Lista de Livros no YouTube

Lista Completa

terça-feira, 18 de maio de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital (Parte III), de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★★

Análise em vídeo: Clique aqui

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 894

Sinopse: Ver Parte I


 

““Em nossa época, rica em reflexão e raciocínio, jamais alguém conseguiu chegar longe sem saber oferecer uma boa razão para tudo, mesmo a pior e mais errada das coisas. Tudo o que foi corrompido neste mundo foi corrompido por boas razões”. (G. W. F. Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas, cit., p. 249)

 

 

“O capital, que tem tão “boas razões” para negar os sofrimentos das gerações de trabalhadores que o circundam, é, em seu movimento prático, tão pouco condicionado pela perspectiva do apodrecimento futuro da humanidade e seu irrefreável despovoamento final quanto pela possível queda da Terra sobre o Sol. Em qualquer manobra ardilosa no mercado acionário, ninguém ignora que uma hora ou outra a tempestade chegará, mas cada um espera que o raio atinja a cabeça do próximo, depois de ele próprio ter colhido a chuva de ouro e o guardado em segurança. Après moi le déluge! [Depois de mim, o dilúvio]o é o lema de todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração.113 Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos martirizar, ele que aumenta nosso gozo (o lucro)p? De modo geral, no entanto, isso tampouco depende da boa ou má vontade do capitalista individual. A livre-concorrência impõe ao capitalista individual, como leis eternas inexoráveis, as leis imanentes da produção capitalista.”

o Citação modificada da frase “Après nous le déluge!” [Depois de nós, o dilúvio!], que madame de Pompadour teria proferido em resposta à advertência, feita por um membro da corte, de que o esbanjamento da realeza teria como efeito um forte aumento da dívida pública francesa. (N. E. A. MEW)

113 “Embora a saúde da população seja um elemento tão importante do capital nacional, receamos ter de confessar que os capitalistas não se sentem de modo algum inclinados a conservar esse tesouro e dar-lhe o seu devido valor [...]. A consideração pela saúde dos trabalhadores foi imposta aos fabricantes”, Times, 5 nov. 1861. “Os homens de West Riding tornaram-se os produtores de tecido da humanidade [...] a saúde do povo trabalhador foi sacrificada, e em poucas gerações sua raça teria se degenerado, porém ocorreu uma reação. As horas do trabalho infantil foram limitadas etc.”, “Twenty-Second Annual Report of the Registrar-Generali”, 1861.

p J. W. Goethe, Suleika. (N. E. A. MEW)

 

 

“O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro.”

 

 

“No interior do processo de produção, o capital se desenvolveu para assumir o comando sobre o trabalho, isto é, sobre a força de trabalho em atividade, ou, em outras palavras, sobre o próprio trabalhador. O capital personificado, o capitalista, cuida para que o trabalhador execute seu trabalho ordenadamente e com o grau apropriado de intensidade.

O capital desenvolveu-se, ademais, numa relação coercitiva, que obriga a classe trabalhadora a executar mais trabalho do que o exigido pelo círculo estreito de suas próprias necessidades vitais. E como produtor da laboriosidade alheia, extrator de mais-trabalho e explorador de força de trabalho, o capital excede em energia, desmedida e eficiência todos os sistemas de produção anteriores baseados no trabalho direto compulsório.

Inicialmente, o capital subordina o trabalho conforme as condições técnicas em que historicamente o encontra. Portanto, ele não altera imediatamente o modo de produção. Razão pela qual a produção de mais-valor, na forma como a consideramos até agora, mostrou-se independente de qualquer mudança no modo de produção. Ela não era menos efetiva nas obsoletas padarias do que nas modernas fiações de algodão.

Observando-se o processo de produção do ponto de vista do processo de trabalho, o trabalhador se relaciona com os meios de produção não como capital, mas como mero meio e material de sua atividade produtiva orientada para um fim. Num curtume, por exemplo, ele trata as peles como seu mero objeto de trabalho. Não é para o capitalista que ele curte a pele. Diferentemente de quando observamos o processo de produção do ponto de vista do processo de valorização. Os meios de produção convertem-se imediatamente em meios para a sucção de trabalho alheio. Não é mais o trabalhador que emprega os meios de produção, mas os meios de produção que empregam o trabalhador. Em vez de serem consumidos por ele como elementos materiais de sua atividade produtiva, são eles que o consomem como fermento de seu próprio processo vital, e o processo vital do capital não é mais do que seu movimento como valor que valoriza a si mesmo. Fornos de fundição e oficinas que permanecem parados à noite, sem sugar trabalho vivo, são “simples perda” (“mere loss”) para o capitalista. Por isso, fornos de fundição e oficinas de trabalho constituem um “direito de exigir trabalho noturno” das forças de trabalho. A simples transformação do dinheiro em fatores objetivos do processo de produção, em meios de produção, converte estes últimos em títulos legais e compulsórios ao trabalho e mais-trabalho alheios. De que maneira essa inversão peculiar e característica da produção capitalista, essa distorção da relação entre trabalho morto e vivo, entre valor e força criadora de valor, reflete-se na consciência dos cérebros capitalistas é finalmente evidenciada por mais um exemplo. Durante a revolta dos fabricantes ingleses de 1848-1850, um cavalheiro extremamente inteligente, “chefe da fiação de linho e algodão em Paisley, uma das firmas mais antigas e respeitáveis do oeste da Escócia, a companhia Carlyle, Filhos & Cia., que existe desde 1752 e é dirigida pela mesma família geração após geração”, publicou, no Glasgow Daily Mail de 25 de abril de 1849, uma carta207 sob o título: “O sistema de revezamento”, em que se podem ler, entre outras, a seguinte passagem grotescamente ingênua:

“Vejamos, agora, os males que decorrem de uma redução do tempo de trabalho de 12 para 10 horas [...]. Eles ‘chegam’ ao dano mais sério das perspectivas e da propriedade do fabricante. “Se ele” (quer dizer, sua “mão de obra”) “trabalhava 12 horas e é limitado a 10, então cada 12 máquinas ou fusos em seu estabelecimento encolhem para 10, e se ele quisesse vender sua fábrica, eles seriam avaliados apenas como 10, de modo que, em todo o país, uma sexta parte do valor de cada fábrica seria subtraída.”208

Para esse cérebro hereditariamente capitalista do oeste da Escócia, o valor dos meios de produção, dos fusos etc. confunde-se tanto com sua capacidade de, como capital, valorizar a si mesmo ou engolir diariamente uma determinada quantidade de trabalho alheio gratuito, que o chefe da casa Carlyle & Cia. realmente imagina que, com a venda de sua fábrica, lhe será pago não o valor dos fusos, mas, além dele, sua valorização, ou seja, não só o trabalho neles contido e necessário para a produção de fusos do mesmo tipo, mas também o mais-trabalho que eles ajudam a extrair diariamente dos bravos escoceses ocidentais de Paisley, e, justamente por isso, ele pensa que, se a jornada de trabalho encolher 2 horas, o preço de venda de 12 máquinas também será reduzido para o preço de 10!”

