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sábado, 10 de abril de 2021

Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil (Parte II), de Thomas Hobbes

Editora: Martin Claret

ISBN: 978-85-7232-762-6

Tradução: Alex Marins

Opinião: ★☆☆☆☆

Páginas: 517

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Sinopse: Ver Parte I



“Dado que a condição do homem é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.

Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira, todos os homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se para a paz. É esta a lei do Evangelho: Faz aos outros o que queres que te façam a ti. E esta é a lei de todos os homens: Quod tibi jïeri non vis, alteri ne feceris.”

 

 

“Vivendo num Estado, se eu me vir forçado a livrar-me de um ladrão prometendo-lhe dinheiro, sou obrigado a pagá-lo, a não ser que a lei civil disso me dispense. Porque tudo o que posso fazer legitimamente sem obrigação posso também compactuar legitimamente por medo, e o que eu compactuar legitimamente não posso legitimamente romper.”

 

 

“Porque o testemunho de um tal acusador, se não for prestado voluntariamente, deve considerar-se corrompido pela natureza, e portanto não deve ser aceito; e quando o testemunho de um homem não vai receber crédito, ele não é obrigado a prestá-lo. Também as acusações arrancadas pela tortura não devem ser aceitas como testemunhos. Porque a tortura é para ser usada como meio de conjetura, de esclarecimento num exame posterior e de busca da verdade; e o que nesse caso é confessado contribui para aliviar quem é torturado, não para informar os torturadores. Portanto não deve ser aceito como testemunho suficiente porque, quer o torturado se liberte graças a uma verdadeira ou a uma falsa acusação, o fará pelo direito de preservar sua vida.”

 

 

“Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem um pacto anterior não há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas, consequentemente, nenhuma ação pode ser injusta. Mas, depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição da injustiça não é outra senão o não cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo.

Ora, como os pactos de confiança mútua são inválidos sempre que de qualquer dos lados existe receio de não cumprimento, embora a origem da justiça seja a celebração dos pactos, não pode haver realmente injustiça antes de ser removida a causa desse medo; o que não pode ser feito enquanto os homens se encontram na condição natural de guerra. Portanto, para que as palavras “justo” e “injusto” possam ter lugar, é necessária alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento de seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja superior ao beneficio que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo, como recompensa do direito universal a que renunciaram. E não pode haver tal poder antes de erigir-se um Estado. O mesmo pode deduzir-se também da definição comum da justiça nas Escolas, pois nelas se diz que a justiça é a vontade constante de dar a cada um o que é seu. Portanto, onde não há o seu, isto é, não há propriedade, não pode haver injustiça. E onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é também só aí que começa a haver propriedade.”

 

 

“Portanto quem declarar que considera razoável enganar aos que o ajudam não pode razoavelmente esperar outros meios de salvação senão os que dependem de seu próprio poder. Portanto quem quebra seu pacto, e ao mesmo tempo declara que pode fazê-lo de acordo com a razão, não pode ser aceito por qualquer sociedade que se constitua em vista da paz e da defesa, a não ser devido a um erro dos que o aceitam. E se for aceito não se pode continuar a admiti-lo, quando se vê o perigo desse erro; e não seria razoável esse homem contar com esses erros como garantia de sua segurança. Portanto alguém que seja deixado fora ou expulso de uma sociedade está condenado a perecer, e se viver nessa sociedade será graças aos erros dos outros homens, os quais ele não podia prever e com os quais não podia contar, portanto, contra a razão de sua preservação. Assim, todos os homens que não contribuem para sua destruição fazem-no apenas por ignorância do que a eles próprios beneficia.”

 

 

“Ainda há outros que, embora reconhecendo o cumprimento da palavra dada como uma lei de natureza, não obstante abrem exceção para certas pessoas, tais como os hereges e todos aqueles que não têm como costume o cumprimento de seus pactos; e também isto é contra a razão. Pois se qualquer defeito de um homem for suficiente para dispensá-lo do cumprimento de um pacto, o mesmo deveria ter sido, perante a razão, suficiente para tê-lo impedido de celebrá-lo.”

 

 

“A justiça das ações não faz com que aos homens se chamem justos, e sim inocentes; e a injustiça das mesmas (também chamada injúria) faz-lhes atribuir apenas o nome de culpados.”

