Editora: Boitempo/UFRJ
ISBN: 978-85-7559-172-7
Tradução: Mario
Duayer e Nélio Schneider (com colaboração de Alice Helga Wermer e Rudiger
Hoffman
Opinião: ★★★★☆
Análise em vídeo: Clique aqui
Link para compra: Clique aqui
Páginas: 792
Sinopse: Muito
mais que ‘esboços’ ou adiantamento da obra maior de Karl Marx, os três
manuscritos econômicos de 1857-1858 que compõem os quase lendários Grundrisse
constituem patrimônio das ciências humanas de inestimável valor. Parte de uma
luta ideológico-política pela exclusividade do ‘verdadeiro’ Marx, a obra
somente veio à luz já na primeira metade do século XX, em virtude dos conflitos
centrados no controle que o Partido Comunista da ex-URSS exerceu sobre os
escritos não divulgados do filósofo alemão. Considerados inicialmente espécie
de amostra ou work in progress do que viria a ser a obra central de
Marx, sabe-se hoje que examinar os Grundrisse é como ter acesso ao
laboratório de estudos de Marx no curso de sua extensa atividade intelectual, o
que permite acompanhar a evolução de seu pensamento, as áreas específicas de
interesse que deles se desdobram, e, sobretudo, compreender no detalhe o seu método
de trabalho.
Publicada integralmente e pela primeira vez em português,
esta obra crucial de Marx para o desenvolvimento de sua crítica da economia
política consiste em três textos bastante distintos entre si em natureza e
dimensão. O primeiro, que só mais tarde o filósofo intitularia ‘Bastiat e
Carey’, foi escrito em um caderno datado de julho de 1857. O segundo, contendo
o que seria uma projetada introdução à sua obra de crítica à economia política,
é de um caderno de cerca de trinta páginas, marcado com a letra M e redigido,
ao que tudo indica, nos últimos dez dias de agosto de 1857. O terceiro
manuscrito, e o mais extenso, compreende a obra póstuma de Marx que ficou
conhecida como ‘Esboços da crítica da economia política’, ou simplesmente Grundrisse,
conforme o título da edição alemã. Tal texto consiste em dois capítulos
(‘Capítulo do dinheiro’ e ‘Capítulo do capital’) distribuídos em sete cadernos
numerados de I a VII. Segundo Francisco de Oliveira, professor de sociologia da
Universidade de São Paulo (USP), na capa do livro, ‘o vigoroso teórico pode ser
justamente tido como um escritor de primeira plana; ele tinha, sem muita
modéstia, inteira consciência de seu valor literário e, talvez por exagero – e
que temperamento! –, tenha deixado na obscuridade muitos textos dos Grundrisse
e que estão agora com os leitores do Brasil e de outras paragens para nossa
delícia teórica e nossas elaborações na tradição marxista’.
Trabalho de anos de tradução rigorosa diretamente dos
originais em alemão, com coedição da Boitempo Editorial e Editoria UFRJ, os Grundrisse
constituem a versão inicial da crítica da economia política, planejada por Marx
desde a juventude e escrita entre outubro de 1857 e maio de 1858. Ela seria
reelaborada muitas vezes depois, até dar origem aos três tomos de O capital. ‘O
fato de ser uma primeira versão não faz destes escritos algo simples ou de mero
interesse histórico. Além de entender o ponto de partida da grande obra de
maturidade de Marx, eles permitem vê-la de uma perspectiva especial só possível
com manuscritos desse tipo, pois, como não pretendia ainda publicá-los, o autor
os considerava uma etapa de seu próprio esclarecimento, concedendo-se
liberdades formais abolidas nas versões posteriores’, afirma na orelha o
professor de história da USP, Jorge Grespan.
Segundo o tradutor e supervisor da edição, Mário Duayer,
mesmo diante de mazelas da vida, o prognóstico de uma crise econômica iminente
forneceu a Marx o estímulo para pôr no papel as descobertas de seus longos anos
de estudos de economia política e dar uma primeira forma à sua crítica.
‘Vivendo em extrema pobreza, permanentemente sitiado por credores, cliente
habitual de lojas de penhor, castigado por problemas de saúde e devastado pela
morte prematura de quatro dos seus sete filhos – decerto em virtude das
condições materiais em que vivia a família –, o que de fato surpreende é como
ele foi capaz de produzir, nessas circunstâncias, não só um trabalho tão
magnífico, uma das obras científicas mais importantes e influentes de todas as épocas,
mas, acima de tudo, uma obra motivada por uma paixão genuína pelo ser humano’.
“Indivíduos
produzindo em sociedade – por isso, o ponto de partida é, naturalmente, a
produção dos indivíduos socialmente determinada. O caçador e o pescador,
singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo2,
pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII,
ilusões que de forma alguma expressam, como imaginam os historiadores da
cultura, simplesmente uma reação ao excesso de refinamento e um retorno a uma
vida natural mal-entendida. Da mesma maneira que o contrato social de Rousseau, que pelo contrato põe em relação e conexão sujeitos por natureza
independentes, não está fundado em tal naturalismo. Essa é a aparência, apenas
a aparência estética das pequenas e grandes robinsonadas. Trata-se, ao
contrário, da antecipação da “sociedade burguesa”3,
que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para
sua maturidade. Nessa sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece
desprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o
faziam um acessório de um conglomerado humano determinado e limitado. Aos
profetas do século XVIII, sobre cujos ombros Smith e Ricardo ainda se apoiam
inteiramente, tal indivíduo do século XVIII – produto, por um lado, da
dissolução das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças
produtivas desenvolvidas desde o século XVI – aparece como um ideal cuja
existência estaria no passado. Não como um resultado histórico, mas como ponto
de partida da história. Visto que o indivíduo natural, conforme sua
representação da natureza humana, não se origina na história, mas é posto pela
natureza. Até o momento essa tem sido uma ilusão comum a toda nova época.
