração da Ceia e, junto dele, os doze eram figurantes: faziam o papel dos apóstolos. Todas as oferendas em que a cólera de Deus achava apaziguamento iam então para as igrejas. A estas, todos os homens, todas as mulheres que não tinham penetrado na milícia dos servidores de Deus e viviam sujeitos às forças malignas, davam o que possuíam de mais precioso. Alguns o seu próprio corpo e a sua descendência: assim aumentava, sobretudo na terra do Império, a turba dos “dependentes do altar” que, em cada ano, no dia em que se honrava o santo padroeiro do santuário de que se tinham tornado servos, vinham em fila indiana depositar sobre a pedra do sacrifício o cesto de cera e o dinheiro simbólico, sinais da sua servidão consentida. Mas cada um oferecia do que era seu, as joias do seu tesouro e, muito mais vezes, terra, a verdadeira, a única riqueza. Dava-se em todas as ocasiões para apagar uma falta desde que ela era cometida. Todavia, era no limiar da morte que a esmola ganhava todas as suas virtudes.

As representações do inferno, que o renascimento da escultura monumental exibiu nos primeiros anos do século XII no limiar das basílicas, saíram duma propaganda cujos diversos elementos entraram em jogo em cerca de 1040 e que contribuiu, pelo terror que alimentou no espírito dos laicos, para multiplicar ainda mais as doações in articulo mortis. Estas, aliás, não aproveitavam somente ao indivíduo que as ordenava. Ele pensava na sua própria salvação, mas também na de toda a sua linhagem. Se gastava da riqueza que lhe tinham legado os antepassados, era igualmente para que disso tirassem vantagem as almas dos seus parentes defuntos. No meio delas, esperava esconder-se no dia do Juízo, na unidade reconstituída da pessoa imortal que era a raça e que suportava coletivamente a responsabilidade de cada um. A onda ininterrupta das doações piedosas animou o movimento econômico mais vigoroso duma época que mal emergia duma total atonia. Determinou, com as partilhas sucessoriais, as únicas transferências importantes de riquezas que essa época conheceu. Estas esmolas despojavam a aristocracia laica em proveito da aristocracia da Igreja. Compensavam muito largamente todas as pilhagens dos cavaleiros e reforçavam lentamente à custa deles as bases do poder eclesiástico. Sem esta imensa contribuição de novos bens que, sem parar, veio engrossar o patrimônio dos santos e fornecer aos seus servidores acréscimos crescentes de recursos, não se poderia explicar a força do impulso que, entre 980 e 1130, faz avançar as conquistas artísticas na Europa. O crescimento agrícola alimentou a floração românica, mas não teria podido fazê-la brotar com tanta robustez se a casta dominante, a cavalaria, não tivesse, com tanto abandono, consagrado à glória de Deus uma tão larga porção da sua riqueza.”

 

 

“Existia um outro meio de adquirir a amizade de Deus e das potências que assistem na sua corte, uma outra maneira de despojar-se, mas que exigia mais ao corpo e à alma: a peregrinação. Sair do grupo familiar, do refúgio que é a casa. Enfrentar a insegurança que começava mal se saía o limiar. Ausentar-se durante meses; atravessar aldeias hostis, poder-se-ia conceber mais valorosa oferenda ao Senhor e aos seus santos, cujo túmulo se ia visitar? A peregrinação foi a mais perfeita e mais bem aceite das formas de ascese que o cristianismo heroicizado do século XI propunha aos cavaleiros ansiosos pela salvação. Era penitência: aos que publicamente faziam confissão de culpas excepcionais, o bispo impunha-a como instrumento de purificação. Era também símbolo: o peregrino, com a sua marcha, imitava a procissão do povo de Deus para a Terra Prometida; progredia para o Reino. A peregrinação, enfim, era prazer. A época não concebia distração mais atraente do que uma viagem, sobretudo, como era o caso normal dos peregrinos, quando empreendida com amigos. As turbas piedosas que desciam de barco os rios e caminhavam ao longo das pistas diferiam com efeito muito pouco dos bandos de jovens que vagueavam à aventura, e menos ainda das coortes de vassalos que, cumprindo o seu dever de conselho, acorriam ao apelo do seu senhor para se reunirem por alguns dias com ele. Os peregrinos também realizavam um serviço de corte. Este reunia-os no dia prescrito em redor dos cofres recobertos de placas de ouro e cabuchões que continham as relíquias. Dessas urnas emanavam forças invisíveis, curadoras de corpos, benéficas para as almas. Ninguém pensava que as personagens misteriosas, cujas ossadas aqui e além conservavam sensível a presença neste mundo, regateariam a amizade aos que tanto tinham caminhado para delas se aproximarem. Milagres de Santa Fé, Milagres de S Bento — os monges recolhiam em compilações as maravilhas multiplicadas que provavam a eficácia de tais peregrinações.”