 

 

“O mesmo se passa no Estado: os homens podem perdoar uns aos outros suas dívidas, mas não os roubos ou outras violências que lhes causem dano. Porque não pagar uma dívida é uma injúria feita a eles mesmos, ao passo que o roubo e a violência são injúrias feitas à pessoa do Estado.”

(por questões de espaço não é possível inserir todo o trecho, mas atentar para todo o capítulo XV, a partir do parágrafo acima)

 

 

“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), introduzindo restrições a si mesmos, conforme os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e décimo quinto.

Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros.”

 

 

“Mesmo que haja uma grande multidão, se as ações de cada um dos que a compõem forem determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais de cada um, não poderá esperar-se que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém, seja contra o inimigo comum, seja contra as injúrias feitas uns aos outros. Porque divergindo em opinião quanto ao melhor uso e aplicação de sua força, em vez de se ajudarem, só se atrapalham uns aos outros, e devido a essa oposição mútua reduzem a nada sua força. E devido a tal não apenas facilmente serão subjugados por um pequeno número que se haja posto de acordo, mas, além disso, mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farão guerra uns aos outros, por causa de seus interesses particulares. Pois se fosse lícito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis da natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo. Nesse caso não haveria, nem seria necessário, qualquer governo civil, ou qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição.”

 

 

“É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem sociavelmente umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado para o beneficio comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho a responder o seguinte.

Primeiro, que os homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não acontece.

Segundo, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem individual e, dado que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o bem comum. Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode tirar prazer do que é eminente.

Terceiro, que, como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso da razão, elas não veem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum. Ao passo que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que os outros para o exercício do poder público. E esses se esforçam por empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e outros de outra, acabando assim por levar o país à desordem e à guerra civil.

Quarto, que essas criaturas, embora sejam capazes de certo uso da voz, para dar a conhecer umas às outras seus desejos e outras afecções, apesar disso, carecem daquela arte das palavras mediante a qual alguns homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando o descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem.

Quinto, as criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais implicativo quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado.

Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do beneficio comum.

A única maneira de constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou vier a realizar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns. Todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.

Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros.

É nele que consiste a essência do estado, a qual pode ser assim definida: “Uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum.

Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos.

O poder soberano pode ser adquirido de duas maneiras. Uma delas é a força natural, como quando um homem obriga seus filhos a submeterem-se, e a submeterem seus próprios filhos, a sua autoridade, na medida em que é capaz de destruí-los em caso de recusa. Ou como quando um homem sujeita através da guerra seus inimigos a sua vontade, concedendo-lhes a vida com essa condição. A outra é quando os homens concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a uma assembleia de homens, voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por ele contra todos os outros. Este último pode ser chamado um Estado Político, ou um Estado por instituição. Ao primeiro pode chamar-se um Estado por aquisição.”

 

 

“O detentor do poder soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos.”

 

 

“Isso sem levar em conta que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouca monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança. E também sem levar em conta que o que mais impulsiona os soberanos governantes não é qualquer prazer ou vantagem que esperem recolher do prejuízo ou debilitamento causado a seus súditos, em cujo vigor consiste sua própria força e glória, e sim a obstinação daqueles que, contribuindo de má vontade para sua própria defesa, tornam necessário que seus governantes deles arranquem tudo o que podem em tempo de paz, a fim de obterem os meios para resistir ou vencer a seus inimigos, em qualquer emergência ou súbita necessidade. Porque todos os homens são dotados por natureza de grandes lentes de aumento (ou seja, as paixões e o amor de si), através das quais todo pequeno pagamento aparece como um imenso fardo; mas são destituídos daquelas lentes prospectivas (a saber, a ciência moral e civil) que permitem ver de longe as misérias que os ameaçam, e que sem tais pagamentos não podem ser evitadas.”

 

 

“Quem quer que considere demasiado grande o poder soberano, procurará fazer que ele se torne menor, e para tal precisará submeter-se a um poder capaz de limitá-lo. Isto é, a um poder ainda maior.”