207 “Reports of Insp. of Fact. for 30th April 1849”, p. 59.

208 Ibidem, p. 60. O inspetor de fábrica Stuart, também escocês e, ao contrário dos inspetores de fábrica ingleses, totalmente dominado pelo modo de pensar capitalista, observa expressamente que essa carta, que ele incorpora em seu relato, “é a informação mais útil feita por qualquer um dos fabricantes que utilizam o sistema de revezamento e a mais bem concebida para remover os preconceitos e reservas contra aquele sistema”.

 

 

“O homem é, por natureza, se não um animal político, como diz Aristóteles, em todo caso um animal social13.”

13 A definição de Aristóteles é, na verdade, a de que o homem é cidadão por natureza. Ela é tão característica da Antiguidade clássica quanto a definição de Franklin, segundo a qual o homem é por natureza um fazedor de instrumentos, é característica da sociedade ianque.

 

 

Na manufatura, tal como no regime de cooperação simples, o corpo de trabalho em funcionamento é uma forma de existência do capital. O mecanismo social de produção integrado por muitos trabalhadores parciais individuais pertence ao capitalista. Por isso, a força produtiva que nasce da combinação dos trabalhos aparece como força produtiva do capital. A manufatura propriamente dita não só submete ao comando e à disciplina do capital o trabalhador antes independente como também cria uma estrutura hierárquica entre os próprios trabalhadores. Enquanto a cooperação simples deixa praticamente intocado o modo de trabalho dos indivíduos, a manufatura o revoluciona desde seus fundamentos e se apodera da força individual de trabalho em suas raízes. Ela aleija o trabalhador, converte-o numa aberração, promovendo artificialmente sua habilidade detalhista por meio da repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas, do mesmo modo como, nos Estados de La Plata, um animal inteiro é abatido apenas para a retirada da pele ou do sebo. Não só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial63, conferindo assim realidade à fábula absurda de Menênio Agripac, que representa um ser humano como mero fragmento de seu próprio corpo64. Se o trabalhador vende inicialmente sua força de trabalho ao capital porque lhe faltam os meios materiais para a produção de uma mercadoria, agora sua força individual de trabalho falha no cumprimento de seu serviço caso não seja vendida ao capital. Ela só funciona num contexto que existe apenas depois de sua venda, na oficina do capitalista. Por sua própria natureza incapacitado para fazer algo autônomo, o trabalhador manufatureiro só desenvolve atividade produtiva como elemento acessório da oficina do capitalista65. Assim como na fronte do povo eleito estava escrito ser propriedade de Jeová, também a divisão do trabalho marca o trabalhador manufatureiro a ferro em brasa, como propriedade do capital.

Os conhecimentos, a compreensão e a vontade que o camponês ou artesão independente desenvolve, ainda que em pequena escala, assim como aqueles desenvolvidos pelo selvagem, que exercita toda a arte da guerra como astúcia pessoal, passam agora a ser exigidos apenas pela oficina em sua totalidade. As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital66. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, e se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital67.

Na manufatura, o enriquecimento do trabalhador coletivo e, por conseguinte, do capital em sua força produtiva social é condicionado pelo empobrecimento do trabalhador em suas forças produtivas individuais.

A ignorância é mãe tanto da indústria quanto da superstição. A reflexão e a imaginação estão sujeitas ao erro; mas o hábito de mover o pé ou a mão não depende nem de uma nem de outra. Por essa razão, as manufaturas prosperam mais onde mais se prescinde do espírito, de modo que a oficina pode ser considerada uma máquina cujas partes são homens.68

De fato, algumas manufaturas na metade do século XVIII tinham preferência por empregar indivíduos semi-idiotas em certas operações simples, mas que constituíam segredos de fábrica69. Diz A. Smith:

A mente da grande maioria dos homens desenvolve-se necessariamente a partir e por meio de suas ocupações diárias. Um homem que consome toda a sua vida na execução de umas poucas operações simples [...] não tem nenhuma oportunidade de exercitar sua inteligência. [...] Ele se torna, em geral, tão estúpido e ignorante quanto é possível a uma criatura humana.

E, depois de descrever a estupidificação do trabalhador parcial, Smith prossegue:

A uniformidade de sua vida estacionária também corrompe, naturalmente, a coragem de sua mente. [...] Ela aniquila até mesmo a energia de seu corpo e o torna incapaz de empregar sua força de modo vigoroso e duradouro, a não ser na operação detalhista para a qual foi adestrado. Sua destreza em seu ofício particular parece, assim, ter sido obtida à custa de suas virtudes intelectuais, sociais e guerreiras. Mas em toda sociedade industrial e civilizada é esse o estado a que necessariamente tem de se degradar o pobre que trabalha [the labouring poor], isto é, a grande massa do povo.70

Como modo de evitar a degeneração completa da massa do povo decorrente da divisão do trabalho, A. Smith recomendava o ensino popular, a cargo do Estado, embora em doses cautelosamente homeopáticas. Quem polemizou de modo consistente contra essa ideia foi seu tradutor e comentador francês, G. Garnier, que, no Primeiro Império francês, metamorfoseou-se em senador. O ensino popular contraria as leis primeiras da divisão do trabalho; com ele, “nosso sistema social inteiro seria proscrito”.

“Como todas as outras divisões do trabalho, aquela entre o trabalho manual e o intelectual71 torna-se mais evidente e resoluta à medida que a sociedade” (ele aplica corretamente essa expressão para designar o capital, a propriedade da terra e o Estado que lhes corresponde) “se torna mais rica. Essa divisão do trabalho, como qualquer outra, é efeito de progressos passados e causa de progressos futuros. [...] Sendo assim, pode o governo contrariar essa divisão do trabalho e detê-la em seu curso natural? Pode ele utilizar parte da receita pública para tentar confundir e misturar duas classes de trabalho que se esforçam por sua divisão e separação?”72

Certo atrofiamento espiritual e corporal é inseparável mesmo da divisão do trabalho em geral na sociedade. Mas como o período manufatureiro leva muito mais longe essa cisão social dos ramos de trabalho e, por outro lado, somente por meio dessa divisão peculiar consegue alcançar o indivíduo em suas raízes vitais, ele é o primeiro a fornecer o material e o impulso para a patologia industrial73.