 

 

“Os primeiros concílios da paz de Deus nunca negaram aos homens de guerra o direito de se baterem: Deus colocara-os no ponto mais alto da hierarquia social para que desempenhassem uma função militar. Ora, por alturas de 1020, alguns clérigos começaram a professar que as alegrias da guerra são prazeres culposos e que aquele que decide proibir-se deles agrada ao Senhor. Às prescrições da paz de Deus juntaram-se as obrigações da trégua. “Desde a Quaresma até Páscoa, não assaltarei o cavaleiro desprovido de arma secular”: no tempo da penitência, convinha abster-se da guerra tanto como dos outros prazeres do corpo. Por meados do século, no momento em que as peregrinações a Santiago e Jerusalém ganhavam pouco a pouco o ar de agressões militares em países do Islã, as assembleias a que presidiam os bispos acabaram por condenar qualquer violência entre cristãos. “Que nenhum cristão mate outro cristão, porque quem mata um cristão derrama, sem nenhuma dúvida, o sangue de Cristo.” Assim sendo, aonde iriam levar a força das suas armas os cavaleiros que as instituições divinas votavam ao combate? Para fora do povo de Deus e contra os inimigos da fé. Só a guerra santa era lícita. Em 1063, um papa arregimentava os cavaleiros de Champanha e de Borgonha que se aprestavam para a peregrinação a Espanha; exortava-os a lançarem-se contra os incréus; se alguns morressem na luta, o sucessor de Pedro, que detém as chaves do paraíso, prometia-lhes a indulgência. Em nome de Cristo, esta tropa tomou Barbastro, uma cidade sarracena cheia de ouro e de mulheres. Trinta e dois anos mais tarde; um outro papa apontava às violências cavaleirescas um fim mais exaltante: libertar o túmulo de Jesus. A todos os peregrinos armados que respondessem ao seu apelo, oferecia um emblema, símbolo de Vitória, a cruz, o estandarte de Cristo. Que é a cruzada senão o resultado final das longas pressões do espírito feudal sobre o cristianismo, e que foram os primeiros cruzados senão os vassalos fiéis dum Deus cioso que leva a guerra ao campo dos seus inimigos e que, pelo ferro e pelo fogo, os verga sob o seu poder? A escultura sacra acolhe então, entre os atributos da força divina, as cotas, as lorigas, os elmos, os escudos e todo um exército de lanças, apontadas contra as forças da noite.”

 

 

