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sábado, 8 de maio de 2021

Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858 – Esboços da crítica da economia política (Parte I), de Karl Marx

Editora: Boitempo/UFRJ

ISBN: 978-85-7559-172-7

Tradução: Mario Duayer e Nélio Schneider (com colaboração de Alice Helga Wermer e Rudiger Hoffman

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 792

Sinopse: Muito mais que ‘esboços’ ou adiantamento da obra maior de Karl Marx, os três manuscritos econômicos de 1857-1858 que compõem os quase lendários Grundrisse constituem patrimônio das ciências humanas de inestimável valor. Parte de uma luta ideológico-política pela exclusividade do ‘verdadeiro’ Marx, a obra somente veio à luz já na primeira metade do século XX, em virtude dos conflitos centrados no controle que o Partido Comunista da ex-URSS exerceu sobre os escritos não divulgados do filósofo alemão. Considerados inicialmente espécie de amostra ou work in progress do que viria a ser a obra central de Marx, sabe-se hoje que examinar os Grundrisse é como ter acesso ao laboratório de estudos de Marx no curso de sua extensa atividade intelectual, o que permite acompanhar a evolução de seu pensamento, as áreas específicas de interesse que deles se desdobram, e, sobretudo, compreender no detalhe o seu método de trabalho.

Publicada integralmente e pela primeira vez em português, esta obra crucial de Marx para o desenvolvimento de sua crítica da economia política consiste em três textos bastante distintos entre si em natureza e dimensão. O primeiro, que só mais tarde o filósofo intitularia ‘Bastiat e Carey’, foi escrito em um caderno datado de julho de 1857. O segundo, contendo o que seria uma projetada introdução à sua obra de crítica à economia política, é de um caderno de cerca de trinta páginas, marcado com a letra M e redigido, ao que tudo indica, nos últimos dez dias de agosto de 1857. O terceiro manuscrito, e o mais extenso, compreende a obra póstuma de Marx que ficou conhecida como ‘Esboços da crítica da economia política’, ou simplesmente Grundrisse, conforme o título da edição alemã. Tal texto consiste em dois capítulos (‘Capítulo do dinheiro’ e ‘Capítulo do capital’) distribuídos em sete cadernos numerados de I a VII. Segundo Francisco de Oliveira, professor de sociologia da Universidade de São Paulo (USP), na capa do livro, ‘o vigoroso teórico pode ser justamente tido como um escritor de primeira plana; ele tinha, sem muita modéstia, inteira consciência de seu valor literário e, talvez por exagero – e que temperamento! –, tenha deixado na obscuridade muitos textos dos Grundrisse e que estão agora com os leitores do Brasil e de outras paragens para nossa delícia teórica e nossas elaborações na tradição marxista’.

Trabalho de anos de tradução rigorosa diretamente dos originais em alemão, com coedição da Boitempo Editorial e Editoria UFRJ, os Grundrisse constituem a versão inicial da crítica da economia política, planejada por Marx desde a juventude e escrita entre outubro de 1857 e maio de 1858. Ela seria reelaborada muitas vezes depois, até dar origem aos três tomos de O capital. ‘O fato de ser uma primeira versão não faz destes escritos algo simples ou de mero interesse histórico. Além de entender o ponto de partida da grande obra de maturidade de Marx, eles permitem vê-la de uma perspectiva especial só possível com manuscritos desse tipo, pois, como não pretendia ainda publicá-los, o autor os considerava uma etapa de seu próprio esclarecimento, concedendo-se liberdades formais abolidas nas versões posteriores’, afirma na orelha o professor de história da USP, Jorge Grespan.

Segundo o tradutor e supervisor da edição, Mário Duayer, mesmo diante de mazelas da vida, o prognóstico de uma crise econômica iminente forneceu a Marx o estímulo para pôr no papel as descobertas de seus longos anos de estudos de economia política e dar uma primeira forma à sua crítica. ‘Vivendo em extrema pobreza, permanentemente sitiado por credores, cliente habitual de lojas de penhor, castigado por problemas de saúde e devastado pela morte prematura de quatro dos seus sete filhos – decerto em virtude das condições materiais em que vivia a família –, o que de fato surpreende é como ele foi capaz de produzir, nessas circunstâncias, não só um trabalho tão magnífico, uma das obras científicas mais importantes e influentes de todas as épocas, mas, acima de tudo, uma obra motivada por uma paixão genuína pelo ser humano’.



“Indivíduos produzindo em sociedade – por isso, o ponto de partida é, naturalmente, a produção dos indivíduos socialmente determinada. O caçador e o pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo2, pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII, ilusões que de forma alguma expressam, como imaginam os historiadores da cultura, simplesmente uma reação ao excesso de refinamento e um retorno a uma vida natural mal-entendida. Da mesma maneira que o contrato social de Rousseau, que pelo contrato põe em relação e conexão sujeitos por natureza independentes, não está fundado em tal naturalismo. Essa é a aparência, apenas a aparência estética das pequenas e grandes robinsonadas. Trata-se, ao contrário, da antecipação da “sociedade burguesa”3, que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para sua maturidade. Nessa sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um conglomerado humano determinado e limitado. Aos profetas do século XVIII, sobre cujos ombros Smith e Ricardo ainda se apoiam inteiramente, tal indivíduo do século XVIII – produto, por um lado, da dissolução das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças produtivas desenvolvidas desde o século XVI – aparece como um ideal cuja existência estaria no passado. Não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da história. Visto que o indivíduo natural, conforme sua representação da natureza humana, não se origina na história, mas é posto pela natureza. Até o momento essa tem sido uma ilusão comum a toda nova época. Steuart, que em muitos aspectos contrasta com o século XVIII e, como aristocrata, mantém-se mais no terreno histórico, evitou essa ingenuidade.

Quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um todo maior: de início, e de maneira totalmente natural, na família e na família ampliada em tribo; mais tarde, nas diversas formas de comunidade resultantes do conflito e da fusão das tribos. Somente no século XVIII, com a “sociedade burguesa”, as diversas formas de conexão social confrontam o indivíduo como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior. Mas a época que produz esse ponto de vista, o ponto de vista do indivíduo isolado, é justamente a época das relações sociais (universais desde esse ponto de vista) mais desenvolvidas até o presente. O ser humano é, no sentido mais literal, um ζώοv πολιτικόv4, não apenas um animal social, mas também um animal que somente pode isolar-se em sociedade. A produção do singular isolado fora da sociedade – um caso excepcional que decerto pode muito bem ocorrer a um civilizado, já potencialmente dotado das capacidades da sociedade, por acaso perdido na selva – é tão absurda quanto o desenvolvimento da linguagem sem indivíduos vivendo juntos e falando uns com os outros.”

2 Adam Smith, An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations (Londres, Wakefield, 1843, v. 1), p. 2 [ed. bras.: Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, São Paulo, Hemus, 2008]; David Ricardo, On the principles of political economy and taxation (3. ed., Londres, J. Murray, 1821), p. 16-23 [ed. port.: Princípios de economia política e de tributação, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001].

3 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, “Grundlinen der Philosophie des Rechts”, em Werke. Vollständige Ausg. durch einen Verein von Freunden des Verewigten (Berlim, Duncker & Humblot, 1833, tomo 8), § 182, suplemento.

[4] Aristóteles, Política (São Paulo, Martins, 2006), livro I, cap. 2, 1253 a 3. [(N. T.)].

 

 

Não há nada mais tediosamente árido do que as fantasias do lugar-comum.”

 

 

Por isso, quando se fala de produção, sempre se está falando de produção em um determinado estágio de desenvolvimento social – da produção de indivíduos sociais. Desse modo, poderia parecer que, para poder falar em produção em geral, deveríamos seja seguir o processo histórico de desenvolvimento em suas distintas fases, seja declarar por antecipação que consideramos uma determinada época histórica, por exemplo, a moderna produção burguesa, que é de fato o nosso verdadeiro tema. No entanto, todas as épocas da produção têm certas características em comum, determinações em comum. A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal, ou o comum isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes determinações. Algumas determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns apenas a algumas. Certas determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Nenhuma produção seria concebível sem elas; todavia, se as línguas mais desenvolvidas têm leis e determinações em comum com as menos desenvolvidas, a diferença desse universal e comum é precisamente o que constitui seu desenvolvimento. As determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da unidade – decorrente do fato de que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos –, não seja esquecida a diferença essencial. Em tal esquecimento repousa, por exemplo, toda a sabedoria dos economistas modernos que demonstram a eternidade e a harmonia das relações sociais existentes. Por exemplo: nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção, mesmo sendo este instrumento apenas a mão. Nenhuma produção é possível sem trabalho passado, acumulado, mesmo sendo este trabalho apenas a destreza acumulada e concentrada na mão do selvagem pelo exercício repetido. O capital, entre outras coisas, é também instrumento de produção, também trabalho passado, objetivado. Logo, o capital é uma relação natural, universal e eterna; quer dizer, quando deixo de fora justamente o específico, o que faz do “instrumento de produção”, do “trabalho acumulado”, capital.”

 

 

Ad. 1. Toda produção é apropriação da natureza pelo indivíduo no interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade. Nesse sentido, é uma tautologia afirmar que propriedade (apropriação) é uma condição da produção. É risível, entretanto, dar um salto daí para uma forma determinada de propriedade, por exemplo, para a propriedade privada. (O que, além disso, presumiria da mesma maneira uma forma antitética, a não propriedade, como condição.) A história mostra, pelo contrário, a propriedade comunal (por exemplo, entre os hindus, os eslavos, os antigos celtas etc.) como a forma original, uma forma que cumpre por um longo período um papel significativo sob a figura de propriedade comunal. Está totalmente fora de questão aqui indagar se a riqueza se desenvolveria melhor sob essa ou aquela forma de propriedade. Mas dizer que a produção e, por conseguinte, a sociedade são impossíveis onde não existe qualquer forma de propriedade é uma tautologia. Uma apropriação que não se apropria de nada é uma contradictio in subjecto*.

Ad. 2. Salvaguardar o adquirido etc. Quando tais trivialidades são reduzidas ao seu efetivo conteúdo, expressam mais do que sabem seus pregadores. A saber, que toda forma de produção forja suas próprias relações jurídicas, forma de governo etc. A insipiência e o desentendimento consistem precisamente em relacionar casualmente o que é organicamente conectado, em reduzi-lo a uma mera conexão da reflexão. Os economistas burgueses têm em mente apenas que se produz melhor com a polícia moderna do que, por exemplo, com o direito do mais forte. Só esquecem que o direito do mais forte também é um direito, e que o direito do mais forte subsiste sob outra forma em seu “estado de direito”.”

* Contradição nos termos. (N. T.)