“Subdividir um homem é o mesmo que executá-lo, caso mereça a pena de morte, ou assassiná-lo, caso não a mereça. A subdivisão do trabalho é o assassínio de um povo.”74

A cooperação fundada na divisão do trabalho ou a manufatura é, em seus primórdios, uma formação natural-espontânea. Tão logo tenha adquirido alguma consistência e amplitude de existência, ela se converte na forma consciente, planejada e sistemática do modo de produção capitalista. A história da manufatura propriamente dita revela como, inicialmente, sua divisão peculiar do trabalho assume, por meio da experiência, e como que operando por detrás dos agentes, as formas adequadas, mas depois, tal como o artesanato corporativo, visa conservar tradicionalmente a forma uma vez descoberta e, em casos isolados, logra fazê-lo por séculos. Essa forma, excetuando seus aspectos secundários, só se altera graças a uma revolução nos instrumentos de trabalho. A manufatura moderna – não me refiro aqui à grande indústria baseada na maquinaria – ou encontra os disjecta membra poetae [os membros dispersos do poeta]d já prontos, como é o caso, por exemplo, da confecção de vestuário nas grandes cidades onde a manufatura surge, e tem apenas de juntá-los de sua dispersão, ou o princípio da divisão é evidente e as diferentes operações da produção artesanal (por exemplo, da encadernação) são atribuídas exclusivamente a trabalhadores específicos. Nem uma semana de experiência é necessária para descobrir, em tais casos, a proporção de braços necessários para cada função75.

A divisão manufatureira do trabalho cria, por meio da análise da atividade artesanal, da especificação dos instrumentos de trabalho, da formação dos trabalhadores parciais, de seu agrupamento e combinação num mecanismo total, a articulação qualitativa e a proporcionalidade quantitativa dos processos sociais de produção – portanto, uma determinada organização do trabalho social, desenvolvendo, assim, ao mesmo tempo, uma nova força produtiva social do trabalho. Como forma especificamente capitalista do processo de produção social – e, sobre as bases preexistentes, ela não podia se desenvolver de outra forma que não a capitalista –, tal divisão é apenas um método particular de produzir mais-valor relativo ou aumentar a autovalorização do capital – que também pode ser chamada de riqueza social, Wealth of Nations etc. – a expensas dos trabalhadores. Ela não só desenvolve a força produtiva social do trabalho exclusivamente para o capitalista, em vez de para o trabalhador, como o faz por meio da mutilação do trabalhador individual. Ela produz novas condições de dominação do capital sobre o trabalho. E assim ela aparece, por um lado, como progresso histórico e momento necessário de desenvolvimento do processo de formação econômica da sociedade e, por outro, como meio para uma exploração civilizada e refinada.”

63 Dugald Stewart chama o trabalhador manual de “autômatos vivos [...] que são empregados em trabalhos parciais”, em Works, cit., p. 318.

c Em 494 d.C. ocorreu o primeiro grande conflito entre patrícios e plebeus. Segundo a lenda, o patrício Menênio Agripa teria usado de uma parábola para convencer os plebeus a uma conciliação. A revolta dos plebeus se assemelharia a uma recusa dos membros do corpo humano a permitir que o alimento chegasse ao estômago, o que tinha como consequência que os próprios membros definhassem fortemente. A recusa dos plebeus a cumprir suas obrigações levaria, assim, à ruína do Estado romano. (N. E. A. MEW)

64 Nos corais, cada indivíduo constitui, de fato, o estômago de todo o grupo. Mas esse indivíduo fornece alimento ao grupo, em vez de, como o patrício romano, privá-lo desse alimento.

65 “O trabalhador que carrega nos braços todo um ofício pode por toda parte exercer sua indústria e encontrar meios de subsistir: o outro [o trabalhador da manufatura] é apenas um acessório que, separado de seus colegas de trabalho, não tem mais nem capacidade, nem independência, sendo, portanto, forçado a aceitar a lei que se julgue correto lhe impor”, Storch, Cours d’écon. poli., cit. (São Petersburgo, 1815), t. I, p. 204.

66 “Um pode ter ganhado o que o outro perdeu”. A. Ferguson, History of Civil Society, cit., p. 281.

67 “O homem do saber e o trabalhador produtivo estão longinquamente separados um do outro, e a ciência, em vez de aumentar nas mãos do trabalhador suas próprias forças produtivas para ele mesmo, contrapõe-se a ele em quase toda parte. [...] O conhecimento torna-se um instrumento que pode ser separado do trabalho e oposto a ele”, W. Thompson, An Inquiry into the Principles of the Distribution of Wealth (Londres, 1824), p. 274.

68 A. Ferguson, History of Civil Society, cit., p. 280.

69 J. D. Tuckett, A History of the Past and Present State of the Labouring Population (Londres, 1846), v. I, p. 148.

70 A. Smith, A riqueza das nações, livro V, c. I, art. II. Como aluno de A. Ferguson, que havia desenvolvido as consequências desfavoráveis da divisão do trabalho, A. Smith possuía total clareza sobre esse ponto. Na abertura de sua obra, na qual a divisão do trabalho é festejada ex professo, ele a menciona apenas de passagem, como fonte das desigualdades sociais. Somente no livro V, dedicado à receita do Estado, ele reproduz Ferguson. Em Miséria da filosofia, expus o necessário sobre a conexão histórica entre Ferguson, A. Smith, Lemontey e Say no que diz respeito a suas críticas da divisão do trabalho, e também mostrei, pela primeira vez, que a divisão manufatureira do trabalho é uma forma específica do modo capitalista de produção. Miséria da filosofia, cit., p. 122s.