“É certo que tudo o que permite conhecer o espírito do século XI vem de textos que foram escritos nos mosteiros. Estes testemunhos são pois influenciados por uma ética particular: emanam de homens que a vocação inclinava ao pessimismo e a situar na renúncia todos os modelos da sua conduta. Os monges exortavam naturalmente a privações que eles próprios se tinham consentido, e os prodígios que relatavam traziam um reforço aos seus discursos. Deus manifesta que está irritado. Veem-se multiplicar os prenúncios dum regresso iminente do Cristo vingador. Para entrar na sala do banquete onde o seu Rei vai introduzi-la, a humanidade deve vestir à pressa o traje nupcial; ai de quem não se tiver adornado com ele. Que todos pensem pois em lavar-se das suas máculas e, pela renúncia voluntária aos prazeres do mundo, desarmar o braço do Todo-Poderoso. Assim, é evidente que as grandes reuniões de povo, que na Gália do Sul obraram para estabelecer a paz de Deus, foram assembleias de penitência coletiva. Na Aquitânia, o mal dos ardentes grassava; ele manifestava a impaciência divina; trouxeram-se, para Limoges, “solenemente de todas as partes, os corpos e as relíquias dos santos; tirou-se do seu sepulcro o corpo de S. Marcial, patrono da Gália; o mundo foi então penetrado por uma grande alegria, e o mal, por toda a parte, cessou as suas devastações, enquanto o duque e os grandes concluíam juntos um pacto de paz e de justiça”. O restabelecimento da concórdia desempenhava o seu papel no movimento de ascese que os sinais precursores do Último Dia estimulavam. Não ordenavam os juramentos pela paz de Deus que se renunciasse às alegrias do combate? No mesmo momento em que propunha aos cavaleiros, como penitência mais apropriada ao seu estado, a abstinência periódica que é a trégua, a Igreja reforçava as instruções do jejum. Começava a considerar que os seus padres, modelos de vida cristã, tinham de dar o exemplo da pobreza, da castidade, renunciar ao luxo cavaleiresco e despedir as suas concubinas, isto é, viver como monges. Para acalmar a cólera de Deus, para se prepararem para a Parusia que se sentia próxima, era preciso extirpar os fermentos de pecado e, por consequência, respeitar melhor as proibições fundamentais. Satanás mantém os seus escravos prisioneiros por meio de quatro cobiças. Sedu-los pela carne, pela guerra, pelo ouro e pela mulher. Que os homens, cujo julgamento se prepara, saibam repelir estas tentações. Ora, renunciar às riquezas, depor as armas, viver na continência, jejuar, faziam-no os monges desde há séculos. O que a Igreja passou a recomendar desde então a todo o povo cristão, foi que os imitasse, que se impusesse as mesmas regras de pobreza, de castidade, de paz e de abstinência, e que voltasse as costas como eles a tudo o que no mundo é carnal. Para a Jerusalém nova, o gênero humano, enfim todo ele convertido, poderia caminhar então com segurança.

Persuadido pelo seu clero da iminência do fim dos tempos, o século XI colocou o seu ideal — aquele que as obras de arte tiveram por missão representar — nos próprios princípios do monaquismo. No seio dos grandes espaços mal desbravados, entre populações curvadas ao peso da sua miséria e que os espasmos duma ansiedade latente agitavam, erguiam-se ao lado dos castelos, onde velavam os soldados do século, outras fortalezas, lugares de asilo e de esperança, e o assalto dos exércitos demoníacos quebrava-se contra as suas defesas. Eram os mosteiros. A cidade terrestre, pensava-se, assenta sobre duas colunas. É defendida por duas milícias associadas: a ordem dos que usam as armas e a ordem dos que oram ao Eterno. Mas onde se poderá orar melhor do que nos refúgios de pureza que as muralhas do claustro protegem? Em todas as abadias do Ocidente, multidões de Abel ofereciam ao Senhor os únicos sacrifícios que lhe eram verdadeiramente agradáveis. Mais do que os reis decaídos da Europa, mais do que os bispos e os padres, tinham o poder de desarmar a ira do Senhor. Eram os mestres do sagrado. A cavalaria acampava no meio da cristandade latina e mantinha-a firmemente sob a sua força. Todavia, no domínio do espírito, no imenso domínio da angústia e dos terrores religiosos — no domínio, portanto, da criação artística — era aos monges que pertencia então o pleno império.”