 

 

“A representação superficial claramente perceptível: na produção, os membros da sociedade apropriam (elaboram, configuram) os produtos da natureza às necessidades humanas; a distribuição determina a proporção em que o indivíduo singular participa desses produtos; a troca o provê dos produtos particulares nos quais deseja converter a cota que lhe coube pela distribuição; no consumo, finalmente, os produtos devêm objetos do desfrute, da apropriação individual. A produção cria os objetos correspondentes às necessidades; a distribuição os reparte segundo leis sociais; a troca reparte outra vez o já repartido, segundo a necessidade singular; finalmente, no consumo, o produto sai desse movimento social, devém diretamente objeto e serviçal da necessidade singular e a satisfaz no desfrute. A produção aparece assim como o ponto de partida; o consumo, como o ponto final; a distribuição e a troca, como o meio-termo, o qual, por sua vez, é ele próprio dúplice, uma vez que a distribuição é o momento determinado pela sociedade e a troca, o momento determinado pelos indivíduos. Na produção, a pessoa se objetiva, no consumo, a coisa se subjetiva; na distribuição, a sociedade assume a mediação entre produção e consumo sob a forma de determinações dominantes; na troca, produção e consumo são mediados pela determinabilidade contingente do indivíduo.

A distribuição determina a proporção (o quantum) dos produtos que cabe aos indivíduos; a troca determina os produtos nos quais o indivíduo reclama para si a cota que lhe atribui a distribuição.

Produção, distribuição, troca e consumo constituem assim um autêntico silogismo; a produção é a universalidade, a distribuição e a troca, a particularidade, e o consumo, a singularidade na qual o todo se unifica. Esta é certamente uma conexão, mas uma conexão superficial. A produção é determinada por leis naturais universais; a distribuição, pela casualidade social, e pode, por isso, ter um efeito mais ou menos estimulante sobre a produção; a troca interpõe-se entre ambos como movimento social formal; e o ato conclusivo do consumo, concebido não apenas como fim, mas também como finalidade propriamente dita, situa-se propriamente fora da economia, exceto quando retroage sobre o ponto de partida e enceta de novo todo o processo.”

 

 

“Logo, a produção é imediatamente consumo e o consumo é imediatamente produção. Cada um é imediatamente seu contrário. Mas tem lugar simultaneamente um movimento mediador entre ambos. A produção medeia o consumo, cujo material cria, consumo sem o qual faltaria-lhe o objeto. Mas o consumo também medeia a produção ao criar para os produtos o sujeito para o qual são produtos. Somente no consumo o produto recebe o seu último acabamento. Uma estrada de ferro não trafegada, que, portanto, não é usada, consumida, é uma estrada de ferro apenas δυνάμειd, não efetivamente. Sem produção, nenhum consumo; mas, também, sem consumo, nenhuma produção, pois nesse caso a produção seria inútil. O consumo produz a produção duplamente: 1) na medida em que apenas no consumo o produto devém efetivamente produto. Uma roupa, por exemplo, somente devém roupa efetiva no ato de ser trajada; uma casa que não é habitada não é de fato uma casa efetiva; logo, o produto, à diferença do simples objeto natural, afirma-se como produto, devém produto somente no consumo. O consumo dá o golpe de misericórdia no produto quando o dissolve; porque o produto é a produção não só como atividade coisificada, mas também como objeto para o sujeito ativo; 2) na medida em que o consumo cria a necessidade de nova produção, é assim o fundamento ideal internamente impulsor da produção, que é o seu pressuposto. O consumo cria o estímulo da produção; cria também o objeto que funciona na produção como determinante da finalidade. Se é claro que a produção oferece exteriormente o objeto do consumo, é igualmente claro que o consumo põe idealmente o objeto da produção como imagem interior, como necessidade, como impulso e como finalidade. Cria os objetos da produção em uma forma ainda subjetiva. Sem necessidade, nenhuma produção. Mas o consumo reproduz a necessidade.

A isso corresponde, do lado da produção, que ela 1) fornece ao consumo o material, o objeto. Um consumo sem objeto não é consumo; portanto, sob esse aspecto, a produção cria, produz o consumo. 2) Mas não é somente o objeto que a produção cria para o consumo. Ela também dá ao consumo sua determinabilidade, seu caráter, seu fim. Assim como o consumo deu ao produto seu fim como produto, a produção dá o fim do consumo. Primeiro, o objeto não é um objeto em geral, mas um objeto determinado que deve ser consumido de um modo determinado, por sua vez mediado pela própria produção. Fome é fome, mas a fome que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que devora carne crua com mão, unha e dente. Por essa razão, não é somente o objeto do consumo que é produzido pela produção, mas também o modo do consumo, não apenas objetiva, mas também subjetivamente. A produção cria, portanto, os consumidores. 3) A produção não apenas fornece à necessidade um material, mas também uma necessidade ao material. O próprio consumo, quando sai de sua rudeza e imediaticidade originais – e a permanência nessa fase seria ela própria o resultado de uma produção aprisionada na rudeza natural –, é mediado, enquanto impulso, pelo objeto. A necessidade que o consumo sente do objeto é criada pela própria percepção do objeto. O objeto de arte – como qualquer outro produto – cria um público capaz de apreciar a arte e de sentir prazer com a beleza. A produção, por conseguinte, produz não somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Logo, a produção produz o consumo, na medida em que 1) cria o material para o consumo; 2) determina o modo do consumo; 3) gera como necessidade no consumidor os produtos por ela própria postos primeiramente como objetos. Produz, assim, o objeto do consumo, o modo do consumo e o impulso do consumo. Da mesma forma, o consumo produz a disposição do produtor, na medida em que o solicita como necessidade que determina a finalidade. (...)