 

 

“Assim, nunca um grande Estado popular se conservou, a não ser graças a um inimigo exterior que uniu seu povo, ou graças à reputação de algum homem eminente em seu seio, ou ao conselho secreto de uns poucos, ou ao medo recíproco de duas facções equivalentes, mas nunca graças à consulta aberta da assembleia. Quanto aos Estados muito pequenos, sejam eles populares ou monárquicos, não há sabedoria humana capaz de conservá-los para além do que durar a rivalidade entre seus poderosos vizinhos.”

 

 

“Os milagres são feitos maravilhosos, mas o que é maravilhoso para um pode não sê-lo para outro. A santidade pode ser fingida, e os sucessos visíveis deste mundo são as mais das vezes obra de Deus através de causas naturais e vulgares. Portanto ninguém pode infalivelmente saber pela razão natural que alguém recebeu uma revelação sobrenatural da vontade de Deus. Pode, quando muito, ter uma crença e, conforme seus sinais pareçam maiores ou menores, ser uma crença mais firme ou uma crença mais frágil.”

 

 

“Algum defeito de entendimento, algum erro de raciocínio ou alguma brusca força das paixões é a fonte de todo crime. O defeito de entendimento é ignorância, e o de raciocínio é opinião errônea.”

 

 

“Aqueles que enganam com a esperança de não serem descobertos, geralmente se enganam a si mesmos (as trevas em que pensam estar escondidos não são mais do que sua própria cegueira), e não são mais sábios do que as crianças que pensam esconder-se quando tapam seus próprios olhos.”

 

 

“Poucos são os crimes que não podem ser resultado da ira.”

 

 

“Expus até aqui a natureza do homem (cujo orgulho e outras paixões o obrigaram a submeter-se ao governo), juntamente com o grande poder de seu governante, ao qual comparei com o Leviatã, tirando essa comparação dos dois últimos versículos do capítulo 41 de Jó, onde Deus, após ter estabelecido o grande poder do Leviatã, lhe chamou Rei dos Soberbos. “Não há nada na Terra”, disse ele, “que se lhe possa comparar. Ele é feito de maneira a nunca ter medo. Ele vê todas as coisas abaixo dele, e é o Rei de todos os Filhos da Soberba.”

 

 

“Não existe nesta vida nenhuma ação do homem que não seja o começo de uma cadeia de consequências tão longa que nenhuma providência humana é suficientemente alta para dar ao homem uma ideia do final. E nesta cadeia estão ligados acontecimentos agradáveis e desagradáveis, de tal maneira que quem quiser fazer alguma coisa para seu prazer tem de aceitar sofrer todas as dores a ele ligadas. Dores estas que são as punições naturais daquelas ações que são o início de um mal maior que o bem. E daqui resulta que a intemperança é naturalmente castigada com doenças, a precipitação com desastres, a injustiça com a violência dos inimigos, o orgulho com a ruína, a covardia com a opressão, o governo negligente dos príncipes com a rebelião, e a rebelião com a carnificina.”

 

 

“Quanto a quem foram os autores originais dos vários livros das Sagradas Escrituras, é coisa que não foi tornada evidente por qualquer suficiente testemunho ou outra história (que é a única prova em matéria de fato), nem pode sê-lo por quaisquer argumentos da razão natural, pois a razão não serve para convencer da verdade dos fatos, mas apenas da verdade das consequências.”

 

 

“E consequentemente que é agora legítimo o soberano punir alguém que oponha o espírito particular às leis, pois o rei ocupa o mesmo lugar no Estado que Abraão ocupava em sua própria família.

Do mesmo deriva também um terceiro ponto: que assim como ninguém, exceto Abraão em sua família, também ninguém exceto o soberano num Estado cristão pode conhecer o que é, ou o que não é a palavra de Deus. Pois Deus falou apenas a Abraão e só ele podia saber o que Deus disse e interpretar isso para a família. E, portanto, também aqueles que ocupam o lugar de Abraão num Estado são os únicos intérpretes daquilo que Deus falou.”