 

 

““Deus não pode ser visto diretamente. A vida contemplativa que começa na terra só será perfeita quando Deus for visto frente a frente. A alma mansa e simples, após ter-se erguido na especulação e quando, quebrando os laços carnais, contempla as coisas celestes, não pode ficar por muito tempo acima de si mesma, porque o peso da carne a puxa para baixo. É tocada pela imensidade da luz do alto, mas depressa é chamada a si mesma; todavia, do pouco que pôde saborear da doçura divina, recolhe um grande proveito; não tarda que, inflamada por um grande amor, se apresse a retomar o voo”. São estas as tensões da espiritualidade monástica. Pela penitência consentida, pela obediência, pela humildade e pela experiência duma fraternidade perfeita, pela liturgia, pela música, pela obra de arte enfim, aspira a transgredir os limites em que os sentidos e os meios miseráveis de que dispõe retêm o homem do século XI. Um esforço contínuo para ultrapassar as fronteiras da percepção sensível e do entendimento, para entrever o que se revelará à humanidade toda ela ressuscitada no último Dia do mundo, para penetrar já na outra parte do universo, aquela cuja formosura e poderes se adivinham, mas que não se veem. Apetite de Deus, isto é, do mistério.”

 

 

“Nas cidades da Europa meridional, a Igreja, com efeito, não pensava ainda em basear no raciocínio a sua doutrina. Não pregava: cantava. O progresso da civilização apurava entretanto a consciência das elites urbanas. Veio um momento em que o ritual das liturgias deixou de satisfazer os cavaleiros, os jurisconsultos, os mercadores, que se sabiam mais ou menos condenados. Queriam salvar a alma, procuravam alimento espiritual. Não o encontrando na catedral, escutaram nas encruzilhadas pregadores errantes que se dirigiam a eles, lhes falavam na sua língua. Eram trânsfugas, clérigos inquietos que não se tinham sentido bem entre os cônegos ou que não tinham podido introduzir-se nos capítulos catedrais, círculos fechados, povoados de filhos de famílias ricas. Não os tentavam nem o claustro nem o deserto dos ermitérios. Traziam a palavra de Deus, mas violenta, porque os bispos os perseguiam.

A maior parte deles pregava a penitência. A maioria das correntes heréticas mostra-se como uma aspiração à reforma da Igreja. Vem de longe e prolonga, de fato, o movimento reformista do século XI. O clero das catedrais é indigno vive na riqueza, na impureza. Que valor podem ter os sacramentos que essas mãos maculadas distribuem e os cantos que saem dessas bocas corruptas? Ora, o povo laico precisa de ritos e de orações eficazes. Que ele expulse os maus padres, que reconduza a Igreja à sua missão espiritual. Estas palavras tiveram eco no meio das lutas comunais e vieram excitá-las. Arrancar ao bispo o seu poder temporal não era libertar ao mesmo tempo a cidade? A exigência de pobreza apostólica justificava as insurreições urbanas. O clérigo Arnaldo de Bréscia, aluno dos mestres parisienses, que encabeçava em Itália o movimento purificador, abriu o caminho ao estabelecimento duma comuna em Roma, em 1146, em nome da pobreza de Cristo. Queimaram-no nove anos mais tarde: por ter incitado os prelados a levar a existência de Jesus, foi denunciado como herético. Ao propagar-se nos meios burgueses, a mística de despojamento libertava-se, entretanto, pouco a pouco, da intenção política. O mercador lionês Pedro Valdo não era um cabeça de motim. No Evangelho, que tinha mandado traduzir, descobrira que a riqueza lhe fechava para sempre a entrada no reino de Deus. Vendeu todos os bens, distribuiu o valor deles pelos pobres depois quis ajudar a gente da sua cidade a libertar-se do mal. Pôs-se a pregar. Mas era laico: o arcebispo não quis que ele falasse de religião. Condenou-o em 1180 e fez confirmar pelo papa a sentença. Os discípulos de Pedro, os Pobres de Lyon, os Valdenses, passaram a esconder-se, mas a seita clandestina, cortada da igreja e violentamente oposta a ela, teve um êxito fulminante por toda a parte, nas cidades, nas vilas e nas aldeias dos Alpes, da Provença e da Itália, entre os fabricantes de panos, os negociantes de cavalos e os tecelões.