Não só a produção é imediatamente consumo e o consumo, imediatamente produção; nem tampouco a produção é apenas meio para o consumo e o consumo, finalidade para a produção, i.e., cada qual fornece ao outro o seu objeto: a produção, o objeto externo do consumo, o consumo, o objeto representado da produção; cada um deles não apenas é imediatamente o outro, nem tampouco apenas o medeia, mas cada qual cria o outro à medida que se realiza. O consumo só termina o ato da produção na medida em que realiza o produto como produto, o dissolve, consome a sua forma de coisa autônoma; na medida em que eleva à destreza, pela necessidade da repetição, a disposição desenvolvida no primeiro ato de produção; o consumo, portanto, não é apenas um ato conclusivo pelo qual o produto devém produto, mas também o ato mediante o qual o produtor devém produtor. Por outro lado, a produção produz o consumo na medida em que cria o modo determinado do consumo e, depois, o estímulo ao consumo, a própria capacidade de consumo como necessidade. Esta última identidade, indicada sob o terceiro tópico, é muitas vezes ilustrada na Economia na relação entre oferta e demanda, entre objetos e necessidades, entre necessidades socialmente criadas e naturais. (...)

No caso de um sujeito, produção e consumo aparecem como momentos de um ato. O importante aqui é apenas destacar que, se produção e consumo são considerados como atividades de um sujeito ou de muitos indivíduos, ambos aparecem em todo caso como momentos de um processo no qual a produção é o ponto de partida efetivo, e, por isso, também o momento predominante. O próprio consumo, como carência vital, como necessidade, é um momento interno da atividade produtiva. Mas esta última é o ponto de partida da realização e, por essa razão, também seu momento predominante, o ato em que todo o processo transcorre novamente. O indivíduo produz um objeto e retorna a si ao consumi-lo, mas como indivíduo produtivo e que se autorreproduz. O consumo aparece, assim, como momento da produção.

Na sociedade, no entanto, a relação do produtor com o produto, tão logo este esteja acabado, é uma relação exterior, e o retorno do objeto ao sujeito depende de suas relações com os outros indivíduos. Não se apodera dele imediatamente. Tampouco a imediata apropriação do produto é a finalidade do produtor quando produz em sociedade. Entre o produtor e os produtos se interpõe a distribuição, que determina, por meio de leis sociais, sua cota no mundo dos produtos, interpondo-se, assim, entre a produção e o consumo.”

*: Potencialmente. (N. T.)

 

 

“O resultado a que chegamos não é que produção, distribuição, troca e consumo são idênticos, mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade. A produção estende-se tanto para além de si mesma na determinação antitética da produção, como sobrepõe-se sobre os outros momentos. É a partir dela que o processo sempre recomeça. É autoevidente que a troca e o consumo não podem ser predominantes. Da mesma forma que a distribuição como distribuição dos produtos. No entanto, como distribuição dos agentes da produção, ela própria é um momento da produção. Uma produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinados, bem como relações determinadas desses diferentes momentos entre si. A produção, por sua vez, certamente é também determinada, em sua forma unilateral, pelos outros momentos. P. ex., quando o mercado se expande, i.e., a esfera da troca, a produção cresce em extensão e subdivide-se mais profundamente. Com mudança na distribuição, modifica-se a produção; p. ex., com a concentração do capital, com diferente distribuição da população entre cidade e campo etc. Finalmente, as necessidades de consumo determinam a produção. Há uma interação entre os diferentes momentos. Esse é o caso em qualquer todo orgânico.”

 

 

“Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado chegaria a conceitos abstratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações. A primeira via foi a que tomou historicamente a Economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., começam sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos Estados etc.; mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem por meio da análise. Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e abstraídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. O último é manifestamente o método cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto. P. ex., a categoria econômica mais simples, digamos, o valor de troca, supõe a população, população produzindo em relações determinadas; supõe também um certo tipo de família – ou comunidade – ou de Estado etc. Não pode jamais existir, exceto como relação abstrata, unilateral, de um todo vivente, concreto, já dado. Como categoria, ao contrário, o valor de troca leva uma vida antediluviana. Por essa razão, para a consciência para a qual o pensamento conceitualizante é o ser humano efetivo, e somente o mundo conceituado enquanto tal é o mundo efetivo – e a consciência filosófica é assim determinada –, o movimento das categorias aparece, por conseguinte, como o ato de produção efetivo – que, infelizmente, recebe apenas um estímulo do exterior –, cujo resultado é o mundo efetivo; e isso – que, no entanto, é uma tautologia – é correto na medida em que a totalidade concreta como totalidade de pensamento, como um concreto de pensamento, é de fato um produto do pensar, do conceituar; mas de forma alguma é um produto do conceito que pensa fora e acima da intuição e da representação, e gera a si próprio, sendo antes produto da elaboração da intuição e da representação em conceitos. O todo como um todo de pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística, religiosa e prático-mental. O sujeito real, como antes, continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, claro, enquanto a cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente. Por isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representação.”

 

 

“Não obstante, permanece sempre o fato de que as categorias simples são expressões de relações nas quais o concreto ainda não desenvolvido pode ter se realizado sem ainda ter posto a conexão ou a relação mais multilateral que é mentalmente expressa nas categorias mais concretas; enquanto o concreto mais desenvolvido conserva essa mesma categoria como uma relação subordinada.”

 

 

“Esse exemplo do trabalho mostra com clareza como as próprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas – justamente por causa de sua abstração –, na determinabilidade dessa própria abstração, são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas.

