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domingo, 22 de agosto de 2021

SPQR – Uma História da Roma Antiga (Parte II), de Mary Beard

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4220-940-2

Tradução: Luis Reyes Gil

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 576

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Sinopse: Ver Parte I




Conquista e consequências

Os “53 anos” de Políbio cobriam o final do século III a.C. e o início do II a.C., mas foi cerca de sessenta anos antes que os romanos enfrentaram pela primeira vez um inimigo de ultramar. Tratava-se de Pirro [Pyrrhus], governador de um reino no norte da Grécia, que em 280 a.C. navegou até a Itália para dar apoio à cidade de Taranto contra os romanos. Seu chiste autodepreciativo — que suas vitórias contra Roma haviam lhe custado tantos homens que ele não teria como arcar com outra vitória — está por trás da famosa expressão moderna “vitória de Pirro”, indicando um tipo de vitória com um preço tão alto que equivale a uma derrota. A expressão é até generosa com o lado romano da história, pois Pirro era um oponente à altura. Supõe-se que Aníbal o teria avaliado como o maior líder militar depois de Alexandre, o Grande, e — segundo várias anedotas afetuosas — era uma espécie de showman encantador. Foi o primeiro a realizar a façanha de trazer elefantes para a Itália, e dizem que em certa ocasião tentou, sem sucesso, desconcertar um romano visitante ao fazer sair de trás de uma cortina uma de suas feras escondida. É também o primeiro personagem da história de Roma a quem podemos atribuir um rosto de maneira plausível.

Da invasão de Pirro até 146 a.C. — quando os exércitos romanos destruíram não só Cartago, no final do que ficou conhecido como Terceira Guerra Púnica (do latim punicus, ou “cartaginês”), mas também, quase simultaneamente, a rica cidade grega de Corinto —, houve uma guerra mais ou menos continuada, envolvendo Roma e seus inimigos, na península Itálica e além-mar. Um estudioso antigo apontou o ano “em que Caio Atílio [Gaius Atilius] e Tito Mânlio [Titus Manlius] foram cônsules” (235 a.C.) como o único momento desse período em que não houve hostilidades.

Os conflitos mais celebrados, e mais devastadores, foram as duas primeiras Guerras Púnicas, contra Cartago. A primeira durou mais de vinte anos (de 264 a 241 a.C.), a maior parte dela travada na Sicília e nos mares em volta, exceto a desastrosa incursão romana no território cartaginês, no norte da África. O conflito terminou com a Sicília sob controle romano — e após uns poucos anos a Sardenha e a Córsega também, embora o epitáfio do filho de Barbato exagere um pouco suas realizações afirmando que ele “capturou” a ilha. Num achado recente extraordinário, alguns dos detritos da última batalha naval entre romanos e cartagineses foram dragados do fundo do Mediterrâneo. Próximo ao litoral da Sicília, onde as duas frotas supostamente se enfrentaram, arqueólogos que exploravam a área desde 2004 recuperaram vários esporões de bronze de navios afundados (a maioria romanos, mas também um de navio cartaginês), pelo menos oito elmos de bronze, um deles carregando um vestígio de algum escrito púnico, provavelmente riscado por seu dono afogado, e ânforas de cerâmica que possivelmente carregavam os suprimentos dos navios (ver lâmina 8).

A Segunda Guerra Púnica se deu em uma escala geográfica muito diferente. Travada entre 218 a.C. e 201 a.C., é hoje mais lembrada pelo heroico fracasso de Aníbal, que cruzou os Alpes com seus elefantes (mais um golpe de propaganda do que um recurso militar efetivo) e infligiu pesadas baixas aos romanos na Itália, em especial no confronto mais famoso, a Batalha de Canas [Cannae], no sul, em 216 a.C. Somente depois de mais de uma década de confrontos, o governo de Aníbal em Cartago — cada vez mais inquieto em relação ao desfecho da aventura e agora tendo que enfrentar o exército invasor de Cipião Africano — chamou-o de volta para casa. Mas não se tratou de um mero confronto entre a Itália e o norte da África. Havia começado com uma batalha entre romanos e cartagineses na Espanha, o que fez os romanos lutarem ali pela maior parte do século II a.C. E a possibilidade de Aníbal receber apoio da Macedônia levou os romanos a uma série de guerras no norte da Grécia, que terminaram com a derrota do rei macedônio Perseu em 168 a.C. por Emílio Paulo [Aemilius Paullus], pai natural de Cipião Emiliano, e logo depois com o controle de toda a região que chamamos de Grécia continental.