Steuart, que em muitos aspectos contrasta com o século XVIII e, como
aristocrata, mantém-se mais no terreno histórico, evitou essa ingenuidade.
Quanto
mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o
indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um todo maior: de
início, e de maneira totalmente natural, na família e na família ampliada em
tribo; mais tarde, nas diversas formas de comunidade resultantes do conflito e
da fusão das tribos. Somente no século XVIII, com a “sociedade burguesa”, as
diversas formas de conexão social confrontam o indivíduo como simples meio para
seus fins privados, como necessidade exterior. Mas a época que produz esse
ponto de vista, o ponto de vista do indivíduo isolado, é justamente a época das
relações sociais (universais desde esse ponto de vista) mais desenvolvidas até
o presente. O ser humano é, no sentido mais literal, um ζώοv πολιτικόv4, não apenas um animal social,
mas também um animal que somente pode isolar-se em sociedade. A produção do
singular isolado fora da sociedade – um caso excepcional que decerto pode muito
bem ocorrer a um civilizado, já potencialmente dotado das capacidades da
sociedade, por acaso perdido na selva – é tão absurda quanto o desenvolvimento
da linguagem sem indivíduos vivendo juntos e falando uns com os outros.”
2 Adam Smith, An inquiry into
the nature and causes of the wealth of nations (Londres, Wakefield, 1843,
v. 1), p. 2 [ed. bras.: Uma investigação sobre a natureza e as causas da
riqueza das nações, São Paulo, Hemus, 2008]; David Ricardo, On the
principles of political economy and taxation (3. ed., Londres, J. Murray,
1821), p. 16-23 [ed. port.: Princípios de economia política e de tributação,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001].
3 Georg Wilhelm Friedrich Hegel,
“Grundlinen der Philosophie des Rechts”, em Werke. Vollständige Ausg. durch
einen Verein von Freunden des Verewigten (Berlim, Duncker & Humblot,
1833, tomo 8), § 182, suplemento.
[4] Aristóteles, Política
(São Paulo, Martins, 2006), livro I, cap. 2, 1253 a 3. [(N. T.)].
“Não há nada mais tediosamente árido do que as fantasias do lugar-comum.”
“Por isso, quando se fala de produção, sempre se está falando de produção
em um determinado estágio de desenvolvimento social – da produção de indivíduos
sociais. Desse modo, poderia parecer que, para poder falar em produção em
geral, deveríamos seja seguir o processo histórico de desenvolvimento em suas
distintas fases, seja declarar por antecipação que consideramos uma determinada
época histórica, por exemplo, a moderna produção burguesa, que é de fato o
nosso verdadeiro tema. No entanto, todas as épocas da produção têm certas
características em comum, determinações em comum. A produção em geral é
uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente
destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição. Entretanto,
esse Universal, ou o comum isolado por comparação, é ele próprio algo
multiplamente articulado, cindido em diferentes determinações. Algumas
determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns apenas a algumas.
Certas determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Nenhuma
produção seria concebível sem elas; todavia, se as línguas mais desenvolvidas
têm leis e determinações em comum com as menos desenvolvidas, a diferença desse
universal e comum é precisamente o que constitui seu desenvolvimento. As
determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente
isoladas de maneira que, além da unidade – decorrente do fato de que o sujeito,
a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos –, não seja esquecida a
diferença essencial. Em tal esquecimento repousa, por exemplo, toda a sabedoria
dos economistas modernos que demonstram a eternidade e a harmonia das relações
sociais existentes. Por exemplo: nenhuma produção é possível sem um instrumento
de produção, mesmo sendo este instrumento apenas a mão. Nenhuma produção é
possível sem trabalho passado, acumulado, mesmo sendo este trabalho apenas a
destreza acumulada e concentrada na mão do selvagem pelo exercício repetido. O
capital, entre outras coisas, é também instrumento de produção, também trabalho
passado, objetivado. Logo, o capital é uma relação natural, universal e eterna;
quer dizer, quando deixo de fora justamente o específico, o que faz do
“instrumento de produção”, do “trabalho acumulado”, capital.”
“Ad. 1. Toda produção é apropriação da natureza pelo
indivíduo no interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade.
Nesse sentido, é uma tautologia afirmar que propriedade (apropriação) é uma
condição da produção. É risível, entretanto, dar um salto daí para uma forma
determinada de propriedade, por exemplo, para a propriedade privada. (O que,
além disso, presumiria da mesma maneira uma forma antitética, a não propriedade,
como condição.) A história mostra, pelo contrário, a propriedade comunal (por
exemplo, entre os hindus, os eslavos, os antigos celtas etc.) como a forma
original, uma forma que cumpre por um longo período um papel significativo sob
a figura de propriedade comunal. Está totalmente fora de questão aqui indagar
se a riqueza se desenvolveria melhor sob essa ou aquela forma de propriedade.
Mas dizer que a produção e, por conseguinte, a sociedade são impossíveis onde
não existe qualquer forma de propriedade é uma tautologia. Uma apropriação que
não se apropria de nada é uma contradictio in subjecto*.
Ad. 2. Salvaguardar o adquirido etc.
Quando tais trivialidades são reduzidas ao seu efetivo conteúdo, expressam mais
do que sabem seus pregadores. A saber, que toda forma de produção forja suas
próprias relações jurídicas, forma de governo etc. A insipiência e o
desentendimento consistem precisamente em relacionar casualmente o que é
organicamente conectado, em reduzi-lo a uma mera conexão da reflexão. Os
economistas burgueses têm em mente apenas que se produz melhor com a polícia
moderna do que, por exemplo, com o direito do mais forte. Só esquecem que o
direito do mais forte também é um direito, e que o direito do mais forte
subsiste sob outra forma em seu “estado de direito”.”
* Contradição nos termos. (N. T.)