71 Ferguson diz: “E o próprio pensamento pode, nessa era da divisão do trabalho, converter-se num ofício particular”.

72 G. Garnier, t. V de sua tradução, p. 4-5.

73 Ramazzini, professor de medicina prática em Pádua, publicou em 1713 sua obra De morbis artificum, traduzida para o francês em 1777 e reimpressa em 1841 na Encyclopédie des Sciences Médicales, 7 me Div. Auteurs Classiques. O período da grande indústria ampliou grandemente, é claro, seu catálogo de doenças dos trabalhadores. Ver, entre outras obras, Hygiène physique et morale de l’ouvrier dans les grandes villes en général, et dans la ville de Lyon en particulier. Par le Dr. A. L. Fonteret (Paris, 1858) e R. H. Rohatzsch, Die Krankheiten, welche verschiednen Ständen, Altern und Geschlechtern eigenthümlich sind, (Ulm, 1840, 6 v.). Em 1854, a Society of Arts nomeou uma comissão de inquérito sobre patologia industrial. A lista dos documentos reunidos por essa comissão encontra-se no catálogo do Twickenham Economic Museum. Muito importante são os “Reports on Public Health” oficiais. Ver também Eduard Reich, Ueber die Entartung des Menschen (Erlangen, 1868). A Society of Arts and Trades (Sociedade das Artes e Ofícios) foi uma sociedade filantrópica fundada em 1754, inspirada nas ideias do Iluminismo. Durante a década de 1850, a sociedade foi conduzida pelo príncipe Albert. O objetivo da sociedade, alardeado com grande pompa, era “o incentivo das artes, dos ofícios e do comércio” e a “premiação daqueles que contribuíram para dar emprego aos pobres, expandir o comércio, aumentar as riquezas da nação etc.” No esforço de deter o desenvolvimento do movimento de greves de massa na Inglaterra, a sociedade tentou atuar como mediadora entre os trabalhadores e os empresários. Marx a chamava ironicamente de Society of Arts and Tricks (Sociedade das Artes e Trapaças). (N. E. A. MEW)]

74 D. Urquhart, Familiar Words (Londres, 1855), p. 119. Hegel tinha ideias bastante heréticas sobre a divisão do trabalho. “Por homens cultos, pode-se entender aqueles que podem fazer tudo o que os outros fazem”, diz ele em sua Filosofia do direito. [Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse (Berlim, 1840), §187). (N. E. A. MEW)]

d Horácio, Sátiras, livro I, sátira 4. (N. E. A. MEW)

75 A cômoda fé no gênio inventivo que o capitalista individual exerceria a priori na divisão do trabalho encontra-se, hoje, apenas em professores alemães, tais como o sr. Roscher, que, em agradecimento pela divisão do trabalho que salta pronta da cabeça de Júpiter do capitalista, dedica a este último “diversos salários”. A maior ou menor aplicação da divisão do trabalho depende do tamanho da bolsa, não da grandeza do gênio.

76 Mais do que A. Smith, escritores anteriores, como Petty, assim como o autor anônimo de Advantages of the East India Trade etc., fixaram o caráter capitalista da divisão manufatureira do trabalho.

 

 

“John Stuart Mill, em seus Princípios da economia política, observa: “É questionável que todas as invenções mecânicas já feitas tenham servido para aliviar a faina diária de algum ser humano”86.

Mas essa não é em absoluto a finalidade da maquinaria utilizada de modo capitalista. Como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, ela deve baratear mercadorias e encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador necessita para si mesmo, a fim de prolongar a outra parte de sua jornada, que ele dá gratuitamente para o capitalista. Ela é meio para a produção de mais-valor.”

86 Mill deveria ter dito: “de algum ser humano que não se alimenta do trabalho de outrem”, pois a maquinaria aumentou indubitavelmente o número dos honrados ociosos.

 

 

“Uma história crítica da tecnologia provaria o quão pouco qualquer invenção do século XVIII pode ser atribuída a um único indivíduo. Até então, tal obra inexiste. Darwin atraiu o interesse para a história da tecnologia natural, isto é, para a formação dos órgãos das plantas e dos animais como instrumentos de produção para a vida. Não mereceria igual atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem social, da base material de toda organização social particular? E não seria ela mais fácil de ser compilada, uma vez que, como diz Vico, a história dos homens se diferencia da história natural pelo fato de fazermos uma e não a outra? A tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas condições sociais de vida e das concepções espirituais que delas decorrem. Mesmo toda história da religião que abstrai dessa base material é acrítica. De fato, é muito mais fácil encontrar, por meio da análise, o núcleo terreno das nebulosas representações religiosas do que, inversamente, desenvolver, a partir das condições reais de vida de cada momento, suas correspondentes formas celestializadas. Este é o único método materialista e, portanto, científico. O defeito do materialismo abstrato da ciência natural, que exclui o processo histórico, pode ser percebido já pelas concepções abstratas e ideológicas de seus porta-vozes, onde quer que eles se aventurem além dos limites de sua especialidade.”

 

 

“Como sistema articulado de máquinas de trabalho movidas por um autômato central através de uma maquinaria de transmissão, a produção mecanizada atinge sua forma mais desenvolvida. No lugar da máquina isolada surge, aqui, um monstro mecânico, cujo corpo ocupa fábricas inteiras e cuja força demoníaca, inicialmente escondida sob o movimento quase solenemente comedido de seus membros gigantescos, irrompe no turbilhão furioso e febril de seus incontáveis órgãos de trabalho propriamente ditos.

Havia mules, máquinas a vapor etc. antes de haver quaisquer trabalhadores ocupados exclusivamente com a construção de máquinas a vapor, mules etc., assim como o homem usava roupas antes de existirem alfaiates. Mas as invenções de Vaucanson, Arkwright, Watt etc. só puderam ser realizadas porque esses inventores encontraram à sua disposição, previamente fornecida pelo período manufatureiro, uma quantidade considerável de hábeis trabalhadores mecânicos. Uma parte desses trabalhadores era formada de artesãos autônomos de diversas profissões, e outra parte já se encontrava reunida em manufaturas, onde, como já mencionado, a divisão do trabalho dominava com rigor especial. Com o aumento das invenções e a demanda cada vez maior por máquinas recém-inventadas, desenvolveu-se progressivamente, por um lado, a compartimentação da fabricação de máquinas em diversos ramos autônomos, e, por outro, a divisão do trabalho no interior das manufaturas de máquinas. Na manufatura, portanto, vemos a base técnica imediata da grande indústria. Aquela produziu a maquinaria, com a qual esta suprassumiu [aufhob] os sistemas artesanal e manufatureiro nas esferas de produção de que primeiro se apoderou. O sistema mecanizado ergueu-se, portanto, de modo natural-espontâneo, sobre uma base material que lhe era inadequada. Ao atingir certo grau de desenvolvimento, ele teve de revolucionar essa base – encontrada já pronta e, depois, aperfeiçoada de acordo com sua antiga forma – e criar para si uma nova, apropriada a seu próprio modo de produção. Assim como a máquina isolada permaneceu limitada enquanto foi movida apenas por homens, e assim como o sistema da maquinaria não pôde se desenvolver livremente até que a máquina a vapor tomasse o lugar das forças motrizes preexistentes – animal, vento e até mesmo água –, também a grande indústria foi retardada em seu desenvolvimento enquanto seu meio característico de produção, a própria máquina, existiu graças à força e à habilidade pessoais, dependendo, assim, do desenvolvimento muscular, da acuidade visual e da virtuosidade da mão com que o trabalhador parcial na manufatura e o artesão fora dela operavam seu instrumento limitado. Abstraindo do encarecimento das máquinas em consequência desse seu modo de surgimento – circunstância que domina o capital como sua motivação consciente –, a expansão da indústria já movida a máquina e a penetração da maquinaria em novos ramos de produção continuaram inteiramente condicionadas pelo crescimento de uma categoria de trabalhadores que, dada a natureza semiartística de seu negócio, só podia ser aumentada de modo gradual, e não aos saltos. Em certo grau de desenvolvimento, porém, a grande indústria entrou também tecnicamente em conflito com sua base artesanal e manufatureira. A ampliação do tamanho das máquinas motrizes, do mecanismo de transmissão e das máquinas-ferramentas; a maior complexidade, multiformidade e a regularidade mais rigorosa de seus componentes, à medida que a máquina-ferramenta se distanciava do modelo artesanal (que originalmente dominava sua construção), e assumia uma forma livre103, determinada apenas por sua tarefa mecânica; o aperfeiçoamento do sistema automático e a aplicação, cada vez mais inevitável, de um material difícil de ser trabalhado, como o ferro em vez da madeira – a solução de todas essas tarefas espontaneamente surgidas chocou-se por toda parte com as limitações pessoais, que mesmo os trabalhadores combinados na manufatura só conseguiam superar até certo grau, mas não em sua essência. Máquinas como a impressora, o tear a vapor e a máquina de cardar modernos não podiam ser fornecidas pela manufatura.