Além disso, os romanos estavam também envolvidos em grandes conflitos com os gauleses no extremo norte da Itália na década de 220 a.C. E fizeram também intervenções periódicas cruzando o Adriático, em parte para lidar com aqueles que chamavam de piratas (um termo genérico para “inimigos em navios”), que eram apoiados pelas tribos e reinos do litoral oposto — pelo menos era o que se dizia. E em 190 a.C., sob o comando de Cipião Asiático, impuseram derrota decisiva a Antíoco, “o Grande”, da Síria. Este não só estava ocupado em seguir o modelo de Alexandre, o Grande, e estender sua base de poder, mas também havia abrigado Aníbal, agora no exílio de Cartago, que segundo se dizia oferecia ao rei aulas sobre como enfrentar os romanos.

As campanhas militares eram um aspecto definidor da vida romana, e os escritores organizaram a história desse período, como acabei de fazer também, em torno da sucessão de guerras, dando-lhes títulos caligráficos, muitos deles mantidos até hoje. Quando Salústio chamou seu ensaio sobre o complô de Catilina de Guerra contra Catilina, ou Bellum Catilinae, estava refletindo, e talvez sutilmente parodiando, a tradição romana de encarar a guerra como o princípio estruturante da história. Era uma tradição bem antiga. Há um trecho sobrevivente do poema épico de Ênio sobre a história de Roma que se refere explicitamente à “Segunda Guerra Púnica”, na qual ele lutou como aliado romano; foi escrito antes de a terceira ter acontecido.

Em termos práticos, os romanos direcionavam enormes recursos para a guerra e, mesmo como vencedores, pagaram um preço imenso em vidas humanas. Ao longo desse período, algo em torno de 10% a 25% da população adulta masculina havia servido em legiões todos os anos, uma proporção maior do que em qualquer outro Estado pré-industrial e, na estimativa mais alta, comparável à taxa de convocação da Primeira Guerra Mundial. Em Canas, combateram duas vezes mais legiões do que em Sentino oitenta anos antes — o que é uma boa indicação do crescente porte desses conflitos e da logística cada vez mais complexa. Um exército do porte daquele que os romanos e seus aliados posicionaram em Canas exigiria, por exemplo, cerca de cem toneladas só de trigo, por dia. As tratativas com comunidades locais que isso implicava, a organização de centenas de animais, que por sua vez avolumavam as exigências ao consumirem necessariamente parte do que carregavam, e as redes de coleta e distribuição, tudo isso teria sido inconcebível no início daquele século.

É mais difícil estipular uma cifra para as baixas: não havia uma contagem sistemática das mortes num campo de batalha naquela época; e todos os números dos textos antigos têm que ser tratados com reservas, vitimados por exageros, equívocos e, ao longo dos anos, por alguns terríveis erros de cópia por parte de monges medievais. Mesmo assim, o total das cifras de baixas romanas que Lívio fornece para todas as batalhas que ele registra nos primeiros trinta anos do século II a.C. — ou seja, sem incluir as grandes perdas enfrentadas contra Aníbal — chega a pouco mais de 55 mil mortes. É uma cifra extremamente baixa. Havia provavelmente uma tendência patriótica de reduzir o número das perdas romanas; não fica claro se os aliados eram somados aos cidadãos romanos nessa conta; algumas batalhas e escaramuças podem não ter sido incluídas na lista de Lívio; e muitos morreram subsequentemente devido a ferimentos (na maioria das circunstâncias, as armas antigas eram muito melhores para ferir do que para matar; a morte sobrevinha mais tarde, por infecção). Mas isso dá uma indicação do custo humano dessa atividade bélica somente no lado romano. O preço pago pelos derrotados é ainda mais difícil de estimar, mas presume-se que tenha sido bem mais alto.

É necessário, no entanto, ver além dessa carnificina, por mais terrível que tenha sido, para examinar melhor a realidade e a organização do combate e investigar a política doméstica que sustentou a expansão romana, assim como as ambições romanas e a geopolítica mais ampla do antigo Mediterrâneo que podem tê-la incentivado. Políbio é o guia mais importante, mas há outras evidências contemporâneas eloquentes — com frequência, documentos inscritos em pedra — que tornam possível rastrear algumas interações entre os romanos e o mundo exterior. Ainda sobrevivem relatos que captam em primeira mão as experiências desconcertantes vividas em Roma por enviados das pequenas cidades gregas; e também podemos ler os textos de detalhados tratados entre os romanos e Estados estrangeiros. O fragmento mais antigo, de 212 a.C., é parte de um tratado entre Roma e um grupo de cidades gregas, e estabelece regras precisas sobre como qualquer saque de guerra deverá ser dividido: basicamente, cidades e casas aos gregos, bens móveis aos romanos.