“A
representação superficial claramente perceptível: na produção, os membros da
sociedade apropriam (elaboram, configuram) os produtos da natureza às
necessidades humanas; a distribuição determina a proporção em que o indivíduo
singular participa desses produtos; a troca o provê dos produtos particulares
nos quais deseja converter a cota que lhe coube pela distribuição; no consumo,
finalmente, os produtos devêm objetos do desfrute, da apropriação individual. A
produção cria os objetos correspondentes às necessidades; a distribuição os
reparte segundo leis sociais; a troca reparte outra vez o já repartido, segundo
a necessidade singular; finalmente, no consumo, o produto sai desse movimento
social, devém diretamente objeto e serviçal da necessidade singular e a
satisfaz no desfrute. A produção aparece assim como o ponto de partida; o
consumo, como o ponto final; a distribuição e a troca, como o meio-termo, o
qual, por sua vez, é ele próprio dúplice, uma vez que a distribuição é o
momento determinado pela sociedade e a troca, o momento determinado pelos
indivíduos. Na produção, a pessoa se objetiva, no consumo, a coisa se
subjetiva; na distribuição, a sociedade assume a mediação entre produção e
consumo sob a forma de determinações dominantes; na troca, produção e consumo
são mediados pela determinabilidade contingente do indivíduo.
A
distribuição determina a proporção (o quantum) dos produtos que cabe aos
indivíduos; a troca determina os produtos nos quais o indivíduo reclama para si
a cota que lhe atribui a distribuição.
Produção,
distribuição, troca e consumo constituem assim um autêntico silogismo; a
produção é a universalidade, a distribuição e a troca, a particularidade, e o
consumo, a singularidade na qual o todo se unifica. Esta é certamente uma
conexão, mas uma conexão superficial. A produção é determinada por leis
naturais universais; a distribuição, pela casualidade social, e pode, por isso,
ter um efeito mais ou menos estimulante sobre a produção; a troca interpõe-se
entre ambos como movimento social formal; e o ato conclusivo do consumo,
concebido não apenas como fim, mas também como finalidade propriamente dita,
situa-se propriamente fora da economia, exceto quando retroage sobre o ponto de
partida e enceta de novo todo o processo.”
“Logo,
a produção é imediatamente consumo e o consumo é imediatamente produção. Cada
um é imediatamente seu contrário. Mas tem lugar simultaneamente um movimento
mediador entre ambos. A produção medeia o consumo, cujo material cria, consumo
sem o qual faltaria-lhe o objeto. Mas o consumo também medeia a produção ao
criar para os produtos o sujeito para o qual são produtos. Somente no consumo o
produto recebe o seu último acabamento. Uma estrada de ferro não trafegada,
que, portanto, não é usada, consumida, é uma estrada de ferro apenas δυνάμειd, não efetivamente.
Sem produção, nenhum consumo; mas, também, sem consumo, nenhuma produção, pois
nesse caso a produção seria inútil. O consumo produz a produção duplamente: 1)
na medida em que apenas no consumo o produto devém efetivamente produto. Uma
roupa, por exemplo, somente devém roupa efetiva no ato de ser trajada; uma casa
que não é habitada não é de fato uma casa efetiva; logo, o produto, à diferença
do simples objeto natural, afirma-se como produto, devém produto somente
no consumo. O consumo dá o golpe de misericórdia no produto quando o dissolve;
porque o produto é a produção não só como atividade coisificada, mas também
como objeto para o sujeito ativo; 2) na medida em que o consumo cria a
necessidade de nova produção, é assim o fundamento ideal internamente
impulsor da produção, que é o seu pressuposto. O consumo cria o estímulo da
produção; cria também o objeto que funciona na produção como determinante da
finalidade. Se é claro que a produção oferece exteriormente o objeto do
consumo, é igualmente claro que o consumo põe idealmente o objeto
da produção como imagem interior, como necessidade, como impulso e como
finalidade. Cria os objetos da produção em uma forma ainda subjetiva. Sem
necessidade, nenhuma produção. Mas o consumo reproduz a necessidade.
A
isso corresponde, do lado da produção, que ela 1) fornece ao consumo o
material, o objeto. Um consumo sem objeto não é consumo; portanto, sob esse
aspecto, a produção cria, produz o consumo. 2) Mas não é somente o objeto que a
produção cria para o consumo. Ela também dá ao consumo sua determinabilidade,
seu caráter, seu fim. Assim como o consumo deu ao produto seu fim como produto,
a produção dá o fim do consumo. Primeiro, o objeto não é um objeto em
geral, mas um objeto determinado que deve ser consumido de um modo determinado,
por sua vez mediado pela própria produção. Fome é fome, mas a fome que se sacia
com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que
devora carne crua com mão, unha e dente. Por essa razão, não é somente o objeto
do consumo que é produzido pela produção, mas também o modo do consumo, não
apenas objetiva, mas também subjetivamente. A produção cria, portanto, os
consumidores. 3) A produção não apenas fornece à necessidade um material, mas
também uma necessidade ao material. O próprio consumo, quando sai de sua rudeza
e imediaticidade originais – e a permanência nessa fase seria ela própria o
resultado de uma produção aprisionada na rudeza natural –, é mediado, enquanto
impulso, pelo objeto. A necessidade que o consumo sente do objeto é criada pela
própria percepção do objeto. O objeto de arte – como qualquer outro produto –
cria um público capaz de apreciar a arte e de sentir prazer com a beleza. A
produção, por conseguinte, produz não somente um objeto para o sujeito, mas
também um sujeito para o objeto. Logo, a produção produz o consumo, na medida
em que 1) cria o material para o consumo; 2) determina o modo do consumo; 3)
gera como necessidade no consumidor os produtos por ela própria postos
primeiramente como objetos. Produz, assim, o objeto do consumo, o modo do
consumo e o impulso do consumo. Da mesma forma, o consumo produz a disposição
do produtor, na medida em que o solicita como necessidade que determina a finalidade.
(...)