A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte que nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Mas de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, a dízima etc. quando se conhece a renda da terra. Porém, não se deve identificá-los. Como, ademais, a própria sociedade burguesa é só uma forma antagônica do desenvolvimento, nela são encontradas com frequência relações de formas precedentes inteiramente atrofiadas ou mesmo dissimuladas. Por exemplo, a propriedade comunal. Por conseguinte, se é verdade que as categorias da economia burguesa têm uma verdade para todas as outras formas de sociedade, isso deve ser tomado cum grano salis*. Elas podem conter tais categorias de modo desenvolvido, atrofiado, caricato etc., mas sempre com diferença essencial. O assim chamado desenvolvimento histórico se baseia sobretudo no fato de que a última forma considera as formas precedentes como etapas até si mesma, e as concebe sempre unilateralmente, uma vez que raramente critica a si mesma, do que é capaz apenas em condições muito determinadas – e aqui naturalmente não se trata daqueles períodos históricos que parecem a si mesmos como épocas de decadência. A religião cristã só foi capaz de contribuir para a compreensão objetiva das mitologias anteriores quando sua autocrítica estava em certa medida, por assim dizer, δυνάμει**, pronta. Da mesma maneira, a Economia burguesa só chegou à compreensão das sociedades feudal, antiga e oriental quando começou a autocrítica da sociedade burguesa. Na medida em que a Economia burguesa não se identifica pura e simplesmente com o passado, mitologizando-o, sua crítica das sociedades precedentes, sobretudo a feudal, com a qual ainda tinha de lutar diretamente, é similar à crítica feita pelo cristianismo ao paganismo, ou à do protestantismo ao catolicismo.

Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência, com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo algum só começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal. É preciso ter isso em mente, porque oferece elemento decisivo para a subdivisão. Nada parece mais natural, por exemplo, do que começar pela renda da terra, pela propriedade da terra, visto que está ligada à terra, fonte de toda riqueza e de toda existência [Dasein], e à primeira forma de produção de todas as sociedades mais ou menos estabilizadas – a agricultura. Mas nada seria mais falso. Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas relações. É uma iluminação universal em que todas as demais cores estão imersas e que as modifica em sua particularidade. É um éter particular que determina o peso específico de toda existência que nele se manifesta. P. ex., entre os povos pastores (os povos meramente caçadores ou pescadores estão aquém do ponto onde começa o desenvolvimento efetivo). Há entre eles uma certa forma de agricultura, esporádica. Desse modo, a propriedade da terra é determinada. É propriedade em comum e mantém essa forma em maior ou menor grau, de acordo com o maior ou menor grau com que esses povos persistem em suas tradições, p. ex., a propriedade comunal entre os eslavos. Entre os povos de agricultura sedentária – esse sedentarismo já é um grande passo –, onde esta predomina como nas sociedades antigas e feudais, a própria indústria e sua organização, e as formas de propriedade que lhes correspondem, têm em maior ou menor grau o caráter de propriedade da terra; ou é inteiramente dependente da propriedade da terra, como entre os antigos romanos, ou reproduz a organização rural na cidade e em suas relações, como na Idade Média. No período medieval, o próprio capital – desde que não seja simples capital-dinheiro –, como ferramenta manual tradicional etc., tem esse caráter de propriedade fundiária. Na sociedade burguesa sucede o contrário. A agricultura devém mais e mais um simples ramo da indústria, e é inteiramente dominada pelo capital. O mesmo se dá com a renda da terra. Em todas as formas em que domina a propriedade da terra, a relação natural ainda é predominante. Naquelas em que domina o capital, predomina o elemento social, historicamente criado. A renda da terra não pode ser compreendida sem o capital. Mas o capital é perfeitamente compreensível sem a renda da terra. O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina. Tem de constituir tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada, e tem de ser desenvolvido antes da renda da terra. Após o exame particular de cada um, é necessário examinar sua relação recíproca.

Seria impraticável e falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua ordem é determinada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua ordem natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que as relações econômicas assumem historicamente na sucessão de diferentes formas de sociedade. Muito menos de sua ordem “na ideia” (como em Proudhon20) (uma representação obscura do movimento histórico). Trata-se, ao contrário, de sua estruturação no interior da moderna sociedade burguesa.

A pureza (determinabilidade abstrata) em que aparecem os povos comerciantes no mundo antigo – fenícios e cartagineses – é dada justamente pelo próprio predomínio dos povos agricultores. O capital, como capital comercial ou capital-dinheiro, aparece nessa abstração precisamente ali onde o capital ainda não é o elemento dominante das sociedades. Os lombardos e os judeus ocupam a mesma posição em relação às sociedades medievais dedicadas à agricultura.

Como outro exemplo da posição diferente que as mesmas categorias ocupam em diferentes estágios de sociedade, uma das últimas formas da sociedade burguesa: as sociedades por ações. Mas aparecem também no início da sociedade burguesa, nas grandes e privilegiadas companhias comerciais detentoras de monopólio.

O próprio conceito de riqueza nacional se insinua entre os economistas do século XVII – representação que subsiste em parte entre os economistas do século XVIII – de modo que a riqueza é criada unicamente para o Estado, sendo o poder deste último proporcional à riqueza. Essa era ainda uma forma inconscientemente hipócrita em que a própria riqueza e a produção de riqueza proclamavam-se como finalidade dos Estados modernos, e estes eram considerados unicamente como meios para produção de riqueza.”

*: Literalmente, “com um grão de sal”; com reservas. (N. T.)