O revolucionamento do modo de produção numa esfera da indústria condiciona seu revolucionamento em outra. Isso vale, antes de mais nada, para os ramos da indústria isolados pela divisão social do trabalho – cada um deles produzindo, por isso, uma mercadoria autônoma –, porém entrelaçados como fases de um processo global. Assim, a fiação mecanizada tornou necessário mecanizar a tecelagem, e ambas tornaram necessária a revolução mecânico-química no branqueamento, na estampagem e no tingimento. Por outro lado, a revolução na fiação do algodão provocou a invenção da gin para separar a fibra do algodão da semente, o que finalmente possibilitou a produção de algodão na larga escala agora exigida104. Mas a revolução no modo de produção da indústria e da agricultura provocou também uma revolução nas condições gerais do processo de produção social, isto é, nos meios de comunicação e transporte. Como os meios de comunicação e de transporte de uma sociedade, cujo pivô, para usar uma expressão de Fourier, eram a pequena agricultura com sua indústria doméstica auxiliar e o artesanato urbano, já não podiam atender absolutamente às necessidades de produção do período da manufatura, com sua divisão ampliada do trabalho social, sua concentração de meios de trabalho e trabalhadores e seus mercados coloniais – razão pela qual eles também foram, de fato, revolucionados –, assim também os meios de transporte e de comunicação legados pelo período manufatureiro logo se transformaram em insuportáveis estorvos para a grande indústria, com sua velocidade febril de produção, sua escala maciça, seu constante deslocamento de massas de capital e de trabalhadores de uma esfera da produção para a outra e suas recém-criadas conexões no mercado mundial. Assim, abstraindo da construção de veleiros, que foi inteiramente revolucionada, o sistema de comunicação e transporte foi gradualmente ajustado ao modo de produção da grande indústria por meio de um sistema de navios fluviais transatlânticos a vapor, ferrovias e telégrafos. Entretanto, as terríveis quantidades de ferro que tinham de ser forjadas, soldadas, cortadas, furadas e moldadas exigiam, por sua vez, máquinas ciclópicas, cuja criação estava além das possibilidades da construção manufatureira de máquinas.

A grande indústria teve, pois, de se apoderar de seu meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas. Somente assim ela criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés. Com a crescente produção mecanizada das primeiras décadas do século XIX, a maquinaria se apoderou gradualmente da fabricação de máquinas-ferramentas. No entanto, foi apenas nas últimas décadas que a colossal construção de ferrovias e a navegação oceânica a vapor deram à luz as ciclópicas máquinas empregadas na construção dos primeiros motores.

A condição mais essencial de produção para a fabricação de máquinas por meio de máquinas era uma máquina motriz capaz de gerar qualquer potência e que fosse, ao mesmo tempo, inteiramente controlável. Ela já existia na máquina a vapor, mas ainda faltava produzir mecanicamente as rigorosas formas geométricas necessárias às partes individuais da máquina, como a linha, o plano, o círculo, o cilindro, o cone e a esfera. Esse problema foi resolvido por Henry Maudslay na primeira década do século XIX, com a invenção do slide-rest [suporte móvel], originalmente destinado ao torno, mas que, sob forma modificada, foi automatizado e adaptado a outras máquinas de construção. Esse dispositivo mecânico não substitui nenhuma ferramenta específica, mas a própria mão humana, que produz uma forma determinada por meio da aproximação, ajuste e condução da lâmina de instrumentos cortantes etc. contra ou sobre o material de trabalho – por exemplo, o ferro – possibilitando, assim, produzir as formas geométricas das peças das máquinas “com um grau de facilidade, precisão e rapidez que nem a experiência acumulada da mão do mais hábil trabalhador poderia alcançar”105.

Se examinarmos agora a parte da maquinaria aplicada à construção de máquinas, que constitui a máquina-ferramenta propriamente dita, veremos reaparecer o instrumento artesanal, porém em dimensão ciclópica. A parte operante da perfuratriz, por exemplo, é uma broca colossal, movida por uma máquina a vapor e sem a qual, inversamente, não se poderiam produzir os cilindros das grandes máquinas a vapor e das prensas hidráulicas. O torno mecânico é o renascimento ciclópico do torno comum de pedal, e a acepilhadora é um carpinteiro de ferro, que trabalha o ferro com as mesmas ferramentas com que o carpinteiro trabalha a madeira; a ferramenta que corta chapas nos estaleiros londrinos é uma gigantesca navalha de barbear; a ferramenta da máquina de cortar, que corta o ferro como a tesoura do alfaiate corta o pano, é uma monstruosa tesoura, e o martelo a vapor opera com uma cabeça comum de martelo, porém de peso tal que nem mesmo Thor seria capaz de brandi-lo106. Por exemplo, um desses martelos a vapor, inventados por Nasmyth, pesa mais de 6 toneladas e cai perpendicularmente de uma altura de 7 pés sobre uma bigorna de 36 toneladas. Ele pulveriza, sem qualquer dificuldade, um bloco de granito, mas nem por isso é menos capaz de enfiar um prego na madeira macia com uma sequência de golpes leves107.