Não
só a produção é imediatamente consumo e o consumo, imediatamente produção; nem
tampouco a produção é apenas meio para o consumo e o consumo, finalidade para a
produção, i.e., cada qual fornece ao outro o seu objeto: a produção, o
objeto externo do consumo, o consumo, o objeto representado da produção; cada
um deles não apenas é imediatamente o outro, nem tampouco apenas o medeia, mas
cada qual cria o outro à medida que se realiza. O consumo só termina o ato da
produção na medida em que realiza o produto como produto, o dissolve, consome a
sua forma de coisa autônoma; na medida em que eleva à destreza, pela
necessidade da repetição, a disposição desenvolvida no primeiro ato de
produção; o consumo, portanto, não é apenas um ato conclusivo pelo qual o
produto devém produto, mas também o ato mediante o qual o produtor devém
produtor. Por outro lado, a produção produz o consumo na medida em que cria o
modo determinado do consumo e, depois, o estímulo ao consumo, a própria
capacidade de consumo como necessidade. Esta última identidade, indicada sob o
terceiro tópico, é muitas vezes ilustrada na Economia na relação entre oferta e
demanda, entre objetos e necessidades, entre necessidades socialmente criadas e
naturais. (...)
No
caso de um sujeito, produção e consumo aparecem como momentos de um ato. O
importante aqui é apenas destacar que, se produção e consumo são considerados
como atividades de um sujeito ou de muitos indivíduos, ambos aparecem em todo
caso como momentos de um processo no qual a produção é o ponto de partida
efetivo, e, por isso, também o momento predominante. O próprio consumo, como
carência vital, como necessidade, é um momento interno da atividade produtiva.
Mas esta última é o ponto de partida da realização e, por essa razão, também
seu momento predominante, o ato em que todo o processo transcorre novamente. O
indivíduo produz um objeto e retorna a si ao consumi-lo, mas como indivíduo
produtivo e que se autorreproduz. O consumo aparece, assim, como momento da
produção.
Na
sociedade, no entanto, a relação do produtor com o produto, tão logo este
esteja acabado, é uma relação exterior, e o retorno do objeto ao sujeito
depende de suas relações com os outros indivíduos. Não se apodera dele
imediatamente. Tampouco a imediata apropriação do produto é a finalidade do
produtor quando produz em sociedade. Entre o produtor e os produtos se interpõe
a distribuição, que determina, por meio de leis sociais, sua cota no
mundo dos produtos, interpondo-se, assim, entre a produção e o consumo.”
*: Potencialmente. (N. T.)
“O
resultado a que chegamos não é que produção, distribuição, troca e consumo são
idênticos, mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças dentro
de uma unidade. A produção estende-se tanto para além de si mesma na
determinação antitética da produção, como sobrepõe-se sobre os outros momentos.
É a partir dela que o processo sempre recomeça. É autoevidente que a troca e o
consumo não podem ser predominantes. Da mesma forma que a distribuição como
distribuição dos produtos. No entanto, como distribuição dos agentes da
produção, ela própria é um momento da produção. Uma produção determinada,
portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinados, bem
como relações determinadas desses diferentes momentos entre si. A
produção, por sua vez, certamente é também determinada, em sua forma
unilateral, pelos outros momentos. P. ex., quando o mercado se expande, i.e.,
a esfera da troca, a produção cresce em extensão e subdivide-se mais
profundamente. Com mudança na distribuição, modifica-se a produção; p. ex., com
a concentração do capital, com diferente distribuição da população entre cidade
e campo etc. Finalmente, as necessidades de consumo determinam a produção. Há
uma interação entre os diferentes momentos. Esse é o caso em qualquer todo
orgânico.”
“Parece
ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e,
portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela população, que é o
fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de
maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma
abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é
constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os
elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital etc.
Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é
nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc.
Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica
do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a
conceitos cada vez mais simples; do concreto representado chegaria a conceitos
abstratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais
simples. Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente
chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de
um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações. A
primeira via foi a que tomou historicamente a Economia em sua gênese. Os
economistas do século XVII, p. ex., começam sempre com o todo vivente, a
população, a nação, o Estado, muitos Estados etc.; mas sempre terminam com
algumas relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do
trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem por meio da análise. Tão logo
esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e abstraídos, começaram
os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, como trabalho, divisão do
trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e
o mercado mundial. O último é manifestamente o método cientificamente correto.
O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto,
unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como
processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante
seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida
da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi
volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações
abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso,
Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que
sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo,
enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do
pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto
mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto. P. ex.,
a categoria econômica mais simples, digamos, o valor de troca, supõe a
população, população produzindo em relações determinadas; supõe também um certo
tipo de família – ou comunidade – ou de Estado etc. Não pode jamais existir,
exceto como relação abstrata, unilateral, de um todo vivente, concreto, já
dado. Como categoria, ao contrário, o valor de troca leva uma vida
antediluviana. Por essa razão, para a consciência para a qual o pensamento
conceitualizante é o ser humano efetivo, e somente o mundo conceituado enquanto
tal é o mundo efetivo – e a consciência filosófica é assim determinada –, o
movimento das categorias aparece, por conseguinte, como o ato de produção
efetivo – que, infelizmente, recebe apenas um estímulo do exterior –, cujo
resultado é o mundo efetivo; e isso – que, no entanto, é uma tautologia – é
correto na medida em que a totalidade concreta como totalidade de pensamento,
como um concreto de pensamento, é de fato um produto do pensar, do conceituar;
mas de forma alguma é um produto do conceito que pensa fora e acima da intuição
e da representação, e gera a si próprio, sendo antes produto da elaboração da
intuição e da representação em conceitos. O todo como um todo de pensamentos, tal
como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria do
mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de sua
apropriação artística, religiosa e prático-mental. O sujeito real, como antes,
continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, claro, enquanto a
cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente. Por
isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar
continuamente presente como pressuposto da representação.”
“Não
obstante, permanece sempre o fato de que as categorias simples são expressões
de relações nas quais o concreto ainda não desenvolvido pode ter se realizado
sem ainda ter posto a conexão ou a relação mais multilateral que é mentalmente
expressa nas categorias mais concretas; enquanto o concreto mais desenvolvido
conserva essa mesma categoria como uma relação subordinada.”