 

 

“Mas aqui alguém poderá perguntar se nesse tempo os pastores eram obrigados a viver de contribuições voluntárias, como de esmolas. Pois quem (disse São Paulo, 1 Cor 9,7) vai para a guerra à sua própria custa? Quem alimenta o rebanho, e não bebe o leite do rebanho? E também, “Não sabeis que os que ministram sobre coisas sagradas vivem das coisas do templo, e que os que ajudam no altar partilham do altar?”. Quer dizer, recebem parte do que é oferecido no altar, para seu sustento. E conclui então: “E assim o Senhor determinou que os que pregam o Evangelho vivam do Evangelho”. Desta passagem pode sem dúvida inferir-se que os pastores da Igreja deviam ser sustentados por seus rebanhos, mas não competia aos pastores determinar a quantidade ou a espécie de seus emolumentos, como quem numa partilha decide seu próprio quinhão. Portanto, seus emolumentos deviam necessariamente ser determinados pela gratidão e liberalidade de cada um dos membros de seu rebanho, ou então pela congregação inteira. Mas não podia ser pela congregação inteira, pois nessa época as decisões desta não eram leis. Portanto, o sustento dos pastores, antes de os imperadores e soberanos civis o determinarem por lei, não era mais do que a benevolência. Os que serviam no altar viviam do que lhes era oferecido. E também os pastores podem aceitar o que lhes é oferecido por seu rebanho, mas não podem exigir o que não lhes é oferecido. A que juízes podiam recorrer, se não tinham tribunais? Ou, se entre eles tinham árbitros, quem podia executar suas sentenças, visto que não tinham poder para armar seus funcionários? Resta portanto apenas a congregação inteira como podendo atribuir a quaisquer pastores da Igreja um sustento certo, e mesmo isto somente no caso de seus decretos terem a força de leis (e não apenas de cânones), leis essas que só poderiam ser feitas pelos imperadores, reis e outros soberanos civis. O direito dos dízimos da lei de Moisés não podia ser aplicado aos ministros do Evangelho desse tempo, porque Moisés e os Sumos Sacerdotes eram os soberanos civis do povo, abaixo de Deus, cujo Reino entre os judeus era presente, ao passo que o Reino de Deus pelo Cristo ainda está para vir.”

 

 

“Portanto, todo aquele que desejar sinceramente cumprir as ordens de Deus, ou que se arrepender verdadeiramente de suas transgressões, ou que amar a Deus com todo o seu coração, e ao próximo como a si mesmo, tem toda a obediência necessária à sua entrada no reino de Deus, pois se Deus exigisse uma inocência perfeita não haveria carne que se salvasse.”

 

 

“As leis de Deus, portanto, nada mais são do que as leis de natureza, a principal das quais é que não devemos violar a nossa fé, isto é, uma ordem para obedecer aos nossos soberanos civis, que constituímos acima de nós por um pacto mútuo. E esta lei de Deus que ordena a obediência à lei civil ordena por consequência a obediência a todos os preceitos da Bíblia, a qual (como mostrei no capítulo precedente) é a única lei naqueles lugares onde o soberano civil assim o estabeleceu, e nos outros lugares é apenas conselho, que cada um, por sua conta e risco, pode sem injustiça recusar obedecer.”

 

 

“A parte mais escura do reino de Satanás é aquela que se encontra fora da Igreja de Deus, isto é, entre aqueles que não acreditam em Jesus Cristo, mas não podemos dizer que a Igreja goza portanto (como a terra de Goshen) de toda a luz necessária para a realização da obra que Deus nos destinou. Como explicar que na cristandade tenha sempre havido, quase desde os tempos dos apóstolos, tantas lutas para se expulsarem uns aos outros de seus lugares, quer por meio de guerra externa, quer por meio de guerra civil? Tanto estrebuchar a cada pequena aspereza da própria fortuna, e a cada pequena eminência na dos outros homens? E tanta diversidade na maneira de correr para o mesmo alvo, a felicidade, como se não fosse noite entre nós, ou pelo menos neblina? Estamos portanto ainda nas trevas.”

 

 

“Constitui também vã e falsa filosofia dizer que o casamento repugna à castidade, ou continência, e portanto, transformá-lo em vício moral, como o fazem aqueles que alegam castidade e continência para negarem o casamento do clero. Pois confessam que se trata apenas de uma constituição da Igreja que exige daquelas ordens sagradas que continuamente servem o altar e administram a eucaristia uma contínua abstinência de mulheres sob a alegação de contínua castidade, continência e pureza. Portanto, chamam ao legítimo uso da esposa falta de castidade e de continência, e assim fazem do casamento um pecado, ou pelo menos uma coisa tão impura e suja que torna um homem impróprio para o altar. Se a lei fosse feita porque o uso de mulheres é incontinência e contrário à castidade, então todo o casamento seria vício. Se é porque se trata de uma coisa demasiado impura e suja para um homem consagrado a Deus, muito mais outras ocupações naturais, necessárias e diárias que todos os homens têm, tornariam os homens impróprios para serem padres, porque são muito mais sujas.”