Também houve consequências importantes para a própria Roma do seu sucesso militar ultramarino. A revolução literária foi apenas parte disso. Em meados do século II a.C., os lucros da atividade bélica haviam tornado o povo romano de longe o mais rico entre todos em seu mundo conhecido. Milhares e milhares de cativos viraram mão de obra escrava que trabalhava nos campos romanos, em suas minas e fábricas, explorando recursos em uma escala muito mais intensiva do que já ocorrera antes e alimentando a produção romana e o crescimento de sua economia. Lingotes de ouro e prata eram transportados em carrinhos de mão, trazidos (ou roubados) das ricas cidades e reinos do Oriente, despejados no bem guardado porão do templo de Saturno no Fórum, que funcionava como o “tesouro” do Estado. E as sobras eram suficientes para encher os bolsos dos soldados, de um general ao mais reles recruta.

Os romanos tinham muito o que celebrar. Parte da riqueza foi para deleites urbanos, das novas instalações do porto e amplos armazéns no Tibre a novos templos que se enfileiravam pelas ruas, agradecendo o auxílio dos deuses em assegurar as vitórias que haviam gerado toda aquela riqueza. E é fácil imaginar o prazer generalizado quando em 167 a.C. Roma se tornou um Estado livre de impostos: o tesouro estava tão abarrotado — graças, particularmente, aos espólios da recente vitória sobre a Macedônia — que a taxação direta dos cidadãos romanos foi suspensa, exceto em emergências, embora eles continuassem sujeitos a uma série de outras cobranças, como tributos alfandegários ou uma taxa especial sobre a libertação de escravos.

Essas mudanças, porém, também foram desestabilizadoras. O problema não se restringia a alguns moralistas romanos mal-humorados, preocupados com os perigosos efeitos de toda aquela riqueza e “luxo” (nas palavras deles). A expansão do poder romano suscitou grandes debates e paradoxos sobre o lugar de Roma no mundo, a respeito do que podia ser considerado “romano” quando uma área enorme do Mediterrâneo estava sob controle de Roma e onde se poderia colocar agora o limite entre barbárie e civilização, e de que lado dessa divisão estaria Roma. Quando, por exemplo, no final do século III a.C. as autoridades romanas deram as boas-vindas à deusa Grande Mãe dos planaltos da atual Turquia e solenemente instalaram-na num templo no Palatino, com tudo o que tinha direito, incluindo seu séquito de sacerdotes de longos cabelos, autocastrados e autoflagelantes — o quanto isso tinha de romano?”

 

 

“Políbio dissecou a organização interna de Roma — que, insistia, era o sustentáculo de seu sucesso externo — de uma posição privilegiada, que combinava um par de décadas de experiências em primeira mão com toda a sofisticação da teoria política grega na qual havia sido treinado em casa. Sua obra é, com efeito, uma das mais antigas tentativas que sobreviveram de uma antropologia política comparativa.

Não surpreende, portanto, que o seu relato seja uma maravilhosa combinação de aguda observação, assombro e desesperadas tentativas ocasionais de teorizar a política romana em seus próprios termos. Ele investigou com atenção o ambiente à sua volta e seus novos amigos romanos. Identificou, por exemplo, a importância da religião, ou do “temor dos deuses”, no controle do comportamento romano, e ficou impressionado com a sistemática eficiência da organização romana; daí a sua importante — mas hoje frequentemente desconsiderada — discussão sobre os arranjos militares, com suas regras autodidáticas sobre como dispor um acampamento do Exército, onde deveria ser colocada a tenda do cônsul, como planejar um comboio de bagagem para os legionários, e o cruel sistema de disciplina. Era também perspicaz o suficiente para enxergar, sob a superfície dos vários costumes romanos e de seus passatempos favoritos, seu sentido social subjacente. Todas aquelas histórias sobre a coragem, o heroísmo e o autossacrifício romanos que ele deve ter ouvido — contadas e recontadas em volta de fogueiras de acampamentos militares ou em mesas de jantar — não eram simples entretenimento, concluiu. Tinham a função de incentivar os jovens a imitarem os feitos nobres de seus ancestrais; eram um aspecto do espírito de emulação, ambição e competição que ele viu percorrer a elite da sociedade romana.

Outro aspecto disso — e um que se abre para um estudo de caso mais extenso, apesar de um pouco mórbido — podia ser encontrado nos funerais de “homens ilustres”. Novamente, Políbio deve ter participado de um número suficiente para poder extrair seu sentido mais profundo. O corpo, explica ele, era carregado até o Fórum e colocado sobre a rostra, normalmente apoiado de algum modo para ficar na posição vertical, visível para uma grande plateia. Na procissão que se seguia, os membros da família usavam máscaras feitas à semelhança dos ancestrais do falecido e vestiam roupas adequadas aos cargos que cada um deles tivesse ocupado (togas com bainha roxa, e assim por diante), como se estivessem todos presentes, “vivos e respirando”. O discurso no funeral, pronunciado por um membro da família, começava com o relato das realizações do cadáver exposto na rostra, mas depois prosseguia com as carreiras de todos os outros personagens, que nessa hora estavam sentados em cadeiras de marfim, ou pelo menos revestidas de marfim, enfileiradas perto do cadáver. “O mais importante resultado disso”, conclui Políbio, “é que a geração mais jovem se inspira a suportar todo o sofrimento em nome do bem comum, na esperança de alcançar a glória que pertence aos valentes.”

Essa talvez seja uma visão muito cor-de-rosa do lado competitivo da cultura romana. A competição desenfreada acabou sendo mais detrutiva do que construtiva para a República. Mesmo antes, vale supor que para cada jovem romano inspirado a ficar à altura das realizações de seus ancestrais, havia outro oprimido pelo peso da tradição e pelas expectativas alimentadas a seu respeito — como Políbio poderia ter compreendido se tivesse escolhido refletir sobre todas as histórias da cultura romana que falavam de filhos que mataram seus pais. Mas essa é uma visão muito bem condensada em outro epitáfio no túmulo dos Cipiões, que é tentador achar que Políbio possa ter visto: “Tive descendentes. Procurei igualar os feitos de meu pai. Obtive elogios de meus ancestrais, que portanto ficaram felizes por eu ter nascido deles. Minha carreira enobreceu a linhagem da minha família”.

No cerne da discussão de Políbio, porém, residia uma questão maior. Como seria possível caracterizar o sistema político romano como um todo? Como funcionava? Nunca houve uma constituição romana escrita, mas Políbio viu em Roma um exemplo perfeito, na prática, de um velho ideal filosófico grego: a “constituição mista”, que combinava os melhores aspectos de monarquia, aristocracia e democracia. Os cônsules — que tinham total controle militar, podiam convocar assembleias populares e dar ordens a todas as demais autoridades (exceto aos tribunos plebeus) — representavam o elemento monárquico. O Senado — que naquela época tinha a seu encargo as finanças de Roma, a responsabilidade por delegações para e de outras cidades e supervisionava de fato a lei e a segurança por todo o território romano e de seus aliados — representava o elemento aristocrático. O povo representava o elemento democrático. Não era “democracia” ou “o povo” no sentido moderno: não havia algo como sufrágio universal no mundo antigo — mulheres e escravos nunca tiveram direitos políticos formais em lugar algum. Políbio referia-se ao grupo de cidadãos homens como um todo. Como na Atenas clássica, eles — e só eles — elegiam as autoridades do Estado, aprovavam ou rejeitavam leis, tomavam decisões finais sobre ir à guerra e agiam como corte judicial no caso de grandes transgressões.

O segredo, sugeria Políbio, estava em uma delicada relação de pesos e contrapesos entre cônsules, o Senado e o povo, de modo que nem monarquia, nem aristocracia, nem Senado nunca prevaleciam inteiramente. Os cônsules, por exemplo, poderiam ter tido comando total, monárquico, em campanha, mas tinham que ter sido eleitos pelo povo em primeiro lugar, e dependiam do Senado para verbas — e era o Senado que decidia atribuir ou não ao general vitorioso um triunfo no final da campanha. Exigia-se também um voto do povo para ratificar qualquer tratado que pudesse ser feito. E assim por diante. Eram, segundo Políbio, tais pesos e contrapesos no sistema político que produziam a estabilidade interna sobre a qual o sucesso exterior de Roma se assentava.

Essa é uma análise muito perspicaz, sensível às pequenas diferenças e sutis nuances que distinguem um sistema político de outro. Sem dúvida, em certos aspectos Políbio tenta forçar a vida política que ele testemunhou em Roma a se acomodar ao modelo analítico grego, que não se encaixa inteiramente. Impor à sua discussão termos como “democracia”, por exemplo, é profundamente enganoso. “Democracia” (demokratia) era algo com raízes políticas e linguísticas no mundo grego. Nunca foi uma palavra de ordem em Roma, mesmo em seu restrito sentido antigo ou mesmo para os políticos populares romanos mais radicais. Na maior parte dos escritos conservadores que sobreviveram, a palavra significa algo próximo de “governo da massa”. Faz pouco sentido perguntar o quanto os políticos da Roma republicana eram “democráticos”: os romanos lutavam por liberdade, não por democracia. No entanto, sob outro aspecto, ao forçar seus leitores a atentarem para o povo em sua apreciação da política romana e olharem além do poder das autoridades eleitas e do Senado aristocrático, Políbio abriu um importante debate que é válido ainda hoje. O quanto a voz popular tinha influência na política da Roma republicana? Quem controlava Roma? Como nós deveríamos caracterizar o sistema político romano?

Seria fácil demais traçar um quadro dos processos políticos republicanos como sendo completamente dominados pela minoria rica. O resultado do Conflito das Ordens não foi a revolução popular, mas a criação de uma nova classe governante, compreendendo plebeus ricos e patrícios. A primeira qualificação para a maioria dos cargos políticos era a riqueza em uma escala substancial. Ninguém podia concorrer nas eleições sem ser aprovado num teste financeiro que excluía a maior parte dos cidadãos; a quantia exata necessária para se qualificar não é conhecida, mas as implicações são de que se situava em um nível bastante elevado da hierarquia do censo, a chamada categoria da cavalaria ou equestre. Quando as pessoas se juntaram para votar, o sistema de votação foi arranjado em favor dos ricos. Já vimos como isso funcionava na Assembleia das Centúrias, que elegia altos oficiais: se as centúrias ricas se unissem, podiam determinar o resultado sem que as centúrias pobres tivessem chance de votar. A outra assembleia importante baseada nas divisões “tribais” geográficas era mais equitativa em tese — mas, conforme o tempo foi passando, deixou de ser assim na prática. Das 35 divisões geográficas finalmente definidas em 241 a.C. (até esse momento, o número de tribos foi aumentando conforme a cidadania era estendida por toda a Itália), apenas quatro cobriam a própria cidade. As 31 restantes abrangiam o então distante território rural de Roma. Como os votos só podiam ser dados pessoalmente na cidade, a influência daqueles que tinham condições de tempo e transporte para fazer a viagem era esmagadora; os votos da população urbana residente tinham impacto apenas sobre essa pequena minoria de tribos urbanas. Além disso, a rigor, as assembleias eram simplesmente para votar mediante uma lista de candidatos ou de uma proposta apresentada por uma auto-ridade importante. Não havia uma ampla discussão; de baixo não vinham propostas ou mesmo emendas; no caso de quase todas as propostas de legislação das quais temos notícia, o povo votava a favor daquilo que lhe era apresentado. Isso não era poder popular como o entendemos hoje.

No entanto, havia outro aspecto. Além das prerrogativas formais do povo que Políbio enfatiza, há claros indícios de uma cultura política mais ampla na qual a voz popular era um elemento-chave. Os votos dos pobres importavam e eram ansiosamente caçados. Os ricos usualmente não eram muito unidos, e as eleições eram concorridas. Aqueles que detinham ou procuravam obter cargos políticos davam muita importância a persuadir o povo a votar neles ou nas leis que propunham, e dedicavam enorme atenção a aprimorar as técnicas de retórica que lhes permitiriam atingir esse objetivo. Se ignorassem ou humilhassem os pobres corriam riscos. Um dos aspectos diferenciais da cena política republicana eram as reuniões semiformais (ou contiones), com frequência realizadas pouco antes das assembleias de votação, nas quais autoridades rivais tentavam convencer as pessoas sobre seu ponto de vista (Cícero fez seu segundo e quarto discursos contra Catilina, por exemplo, em contiones). Não sabemos ao certo o quanto costumavam ser frequentes ou atrair comparecimento. Mas há várias indicações de que envolviam fervor político, entusiasmo vociferante e muito barulho. Certa ocasião, no século I a.C., conta-se que a gritaria era tão estrondosa que um corvo, que desafortunadamente passara por ali, caiu estatelado no chão, atordoado.

Há também todo tipo de anedota sobre a importância e a intensidade da caça de votos, e sobre como o voto do povo podia ser conquistado ou perdido. Políbio conta uma história curiosa sobre o rei sírio Antíoco IV (Epifânio, “famoso” ou mesmo “deus manifestado”), filho de Antíoco, o Grande, que havia sido “esmagado” por Cipião Asiático. Quando jovem ele viveu mais de uma década como refém de Roma antes de ser trocado por um parente mais jovem, aquele a quem Políbio mais tarde deu conselhos sobre seu plano de fuga. Ao voltar para o Oriente, levou consigo vários hábitos romanos que havia adquirido em sua estadia. A maioria consistia em adotar uma atitude mais popular: falar com qualquer pessoa que encontrasse, dar presentes a pessoas comuns e percorrer lojas de artesãos. Mas o que causava mais impacto era que vestia toga e circulava pelo mercado como se fosse candidato a alguma eleição, apertando as mãos das pessoas e pedindo seu voto. Isso deixou perplexas as pessoas em sua vistosa capital, Antioquia, que não estavam acostumadas a esse comportamento da parte de um monarca, e o apelidaram então de Epimânio (“insano”, um trocadilho com seu nome). Mas fica claro que uma lição que Antíoco aprendera em Roma era que o povo e seus votos importavam.

Igualmente reveladora é uma anedota sobre outro membro da família Cipião no século II a.C., Públio Cornélio Cipião Násica [Publius Cornelius Scipio Nasica]. Ele estava um dia caçando votos em uma campanha para ser eleito ao cargo de edil e ocupava-se em apertar a mão dos eleitores (procedimento-padrão, tanto naquela época quanto hoje). Ao se deparar com alguém cujas mãos estavam calejadas pelo trabalho no campo, o jovem aristocrata brincou: “Meu Deus, você por acaso anda com as mãos?”. Alguém ouviu, e as pessoas comuns concluíram que ele estava zombando de sua pobreza e de seu trabalho. O desfecho, desnecessário dizer, foi que ele perdeu a eleição. Então que tipo de sistema político era esse? O equilíbrio entre os diferentes interesses certamente não era tão equitativo como Políbio faz parecer. Os pobres nunca poderiam chegar ao topo da política romana; pessoas comuns jamais detinham a iniciativa política; e era axiomático que quanto mais rico fosse o cidadão, maior peso político poderia ter. Mas essa forma de desequilíbrio é familiar em muitas das chamadas democracias modernas: em Roma também os ricos e privilegiados concorriam a cargos e poder político que só podiam ser garantidos por eleições populares e pelo favor das pessoas comuns, que nunca teriam os meios financeiros para concorrer elas mesmas. Como o jovem Cipião Násica descobriu às próprias custas, o sucesso dos ricos era uma dádiva concedida pelos pobres. Os ricos tiveram que aprender a lição de que dependiam do povo como um todo.”

 

 

De modo bem similar à extensão do controle romano na Itália, essa expansão ultramarina nos séculos III e II a.C. era mais complexa do que o mito familiar das legiões romanas marchando, conquistando e tomando territórios estrangeiros. Primeiro, os romanos não eram os únicos agentes no processo. Eles não invadiram um mundo de povos amantes da paz, que viviam apenas cuidando da sua vida até que aqueles bandidos vorazes chegaram. Por mais que possamos ser cínicos, com razão, diante das afirmações dos romanos de que estavam indo para a guerra apenas atendendo pedidos de auxílio de seus amigos e aliados (esse tem sido o pretexto para algumas das guerras mais agressivas da história), parte da pressão para que Roma interviesse realmente veio de fora.

O mundo do Mediterrâneo oriental, da Grécia à atual Turquia e além dela, foi o contexto da maior parte da atividade militar de Roma nesse período. Era um mundo de conflitos políticos, alianças instáveis e violência contínua e brutal entre os Estados, similar à da Itália em seus primórdios, mas em maior escala. Esse era o legado das conquistas do tipo “arrebentar e levar” de Alexandre, o Grande, que morreu em 323 a.C., antes que precisasse encarar o que fazer com aqueles que havia derrotado. Seus sucessores formaram dinastias rivais, que se envolveram em séries mais ou menos ininterruptas de guerras e disputas, entre eles e com Estados menores e coalizões em suas vizinhanças. Pirro foi um desses soberanos. Antíoco Epifânio foi outro: após sua detenção em Roma e tentativas de política populista em casa, conseguiu em seu reinado de dez anos, entre 175 a.C. e 164 a.C., invadir o Egito (duas vezes), o Chipre, a Judeia (o que provocou também a revolta dos Macabeus), a Pártia e a Armênia.

Quanto mais Roma era percebida como poderosa, mais esses bandos guerreiros encaravam os romanos como aliados úteis em suas disputas locais de poder e cortejavam sua influência. Representantes do Oriente vinham diversas vezes a Roma na expectativa de obter apoio moral ou intervenção militar. Esse é um tema recorrente nos relatos históricos do período: há notícias de muitos enviados, por exemplo, durante os preparativos para a campanha de Emílio Paulo contra Perseu, tentando convencer os romanos a fazer algo a respeito das ambições da Macedônia. Mas a cena mais clara de como essa “corte” funcionava na prática vem de Teos, uma cidade no litoral ocidental da moderna Turquia. Há uma inscrição de meados do século II a.C. que registra as tentativas feitas para atrair os romanos a uma disputa menor, sobre a qual nada mais se sabe, a respeito de alguns direitos territoriais, entre a cidade de Abdera, no norte da Grécia, e um rei local, Kotys.

O texto é uma “carta de agradecimento” entalhada em pedra, dirigida à cidade de Teos pelo povo de Abdera. Pois, ao que parece, os habitantes de Teos haviam concordado em enviar dois homens até Roma, quase como lobistas no sentido moderno do termo, para conquistar o apoio de Roma à causa de Abdera contra o rei. Os abderitas descrevem de modo preciso como essa dupla agiu, detalhando suas visitas regulares às casas de membros-chave do Senado. Os delegados, ao que parece, trabalharam tanto que “ficaram esgotados física e mentalmente, e encontraram gente importante de Roma e conseguiram convencê-los fazendo-lhes obséquios diariamente”; e quando algumas das pessoas que visitavam pareciam favoráveis a Kotys (pois este também mandara enviados a Roma), “eles conquistaram sua amizade expondo-lhes os fatos e fazendo visitas diárias aos seus átrios”, isto é, aos saguões centrais de suas casas romanas.

O silêncio de nosso texto sobre o resultado dessas abordagens sugere que as coisas não foram bem para o lado dos abderitas. Mas esse instantâneo de representantes rivais, não só abrindo caminho no Senado, mas pressionando senadores individualmente todos os dias em favor de sua tese, dá uma ideia de como o auxílio de Roma podia ser requisitado de maneira ativa e persistente. E as centenas, literalmente, de estátuas de indivíduos romanos — como “salvadores e benfeitores” — colocadas nas cidades do mundo grego mostram como essa intervenção, caso viesse a ocorrer e fosse bem-sucedida, era comemorada. Não temos como identificar cada um dos aspectos da duplicidade por trás de tais palavras: sem dúvida havia não só medo e lisonja envolvidos, mas também gratidão sincera. Mas trata-se de um lembrete útil de que a simples expressão “conquista romana” pode encobrir uma ampla gama de pontos de vista, motivações e aspirações de cada um dos lados.

Além disso, os romanos não tentavam sistematicamente anexar território ultramarino ou impor mecanismos padronizados de controle. O que explica em parte por que o processo de expansão foi tão rápido: eles não estavam implantando nenhuma infraestrutura de governo. Certamente, extraíam recompensas materiais daqueles que derrotavam, mas de maneiras diferentes, ad hoc. Eles impuseram grandes indenizações em dinheiro a alguns Estados, um total de mais de seiscentas toneladas de lingotes de prata só na primeira metade do século II a.C. Em outras partes, assumiram os regimes regulares de taxação já estabelecidos por governantes anteriores. Algumas vezes conceberam novas maneiras de extorquir ricas receitas. As minas de prata da Espanha, por exemplo, antes parte do domínio de Aníbal, logo passaram a produzir tanto minério que a poluição ambiental de seu processamento ainda pode ser detectada em amostras datáveis extraídas das profundas camadas de gelo da Groenlândia. E Políbio, que visitou a Espanha em meados do século II a.C., escreveu a respeito de 40 mil mineiros, a maior parte escravos, trabalhando em apenas uma região do território de mineração (talvez não seja literal: “40 mil” era uma expressão comum para se referir a “um número muito grande”, como o nosso “milhares”). As formas de controle político dos romanos eram igualmente variadas, indo de tratados de “amizade” que asseguravam a não interferência à tomada de reféns como garantia de bom comportamento, ou à presença mais ou menos permanente de soldados ou autoridades romanas. O que aconteceu depois que Emílio Paulo derrotou o rei Perseu é apenas um exemplo da aparência de tal pacote de arranjos. A Macedônia foi dividida em quatro Estados autogovernados independentes; eles pagavam impostos a Roma, pela metade do valor que Perseu cobrava; e, neste caso, as minas macedônias foram fechadas, para evitar que seus recursos fossem usados para construir uma nova base de poder na região.

Era de fato um Império coercitivo no sentido de que os romanos levavam embora os ganhos e tentavam assegurar que poderiam impor sua vontade quando quisessem, com a ameaça da força sempre no ar. Não era um Império de anexação no sentido que romanos posteriores iriam entendê-lo. Não havia nenhuma estrutura legal detalhada de controle, nem regras ou regulamentações. Nesse período, até mesmo a palavra latina imperium, que por volta do final do século I a.C. podia significar “Império” como uma área inteira sob governo romano direto, tinha um sentido mais próximo de “poder de expedir ordens que são obedecidas”. E provincia, que se tornou o termo-padrão para uma subdivisão bem definida do Império sob o controle de um governador, não era um termo geográfico, e sim uma responsabilidade atribuída a uma autoridade romana. Podia ser, e com frequência era, uma atribuição de atividade militar ou administrativa em um lugar determinado. A partir do final do século III a.C., a Sicília e a Sardenha passaram a ser designadas como provinciae, e a partir do início do século II a.C., duas provinciae militares na Espanha tornaram-se um padrão, embora suas fronteiras fossem fluidas. Mas podia muito bem ser uma responsabilidade em relação a algo, digamos, o tesouro romano — e, por volta da passagem para o século II a.C., Plauto em suas comédias usa o termo provincia como uma brincadeira para se referir aos deveres dos escravos. Nessa época, nenhum romano era enviado para ser o “governador de uma província”, como ocorreria mais tarde.

O que estava em jogo para os romanos era se poderiam vencer em batalha e depois se — por meio de persuasão, ameaça ou força — poderiam impor sua vontade onde, quando e conforme decidissem. O estilo desse imperium é claramente resumido na história do último encontro entre Antíoco Epifânio e os romanos. O rei estava invadindo o Egito pela segunda vez, e os egípcios tinham pedido ajuda aos romanos. Um enviado romano, Caio Popílio Lenas [Gaius Popilius Laenas], foi despachado e encontrou Antíoco fora de Alexandria. Em razão de sua longa familiaridade com os romanos, o rei sem dúvida esperava um encontro bastante cortês. Em vez disso, Lenas passou-lhe um decreto do Senado que o instruía a retirar-se do Egito imediatamente. Quando Antíoco pediu tempo para consultar seus conselheiros, Lenas pegou um pedaço de pau e desenhou um círculo no chão empoeirado em volta do rei. Só poderia colocar o pé para fora daquele círculo depois de ter dado sua resposta. Perplexo, Antíoco mansamente concordou com a exigência do Senado. Esse era um Império de obediência.”

 

 

Os novos horizontes do Império também ajudaram a criar — ou pelo menos a definir com contornos e sentidos ideológicos mais nítidos — a imagem do “romano antiquado”. Esse personagem prático, sensato, audacioso, sem floreios, desempenha seu papel até hoje em nosso estereótipo da cultura romana. É provável que tenha sido em grande parte uma criação também desse período.

Alguns dos oradores mais eloquentes dos séculos III e II a.C. ficaram famosos por atacar a influência corruptora da cultura estrangeira em geral, e da grega em particular, sobre a moral e o comportamento romano tradicional. Seus alvos iam da literatura e filosofia ao hábito de se exercitar nu, à comida sofisticada e à depilação. Na linha de frente dessas críticas estava Marco Pórcio Catão [Marcus Porcius Cato] (“Catão, o Velho”), um contemporâneo e rival de Cipião Africano, que Catão criticou, entre outras coisas, por se divertir com ginástica grega e teatros na Sicília. Dizem ainda que Catão teria chamado Sócrates de “tagarela inveterado”, que recomendava uma dieta medicinal romana à base de legumes e verduras verdes, pato e pombo (em contraposição às prescrições dos médicos gregos, que segundo ele podiam muito bem matá-lo), e que advertia que o poder romano podia ser derrubado por causa da paixão pela literatura grega. Segundo Políbio, Catão uma vez observou que um dos sinais da deterioração da República era que os garotos bonitos agora custavam mais caro que os campos, e que jarras de peixe em conserva valiam mais do que agricultores. Não estava sozinho nessas opiniões. Em meados do século II a.C., outra destacada figura encontrou apoio ao defender que um teatro em estilo grego em construção em Roma deveria ser demolido, já que era melhor e mais favorável à formação do caráter dos romanos que eles assistissem às peças em pé, como tradicionalmente vinham fazendo, e não sentados à moda decadente do Oriente. Em resumo, segundo tais argumentos, o que se fazia passar por “sofisticação” grega nada mais era do que uma insidiosa “flacidez” (ou mollitia, no jargão romano), que fatalmente minaria a força do caráter romano.

Seria isso uma simples reação conservadora contra as ideias modernas que chegavam a Roma de fora, um surto de “guerras culturais” entre tradicionalistas e modernizadores? Em parte talvez fosse. Mas era também algo mais complexo, e mais interessante do que isso. Apesar de todas as suas queixas, Catão ensinara grego ao filho, e seus escritos que sobreviveram — notavelmente, um ensaio técnico sobre cultivo e gestão agrícola, além de citações de seus discursos e de sua história da Itália — mostram que era bem familiarizado com os recursos gregos de retórica que dizia deplorar. E algumas de suas afirmações sobre a “tradição romana” eram mais próximas de uma mera fantasia criativa. Não há qualquer razão para supor, por exemplo, que os veneráveis romanos idosos assistissem espetáculos teatrais em pé.

A verdade é que a versão de Catão dos valores romanos antigos e sensatos era também uma invenção do seu tempo, e não só uma defesa de tradições romanas ancestrais. Identidade cultural é sempre uma noção enganosa, e não temos ideia de como os primeiros romanos encaravam seu próprio caráter, nem como se distinguiam de seus vizinhos. Mas o sentido, diferenciado, bem demarcado, da dura austeridade romana — que romanos posteriores projetaram em seus pais fundadores e que foi preservado como uma visão poderosa de romanidade no mundo moderno — era resultado de um forte choque cultural, nesse período de expansão exterior, a respeito do que significava ser romano nesse novo e vasto mundo imperial. Colocado de outro modo, a “greguice” e a “romanidade” eram não só inseparavelmente ligadas mas também diametralmente opostas.”

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