“Esse
exemplo do trabalho mostra com clareza como as próprias categorias mais
abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas – justamente por causa
de sua abstração –, na determinabilidade dessa própria abstração, são
igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para
essas relações e no interior delas.
A
sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica
da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a
compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização
e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com
cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo
como resíduos não superados, parte que nela se desenvolvem de meros indícios em
significações plenas etc. A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia
do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies
animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior
já é conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia
antiga etc. Mas de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as
diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de
sociedade. Pode-se compreender o tributo, a dízima etc. quando se conhece a
renda da terra. Porém, não se deve identificá-los. Como, ademais, a própria
sociedade burguesa é só uma forma antagônica do desenvolvimento, nela são
encontradas com frequência relações de formas precedentes inteiramente
atrofiadas ou mesmo dissimuladas. Por exemplo, a propriedade comunal. Por
conseguinte, se é verdade que as categorias da economia burguesa têm uma
verdade para todas as outras formas de sociedade, isso deve ser tomado cum
grano salis*. Elas podem conter tais categorias de modo desenvolvido,
atrofiado, caricato etc., mas sempre com diferença essencial. O assim chamado
desenvolvimento histórico se baseia sobretudo no fato de que a última forma
considera as formas precedentes como etapas até si mesma, e as concebe sempre
unilateralmente, uma vez que raramente critica a si mesma, do que é capaz
apenas em condições muito determinadas – e aqui naturalmente não se trata
daqueles períodos históricos que parecem a si mesmos como épocas de decadência.
A religião cristã só foi capaz de contribuir para a compreensão objetiva das
mitologias anteriores quando sua autocrítica estava em certa medida, por assim
dizer, δυνάμει**, pronta. Da mesma maneira, a Economia burguesa só chegou à
compreensão das sociedades feudal, antiga e oriental quando começou a
autocrítica da sociedade burguesa. Na medida em que a Economia burguesa não se
identifica pura e simplesmente com o passado, mitologizando-o, sua crítica das
sociedades precedentes, sobretudo a feudal, com a qual ainda tinha de lutar
diretamente, é similar à crítica feita pelo cristianismo ao paganismo, ou à do
protestantismo ao catolicismo.
Como
em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas
é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado
tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias
expressam formas de ser, determinações de existência, com frequência somente
aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por
isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo algum só
começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal. É preciso ter isso
em mente, porque oferece elemento decisivo para a subdivisão. Nada parece mais
natural, por exemplo, do que começar pela renda da terra, pela propriedade da
terra, visto que está ligada à terra, fonte de toda riqueza e de toda existência
[Dasein], e à primeira forma de produção de todas as sociedades mais ou
menos estabilizadas – a agricultura. Mas nada seria mais falso. Em todas as
formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações
que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas
respectivas relações. É uma iluminação universal em que todas as demais cores
estão imersas e que as modifica em sua particularidade. É um éter particular
que determina o peso específico de toda existência que nele se manifesta. P.
ex., entre os povos pastores (os povos meramente caçadores ou pescadores estão
aquém do ponto onde começa o desenvolvimento efetivo). Há entre eles uma certa
forma de agricultura, esporádica. Desse modo, a propriedade da terra é determinada.
É propriedade em comum e mantém essa forma em maior ou menor grau, de acordo
com o maior ou menor grau com que esses povos persistem em suas tradições, p.
ex., a propriedade comunal entre os eslavos. Entre os povos de agricultura
sedentária – esse sedentarismo já é um grande passo –, onde esta predomina como
nas sociedades antigas e feudais, a própria indústria e sua organização, e as
formas de propriedade que lhes correspondem, têm em maior ou menor grau o
caráter de propriedade da terra; ou é inteiramente dependente da propriedade da
terra, como entre os antigos romanos, ou reproduz a organização rural na cidade
e em suas relações, como na Idade Média. No período medieval, o próprio capital
– desde que não seja simples capital-dinheiro –, como ferramenta manual
tradicional etc., tem esse caráter de propriedade fundiária. Na sociedade
burguesa sucede o contrário. A agricultura devém mais e mais um simples ramo da
indústria, e é inteiramente dominada pelo capital. O mesmo se dá com a renda da
terra. Em todas as formas em que domina a propriedade da terra, a relação
natural ainda é predominante. Naquelas em que domina o capital, predomina o
elemento social, historicamente criado. A renda da terra não pode ser
compreendida sem o capital. Mas o capital é perfeitamente compreensível sem a
renda da terra. O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo
domina. Tem de constituir tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada, e
tem de ser desenvolvido antes da renda da terra. Após o exame particular de
cada um, é necessário examinar sua relação recíproca.
Seria
impraticável e falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se
umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua
ordem é determinada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna
sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua ordem
natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico. Não se trata
da relação que as relações econômicas assumem historicamente na sucessão de
diferentes formas de sociedade. Muito menos de sua ordem “na ideia” (como em
Proudhon20) (uma representação obscura do movimento histórico). Trata-se, ao
contrário, de sua estruturação no interior da moderna sociedade burguesa.
A pureza
(determinabilidade abstrata) em que aparecem os povos comerciantes no mundo
antigo – fenícios e cartagineses – é dada justamente pelo próprio predomínio
dos povos agricultores. O capital, como capital comercial ou capital-dinheiro,
aparece nessa abstração precisamente ali onde o capital ainda não é o elemento
dominante das sociedades. Os lombardos e os judeus ocupam a mesma posição em
relação às sociedades medievais dedicadas à agricultura.
Como
outro exemplo da posição diferente que as mesmas categorias ocupam em
diferentes estágios de sociedade, uma das últimas formas da sociedade burguesa:
as sociedades por ações. Mas aparecem também no início da sociedade burguesa,
nas grandes e privilegiadas companhias comerciais detentoras de monopólio.