Como maquinaria, o meio de trabalho adquire um modo de existência material que condiciona a substituição da força humana por forças naturais e da rotina baseada na experiência pela aplicação consciente da ciência natural. Na manufatura, a articulação do processo social de trabalho é puramente subjetiva, combinação de trabalhadores parciais; no sistema da maquinaria, a grande indústria é dotada de um organismo de produção inteiramente objetivo, que o trabalhador encontra já dado como condição material da produção. Na cooperação simples, e mesmo na cooperação especificada pela divisão do trabalho, a suplantação do trabalhador isolado pelo socializado aparece ainda como mais ou menos acidental. A maquinaria, com algumas exceções a serem mencionadas posteriormente, funciona apenas com base no trabalho imediatamente socializado ou coletivo. O caráter cooperativo do processo de trabalho se converte agora, portanto, numa necessidade técnica ditada pela natureza do próprio meio de trabalho.”

103 O tear mecânico, em sua primeira forma, é feito fundamentalmente de madeira, e sua forma melhorada, moderna, de ferro. O quanto, inicialmente, a velha forma do meio de produção domina sua nova forma, mostra-o, entre outras coisas, a comparação mais superficial do moderno tear a vapor com o antigo, dos modernos instrumentos de sopro empregados nas fundições de ferro com as primeiras e ineficientes reproduções do fole comum, e, talvez de modo mais evidente que qualquer outro, com as tentativas, antes da invenção das locomotivas atuais, de construir uma locomotiva que tinha, de fato, duas patas, que ela erguia alternadamente como um cavalo. Somente depois do desenvolvimento da mecânica, e com a experiência prática acumulada, é que a forma de uma máquina passa a ser determinada inteiramente de acordo com princípios mecânicos e, por conseguinte, emancipa-se plenamente da forma corpórea tradicional da ferramenta que se metamorfoseou em máquina.

104 Até recentemente, a cotton gin do ianque Eli Whitney fora menos modificada em sua essência do que qualquer outra máquina do século XVIII. Somente nas últimas década (antes de 1867) um outro americano, o sr. Emery, de Albany, Nova York, tornou antiquada a máquina de Whitney mediante uma melhoria tão simples quanto eficaz.

105 The Industry of Nations (Londres, 1855), parte II, p. 239. Onde também se lê: “Por mais simples e exteriormente pouco importante que possa parecer esse acessório do torno, cremos não ser exagerado constatar que sua influência na melhoria e ampliação do emprego de máquinas foi tão grande quanto os aperfeiçoamentos realizados por Watt na máquina a vapor. Sua introdução teve como consequência imediata uma melhoria e o barateamento de todas as máquinas, estimulando invenções e melhorias ulteriores”.

106 Em Londres, uma dessas máquinas para a forja de paddle-wheel shafts [eixos de rodas de pás] traz o nome de “Thor”. Ela forja um eixo de 16,5 toneladas com a mesma facilidade com que o ferreiro forja uma ferradura.

107 A maioria das máquinas que trabalham a madeira, que podem ser aplicada em pequena escala, é invenção americana.

 

 

Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, ele serve à máquina. Lá, o movimento do meio de trabalho parte dele; aqui, ao contrário, é ele quem tem de acompanhar o movimento. Na manufatura, os trabalhadores constituem membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, tem-se um mecanismo morto, independente deles e ao qual são incorporados como apêndices vivos.

“A morna rotina de um trabalho desgastante e sem fim (drudgery), no qual se repete sempre e infinitamente o mesmo processo mecânico, assemelha-se ao suplício de Sísifo – o peso do trabalho, como o da rocha, recai sempre sobre o operário exausto.”186

Enquanto o trabalho em máquinas agride ao extremo o sistema nervoso, ele reprime o jogo multilateral dos músculos e consome todas as suas energias físicas e espirituais187. Mesmo a facilitação do trabalho se torna um meio de tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo. Toda produção capitalista, por ser não apenas processo de trabalho, mas, ao mesmo tempo, processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem emprega as condições de trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador; porém, apenas com a maquinaria essa inversão adquire uma realidade tecnicamente tangível. Transformado num autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção e o trabalho manual, assim como a transformação daquelas em potências do capital sobre o trabalho, consuma-se, como já indicado anteriormente, na grande indústria, erguida sobre a base da maquinaria.”

186 F. Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, cit., p. 213, nota 17. Mesmo um livre-cambista bastante ordinário e otimista como o sr. Molinari, observa: “Um homem se desgasta mais rapidamente quando vigia por 15 horas diárias o movimento uniforme de um mecanismo do que quando exerce sua própria força física nesse mesmo intervalo de tempo. Esse trabalho de vigilância, que, se não fosse prolongado em demasia, talvez pudesse servir como uma ginástica útil para o intelecto, aos poucos destrói, em razão de seu excesso, tanto o intelecto quanto o próprio corpo”, G. de Molinari, Études économiques (Paris, 1846), p. 49.

187 F. Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, cit., p. 212-3.

 

Durante o século XVII, quase toda a Europa presenciou revoltas de trabalhadores contra a assim chamada Bandmühle (também chamada de Schnurmühle ou Mühlenstuhl), uma máquina de tecer fitas e galões194. No final do primeiro terço do século XVII, uma máquina de serrar movida por um moinho de vento e instalada nos arredores de Londres por um holandês sucumbiu em virtude dos excessos da ralé [Pöbel]. Ainda no começo do século XVIII, na Inglaterra, as máquinas hidráulicas de serrar só superaram com muita dificuldade a resistência popular, respaldada pelo Parlamento. Quando, em 1758, Everet construiu a primeira máquina de tosquiar movida a água, ela foi queimada pelas 100 mil pessoas que deixara sem trabalho. Os scribbling mills [moinhos de cardar] e as máquinas de cardar de Arkwright provocaram uma petição ao Parlamento, apresentada pelos 50 mil trabalhadores que até então viviam de cardar lã. A destruição massiva de máquinas que, sob o nome de ludismoj, ocorreu nos distritos manufatureiros ingleses durante os quinze primeiros anos do século XIX e que foi provocada sobretudo pela utilização do tear a vapor, ofereceu ao governo antijacobino de um Sidmouth, Castlereagh etc. o pretexto para a adoção das mais reacionárias medidas de violência. Foi preciso tempo e experiência até que o trabalhador distinguisse entre a maquinaria e sua aplicação capitalista e, com isso, aprendesse a transferir seus ataques, antes dirigidos contra o próprio meio material de produção, para a forma social de exploração desse meio195. (...)