 

 

“As fadas, seja qual for a nação onde habitem, só têm um rei universal, que alguns de nossos poetas denominam rei Oberon, mas as Escrituras denominam Belzebu, príncipe dos demônios. Do mesmo modo os eclesiásticos, seja qual for o domínio em que se encontrem, só reconhecem um rei universal, o Papa.

Os eclesiásticos são homens espirituais e padres fantasmagóricos. As fadas são espíritos e fantasmas. As fadas e os fantasmas habitam as trevas, as solidões e os túmulos. Os eclesiásticos caminham na obscuridade da doutrina, em mosteiros, igrejas e claustros.

Os eclesiásticos têm suas igrejas catedrais, as quais, seja qual for a vila onde são erguidas, por virtude da água benta e de certos encantos denominados exorcismos, possuem o poder de transformar essas vilas em cidades, isto é, em sedes do império. Também as fadas têm seus castelos encantados e alguns fantasmas gigantescos que dominam as regiões circunvizinhas.

As fadas não podem ser presas nem levadas a responder pelo mal que fazem. Do mesmo modo os eclesiásticos desaparecem dos tribunais da justiça civil.

Os eclesiásticos tiram dos jovens o uso da razão por meio de certos encantos compostos de metafísica e milagres e tradições e Escrituras deturpadas, pelo que estes ficam incapazes seja para o que for, exceto para executarem aquilo que lhes for ordenado. Do mesmo modo as fadas, segundo se diz, tiram as crianças de seus berços e transformam-nas em loucos naturais, a que o vulgo chama duendes e que têm tendência para praticar o mal.

As velhas contadeiras de histórias não especificaram em que oficina ou laboratório as fadas fabricam seus encantamentos, mas os laboratórios do clero são bem conhecidos como sendo as Universidades que receberam sua disciplina da autoridade pontifícia.

Quando alguém desagrada às fadas, diz-se que estas enviam seus duendes para beliscá-lo. Os eclesiásticos, quando algum Estado civil lhes desagrada, também mandam seus duendes, isto é, súditos supersticiosos e encantados para beliscar em seus príncipes, pregando a sedição, ou um príncipe encantado com promessas para beliscar outro.

As fadas não se casam, mas entre elas há incubi, que copulam com gente de carne e osso. Os padres também não se casam.

Os eclesiásticos tiram a nata da terra por meio de donativos de homens ignorantes que têm medo deles e por meio de dízimos; o mesmo acontece na fábula das fadas, segundo a qual elas entram nas leiterias e se banqueteiam com a nata que retiram do leite.

A história também não conta que tipo de dinheiro corre no reino das fadas. Mas os eclesiásticos, naquilo que recebem, aceitam a mesma moeda que nós, muito embora, quando têm de fazer algum pagamento, o façam com canonizações, indulgências e missas.

A estas e outras semelhanças entre o Papado e o reino das fadas se pode acrescentar mais uma, que assim como as fadas só têm existência na fantasia de gente ignorante, que se alimenta das tradições contadas pelas velhas ou pelos antigos poetas, também o poder espiritual do Papa (fora dos limites de seu próprio domínio civil) consiste apenas no medo, em que se encontra o povo seduzido, de ser excomungado, por ouvir os falsos milagres, as falsas tradições e as falsas interpretações das Escrituras.”

 

 

“Contudo penso que nada é devido à antiguidade em si, pois se reverenciamos a época, a presente é a mais antiga. Se se tratar da antiguidade do autor, não tenho certeza de que aqueles a quem dão tal honra fossem mais antigos quando escreveram do que eu que estou escrevendo. Mas se atentarmos bem, o louvor dos autores antigos resulta, não do respeito dos mortos, mas sim da competição e da inveja mútua dos vivos.”

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