**: Potencialmente. (N. T.)

20 Pierre-Joseph Proudhon, Système des contradictions économiques, cit., p. 145-6.

 

 

“Na arte, é sabido que determinadas épocas de florescimento não guardam nenhuma relação com o desenvolvimento geral da sociedade, nem, portanto, com o da base material, que é, por assim dizer, a ossatura de sua organização. P. ex., os gregos comparados com os modernos, ou mesmo Shakespeare. Para certas formas de arte, a epopeia, por exemplo, é até mesmo reconhecido que não podem ser produzidas em sua forma clássica, que fez época, tão logo entra em cena a produção artística enquanto tal; que, portanto, no domínio da própria arte, certas formas significativas da arte só são possíveis em um estágio pouco desenvolvido do desenvolvimento artístico. Se esse é o caso na relação dos diferentes gêneros artísticos no domínio da arte, não surpreende que seja também o caso na relação do domínio da arte como um todo com o desenvolvimento geral da sociedade. A dificuldade consiste simplesmente na compreensão geral dessas contradições. Tão logo são especificadas, são explicadas.

Consideremos, p. ex., a relação da arte grega e, depois, a de Shakespeare, com a atualidade. Sabe-se que a mitologia grega foi não apenas o arsenal da arte grega, mas seu solo. A concepção da natureza e das relações sociais, que é a base da imaginação grega e, por isso, da mitologia grega, é possível com máquinas de fiar automáticas, ferrovias, locomotivas e telégrafos elétricos? Como fica Vulcano diante de Roberts et Co., Júpiter diante do para-raios e Hermes diante do Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, domina e plasma as forças da natureza na imaginação e pela imaginação; desaparece, por conseguinte, com o domínio efetivo daquelas forças. Em que se converte a Fama ao lado da Printing House Square22? A arte grega pressupõe a mitologia grega, i.e., a natureza e as próprias formas sociais já elaboradas pela imaginação popular de maneira inconscientemente artística. Esse é seu material. Não uma mitologia qualquer, i.e., não qualquer elaboração artística inconsciente da natureza (incluído aqui tudo o que é objetivo, também a sociedade). A mitologia egípcia jamais poderia ser o solo ou o seio materno da arte grega. Mas, de todo modo, pressupõe uma mitologia. Por conseguinte, de modo algum um desenvolvimento social que exclua toda relação mitológica com a natureza, toda relação mitologizante com ela; que, por isso, exige do artista uma imaginação independente da mitologia.

De outro lado: é possível Aquiles com pólvora e chumbo? Ou mesmo a Ilíada com a imprensa ou, mais ainda, com a máquina de imprimir? Com a alavanca da prensa, não desaparecem necessariamente a canção, as lendas e a musa, não desaparecem, portanto, as condições necessárias da poesia épica?

Mas a dificuldade não está em compreender que a arte e o epos gregos estão ligados a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que ainda nos proporcionam prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo inalcançável.

Um homem não pode voltar a ser criança sem tornar-se infantil. Mas não o deleita a ingenuidade da criança, e não tem ele próprio novamente que aspirar a reproduzir a sua verdade em um nível superior? Não revive cada época, na natureza infantil, o seu próprio caráter em sua verdade natural? Por que a infância histórica da humanidade, ali onde revela-se de modo mais belo, não deveria exercer um eterno encanto como um estágio que não volta jamais? Há crianças mal-educadas e crianças precoces. Muitos dos povos antigos pertencem a esta categoria. Os gregos foram crianças normais. O encanto de sua arte, para nós, não está em contradição com o estágio social não desenvolvido em que cresceu. Ao contrário, é seu resultado e está indissoluvelmente ligado ao fato de que as condições sociais imaturas sob as quais nasceu, e somente das quais poderia nascer, não podem retornar jamais.”

22 Praça em Londres onde se localizavam a redação e a oficina do jornal The Times.

 

 

“As relações de produção existentes e suas correspondentes relações de distribuição podem ser revolucionadas pela mudança no instrumento de circulação – na organização da circulação? Pergunta-se ainda: uma tal transformação da circulação pode ser implementada sem tocar nas relações de produção existentes e nas relações sociais nelas baseadas? Se toda transformação da circulação desse tipo pressupusesse, ela própria, por sua vez, modificações nas outras condições de produção e revoluções sociais, neste caso, naturalmente, colapsaria a priori a doutrina que propõe seus truques de circulação para, de um lado, evitar o caráter violento das transformações e, de outro, fazer dessas próprias transformações não um pressuposto mas, inversamente, um resultado progressivo da transformação de circulação. A falsidade desse pressuposto fundamental seria suficiente para demonstrar o equívoco similar sobre a conexão interna entre as relações de produção, distribuição e circulação. A ilustração histórica sugerida acima não pode, evidentemente, ser decisiva, uma vez que os institutos de crédito modernos foram tanto efeito como causa da concentração do capital, constituindo apenas seu momento, e que a concentração da riqueza é acelerada tanto pela insuficiência na circulação (como na Roma antiga) como pela circulação facilitada. Além disso, haveria de investigar, ou caberia antes à questão geral, se as diferentes formas civilizadas do dinheiro – dinheiro metálico, dinheiro de papel, dinheiro de crédito e dinheiro-trabalho (este último como forma socialista) – podem realizar aquilo que delas é exigido sem abolir a própria relação de produção expressa na categoria dinheiro, e se, nesse caso, por outro lado, não é uma pretensão que se autodissolve desejar, mediante transformações formais de uma relação, passar por cima de suas determinações essenciais? As distintas formas de dinheiro podem corresponder melhor à produção social em diferentes etapas, uma elimina inconvenientes contra os quais a outra não está à altura; mas nenhuma delas, enquanto permanecerem formas do dinheiro e enquanto o dinheiro permanecer uma relação social essencial, pode abolir as contradições inerentes à relação do dinheiro, podendo tão somente representá-las em uma ou outra forma. Nenhuma forma do trabalho assalariado, embora uma possa superar os abusos da outra, pode superar os abusos do próprio trabalho assalariado. Uma alavanca pode superar a resistência da matéria inerte melhor do que outra. Todas elas se baseiam no fato de que a resistência subsiste. Naturalmente, essa questão geral sobre a relação da circulação com as demais relações de produção só pode ser formulada ao final. Mas é desde logo suspeito que Proudhon e consortes não a formulem nem ao menos em sua forma pura, mas só declamem ocasionalmente sobre ela. Toda vez que tal questão for abordada, será preciso examiná-la com rigor.”

 

 

“A dissolução de todos os produtos e atividades em valores de troca pressupõe a dissolução de todas as relações fixas (históricas) de dependência pessoal na produção, bem como a dependência multilateral dos produtores entre si. A produção de todo indivíduo singular é dependente da produção de todos os outros; bem como a transformação de seu produto em meios de vida para si próprio torna-se dependente do consumo de todos os outros. Os preços são antigos; a troca também; mas a crescente determinação dos primeiros pelos custos de produção, assim como a predominância da última sobre todas as relações de produção, só se desenvolvem completamente, e continuam a desenvolver-se cada vez mais completamente, na sociedade burguesa, a sociedade da livre concorrência. Aquilo que Adam Smith, em autêntico estilo do século XVIII, situa no período pré-histórico, no período que antecede a história, é, ao contrário, um produto da história38.

Essa dependência recíproca se expressa na permanente necessidade da troca e no valor de troca como mediador geral. Os economistas expressam isso do seguinte modo: cada um persegue seu interesse privado e apenas seu interesse privado; e serve, assim, sem sabê-lo ou desejá-lo, ao interesse privado de todos, ao interesse geral. A piada não consiste em que, à medida que cada um persegue seu interesse privado, a totalidade dos interesses privados, e, portanto, o interesse geral, é alcançado. Dessa frase abstrata poderia ser deduzido, ao contrário, que cada um obstaculiza reciprocamente a afirmação do interesse do outro, e que desta bellum ommium contra omnes39, em lugar de uma afirmação universal, resulta antes uma negação universal. A moral da história reside, ao contrário, no fato de que o próprio interesse privado já é um interesse socialmente determinado, e que só pode ser alcançado dentro das condições postas pela sociedade e com os meios por ela proporcionados; logo, está vinculado à reprodução de tais condições e meios. É o interesse das pessoas privadas; mas seu conteúdo, assim como a forma e os meios de sua efetivação, está dado por condições sociais independentes de todos.

A dependência recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma sua conexão social. Essa conexão social é expressa no valor de troca, e somente nele a atividade própria ou o produto de cada indivíduo devêm uma atividade ou produto para si; o indivíduo tem de produzir um produto universal – o valor de troca, ou este último por si isolado, individualizado, dinheiro. De outro lado, o poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais existe nele como o proprietário de valores de troca, de dinheiro. Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, o indivíduo traz consigo no bolso. A atividade, qualquer que seja sua forma de manifestação individual, e o produto da atividade, qualquer que seja sua qualidade particular, é o valor de troca, i.e., um universal em que toda individualidade, peculiaridade, é negada e apagada. Na verdade, essa é uma situação muito distinta daquela em que o indivíduo, ou o indivíduo natural ou historicamente ampliado na família ou tribo (mais tarde, comunidade), reproduz-se diretamente com base na natureza ou em que sua atividade produtiva e sua participação na produção são dependentes de uma determinada forma do trabalho e do produto, e sua relação com os outros é determinada da mesma forma.

O caráter social da atividade, assim como a forma social do produto e a participação do indivíduo na produção, aparece aqui diante dos indivíduos como algo estranho, como coisa; não como sua conduta recíproca, mas como sua subordinação a relações que existem independentemente deles e que nascem do entrechoque de indivíduos indiferentes entre si. A troca universal de atividades e produtos, que deveio condição vital para todo indivíduo singular, sua conexão recíproca, aparece para eles mesmos como algo estranho, autônomo, como uma coisa. No valor de troca, a conexão social entre as pessoas é transformada em um comportamento social das coisas; o poder pessoal, em poder coisificado. Quanto menos força social possui o meio de troca, quanto mais está ainda ligado à natureza do produto imediato do trabalho e às necessidades imediatas dos trocadores, maior deve ser a força da comunidade que liga os indivíduos uns aos outros, relação patriarcal, comunidade antiga, feudalismo e sistema corporativo. Cada indivíduo possui o poder social sob a forma de uma coisa. Retire da coisa esse poder social e terá de dar tal poder a pessoas sobre pessoas. Relações de dependência pessoal (de início, inteiramente espontâneas e naturais) são as primeiras formas sociais nas quais a produtividade humana se desenvolve de maneira limitada e em pontos isolados. Independência pessoal fundada sobre uma dependência coisal é a segunda grande forma na qual se constitui pela primeira vez um sistema de metabolismo social universal, de relações universais, de necessidades múltiplas e de capacidades universais. A livre individualidade fundada sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos e a subordinação de sua produtividade coletiva, social, como seu poder social, é o terceiro estágio. O segundo estágio cria as condições do terceiro. Por isso, as condições patriarcais, bem como as antigas (justamente como as feudais), declinam com o desenvolvimento do comércio, do luxo, do dinheiro, do valor de troca na mesma medida em que com eles emerge a sociedade moderna.

Troca e divisão do trabalho condicionam-se reciprocamente. Como cada um trabalha para si e seu produto nada é para ele, tem naturalmente de trocar, não só para participar da capacidade de produção universal, mas para transformar seu próprio produto em um meio de vida para si mesmo. A troca, quando mediada pelo valor de troca e pelo dinheiro, pressupõe certamente a dependência multilateral dos produtores entre si, mas ao mesmo tempo o completo isolamento dos seus interesses privados e uma divisão do trabalho social cuja unidade e mútua complementaridade existem como uma relação natural externa aos indivíduos, independente deles. A pressão da demanda e da oferta universais uma sobre a outra medeia a conexão de pessoas reciprocamente indiferentes.

A própria necessidade de primeiro transformar o produto ou a atividade dos indivíduos na forma de valor de troca, no dinheiro, e o fato de que só nessa forma coisal adquirem e comprovam seu poder social, demonstra duas coisas: 1) que os indivíduos produzem tão somente para a sociedade e na sociedade; 2) que sua produção não é imediatamente social, não é o resultado de associação que reparte o trabalho entre si. Os indivíduos estão subsumidos à produção social que existe fora deles como uma fatalidade; mas a produção social não está subsumida aos indivíduos que a utilizam como seu poder comum. Logo, não pode haver nada mais falso e insípido do que pressupor, sobre a base do valor de troca, do dinheiro, o controle dos indivíduos reunidos sobre sua produção total, como aconteceu acima com o banco de bônus-horário. A troca privada de todos os produtos do trabalho, das atividades e das capacidades está em contradição tanto com uma distribuição fundada na dominação e subordinação (naturais e espontâneas, ou políticas) dos indivíduos entre si (na qual a verdadeira troca funciona de maneira acessória ou, no geral, apodera-se pouco da vida de comunidades inteiras, pois tem lugar sobretudo entre diferentes comunidades, e de modo algum submete todas as relações de produção e de distribuição) (qualquer que seja o caráter assumido por essa dominação e subordinação: patriarcal, antiga ou feudal), como com a troca livre entre indivíduos que são associados sobre a base da apropriação e do controle coletivos dos meios de produção. (Esta última associação nada tem de arbitrária: ela pressupõe o desenvolvimento de condições materiais e espirituais que tem de ser ulteriormente exposto nesse ponto.) Assim como a divisão do trabalho gera aglomeração, coordenação, cooperação, a antítese dos interesses privados gera interesses de classe, a concorrência gera concentração de capital, monopólios, sociedades anônimas – puras formas antitéticas da unidade que dá origem à própria antítese –, a troca privada gera o comércio mundial, a independência privada gera a total dependência do assim chamado mercado mundial, e os atos de troca fragmentados geram um sistema bancário e de crédito cuja contabilidade ao menos apura os saldos da troca privada. Na taxa de câmbio – por mais que os interesses privados de cada nação a dividam em tantas nações quantos são os seus indivíduos adultos e se contraponham os interesses dos exportadores e importadores de uma mesma nação –, o comércio nacional adquire uma aparência de existência etc. etc. Nem por isso alguém acreditará poder suprimir as bases do comércio privado doméstico ou exterior por meio de uma reforma da bolsa. Mas no âmbito da sociedade burguesa, da sociedade baseada no valor de troca, geram-se tanto relações de intercâmbio como de produção que são outras tantas minas para fazê-la explodir. (Uma massa de formas antitéticas da unidade social cujo caráter antitético, todavia, jamais pode ser explodido por meio de metamorfoses silenciosas. Por outro lado, se não encontrássemos veladas na sociedade, tal como ela é, as condições materiais de produção e as correspondentes relações de intercâmbio para uma sociedade sem classes, todas as tentativas para explodi-la seriam quixotadas.)”

38 Adam Smith, An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. With a commentary, by the author of England and America [Edward Gibbon Wakefield] (Londres, C. Knight, 1835-9, v. 1), p. 130.

39 Guerra de todos contra todos. Thomas Hobbes, “De Cive”, em Opera philosophica (Amstelodami, apud J. Blaeu, 1668), p. 7; Thomas Hobbes, “Leviatan, sive de materia, forma, et potestate civitatis ecclesiasticae et civilis”, em Opera philosophica, cit., p. 64-6, 72 e 83.

Um comentário:

  1. Os trechos selecionados excediam em muito a possibilidade de postagem, por isso, tive de cortar na carne. Dentre vários outros que tive de excluir, gostaria de destacar aqueles existentes entre as páginas 90 e 100 (sobre valor, valor de troca, mercadoria etc.), entre as páginas 160-179 e 186-204 (sobre o dinheiro); 449-54 e 518-23, 528, 550-52, 559-62 (sobre a circulação do capital), 696-7 (lucro), 726-29 (juro e lucro).
    Ademais, destaco de maneira ainda mais especial a seção “Formas que precederam a produção capitalista” (pp. 388-423), onde Marx desvela, de maneira brilhante, a história da propriedade. Não à toa tal escrito já foi lançado inclusive como um livro separado (aqui no Brasil, como “Formações econômicas pré-capitalistas).
    Ainda assim, entretanto, os trechos horam demasiado extensos, do que peço sinceras desculpas à prestigiosa editora Boitempo.

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