Nesse momento, no condado de Toulouse, as multidões seguiam outros agitadores e escutavam uma doutrina que, embora pronunciasse o nome de Jesus, diferia fundamentalmente do cristianismo. Frente à Igreja construía-se aqui uma igreja diferente, antagônica, a igreja cátara. No começo do século XII, pregadores heterodoxos, Pedro de Bruys, o monge Henrique Lausana, tinham preparado o terreno nesta região. À partida, vituperavam também os clérigos indignos. Os bispos chamavam-lhes maniqueus. Com efeito, no seu combate pelo espírito de pobreza e de pureza, tendiam a separar mais rigorosamente o princípio espiritual do princípio carnal e a opô-los um ao outro, mostrando o mundo dilacerado entre estas duas forças, e as suas palavras caíam nua sociedade onde mais nitidamente do que noutras os laicos viviam isolados dos servidores de Deus. Cinquenta anos mais tarde, este dualismo espontâneo ganhara consistência. Os seus partidários eram já numerosos, mais numerosos sem dúvida em certos lugares do que os fiéis católicos. A proliferação fizera acorrer S. Bernardo que contra eles esgotara em vão a sua eloquência. O vencedor não foi o abade cisterciense, mas os organizadores pacientes, obstinados, alguns dos quais vinham do Oriente, e que, no Languedoc, no Norte da Itália, instituíram bispos heréticos, toda uma hierarquia paralela àquela que presidia nas catedrais vazias. Foi então que o capítulo geral de Cister recebeu do conde Raimundo de Toulouse um apelo angustiado: toda a aristocracia dos seus vassalos estava contaminada; na região de Albi, um lanço inteiro de cristandade desligara-se da Igreja romana para aderir à religião corrente.

Não se tratava já de desvio, mas dum outro dogma. Nunca se saberá muito bem o que foi o pensamento cátaro. Os inquisidores do século seguinte extirparam-no. Perseguiram tudo o que podia exprimi-lo. Destruíram todos os seus livros. Através dos manuais que guiavam a conduta da repressão, entrevemos essa doutrina que opunha um deus bom a um deus do mal, um deus da luz e do espirito a um deus da sombra e da carne, numa luta de armas iguais em que se jogava a sorte do mundo. O homem está empenhado neste combate, a parada do jogo é o seu próprio destino. Se quiser depois da morte aceder à luz, em vez de reencarnar num corpo de carne, deve cooperar na vitória do princípio luminoso, isto é, fugir de tudo o que participa de Satanás, recusar o dinheiro, alimentar-se das comidas menos impuras, abster-se de todo o comércio carnal: procriar é favorecer as resistências da matéria, aumentar os bandos do mal. De fato, só alguns Perfeitos foram capazes desta total ascese. Pelo menos, estes homens puros tinham o poder de levar os mais fracos à salvação: bastava-lhes estender sobre eles as mãos antes que morressem, para os impregnar do Espírito. Os povos de Aquitânia estavam acostumados a intercessões destas, a delegar noutros as vocações de pobreza e de castidade, a entregar-se aos especialistas da salvação, a confiar a alma aos seus gestos rituais, enquanto eles próprios aproveitavam tranquilamente o mundo. Sobre os monges de Moissac, de Conques ou de Saint-Gilles, os Perfeitos do catarismo tinham no entanto a vantagem de mostrar o exemplo dum verdadeiro despojamento, de serem ao mesmo tempo menos hipócritas e menos exploradores do povo. A sua mediação pareceu mais eficaz. Os cavaleiros trovadores e todos os mercadores ricos seguiram-nos, fizeram-se “consotar” por eles in extremis. Sabe-se que, sob a sua direção, as mulheres dos senhores de Aquitânia acabavam a Vida reunidas em comunidades de vida perfeita.