O
próprio conceito de riqueza nacional se insinua entre os economistas do século
XVII – representação que subsiste em parte entre os economistas do século XVIII
– de modo que a riqueza é criada unicamente para o Estado, sendo o poder deste
último proporcional à riqueza. Essa era ainda uma forma inconscientemente
hipócrita em que a própria riqueza e a produção de riqueza proclamavam-se como
finalidade dos Estados modernos, e estes eram considerados unicamente como
meios para produção de riqueza.”
*: Literalmente, “com um grão de
sal”; com reservas. (N. T.)
**: Potencialmente. (N. T.)
20 Pierre-Joseph Proudhon, Système
des contradictions économiques, cit., p. 145-6.
“Na
arte, é sabido que determinadas épocas de florescimento não guardam nenhuma
relação com o desenvolvimento geral da sociedade, nem, portanto, com o da base
material, que é, por assim dizer, a ossatura de sua organização. P. ex., os
gregos comparados com os modernos, ou mesmo Shakespeare. Para certas formas de
arte, a epopeia, por exemplo, é até mesmo reconhecido que não podem ser
produzidas em sua forma clássica, que fez época, tão logo entra em cena a
produção artística enquanto tal; que, portanto, no domínio da própria arte,
certas formas significativas da arte só são possíveis em um estágio pouco
desenvolvido do desenvolvimento artístico. Se esse é o caso na relação dos
diferentes gêneros artísticos no domínio da arte, não surpreende que seja
também o caso na relação do domínio da arte como um todo com o desenvolvimento
geral da sociedade. A dificuldade consiste simplesmente na compreensão geral
dessas contradições. Tão logo são especificadas, são explicadas.
Consideremos,
p. ex., a relação da arte grega e, depois, a de Shakespeare, com a atualidade.
Sabe-se que a mitologia grega foi não apenas o arsenal da arte grega, mas seu
solo. A concepção da natureza e das relações sociais, que é a base da
imaginação grega e, por isso, da mitologia grega, é possível com máquinas de
fiar automáticas, ferrovias, locomotivas e telégrafos elétricos? Como fica Vulcano
diante de Roberts et Co., Júpiter diante do para-raios e Hermes diante do
Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, domina e plasma as forças da natureza
na imaginação e pela imaginação; desaparece, por conseguinte, com o domínio
efetivo daquelas forças. Em que se converte a Fama ao lado da Printing House
Square22? A arte grega pressupõe a mitologia
grega, i.e., a natureza e as próprias formas sociais já elaboradas pela
imaginação popular de maneira inconscientemente artística. Esse é seu material.
Não uma mitologia qualquer, i.e., não qualquer elaboração artística
inconsciente da natureza (incluído aqui tudo o que é objetivo, também a
sociedade). A mitologia egípcia jamais poderia ser o solo ou o seio materno da
arte grega. Mas, de todo modo, pressupõe uma mitologia. Por conseguinte,
de modo algum um desenvolvimento social que exclua toda relação mitológica com a
natureza, toda relação mitologizante com ela; que, por isso, exige do artista
uma imaginação independente da mitologia.
De
outro lado: é possível Aquiles com pólvora e chumbo? Ou mesmo a Ilíada
com a imprensa ou, mais ainda, com a máquina de imprimir? Com a alavanca da
prensa, não desaparecem necessariamente a canção, as lendas e a musa, não
desaparecem, portanto, as condições necessárias da poesia épica?
Mas a
dificuldade não está em compreender que a arte e o epos gregos estão ligados a
certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que ainda nos
proporcionam prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo
inalcançável.
Um
homem não pode voltar a ser criança sem tornar-se infantil. Mas não o deleita a
ingenuidade da criança, e não tem ele próprio novamente que aspirar a
reproduzir a sua verdade em um nível superior? Não revive cada época, na
natureza infantil, o seu próprio caráter em sua verdade natural? Por que a
infância histórica da humanidade, ali onde revela-se de modo mais belo, não
deveria exercer um eterno encanto como um estágio que não volta jamais? Há
crianças mal-educadas e crianças precoces. Muitos dos povos antigos pertencem a
esta categoria. Os gregos foram crianças normais. O encanto de sua arte, para
nós, não está em contradição com o estágio social não desenvolvido em que
cresceu. Ao contrário, é seu resultado e está indissoluvelmente ligado ao fato
de que as condições sociais imaturas sob as quais nasceu, e somente das quais
poderia nascer, não podem retornar jamais.”
22 Praça em Londres onde se localizavam a
redação e a oficina do jornal The Times.
“As
relações de produção existentes e suas correspondentes relações de distribuição
podem ser revolucionadas pela mudança no instrumento de circulação – na
organização da circulação? Pergunta-se ainda: uma tal transformação da
circulação pode ser implementada sem tocar nas relações de produção existentes
e nas relações sociais nelas baseadas? Se toda transformação da circulação
desse tipo pressupusesse, ela própria, por sua vez, modificações nas outras
condições de produção e revoluções sociais, neste caso, naturalmente,
colapsaria a priori a doutrina que propõe seus truques de circulação para,
de um lado, evitar o caráter violento das transformações e, de outro, fazer
dessas próprias transformações não um pressuposto mas, inversamente, um
resultado progressivo da transformação de circulação. A falsidade desse
pressuposto fundamental seria suficiente para demonstrar o equívoco similar
sobre a conexão interna entre as relações de produção, distribuição e
circulação. A ilustração histórica sugerida acima não pode, evidentemente, ser
decisiva, uma vez que os institutos de crédito modernos foram tanto efeito como
causa da concentração do capital, constituindo apenas seu momento, e que a
concentração da riqueza é acelerada tanto pela insuficiência na circulação (como
na Roma antiga) como pela circulação facilitada. Além disso, haveria de
investigar, ou caberia antes à questão geral, se as diferentes formas
civilizadas do dinheiro – dinheiro metálico, dinheiro de papel, dinheiro de
crédito e dinheiro-trabalho (este último como forma socialista) – podem
realizar aquilo que delas é exigido sem abolir a própria relação de produção
expressa na categoria dinheiro, e se, nesse caso, por outro lado, não é uma
pretensão que se autodissolve desejar, mediante transformações formais de uma
relação, passar por cima de suas determinações essenciais? As distintas formas
de dinheiro podem corresponder melhor à produção social em diferentes etapas,
uma elimina inconvenientes contra os quais a outra não está à altura; mas
nenhuma delas, enquanto permanecerem formas do dinheiro e enquanto o dinheiro
permanecer uma relação social essencial, pode abolir as contradições inerentes
à relação do dinheiro, podendo tão somente representá-las em uma ou outra
forma. Nenhuma forma do trabalho assalariado, embora uma possa superar os
abusos da outra, pode superar os abusos do próprio trabalho assalariado. Uma
alavanca pode superar a resistência da matéria inerte melhor do que outra.