Como máquina, o meio de trabalho logo se converte num concorrente do próprio trabalhador197. A autovalorização do capital por meio da máquina é diretamente proporcional ao número de trabalhadores cujas condições de existência ela aniquila. O sistema inteiro da produção capitalista baseia-se no fato de que o trabalhador vende sua força de trabalho como mercadoria. A divisão do trabalho unilateraliza tal força, convertendo-a numa habilidade absolutamente particularizada de manusear uma ferramenta parcial. Assim que o manuseio da ferramenta é transferido para a máquina, extingue-se, juntamente com o valor de uso, o valor de troca da força de trabalho. O trabalhador se torna invendável, como o papel-moeda tirado de circulação. A parcela da classe trabalhadora que a maquinaria transforma em população supérflua, isto é, não mais diretamente necessária para a autovalorização do capital, sucumbe, por um lado, na luta desigual da velha produção artesanal e manufatureira contra a indústria mecanizada e, por outro, inunda todos os ramos industriais mais acessíveis, abarrota o mercado de trabalho, reduzindo assim o preço da força de trabalho abaixo de seu valor. Um grande lenitivo para os trabalhadores pauperizados deve ser acreditar que, por um lado, seu sofrimento seja apenas “temporário” (“a temporary inconvenience”), e, por outro, que a maquinaria só se apodere gradualmente de um campo inteiro da produção, o que contribui para reduzir o tamanho e a intensidade de seu efeito destruidor. Um lenitivo anula o outro. Onde a máquina se apodera pouco a pouco de um setor da produção se produz uma miséria crônica nas camadas operárias que concorrem com ela. Onde a transição é rápida, seu efeito é massivo e agudo. A história mundial não oferece nenhum espetáculo mais aterrador do que a paulatina extinção dos tecelões manuais de algodão ingleses, processo que se arrastou por décadas até ser consumado em 1838. Muitos deles morreram de fome, enquanto outros vegetaram por muitos anos com suas famílias, vivendo com 2,5 pence por dia198. Igualmente, agudos foram os efeitos da maquinaria algodoeira inglesa sobre as Índias Orientais, cujo governador-geral constatava, em 1834-1835: “Dificilmente uma tal miséria encontra paralelo na história do comércio. As ossadas dos tecelões de algodão alvejam as planícies da Índia”.

Sem dúvida, despachando esses tecelões deste mundo temporal, a máquina não fazia mais do que lhes ocasionar uma “inconveniência temporária”. Além do mais, o efeito “temporário” da maquinaria é permanente, porquanto se apodera constantemente de novas áreas da produção. A figura autonomizada e estranhada que o modo de produção capitalista em geral confere às condições de trabalho e ao produto do trabalho, em contraposição ao trabalhador, desenvolve-se com a maquinaria até converter-se numa antítese completa199. Daí que a revolta brutal do trabalhador contra o meio de trabalho irrompa, pela primeira vez, juntamente com maquinaria.”

194 A Bandmühle foi inventada na Alemanha. O abade italiano Lancellotti narra, em seu escrito publicado em Veneza, em 1636: “Há cerca de cinquenta anos [Lancelloti escrevia em 1629], Anton Müller, de Danzig, viu uma máquina muito engenhosa, que fabricava de quatro a seis tecidos de uma só vez; mas como o Conselho Municipal temia que esse invento transformasse em mendigos uma grande quantidade de trabalhadores, suprimiu sua aplicação e mandou secretamente estrangular ou afogar o inventor” [Marx cita a obra de Secondo Lancelloti, intitulada L’Hoggidi overo gl’ingegni non inferiori a’passati a partir de Johann Beckmann, Beyträge zur Geschichte der Erfindungen (Leipzig, 1786), v. 1, p. 125-32. As subsequentes referências na nota 194 foram igualmente extraídas desse livro (N. T.)]. Em Leyden, a mesma máquina foi empregada pela primeira vez em 1629. As revoltas dos tecelões de galões forçaram os magistrados a proibi-la; diversas disposições dos Estados Gerais, de 1623, 1639 etc., procuraram limitar seu uso, até que, finalmente, ele foi permitido, sob certas condições, por uma disposição de 15 de dezembro de 1661. “Nesta cidade”, diz Boxhorn (Inst[itutiones]. Pol[iticae]., 1663) sobre a introdução da Bandmühle em Leyden, “certas pessoas inventaram, há cerca de 20 anos, um instrumento para tecer com o qual um indivíduo podia produzir mais tecido e mais facilmente do que, sem este instrumento, várias pessoas no mesmo tempo. Isso provocou distúrbios e queixas dos tecelões, até que o uso desse instrumento foi proibido pelas autoridades etc.” Essa mesma máquina foi proibida, em 1676, em Colônia, ao passo que sua introdução na Inglaterra provocou, na mesma época, distúrbios entre os trabalhadores. Um édito imperial de 19 de fevereiro de 1685 proscreveu seu uso em toda a Alemanha. Em Hamburgo, a máquina foi queimada publicamente por ordem das autoridades. A 9 de fevereiro de 1719, Carlos VI renovou o édito de 1685, e o eleitorado da Saxônia só permitiu seu uso público em 1765. Essa máquina, que tanto alvoroço provocou no mundo, foi, na realidade, a precursora das máquinas de fiar e tecer e, portanto, da revolução industrial do século XVIII. Ela possibilitava que um jovem sem qualquer experiência em tecelagem, simplesmente puxando e empurrando uma alavanca, colocasse em movimento um tear completo, com todas as suas lançadeiras, e, em sua forma aperfeiçoada, produzia de quarenta a cinquenta peças de uma só vez.

j Na Inglaterra do século XIX, movimento dos operários da indústria têxtil que protestava – frequentemente destruindo os teares mecânicos – contra as mudanças introduzidas pela Revolução Industrial. O nome do movimento deriva de Ned Ludd, um jovem que supostamente teria destruído duas máquinas de fiar em 1779. (N. T.)

195 Nas manufaturas antiquadas ainda hoje se repetem, às vezes, a forma primitiva das revoltas operárias contra a maquinaria. Assim, por exemplo, em 1865, entre os esmerilhadores de Sheffield.

197 “Maquinaria e trabalho estão em constante concorrência”, Ricardo, The Princ. of Pol. Econ., cit., p. 479.