Pode-se pensar que todas estas mulheres e todos estes homens distinguiam mal a antinomia radical entre o ensino dos Perfeitos e o da Igreja romana. O dualismo cátaro retomara o vocabulário e alguns símbolos que o clero católico usava, de tal maneira que se passava transições insensíveis das diatribes antiepiscopais, que os pregadores lançavam, aos rigores da ordem herética, A doutrina, porém, renegava as ordens hierarquizadas de Dinis, o Areopagita, as suas vias de procissão e de retorno, e a própria noção de Criação: a matéria é o mal; não pode emanar do deus bom. O catarismo rejeitava também o princípio da encarnação, não vendo, segundo parece, em Jesus mais do que um anjo enviado pelo Deus da luz, e apoiava-se no começo do Evangelho de João para justificar esta crença. Como imaginar, com efeito, que a glória divina tivesse podido alguma vez introduzir-se na noite da carne, tomar corpo no ventre duma mulher, e como venerar Maria? O catarismo rejeitava ainda a ideia de redenção. Como conceber que o deus da luz tivesse podido sofrer na sua carne, e que valor atribuir à dor dum corpo mortal? A cruz, para os Perfeitos, era uma insígnia irrisória, uma mistificação. Separavam-se radicalmente de Saint-Denis, das especulações teológicas sobre a Trindade e de toda a iconografia das catedrais.

No fim do século XII, a heresia multiforme, as multidões cátaras, as assembleias de Valdenses, que celebravam na sombra os ritos de pureza e que não precisavam de padres, todas as seitas indecisas que formigavam nos subúrbios das cidades meridionais, toda a floração da cultura cortês que a elas se ligava, levantavam o mais sólido obstáculo ao que irradiava das escolas e dos monumentos de Paris. A heresia fazia mais: punha em causa a própria unidade da cristandade. Era neste momento portadora da angústia do mundo. Esta era a principal preocupação dos dirigentes da Igreja. Poderiam eles preocupar-se tanto com Jerusalém, com o túmulo de Cristo? Agora tratava-se do próprio Ocidente envenenado. Os melhores monges, os Cistercienses, acabavam de falhar na sua missão. O seu abade regressava perplexo no meio da escolta demasiado ostensiva dos seus cavaleiros. A Igreja romana tinha de usar urgentemente de todas as suas armas. As da arte? Na Itália, ela servia já a propaganda ortodoxa. Em 1138, mestre Guglielmo de Luca erguera a imagem de Cristo crucificado diante daqueles que duvidavam das virtudes do seu sacrifício; no coro de Santa Maria Trastevere, os mosaístas colocavam a efígie triunfal da Mãe de Deus: estas obras proclamavam a verdade da encarnação. Em Parma, para decorar em 1178 o ambão da catedral e o estrado onde se lia ao povo o texto do Evangelho, os clérigos tinham convidado Benedetto Antelami a retomar a imagem bizantina da Deposição da cruz. Perante o Cristo morto no Calvário, no meio dos soldados, das santas mulheres e de Maria que lhe beija a mão direita, como não acreditar que Deus não é somente espírito de luz, que se fez carne para sofrer e para suportar a morte, a fim de levar a humanidade consigo para a redenção? Alguns anos antes, em 1160-1170, no próprio foco da dissidência, o portal de Saint-Gilles erguera sobre um vasto teatro a exortação anti-herética. Entre as colunas dum templo antigo, pisando aos pés as forças do mal e os fermentos das crenças más, os apóstolos, testemunhas do Verbo encarnado, erguem-se na força da verdadeira fé; são os seus atletas. O friso que suportam desenrola a narrativa evangélica. Concentra-a, no mainel da porta principal e sobre a representação da Ceia. Proclama a verdade da Eucaristia. No final do século XII, a arte românica do Sul propunha as formas convincentes duma propaganda visual. Foi no entanto a arte das catedrais góticas que, em toda a cristandade, se tornou então o instrumento, talvez o mais eficaz, da repressão católica.”

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