Todas elas se baseiam no fato de que a resistência subsiste. Naturalmente, essa
questão geral sobre a relação da circulação com as demais relações de produção
só pode ser formulada ao final. Mas é desde logo suspeito que Proudhon e
consortes não a formulem nem ao menos em sua forma pura, mas só declamem
ocasionalmente sobre ela. Toda vez que tal questão for abordada, será preciso
examiná-la com rigor.”
“A
dissolução de todos os produtos e atividades em valores de troca pressupõe a
dissolução de todas as relações fixas (históricas) de dependência pessoal na
produção, bem como a dependência multilateral dos produtores entre si. A
produção de todo indivíduo singular é dependente da produção de todos os
outros; bem como a transformação de seu produto em meios de vida para si
próprio torna-se dependente do consumo de todos os outros. Os preços são
antigos; a troca também; mas a crescente determinação dos primeiros pelos
custos de produção, assim como a predominância da última sobre todas as
relações de produção, só se desenvolvem completamente, e continuam a
desenvolver-se cada vez mais completamente, na sociedade burguesa, a sociedade
da livre concorrência. Aquilo que Adam Smith, em autêntico estilo do século
XVIII, situa no período pré-histórico, no período que antecede a história, é,
ao contrário, um produto da história38.
Essa
dependência recíproca se expressa na permanente necessidade da troca e no valor
de troca como mediador geral. Os economistas expressam isso do seguinte modo:
cada um persegue seu interesse privado e apenas seu interesse privado; e serve,
assim, sem sabê-lo ou desejá-lo, ao interesse privado de todos, ao interesse
geral. A piada não consiste em que, à medida que cada um persegue seu interesse
privado, a totalidade dos interesses privados, e, portanto, o interesse geral,
é alcançado. Dessa frase abstrata poderia ser deduzido, ao contrário, que cada
um obstaculiza reciprocamente a afirmação do interesse do outro, e que desta bellum
ommium contra omnes39, em lugar de uma
afirmação universal, resulta antes uma negação universal. A moral da história
reside, ao contrário, no fato de que o próprio interesse privado já é um
interesse socialmente determinado, e que só pode ser alcançado dentro das
condições postas pela sociedade e com os meios por ela proporcionados; logo,
está vinculado à reprodução de tais condições e meios. É o interesse das
pessoas privadas; mas seu conteúdo, assim como a forma e os meios de sua
efetivação, está dado por condições sociais independentes de todos.
A
dependência recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma
sua conexão social. Essa conexão social é expressa no valor de troca, e
somente nele a atividade própria ou o produto de cada indivíduo devêm uma
atividade ou produto para si; o indivíduo tem de produzir um produto universal
– o valor de troca, ou este último por si isolado, individualizado, dinheiro.
De outro lado, o poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros
ou sobre as riquezas sociais existe nele como o proprietário de valores de
troca, de dinheiro. Seu poder social, assim como seu nexo com a
sociedade, o indivíduo traz consigo no bolso. A atividade, qualquer que seja
sua forma de manifestação individual, e o produto da atividade, qualquer que
seja sua qualidade particular, é o valor de troca, i.e., um
universal em que toda individualidade, peculiaridade, é negada e apagada. Na
verdade, essa é uma situação muito distinta daquela em que o indivíduo, ou o
indivíduo natural ou historicamente ampliado na família ou tribo (mais tarde,
comunidade), reproduz-se diretamente com base na natureza ou em que sua
atividade produtiva e sua participação na produção são dependentes de uma
determinada forma do trabalho e do produto, e sua relação com os outros é
determinada da mesma forma.
O
caráter social da atividade, assim como a forma social do produto e a
participação do indivíduo na produção, aparece aqui diante dos indivíduos como
algo estranho, como coisa; não como sua conduta recíproca, mas como sua
subordinação a relações que existem independentemente deles e que nascem do
entrechoque de indivíduos indiferentes entre si. A troca universal de
atividades e produtos, que deveio condição vital para todo indivíduo singular,
sua conexão recíproca, aparece para eles mesmos como algo estranho, autônomo,
como uma coisa. No valor de troca, a conexão social entre as pessoas é
transformada em um comportamento social das coisas; o poder pessoal, em poder
coisificado. Quanto menos força social possui o meio de troca, quanto mais está
ainda ligado à natureza do produto imediato do trabalho e às necessidades imediatas
dos trocadores, maior deve ser a força da comunidade que liga os indivíduos uns
aos outros, relação patriarcal, comunidade antiga, feudalismo e sistema
corporativo. Cada indivíduo possui o poder social sob a forma de uma coisa.