198 Na Inglaterra, a concorrência entre tecelagem manual e mecânica pôde ser prolongada, antes da introdução da Lei dos Pobres de 1834, graças à prática de complementar com subsídios paroquiais os salários, que então caíra muito abaixo do mínimo. O reverendo sr. Turner era, em 1827, pároco de Wilmslow, em Cheshire, um distrito industrial. As perguntas do Comitê de Emigração e as respostas do sr. Turner mostram como é mantida a competição do trabalho manual contra a maquinaria. Pergunta: ‘Não teria o uso do tear mecânico suprimido o uso do tear manual?’ Resposta: ‘Sem dúvida; e tê-lo-ia suprimido ainda mais se os tecelões manuais não se tivessem submetido a uma redução de salários’. Pergunta: ‘Mas o tecelão manual, ao submeter-se, contentou-se com um salário que é insuficiente para sustentá-lo e conta com a contribuição paroquial para o complemento desse sustento?’ Resposta: ‘Sim, e, de fato, a competição entre o tear manual e o mecânico é mantida pela assistência aos pobres’. Assim, o pauperismo degradante ou a expatriação é o benefício que o operário recebe da introdução da maquinaria, sendo rebaixados de artesãos respeitáveis, e até certo ponto independentes, a miseráveis rastejantes que vivem do pão degradante da caridade. E é a isso que eles chamam de inconveniência temporária”, A Prize Essay on the Comparative Merits of Competition and Co-operation (Londres, 1834), p. 29.

199 “A mesma causa que pode aumentar a receita de um país” (isto é, como explica Ricardo na mesma passagem, the revenues of landlords and capitalists cuja wealth, considerada economicamente, é, em geral = Wealth of the Nation) “pode, ao mesmo tempo, gerar um excedente de população e piorar a situação do trabalhador”, Ricardo, The Princ. of Pol. Econ., cit., p. 469. “A finalidade constante e a tendência de todo aperfeiçoamento do mecanismo é, de fato, eliminar completamente o trabalho do homem ou reduzir seu preço por meio da substituição do trabalho de homens adultos pelo de mulheres e de crianças, ou o de operários qualificados pelo de não qualificados”, Ure, The Philosophy of Manufactures, cit., p. 23.

 

 

“É um fato indubitável que a maquinaria não é, por si mesma, responsável por “liberar” os trabalhadores de sua dependência em relação aos meios de subsistência. Ela barateia o produto e aumenta sua quantidade no ramo de que se apodera, deixando intocada, num primeiro momento, a massa de meios de subsistência produzida em outros ramos da indústria. Depois de sua introdução, portanto, a sociedade dispõe de tantos ou mais meios de subsistência para os trabalhadores deslocados do que dispunha antes, e isso sem considerar a enorme parcela do produto anual que é dilapidada pelos não trabalhadores. E esse é o argumento central da apologética econômica! As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria inexistem, porquanto têm origem não na própria maquinaria, mas em sua utilização capitalista! Como, portanto, considerada em si mesma, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela aumenta a jornada de trabalho; como, por si mesma, ela facilita o trabalho, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela aumenta sua intensidade; como, por si mesma, ela é uma vitória do homem sobre as forças da natureza, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela subjuga o homem por intermédio das forças da natureza; como, por si mesma, ela aumenta a riqueza do produtor, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela o empobrece etc. – o economista burguês declara simplesmente que a observação da maquinaria, considerada em si mesma, demonstra com absoluta precisão que essas contradições palpáveis não são mais do que a aparência da realidade comum, não existindo por si mesmas e, portanto, tampouco na teoria. Ele se poupa, assim, da necessidade de continuar a quebrar a cabeça e, além disso, imputa a seu adversário a tolice de combater não a utilização capitalista da maquinaria, mas a própria maquinaria.

O economista burguês não nega em absoluto que, com isso, surjam também alguns inconvenientes temporários; mas que medalha haverá sem seu reverso? Para ele, é impossível outra utilização da maquinaria que não a capitalista. A exploração do trabalhador pela máquina é, a seu ver, idêntica à exploração da máquina pelo trabalhador. De modo que quem revela o que ocorre na realidade com a utilização capitalista da maquinaria é alguém que se opõe a sua utilização em geral, é um inimigo do progresso social!216 Exatamente igual ao raciocínio do célebre degolador Bill Sikes:

“Senhores jurados! Sem dúvida, esse caixeiro-viajante teve sua garganta cortada. Desse fato, porém, não é minha a culpa, e sim da faca. Deveríamos, em razão de tais inconvenientes temporários, abolir o uso da faca? Refleti sobre isso! Que seria da agricultura e do artesanato sem a faca? Não é ela tão benéfica na cirurgia quanto sábia na anatomia? E, além disso, uma auxiliar tão prestimosa em alegres festins? Eliminai a faca, e lançar-nos-eis de volta à mais profunda barbárie.”216a

216 Um virtuose desse cretinismo desmedido é, entre outros, MacCulloch. “Se é vantajoso”, diz ele, com a ingenuidade afetada de uma criança de 8 anos, “desenvolver cada vez mais a destreza do trabalhador, de modo que ele se torne capaz de produzir uma quantidade cada vez maior de mercadorias com uma quantidade igual ou menor de trabalho, então deve ser igualmente vantajoso que ele se sirva dessa maquinaria do modo mais eficaz para atingir esse resultado”, MacCulloch, Princ. of Pol. Econ. (Londres, 1830), p. 182.

216a “O inventor da máquina de fiar arruinou a Índia, o que, contudo, pouco nos importa”, A. Thiers, De la propriété (Paris, 1848), p. 275. O sr. Thiers confunde, aqui, a máquina de fiar com o tear mecânico, “o que, contudo, pouco nos importa”.

 

 

“Quanto mais cresce a força produtiva do trabalho, tanto mais se pode reduzir a jornada de trabalho, e, quanto mais se reduz a jornada de trabalho, tanto mais pode crescer a intensidade do trabalho. Considerada socialmente, a produtividade do trabalho cresce também com sua economia. Esta implica não apenas que se economizem os meios de produção, mas também que se evite todo trabalho inútil. Ao mesmo tempo que o modo de produção capitalista impõe a economia em cada empresa individual, seu sistema anárquico de concorrência gera o desperdício mais desenfreado dos meios de produção e das forças de trabalho sociais, além de inúmeras funções atualmente indispensáveis, mas em si mesmas supérfluas.

Dadas a intensidade e a força produtiva do trabalho, a parte da jornada social de trabalho necessária para a produção material será tanto mais curta e, portanto, tanto mais longa a parcela de tempo disponível para a livre atividade intelectual e social dos indivíduos quanto mais equitativamente o trabalho for distribuído entre todos os membros capazes da sociedade e quanto menos uma camada social puder esquivar-se da necessidade natural do trabalho, lançando-a sobre os ombros de outra camada. O limite absoluto para a redução da jornada de trabalho é, nesse sentido, a generalização do trabalho. Na sociedade capitalista, produz-se tempo livre para uma classe transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário