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sábado, 3 de julho de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista (Parte IV), de Karl Marx

Editora: Boitempo

Edição: Friedrich Engels

ISBN: 978-85-7559-390-5

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 984

Sinopse: Ver Parte I




“Não se pode esquecer que a taxa geral de lucro não está uniformemente determinada pelo mais-valor em todas as esferas da produção. Não é o lucro agrícola que determina o lucro industrial, mas o inverso.”

 

 

“Tudo é efêmero.” (Friedrich Engels)

 

 

“(...) Portanto, para o comprador, o direito sobre a renda não aparece como algo obtido gratuitamente, sem o trabalho, que constitui o risco e o espírito empreendedor do capital, mas como algo pago em troca de seu equivalente. Como já observamos, a renda só lhe aparece como juros do capital com o qual ele comprou as terras e, com elas, o direito a receber a renda. Da mesma forma, a um senhor de escravos que tenha comprado um negro, sua propriedade sobre este último não lhe aparece como tendo sido adquirida em virtude da instituição da escravidão como tal, mas sim pela compra e pela venda de mercadoria. Mas a venda não cria o título, ela apenas o transfere. O título precisa existir antes de se poder aliená-lo, mas assim como uma venda não pode criar tal título, tampouco o pode uma série inteira dessas mesmas vendas. O que efetivamente o criou foram as relações de produção. Assim que estas cheguem a um ponto em que precisem metamorfosear-se, desaparece a fonte material do título, econômica e historicamente justificada, emanada do processo de geração social da vida e de todas as transações nele fundadas. Do ponto de vista de uma formação econômica superior da sociedade, a propriedade privada do globo terrestre nas mãos de indivíduos isolados parecerá tão absurda quanto a propriedade privada de um ser humano sobre outro ser humano. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou, mais ainda, todas as sociedades contemporâneas reunidas não são proprietárias da Terra. São apenas possuidoras, usufrutuárias dela, e, como boni patres familias [bons pais de famílias], devem legá-la melhorada às gerações seguintes.”

 

 

“As mediações das formas irracionais em que se apresentam e se resumem determinadas condições econômicas não importam nada aos agentes práticos dessas condições econômicas em sua atividade cotidiana, e estes, por estarem acostumados a se mover no interior delas, não ficam nem um pouco escandalizados com isso. Uma absoluta contradição não tem nada de misterioso para eles. Dentro das formas de manifestação que, abstraídas de seu contexto e tomadas isoladamente, são absurdas, eles se sentem tão à vontade quanto um peixe na água. Aqui é válido o que diz Hegel com referência a certas fórmulas matemáticas, a saber, que aquilo que o senso comum considera irracional é racional, e o que ele considera racional é a própria irracionalidade*.”

*: [Georg Wilhelm Friedrich] Hegel, Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, 1. Th. Die Logik. [Hrsg. von Leopold von Hennig], em Werke, v. 6 (Berlim, 1840), p. 404 [Ed. bras.: Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. 1: A ciência da lógica, trad. Paulo Meneses, São Paulo, Loyola, 1995]. (N. E. A.)

 

 

Já observamos que o sistema monetário proclama corretamente a produção para o mercado mundial e a transformação do produto em mercadoria – portanto, em dinheiro – como pressuposto e condição da produção capitalista. No sistema mercantilista, que é a continuação do sistema monetário, o decisivo já não é a transformação do valor-mercadoria em dinheiro, mas a produção de mais-valor, porém, a partir do ponto de vista não conceitual da esfera da circulação e de tal modo que esse mais-valor é representado em mais-dinheiro, em excedente da balança comercial. Ao mesmo tempo, o que constitui propriamente os interesses de comerciantes e fabricantes daquela época, bem como a fase do desenvolvimento capitalista por eles representada, é que, na transformação das sociedades agrícolas feudais em industriais e na correspondente competição industrial entre as nações no mercado mundial, o que verdadeiramente importa é um rápido desenvolvimento do capital, que não se pode obter pelas chamadas vias naturais, mas apenas por meios coercitivos. Há uma enorme diferença se o capital nacional se transforma gradual e lentamente em capital industrial ou se essa transformação se acelera devido a impostos que, por meio de tarifas protecionistas, recaem principalmente sobre proprietários de terras, pequenos e médios camponeses e artesãos; por meio da rápida expropriação dos produtores independentes, da acumulação e concentração fortemente aceleradas dos capitais, numa palavra, por meio da criação das condições do modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo, isso faz uma enorme diferença na exploração capitalista e industrial da força produtiva natural da nação. O caráter nacional do sistema mercantilista não é, assim, uma mera fraseologia na boca de seus porta-vozes. Sob o pretexto de ocupar-se apenas com a riqueza da nação e as fontes de recursos do Estado, eles na verdade declaram os interesses da classe capitalista e o enriquecimento em geral como fim último do Estado e proclamam a sociedade burguesa contra o antigo Estado de direito divino. Ao mesmo tempo, porém, está presente a consciência de que o desenvolvimento do interesse do capital e da classe capitalista, da produção capitalista, tornou-se a base do poder nacional e da supremacia nacional na sociedade moderna.

Além disso, os fisiocratas têm razão ao dizer que, de fato, toda produção de mais-valor, e portanto também todo desenvolvimento do capital, de acordo com sua base natural, repousa sobre a produtividade do trabalho agrícola. Se os homens não fossem capazes de produzir numa jornada de trabalho mais meios de subsistência, ou seja, em sentido estrito, mais produtos agrícolas, do que cada trabalhador necessita para sua própria reprodução, se o dispêndio diário de sua força inteira de trabalho só bastasse para produzir seus meios individuais de subsistência mais indispensáveis, então não se poderia absolutamente falar de mais-produto, nem de mais-valor. Uma produtividade do trabalho agrícola que supere a necessidade individual do trabalhador é a base de toda sociedade e sobretudo a base da produção capitalista, que libera uma parcela cada vez maior da sociedade da produção de meios de subsistência imediatos e, como diz Steuart, a transforma em free hands [mãos livres], tornando-a disponível para a exploração em outras esferas.”