Retire da coisa esse poder social e terá de dar tal poder a pessoas sobre
pessoas. Relações de dependência pessoal (de início, inteiramente espontâneas e
naturais) são as primeiras formas sociais nas quais a produtividade humana se
desenvolve de maneira limitada e em pontos isolados. Independência pessoal
fundada sobre uma dependência coisal é a segunda grande forma na qual se
constitui pela primeira vez um sistema de metabolismo social universal, de
relações universais, de necessidades múltiplas e de capacidades universais. A
livre individualidade fundada sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos
e a subordinação de sua produtividade coletiva, social, como seu poder social,
é o terceiro estágio. O segundo estágio cria as condições do terceiro. Por
isso, as condições patriarcais, bem como as antigas (justamente como as
feudais), declinam com o desenvolvimento do comércio, do luxo, do dinheiro,
do valor de troca na mesma medida em que com eles emerge a sociedade
moderna.
Troca
e divisão do trabalho condicionam-se reciprocamente. Como cada um trabalha para
si e seu produto nada é para ele, tem naturalmente de trocar, não só para
participar da capacidade de produção universal, mas para transformar seu
próprio produto em um meio de vida para si mesmo. A troca, quando mediada pelo
valor de troca e pelo dinheiro, pressupõe certamente a dependência multilateral
dos produtores entre si, mas ao mesmo tempo o completo isolamento dos seus
interesses privados e uma divisão do trabalho social cuja unidade e mútua
complementaridade existem como uma relação natural externa aos indivíduos,
independente deles. A pressão da demanda e da oferta universais uma sobre a
outra medeia a conexão de pessoas reciprocamente indiferentes.
A
própria necessidade de primeiro transformar o produto ou a atividade dos
indivíduos na forma de valor de troca, no dinheiro, e o fato de
que só nessa forma coisal adquirem e comprovam seu poder social,
demonstra duas coisas: 1) que os indivíduos produzem tão somente para a
sociedade e na sociedade; 2) que sua produção não é imediatamente
social, não é o resultado de associação que reparte o trabalho entre si. Os
indivíduos estão subsumidos à produção social que existe fora deles como uma
fatalidade; mas a produção social não está subsumida aos indivíduos que a
utilizam como seu poder comum. Logo, não pode haver nada mais falso e insípido
do que pressupor, sobre a base do valor de troca, do dinheiro, o
controle dos indivíduos reunidos sobre sua produção total, como aconteceu acima
com o banco de bônus-horário. A troca privada de todos os produtos do
trabalho, das atividades e das capacidades está em contradição tanto com uma
distribuição fundada na dominação e subordinação (naturais e espontâneas, ou
políticas) dos indivíduos entre si (na qual a verdadeira troca funciona
de maneira acessória ou, no geral, apodera-se pouco da vida de comunidades
inteiras, pois tem lugar sobretudo entre diferentes comunidades, e de modo
algum submete todas as relações de produção e de distribuição) (qualquer que
seja o caráter assumido por essa dominação e subordinação: patriarcal, antiga
ou feudal), como com a troca livre entre indivíduos que são associados sobre a
base da apropriação e do controle coletivos dos meios de produção. (Esta última
associação nada tem de arbitrária: ela pressupõe o desenvolvimento de condições
materiais e espirituais que tem de ser ulteriormente exposto nesse ponto.)
Assim como a divisão do trabalho gera aglomeração, coordenação, cooperação, a
antítese dos interesses privados gera interesses de classe, a concorrência gera
concentração de capital, monopólios, sociedades anônimas – puras formas
antitéticas da unidade que dá origem à própria antítese –, a troca privada gera
o comércio mundial, a independência privada gera a total dependência do assim
chamado mercado mundial, e os atos de troca fragmentados geram um sistema
bancário e de crédito cuja contabilidade ao menos apura os saldos da troca
privada. Na taxa de câmbio – por mais que os interesses privados de cada nação
a dividam em tantas nações quantos são os seus indivíduos adultos e se
contraponham os interesses dos exportadores e importadores de uma mesma nação
–, o comércio nacional adquire uma aparência de existência etc. etc. Nem
por isso alguém acreditará poder suprimir as bases do comércio privado
doméstico ou exterior por meio de uma reforma da bolsa. Mas no âmbito da
sociedade burguesa, da sociedade baseada no valor de troca, geram-se
tanto relações de intercâmbio como de produção que são outras tantas minas para
fazê-la explodir. (Uma massa de formas antitéticas da unidade social cujo
caráter antitético, todavia, jamais pode ser explodido por meio de metamorfoses
silenciosas. Por outro lado, se não encontrássemos veladas na sociedade, tal
como ela é, as condições materiais de produção e as correspondentes relações de
intercâmbio para uma sociedade sem classes, todas as tentativas para explodi-la
seriam quixotadas.)”
38 Adam Smith, An inquiry into
the nature and causes of the wealth of nations. With a commentary, by the
author of England and America [Edward Gibbon Wakefield] (Londres, C.
Knight, 1835-9, v. 1), p. 130.
39 Guerra de todos contra todos.
Thomas Hobbes, “De Cive”, em Opera philosophica (Amstelodami, apud J.
Blaeu, 1668), p. 7; Thomas Hobbes, “Leviatan,
sive de materia, forma, et potestate civitatis ecclesiasticae et civilis”, em Opera philosophica, cit., p. 64-6,
72 e 83.
Os trechos selecionados excediam em muito a possibilidade de postagem, por isso, tive de cortar na carne. Dentre vários outros que tive de excluir, gostaria de destacar aqueles existentes entre as páginas 90 e 100 (sobre valor, valor de troca, mercadoria etc.), entre as páginas 160-179 e 186-204 (sobre o dinheiro); 449-54 e 518-23, 528, 550-52, 559-62 (sobre a circulação do capital), 696-7 (lucro), 726-29 (juro e lucro).
ResponderExcluirAdemais, destaco de maneira ainda mais especial a seção “Formas que precederam a produção capitalista” (pp. 388-423), onde Marx desvela, de maneira brilhante, a história da propriedade. Não à toa tal escrito já foi lançado inclusive como um livro separado (aqui no Brasil, como “Formações econômicas pré-capitalistas).
Ainda assim, entretanto, os trechos horam demasiado extensos, do que peço sinceras desculpas à prestigiosa editora Boitempo.