 

 

A economia vulgar se caracteriza precisamente por repetir aquilo que, num certo estágio já superado do desenvolvimento, era novo, original e justificado, numa época em que isso se tornou raso, maçante e falso.”

 

 

“A forma econômica específica em que o mais-trabalho não pago é extraído dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta advém diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage sobre ela de modo determinante. Nisso se funda, porém, toda a estrutura da entidade comunitária econômica, nascida das próprias relações de produção; simultaneamente com isso, sua estrutura política peculiar. Em todos os casos, é na relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos – relação cuja forma eventual sempre corresponde naturalmente a determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho e, assim, a sua força produtiva social – que encontramos o segredo mais profundo, a base oculta de todo o arcabouço social e, consequentemente, também da forma política das relações de soberania e de dependência, isto é, da forma específica do Estado existente em cada caso. Isso não impossibilita que a mesma base econômica – a mesma no que diz respeito às condições principais –, graças a inúmeras circunstâncias empíricas de diversos tipos, condições naturais, raciais, influências históricas externas etc., manifeste-se em infinitas variações e matizes, que só se podem compreender por meio de uma análise dessas circunstâncias empíricas.”

 

 

A economia vulgar, com efeito, não faz mais que interpretar, sistematizar e louvar doutrinariamente as concepções dos agentes presos dentro das relações burguesas de produção. Não nos deve surpreender, portanto, que ela, precisamente na forma de manifestação alienada das relações econômicas, nas quais essas aparecem, prima facie [à primeira vista], como contradições totais e absurdas – e toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente –, se sinta aqui perfeitamente à vontade e que essas relações lhe apareçam tanto mais naturais quanto mais escondida se encontrar nela a correlação interna, ao mesmo tempo em que são correntes para a concepção comum.”

 

 

“O processo de produção capitalista é uma forma historicamente determinada do processo social de produção em geral. Este último é tanto um processo de produção das condições materiais de existência da vida humana como um processo que, operando-se em condições histórico-econômicas de produção específicas, produz e reproduz essas mesmas relações de produção e, com elas, os portadores desse processo, suas condições materiais de existência e suas relações mútuas, isto é, sua determinada formação socioeconômica. A totalidade dessas relações que os portadores dessa produção estabelecem com a natureza e entre si, relações na quais ele produzem, é justamente a sociedade, considerada em sua estrutura econômica. Como todos os processos de produção antecedentes, a produção capitalista está submetida a determinadas condições materiais que, no entanto, contêm em si relações sociais determinadas que os indivíduos estabelecem no processo de reprodução da vida. Aquelas condições, assim como essas relações, são, por um lado, pressupostos e, por outro, resultados e criações do processo de produção capitalista, que os produz e reproduz. Vimos, além disso, que o capital – e o capitalista não é mais do que o capital personificado, que funciona no processo de produção apenas como portador do capital –, logo, o capital durante o processo social de produção que lhe corresponde, extrai determinada quantidade de mais-trabalho dos produtores diretos ou dos trabalhadores, mais-trabalho que o capitalista recebe sem equivalente e que, conforme sua essência, continua sempre a ser trabalho forçado, por mais que possa aparecer como resultado de um contrato livremente consentido. Esse mais-trabalho se representa num mais-valor, e esse mais-valor existe num mais-produto. Mais-trabalho em geral, como trabalho que vai além das necessidades dadas, tem de continuar a existir sempre. No sistema capitalista, porém, assim como no sistema escravista etc., ele assume uma forma antagônica e recebe um complemento no puro ócio de uma parte da sociedade. A necessidade de assegurar-se contra fatos acidentais e a indispensável e progressiva expansão do processo de reprodução – expansão que corresponde ao desenvolvimento das necessidades e ao progresso da população, o que, do ponto de vista capitalista, se chama acumulação – exigem determinada quantidade de mais-trabalho. O capital tem como um de seus aspectos civilizadores o fato de extrair esse mais-trabalho de maneira e sob condições mais favoráveis ao desenvolvimento das forças produtivas, das relações sociais e à criação dos elementos para uma nova formação, superior às formas anteriores da escravidão, da servidão etc. Isso conduz, por um lado, a uma fase em que desaparecem a coerção e a monopolização do desenvolvimento social (inclusive de suas vantagens materiais e intelectuais) por uma parte da sociedade à custa da outra; por outro lado, cria os meios materiais e o germe de relações que, numa forma superior da sociedade, permitirão unir esse mais-trabalho a uma redução maior do tempo dedicado ao trabalho material em geral, pois, na medida do desenvolvimento da força produtiva do trabalho, o mais-trabalho pode ser grande com uma breve jornada total de trabalho e relativamente pequeno com uma grande jornada total de trabalho. Digamos que o tempo de trabalho necessário seja = 3 e o mais-trabalho = 3; a jornada total de trabalho será, então, = 6 e a taxa do mais-trabalho = 100%. Se o trabalho necessário for = 9 e o mais-trabalho for = 3, então a jornada total de trabalho será = 12 e a taxa de mais-trabalho será apenas = 33%. Assim, da produtividade do trabalho depende quanto valor de uso se produz em determinado tempo e, portanto, também em certo tempo de mais-trabalho. A riqueza efetiva da sociedade e a possibilidade de ampliar constantemente seu processo de produção não dependem, desse modo, da duração do mais-trabalho, mas de sua produtividade e das condições mais ou menos abundantes de produção em que ela tem lugar. Com efeito, o reino da liberdade só começa onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; pela própria natureza das coisas, portanto, é algo que transcende a esfera da produção material propriamente dita. Do mesmo modo como o selvagem precisa lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para conservar e reproduzir sua vida, também tem de fazê-lo o civilizado – e tem de fazê-lo em todas as formas da sociedade e sob todos os modos possíveis de produção. À medida de seu desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, porquanto se multiplicam as necessidades; ao mesmo tempo, aumentam as forças produtivas que as satisfazem. Aqui, a liberdade não pode ser mais do que o fato de que o homem socializado, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, submetendo-o a seu controle coletivo, em vez de serem dominados por ele como por um poder cego; que o façam com o mínimo emprego de forças possível e sob as condições mais dignas e em conformidade com sua natureza humana. Mas este continua a ser sempre um reino da necessidade. Além dele é que tem início o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, só pode florescer tendo como base aquele reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição básica.”

 

 

“Em nosso exame das categorias mais simples do modo de produção capitalista, e mesmo da produção de mercadorias, ao investigarmos a mercadoria e o dinheiro, já destacamos o caráter mistificador que faz com que as relações sociais, às quais os elementos materiais da riqueza servem como portadores na produção, sejam transformadas em atributos dessas próprias coisas (mercadorias) e, ainda mais explicitamente, a própria relação de produção em uma coisa (dinheiro). Todas as formas sociais, na medida em que conduzem à produção de mercadorias e à circulação de dinheiro, tomam parte nessa distorção. Mas no modo de produção capitalista e no caso do capital, que é sua categoria dominante, sua relação de produção determinante, esse mundo encantado e distorcido se desenvolve com força ainda maior. Considerando primeiro o capital no processo imediato de produção, como extrator de mais-trabalho, essa relação é ainda muito simples, e a conexão real interna se impõe aos portadores desse processo, aos próprios capitalistas, permanece em sua consciência. A intensa luta em torno dos limites da jornada de trabalho é uma prova decisiva disso. Mesmo no interior dessa esfera não mediada, na esfera do processo direto entre trabalho e capital, as coisas não são tão simples. Ao desenvolver-se o mais-valor relativo no próprio modo de produção especificamente capitalista, com o qual se desenvolvem as forças produtivas sociais do trabalho, essas forças produtivas e as conexões sociais do trabalho aparecem no processo imediato de trabalho como tendo sido deslocadas do trabalho para o capital. Desse modo, o capital já se transforma num ente altamente místico, na medida em que todas as forças produtivas sociais do trabalho aparecem como forças pertencentes ao capital, e não ao trabalho como tal, como forças que têm origem no seu próprio seio. Logo entra em cena o processo de circulação, em cujo metabolismo e em cuja metamorfose recaem todas as partes do capital, inclusive do capital agrícola, no mesmo grau em que se desenvolve o modo de produção especificamente capitalista. Trata-se, aqui, de uma esfera em que as relações da produção originária de valor caem para um segundo plano. Já no processo direto de produção, o capitalista desempenha simultaneamente as funções de produtor de mercadorias e de diretor da produção. Tal processo de produção, por isso, não se lhe apresenta de maneira nenhuma como mero processo de produção de mais-valor. Porém, qualquer que seja o mais-valor que o capital tenha extraído no processo imediato de produção e tenha representado em mercadorias, o valor e o mais-valor incorporados nas mercadorias hão de realizar-se apenas no processo de circulação. E tanto a restituição dos valores adiantados na produção como, sobretudo, o mais-valor incorporado nas mercadorias parecem não só se realizar na circulação, mas surgir dela, aparência que se reforça especialmente por duas circunstâncias: primeiro, o lucro na venda, que depende de fraude, astúcia, experiência, destreza e de mil contingências de mercado; acrescente-se, ainda, a circunstância de que aqui, ao lado do tempo de trabalho, entra um segundo elemento determinante, o tempo de circulação. Este, é verdade, só funciona como obstáculo negativo à formação de valor e de mais-valor, mas aparenta ser uma causa tão positiva quanto o próprio trabalho e prover uma determinação derivada da natureza do capital e independente do trabalho. É evidente que, no Livro II, só tivemos de apresentar essa esfera da circulação em relação às determinações formais que ela gera e remeter ao desenvolvimento ulterior da figura do capital que nela se verifica. Mas essa esfera é, na verdade, a esfera da concorrência que, considerada em cada caso particular, é dominada pelo acaso; portanto, a lei interna que se impõe nesses acasos e os regula só se torna visível assim que esses acasos se agrupam em grandes massas, nos casos em que, portanto, ela mesma fica invisível e se torna incompreensível para os agentes individuais da produção. Além disso, o processo real de produção, no qual se conjugam o processo imediato de produção e o processo de circulação, engendra novas configurações, nas quais se torna cada vez mais difícil identificar a conexão interna; as relações de produção tornam-se independentes umas das outras e os componentes de valor se ossificam em formas autônomas.

Como vimos, a transformação do mais-valor em lucro é determinada tanto pelo processo de circulação quanto pelo processo de produção. O mais-valor, na forma de lucro, já não se refere à parte do capital desembolsada em trabalho, do qual ele deriva, mas ao capital total. A taxa de lucro é agora regulada por leis próprias, que possibilitam e até condicionam uma alteração dela mesma, com uma taxa constante de mais-valor. Tudo isso contribui para esconder cada vez mais a verdadeira natureza do mais-valor e, por conseguinte, o verdadeiro mecanismo que move o capital. Isso ocorre ainda mais por obra da transformação do lucro em lucro médio e dos valores em preços de produção, nas médias reguladoras dos preços de mercado. Aqui intervém um processo social bastante complexo, o nivelamento dos capitais, que, por meio de capitais específicos, estabelece uma separação entre, por um lado, o preço médio relativo das mercadorias e seu valor e, por outro, entre os lucros médios nas diferentes esferas da produção e a exploração real do trabalho (prescindindo completamente da análise dos investimentos individuais de capital em cada esfera particular da produção). Não só parece ser esse o caso, mas aqui, de fato, o preço médio das mercadorias não coincide com seu valor, isto é, com o trabalho nelas realizado, e o lucro médio de um capital específico é distinto do mais-valor que esse capital extraiu dos trabalhadores por ele empregados. O valor das mercadorias só aparece diretamente na influência da força produtiva flutuante do trabalho sobre a alta e a baixa dos preços de produção, sobre seu movimento, e não sobre seus limites últimos. O lucro aparece determinado pela exploração imediata do trabalho apenas de maneira secundária, na medida em que esta possibilita ao capitalista, com os preços reguladores do mercado que aparentemente independem dessa exploração, realizar um lucro distinto do lucro médio. Os próprios lucros médios normais aparentam ser intrínsecos ao capital, independentes da exploração; a exploração anormal, ou mesmo a exploração média sob condições excepcionalmente favoráveis, parecem condicionar tão somente a variação quanto ao lucro médio, e não este último. A autonomização da forma do mais-valor, sua ossificação em relação a sua substância, a sua essência, completa-se com a divisão do lucro em lucro empresarial e juros (para não falar da atuação do lucro comercial e do lucro no comércio de dinheiro, que se fundam na circulação e parecem derivar inteiramente dela, e não do processo de produção). Uma parte do lucro separa-se inteiramente da relação de capital propriamente dita e, em oposição à outra parte, apresenta-se como derivada não da função de exploração do trabalho assalariado, mas do trabalho assalariado do próprio capitalista. Em contrapartida, os juros aparecem, então, como independentes, seja do trabalho assalariado do trabalhador, seja do próprio trabalho do capitalista, e como tendo origem no capital como sua fonte própria e independente. Se o capital apareceu originalmente, na superfície da circulação, como fetiche de capital, como valor que cria valor, agora ele se apresenta outra vez na forma do capital que rende juros, que é sua forma mais estranhada e peculiar. Por isso, também a fórmula “capital-juros”, como terceiro termo para “terra-renda” e “trabalho-salário”, é muito mais razoável do que “capital-lucro”, uma vez que no lucro persiste sempre uma lembrança de sua origem, ao passo que, nos juros, ela não só é apagada, mas condensada numa forma firmemente contraposta essa origem.

Por último, ao lado do capital como fonte autônoma de mais-valor, surge a propriedade fundiária como algo que limita o lucro médio e transfere uma parte do mais-valor para uma classe que propriamente não trabalha nem explora trabalhadores de maneira direta; tal como o capital que rende juros, não lhe é possível recorrer a lenitivos moralmente edificantes, como, por exemplo, o risco e o sacrifício intrínsecos ao empréstimo de capital. Como aqui uma parte do mais-valor não parece diretamente vinculada a relações sociais, mas a um elemento natural, a terra, então se completa a forma na qual as diferentes partes do mais-valor se estranham e ossificam reciprocamente, a conexão interna é definitivamente rompida e a fonte do mais-valor fica completamente soterrada, precisamente devido à autonomização mútua das relações de produção, vinculadas aos diversos elementos materiais do processo de produção.

Em capital-lucro, ou, melhor ainda, capital-juros, terra-renda fundiária, trabalho-salário – essa trindade econômica que conecta os componentes do valor e da riqueza em geral com suas fontes –, está consumada a mistificação do modo de produção capitalista, a reificação das relações sociais, o amálgama imediato das relações materiais de produção com sua determinação histórico-social: o mundo encantado, distorcido e de ponta-cabeça, em que monsieur Le Capital e madame La Terre vagueiam suas fantasmagorias como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, como meras coisas. O principal mérito da economia clássica é o de ter dissolvido essa falsa aparência, essa empulhação, essa autonomização e ossificação recíprocas dos diferentes elementos sociais da riqueza, essa personificação das coisas e essa reificação das relações de produção, essa religião da vida cotidiana, ao reduzir os juros a uma parte do lucro e a renda ao excedente sobre o lucro médio, de maneira que ambos passam a coincidir no mais-valor; com isso, ela representa o processo de circulação como mera metamorfose das formas e, por último, no processo direto de produção, reduz o valor e o mais-valor das mercadorias ao trabalho. Ainda assim, mesmo seus mais destacados representantes, como não poderia deixar de ser do ponto de vista burguês, continuam mais ou menos prisioneiros do mundo da aparência que sua crítica extinguiu e, por isso, recaem todos eles, em maior ou menor grau, em inconsequências, semiverdades e contradições irresolvidas. Em contrapartida, é natural que os agentes reais da produção se sintam plenamente à vontade nessas formas estranhadas e irracionais de capital-juros, terra-renda, trabalho-salário, pois elas constituem precisamente as configurações da aparência em que tais agentes se movem e com as quais lidam todos os dias. Por isso, é também natural que a economia vulgar, que não é nada além de uma tradução didática, doutrinária em maior ou menor grau, das concepções correntes dos agentes reais da produção, nas quais ela introduz certa ordem inteligível, encontre precisamente nessa trindade, na qual está extinto todo nexo interno, a base natural e indubitável de sua altivez trivial. Ao mesmo tempo, ao proclamar e elevar à qualidade de dogma a necessidade natural e a legitimação eterna de suas fontes de rendimentos, essa fórmula corresponde ao interesse das classes dominantes.

Ao expor a reificação das relações de produção e sua autonomização frente aos agentes da produção, não analisamos de que maneira as conexões que permeiam o mercado mundial, suas circunstâncias, o movimento dos preços de mercado, os períodos do crédito, os ciclos da indústria e do comércio, a alternância de prosperidade e crise se lhes apresentam como leis naturais todo-poderosas, que os dominam contra a sua vontade e se impõem a eles como uma necessidade natural, cega. E não o fizemos porque o movimento real da concorrência encontra-se fora de nosso escopo e pretendemos expor apenas a organização interna do modo de produção capitalista, por assim dizer, em sua média ideal.

Em formas anteriores de sociedade, essa mistificação econômica só ocorre com relação ao dinheiro e ao capital que rende juros. Pela natureza das coisas, ela se encontra excluída, primeiro, de onde predomina a produção para o valor de uso, com o fim de satisfazer diretamente as próprias necessidades imediatas; segundo, de onde a escravidão ou a servidão formam a ampla base da produção social, como era o caso na Antiguidade e Idade Média – aqui, o domínio das condições de produção sobre os produtores se esconde por trás das relações de dominação e servidão, que aparecem e são visíveis como os motores diretos do processo de produção. Nas comunidades primitivas, nas quais impera o comunismo natural-espontâneo, e mesmo nas antigas comunidades urbanas, a base da produção são essas mesmas comunidades, com suas condições, e seu fim último não é mais que sua própria reprodução. Mesmo no sistema corporativo medieval, nem o capital nem o trabalho aparecem desvinculados, mas suas relações aparecem determinadas pelo sistema de corporações e pelas circunstâncias ligadas a ele, assim como pelas correspondentes ideias de dever profissional, maestria etc. Apenas no modo de produção capitalista*...”

* Aqui o manuscrito se interrompe. (N. E. A.)

 

 

“A indulgente boa vontade em descobrir no mundo burguês o melhor dos mundos possíveis substitui, na economia vulgar, todas as exigências do amor à verdade e do impulso à pesquisa científica.”

 

 

O novo valor agregado pelo novo trabalho anualmente incorporado ao produto – por conseguinte, também a parte do produto anual em que esse valor se representa e que pode ser extraída, separada do produto total – se decompõe, pois, em três partes, que assumem três diferentes formas de rendimento. Dessas formas, a primeira expressa uma parte desse valor como pertencente ao possuidor da força de trabalho, a segunda, outra parte como pertencente ao possuidor do capital, e a última, uma terceira parte como pertencente ao possuidor da propriedade fundiária; ou cada parte, portanto, recaindo em cada um deles. Essas são, pois, relações ou formas da distribuição, pois exprimem as relações em que o novo valor total gerado se distribui entre os possuidores das diferentes forças atuantes na produção.

Segundo a concepção habitual, essas relações de distribuição aparecem como relações naturais, como relações derivadas pura e simplesmente da natureza de toda produção social, das leis da produção humana. Não se pode negar, é claro, que as sociedades pré-capitalistas mostram outros modos de distribuição, mas estes são interpretados como não desenvolvidos, imperfeitos e disfarçados, como diferentemente matizados daquelas relações naturais de distribuição; como modos que não estão reduzidos a sua expressão mais pura nem a sua configuração mais alta.

A única coisa correta nessa concepção é a seguinte: uma vez suposta uma produção social de qualquer tipo (por exemplo, a das comunidades primitivas hindus, naturais-espontâneas, ou a do comunismo dos peruanos, desenvolvido mais artificialmente), é sempre possível distinguir entre a parte do trabalho cujo produto é consumido direta e individualmente pelos produtores e seus familiares e – abstraindo da parte que recai no consumo produtivo – outra parte, que sempre é mais-trabalho, cujo produto serve sempre para satisfazer necessidades sociais gerais, independentemente de como esse mais-produto seja distribuído e de quem atue como representante dessas necessidades sociais. A identidade dos diferentes modos de distribuição faz, portanto, com que eles resultem idênticos, uma vez que tenhamos abstraído de suas diferenciações e suas formas específicas e só retenhamos a unidade que há neles, por oposição a suas diferenças.

No entanto, uma consciência mais evoluída, mais crítica, é capaz de reconhecer o caráter historicamente desenvolvido das relações de distribuição[56a], mas, em contrapartida, aferra-se com mais firmeza ao caráter constante das próprias relações de produção, que seriam assim originárias da natureza humana e, por conseguinte, independentes de todo o desenvolvimento histórico.

Pelo contrário, a análise científica do modo de produção capitalista demonstra ser ele um modo de produção peculiar, com uma determinação histórica específica; que, como qualquer outro modo de produção determinado, ele pressupõe, como sua condição histórica, um certo nível das forças sociais produtivas e de suas formas de desenvolvimento, uma condição que, por sua vez, é ela mesma resultado e produto histórico de um processo anterior e do qual o novo modo de produção parte como de sua base dada; que as relações de produção que correspondem a esse modo de produção específico e historicamente determinado – relações que os homens contraem no processo de sua vida social e na criação desta última – possuem um caráter específico, histórico e transitório; e que, por fim, as relações de distribuição são essencialmente idênticas a essas relações de produção, expressando-as de modo reverso, de tal forma que ambas compartilham do mesmo caráter historicamente transitório.

Ao examinarmos as relações de distribuição, tomamos como ponto de partida, antes de mais nada, o fato presumido de que o produto anual se divide em salário, lucro e renda fundiária. Assim enunciado, o fato é falso. Por um lado, o produto se divide em capital e, por outro, em rendimentos. Um desses rendimentos, o salário, assume sempre, por sua vez, uma única forma de rendimento, o rendimento do trabalhador, mas só depois de ter se defrontado previamente com esse mesmo trabalhador na forma de capital. Para que os produtores imediatos possam se defrontar com as condições de trabalho produzidas e os produtos do trabalho em geral na forma de capital é necessário que, desde um primeiro momento, as condições materiais de trabalho tenham assumido um caráter social determinado frente aos trabalhadores e, com isso, que estes também tenham estabelecido, na própria produção, uma relação determinada com os possuidores das condições de trabalho e entre si. Por sua vez, a transformação dessas condições de trabalho em capital implica igualmente a expropriação dos produtores diretos e, desse modo, uma determinada forma de propriedade fundiária.

Se uma parte do produto não se transformasse em capital, a outra não assumiria as formas de salário, lucro e renda.

Por outro lado, se o modo de produção capitalista pressupõe essa configuração social determinada das condições de produção, ele a reproduz constantemente. Não só produz os produtos materiais, mas reproduz constantemente as relações de produção em que aqueles são produzidos e, com isso, também as relações de distribuição correspondentes.

Pode-se afirmar, no entanto, que o próprio capital (e a propriedade da terra, que ele inclui como sua antítese) já pressupõe uma distribuição: a expropriação dos trabalhadores em relação a suas condições de trabalho, a concentração dessas condições nas mãos de uma minoria de indivíduos, a propriedade exclusiva da terra por outros indivíduos e, em suma, todas as relações que foram expostas na seção sobre a acumulação primitiva (Livro I, capítulo 24). Essa distribuição, porém, é completamente diferente daquilo que se entende por relações de distribuição, na medida em que se reivindica para estas, em oposição às relações de produção, um caráter histórico. Com isso, referimo-nos aos diferentes títulos na parte do produto que recai no consumo individual. Em contrapartida, essas relações de distribuição formam os fundamentos de funções sociais específicas que, no interior da própria relação de produção, competem a determinados agentes desta última, em oposição aos produtores imediatos. Elas conferem, assim, uma qualidade social específica às próprias condições de produção e a seus representantes, determinando completamente o caráter e o movimento da produção.

Há dois traços característicos que distinguem de antemão o modo de produção capitalista.

Primeiro, ele produz seus produtos como mercadorias. Produzir mercadorias não o distingue de outros modos de produção, mas sim o fato de que ser mercadoria constitui o caráter dominante e determinante de seu produto. Isso implica, desde já, que o próprio trabalhador só aparece como vendedor de mercadoria e, por isso, como assalariado livre, ou seja, que o trabalho aparece em geral como trabalho assalariado. Depois do que desenvolvemos até aqui, é supérfluo demonstrar novamente de que modo a relação entre capital e trabalho assalariado determina todo o caráter do modo de produção. Os principais agentes desse modo de produção, o capitalista e o trabalhador assalariado, são apenas, como tais, encarnações, personificações do capital e do trabalho assalariado, caracteres sociais determinados que o processo de produção social estampa nos indivíduos; são produtos dessas relações sociais de produção determinadas.

O caráter 1) do produto como mercadoria e 2) da mercadoria como produto do capital já implica o conjunto das relações de circulação, isto é, um processo social determinado que os produtos precisam percorrer e no qual adquirem certos caracteres sociais; implica também determinadas relações entre os agentes da produção, as quais determinam a valorização de seu produto e sua reconversão, seja em meios de subsistência, seja em meios de produção. Mesmo abstraindo disso, toda a determinação do valor e a regulação da produção total pelo valor derivam dos dois caracteres acima mencionados: do produto como mercadoria ou da mercadoria como mercadoria produzida de maneira capitalista. Nessa forma bem específica do valor, o trabalho só conta, por um lado, como trabalho social; por outro lado, a distribuição desse trabalho social e a complementação mútua, o metabolismo de seus produtos, a subordinação à engrenagem social e a inclusão nesta última dependem de ações fortuitas, que se anulam reciprocamente, dos produtores capitalistas individuais. Como estes só se defrontam como possuidores de mercadorias e cada um tenta vender sua mercadoria o mais caro possível (e mesmo, ao que parece, guiando-se apenas por seu arbítrio na regulação da própria produção), a lei interna só se faz valer pela mediação de sua concorrência, da pressão recíproca de uns sobre os outros, em virtude da qual as divergências se anulam mutuamente. A lei do valor só opera aqui, diante de agentes individuais, como lei intrínseca, como lei natural cega, e impõe o equilíbrio social da produção em meio a suas flutuações ocasionais.

Além disso, na mercadoria, e mais ainda na mercadoria como produto do capital, já está incluído aquilo que caracteriza todo o modo de produção capitalista: a reificação das determinações sociais da produção e a subjetivação das bases materiais da produção.

O segundo traço que caracteriza especialmente o modo de produção capitalista é a produção do mais-valor como finalidade direta e motivo determinante da produção. O capital produz essencialmente capital, e só o faz na medida em que produz mais-valor. Ao examinar o mais-valor relativo e, além disso, ao considerar a transformação do mais-valor em lucro, vimos como nisso se encontram as bases de um modo de produção peculiar ao período capitalista: uma forma especial do desenvolvimento das forças sociais produtivas do trabalho, mas como forças do capital autonomizadas diante do trabalhador e, por conseguinte, em antítese direta com seu próprio desenvolvimento, com o desenvolvimento do trabalhador. Como mostramos ao longo do desenvolvimento da análise, a produção para o valor e para o mais-valor implica a tendência sempre presente de reduzir o tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, isto é, seu valor, abaixo da média social que vigora na realidade. A avidez por reduzir o preço de custo a seu mínimo se converte na mais forte alavanca para o aumento da força produtiva social do trabalho, que aqui, porém, aparece apenas como aumento constante da força produtiva do capital.

A autoridade que o capitalista assume no processo direto de produção como personificação do capital, a função social que ele exerce como condutor e dominador da produção, é fundamentalmente distinta da autoridade baseada na produção com escravos, servos etc.

Enquanto na base da produção capitalista a massa dos produtores diretos se confronta com o caráter social de sua produção na forma de uma autoridade rigorosamente reguladora e de um mecanismo social do processo de trabalho articulado de modo inteiramente hierárquico – autoridade que, no entanto, só se investe em seus portadores como personificação das condições de trabalho diante do trabalho, e não, como em formas anteriores de produção, como dominadores políticos ou teocráticos –, entre os portadores dessa autoridade, os próprios capitalistas, que só se defrontam uns com os outros como possuidores de mercadorias, reina a mais completa anarquia, no seio da qual a conexão social da produção só se impõe à arbitrariedade individual na forma de uma lei natural inexorável.

É somente porque o trabalho está pressuposto na forma de trabalho assalariado, e os meios de produção, na forma de capital – ou seja, apenas devido à configuração social específica desses dois agentes essenciais da produção –, que uma parte do valor (produto) se apresenta como mais-valor, e esse mais-valor, como lucro (renda), como ganho do capitalista, riqueza adicional disponível, que lhe pertence. Mas é apenas porque esta se apresenta, desse modo, como seu lucro que aqueles meios adicionais de produção destinados à ampliação da reprodução e que formam uma parte do lucro apresentam-se como novo capital adicional, e a ampliação do processo de reprodução capitalista em geral, como processo de acumulação capitalista.

Apesar de a forma do trabalho como trabalho assalariado ser decisiva para a configuração de todo o processo e para o modo específico da própria produção, o trabalho assalariado não é determinante de valor. Na determinação do valor, trata-se do tempo social de trabalho em geral, da quantidade de trabalho de que a sociedade costuma dispor e cuja absorção relativa pelos diferentes produtos determina, em certa medida, o respectivo peso social destes últimos. A forma específica em que o tempo social de trabalho se impõe como determinante no valor das mercadorias está, porém, vinculada à forma do trabalho como trabalho assalariado e à forma correspondente dos meios de produção como capital, na medida em que apenas sobre essa base a produção de mercadorias se converte na forma geral da produção.

Examinemos, além disso, as assim chamadas relações de distribuição. O salário pressupõe o trabalho assalariado; o lucro, o capital. Essas formas determinadas de distribuição pressupõem, portanto, certos caracteres sociais das condições de produção e relações sociais específicas entre os agentes da produção. Ou seja, que a relação determinada de distribuição não é outra coisa senão a expressão da relação de produção historicamente dada.

Consideremos, agora, o lucro. Essa forma do mais-valor é a condição prévia para que a nova formação dos meios de produção transcorra como produção capitalista; portanto, uma relação que domina a reprodução, ainda que ao capitalista individual pareça que, na realidade, ele poderia devorar o lucro inteiro como rendimento. Se tentasse fazê-lo, ele encontraria obstáculos que já se contrapõem a ele na forma de fundos de emergência e de reserva, lei da concorrência etc., e que lhe demonstram na prática que o lucro não é em absoluto uma mera categoria de distribuição do produto individualmente consumível. O processo inteiro de produção capitalista é, além disso, regulado pelo preço dos produtos. Mas os preços reguladores de produção são, por sua vez, regulados pela equalização da taxa de lucro e a correspondente distribuição do capital nas diferentes esferas da produção social. O lucro aparece aqui, portanto, como fator principal não da distribuição dos produtos, mas de sua própria produção, como fator de distribuição dos capitais e do próprio trabalho entre as diversas esferas da produção. A divisão do lucro em ganho empresarial e juros aparece como distribuição do mesmo rendimento. Mas esse desdobramento tem origem no desenvolvimento do capital como valor que se autovaloriza e gera mais-valor, ou seja, origina-se dessa configuração social determinada do processo dominante de produção. Partindo de si mesma, ela desenvolve o crédito e as instituições de crédito e, com isso, a configuração da produção. Nos juros etc., as formas presumidas de distribuição entram no preço como momentos determinantes da produção. (...)

As chamadas relações de distribuição correspondem a – e derivam de – formas especificamente sociais e historicamente determinadas do processo de produção e das relações que os homens estabelecem entre si no processo de reprodução de sua vida. O caráter histórico dessas relações de distribuição é o caráter histórico das relações de produção, das quais aquelas só expressam um aspecto. A distribuição capitalista é distinta das formas de distribuição que têm origem em outros modos de produção, e cada forma de distribuição desaparece juntamente com a forma determinada de produção da qual ela provém e à qual corresponde.”

[56a] J.[ohn] Stuart Mill, [Essay on] Some Unsettled Questions of Pol.[itical] Econ.[omy] (Londres, [Harrison,] 1844).

 

 

“Tivesse chegado a rever o Livro III, Marx teria certamente desenvolvido de maneira considerável essa passagem. Tal como se apresenta, ela dá apenas um esboço do que se deve dizer sobre o problema. Vejamos essa questão, portanto, em maiores detalhes. É sabido que, nos primórdios da sociedade, os produtos eram consumidos pelos próprios produtores e que estes se organizavam espontaneamente em comunidades geridas de maneira mais ou menos comunista; é sabido também que a troca do excedente desses produtos com estrangeiros, a qual leva à transformação dos produtos em mercadorias, é um fenômeno posterior, que de início ocorre apenas entre comunidades individuais de diferentes tribos, porém mais tarde tem lugar também dentro da comunidade e contribui essencialmente para a dissolução desta última em grupos familiares maiores ou menores. No entanto, mesmo após essa dissolução, os chefes de família, que realizam as trocas, continuam a ser camponeses que trabalham e, com a ajuda de sua família, produzem em suas próprias terras quase tudo de que têm necessidade, obtendo de fora apenas uma pequena parte dos objetos de que precisam em troca de seus próprios produtos excedentes. A família não se ocupa apenas da agricultura e da pecuária, mas também transforma os produtos dessas atividades em artigos prontos para o consumo, às vezes moendo ela mesma o trigo em moinho manual, assando o pão, fiando, tingindo, tecendo o linho e a lã, curtindo o couro, erigindo e consertando construções de madeira, fabricando ferramentas e utensílios e, não raro, fazendo trabalhos de marcenaria e forja; desse modo, a família ou o grupo familiar é, no essencial, autossuficiente.

Ora, mesmo até o início do século XIX na Alemanha, o pouco que tal família precisava obter de terceiros por meio da troca ou da compra resumia-se principalmente a objetos de produção artesanal, ou seja, a coisas cuja fabricação não era de modo nenhum estranha ao camponês e que ele mesmo só não produzia porque ou não dispunha da matéria-prima ou o artigo comprado era de melhor qualidade ou muito mais barato. O camponês da Idade Média tinha plena ciência, portanto, do tempo de trabalho requerido para produzir os objetos que recebia na troca. O ferreiro e o segeiro da aldeia trabalhavam diante de seus olhos; do mesmo modo, o alfaiate e o sapateiro, que em minha juventude circulavam entre nossos camponeses renanos, indo de casa em casa, e dos materiais produzidos por estes confeccionava roupas e calçados. Tanto o camponês como as pessoas de quem ele comprava eram trabalhadores, e os artigos que trocavam entre si eram os produtos do trabalho de cada um. Que despenderam eles na produção desses produtos? Trabalho, apenas trabalho: para repor as ferramentas, produzir a matéria-prima e elaborá-la, não despenderam mais que sua própria força de trabalho; como lhes seria possível, então, trocar seus produtos pelos de outros produtores diretos, a não ser na proporção do trabalho neles empregado? O tempo de trabalho despendido nesses produtos não era apenas o único padrão de medida adequado para determinar quantitativamente as grandezas a serem trocadas; mais que isso, não havia outro além dele. Ou quem acreditaria que o camponês e o artesão fossem estúpidos ao ponto de trocar o produto de dez horas de trabalho de um deles pelo produto de uma única hora de trabalho do outro? Durante todo o período da economia natural camponesa, a única troca possível era aquela em que as quantidades trocadas de mercadorias tendiam a medir-se cada vez mais conforme as quantidades de trabalho nelas incorporadas. A partir do momento em que o dinheiro penetra nesse sistema econômico, torna-se, por um lado, ainda mais explícita a tendência para a adequação à lei do valor (de acordo com a formulação de Marx, nota bene!), mas, por outro, tal tendência já se vê perturbada pela intervenção do capital usurário e da espoliação fiscal, alongando assim os períodos em que a média dos preços se aproxima dos valores, até que a diferença entre eles se torna desprezível.

O mesmo vale para a troca entre os produtos dos camponeses e os dos artesãos citadinos. Inicialmente, tal troca era direta, sem mediação do comerciante, em dias de feira nas cidades, quando o camponês vendia seus produtos e realizava suas compras. Também nesse caso, não só as condições de trabalho do artesão eram conhecidas pelo camponês, como também as deste último pelo artesão. Pois ele mesmo era ainda um pouco camponês; possuía não apenas horta e pomar, mas também, com muita frequência, uma pequena porção de terra, uma ou duas vacas, porcos, aves etc. Desse modo, as pessoas da Idade Média eram capazes de calcular, umas em relação às outras, com bastante exatidão, os custos de produção em matérias-primas, materiais auxiliares e tempo de trabalho, pelo menos no que diz respeito aos artigos de uso cotidiano e geral.

Mas como nessa troca medida pela quantidade de trabalho se conseguia calcular esses custos, ainda que apenas de modo indireto e relativo, para produtos que exigiam um período de trabalho mais longo, interrompido por intervalos irregulares e incerto quanto ao rendimento, como, por exemplo, o cereal ou o gado? Ainda mais em se tratando de pessoas que não sabiam calcular? É evidente que isso só era possível através de um demorado processo de aproximação em zigue-zague, frequentemente tateando aqui e ali na escuridão, processo no qual, como de costume, só se aprende errando. Mas a necessidade que cada um sentia de recuperar seus gastos sempre o ajudava a reencontrar a direção correta, e a variedade exígua de objetos que entrava em circulação, assim como o método de produzi-los, que muitas vezes se mantinha invariável por séculos, facilitavam a realização do objetivo. E que não tenha tardado até que se estabelecesse com muita aproximação a grandeza de valor relativa desses produtos fica demonstrado pelo fato de o gado, a mercadoria em que isso parecia mais difícil devido ao longo tempo de produção de cada cabeça, ter sido a primeira mercadoria-dinheiro reconhecida de forma bastante generalizada. Para que isso se consumasse, o valor do gado, sua relação de troca para com toda uma série de outras mercadorias, teve de alcançar uma fixidez relativamente incomum, reconhecida sem contestação no território de diversas tribos. E as pessoas da época eram decerto suficientemente espertas – tanto os criadores de gado como seus fregueses – para não dar em troca, sem equivalente, o tempo de trabalho que haviam despendido. Pelo contrário: quanto mais próximas as pessoas se encontram do estágio primitivo da produção de mercadorias – russos e orientais, por exemplo –, tanto mais tempo elas desperdiçam, ainda em nossos dias, para obter mediante um regateio longo e obstinado a plena recompensa do tempo de trabalho empregado num produto.

Foi a partir dessa determinação do valor pelo tempo de trabalho que se desenvolveu toda a produção de mercadorias e, com ela, as múltiplas relações em que se afirmam os diferentes aspectos da lei do valor, tal como expostos na seção I do Livro I d’O capital; ou seja, as condições sob as quais apenas o trabalho é criador de valor. E tais condições, que se impõem sem que os participantes tomem consciência delas e só podem ser abstraídas da prática cotidiana por meio de uma longa investigação teórica, atuam como se fossem leis naturais, o que, como Marx também demonstrou, é algo que decorre necessariamente da natureza da produção de mercadorias. O progresso mais significativo e mais decisivo foi a transição para o dinheiro metálico, a qual, porém, teve por consequência o fato de que, a partir de então, a determinação do valor pelo tempo de trabalho deixava de aparecer de forma visível na superfície da troca de mercadorias. O dinheiro converteu-se, do ponto de vista prático, na medida fundamental do valor (...).

Em resumo: a lei marxiana do valor tem validade geral, desde que as leis econômicas valham para todo o período da produção simples de mercadorias, portanto, até o tempo em que esta experimenta uma modificação por meio da introdução da forma de produção capitalista. Até então, os preços variavam na direção dos valores determinados pela lei marxiana e gravitam em torno desses valores, de modo que, quanto mais desenvolvida a produção simples de mercadorias, tanto mais os preços médios de períodos mais longos, não interrompidos por crises violentas e de origem externa coincidem com os valores, podendo-se desprezar os pequenos desvios. Portanto, a lei marxiana do valor tem validade econômica geral para um período que se estende desde os primórdios da troca que transforma os produtos em mercadorias até o século XV de nossa era. Mas a troca de mercadorias tem origem numa época anterior a toda a história escrita; numa época que, no Egito, remonta a pelo menos 3.500, talvez 5.000, e na Babilônia, a 4.000, talvez 6.000 anos antes de nossa era; a lei do valor vigorou, pois, por um período de cinco a sete milênios.” (Friedrich Engels)

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