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quinta-feira, 8 de abril de 2021

Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo (Parte II), de Karen Armstrong

Editora: Companhia das letras

ISBN: 978-85-359-1581-5

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Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 584

Sinopse: Ver Parte I



“Infelizmente a busca de uma identidade distinta muitas vezes coexiste com o terror de um “outro” estereotipado, visto como antagonista. O medo paranoico de conspiração continuaria caracterizando a reação aos transtornos da modernização e se evidenciaria de modo especial nos movimentos fundamentalistas de judeus, cristãos e muçulmanos, que cultivariam uma imagem distorcida e em geral perniciosa de seus inimigos, por vezes retratados como satanicamente maus.”

 

 

“O uso do véu não é original nem fundamental no Islã. O Alcorão não ordena que todas as mulheres cubram a cabeça, e o hábito de velá-las e isolá-las nos haréns só se difundiu no mundo islâmico cerca de três gerações após a morte do Profeta, quando os muçulmanos começaram a imitar os cristãos de Bizâncio e os zoroastristas da Pérsia, que desde longa data tratavam suas mulheres dessa forma. Nem todas, porém, usavam o véu, que, sendo indicador de status, estava restrito às camadas superiores. (...)

Os observadores ocidentais se alarmaram com a retomada do véu, que desde a época de Lord Cromer consideravam um símbolo do atraso e do patriarcado árabes. Não pensavam assim as mulheres muçulmanas que voluntariamente assumiam o traje islâmico por motivos de ordem prática e também como um modo de rejeitar uma identidade ocidental. O véu, a echarpe e a túnica longa podiam simbolizar aquela “volta para si mesmos” que os islamistas tentavam realizar com tanta dificuldade no período pós-colonial. Afinal, o traje ocidental nada tem de sagrado. O desejo de ver todas as mulheres usando-o devera-se à tendência de considerar “o Ocidente” como a norma que “o resto do mundo” tem de seguir. Ao longo dos anos a mulher velada passara a representar a autoafirmação do Islã e sua rejeição da hegemonia cultural do Ocidente. Ao optar por esconder-se, ela desafia os costumes sexuais do Ocidente, com sua estranha compulsão para “mostrar tudo”. Enquanto os ocidentais tentam submeter o corpo ao controle da vontade, dedicando-se à ginástica e aos exercícios físicos, e, apegados a esta vida, procuram torná-lo imune ao processo do tempo e do envelhecimento, o corpo encoberto do muçulmano tacitamente declara sua obediência a ordens divinas e sua orientação para a transcendência, não para este mundo. Enquanto os ocidentais com frequência expõem e até exibem como um privilégio o corpo dispendiosamente bronzeado e finamente esculpido, o corpo do muçulmano, envolto em roupas muito semelhantes, enfatiza a igualdade da visão islâmica e afirma o ideal de comunidade, presente no Alcorão, em oposição ao individualismo da modernidade ocidental. Mais ou menos como as comunas de Shukri Mustafa, a muçulmana velada constitui uma crítica tácita ao lado mais sombrio do espírito moderno.”

 

 

“Mas os imperativos morais e espirituais da religião são importantes para a humanidade, e não se deve relegá-los impensadamente à lata de lixo da história para atender aos interesses de um racionalismo desenfreado. A relação entre ciência e ética continua sendo um tema crucial.”

 

 

“Em nossa história veremos com frequência que o comportamento religioso de pessoas que não se beneficiaram particularmente com a modernidade traduz uma necessidade ardente do espiritual, tantas vezes excluído ou marginalizado numa sociedade secularista.”

 

 

“Abraham Yitzak Kook morreu em 1935, treze anos antes da criação do Estado de Israel. Não soube dos terríveis expedientes que os judeus utilizaram para fundar seu Estado na Palestina árabe. Não testemunhou a expulsão de 750 mil palestinos de suas casas, em 1948, nem o derramamento de sangue árabe e judeu nas guerras entre os dois povos. Tampouco teve de encarar o fato de que, cinquenta anos após a criação do Estado de Israel, a maioria dos judeus da Terra Santa ainda seria secularista.”

 

 

“Depois da 1ª Guerra Mundial, o Império Otomano, que lutara ao lado da Alemanha, foi derrotado pelos aliados europeus, que o desmembraram e estabeleceram mandatos e protetorados em suas antigas províncias. Os gregos invadiram a Anatólia e o velho núcleo otomano. De 1919 a 1922, Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938) comandou as forças nacionalistas turcas numa guerra de independência e conseguiu manter os europeus fora da Turquia e criar um Estado soberano, governado em conformidade com os modernos padrões europeus. Foi um fato inédito no mundo islâmico. Em 1947 a Turquia possuía uma burocracia eficiente e uma economia capitalista e era a primeira democracia secular pluripartidária do Oriente Médio. Mas esse processo se iniciou com uma limpeza étnica. Entre 1894 e 1927 sucessivos governos otomanos e turcos sistematicamente expulsaram, deportaram ou massacraram os gregos e armênios que viviam na Anatólia; queriam livrar-se desses estrangeiros, que correspondiam à cerca de noventa por cento da burguesia. Além de conferir ao novo Estado uma identidade nacional distintivamente turca, o expurgo proporcionou a Atatürk a oportunidade de criar uma classe comercial inteiramente turca, que cooperaria com seu governo na implantação de uma economia industrializada moderna. O extermínio de 1 milhão de armênios, no mínimo, foi o primeiro genocídio do século XX e mostrou que, como temia o rabino Kook, o nacionalismo secular podia ser letal e certamente tão perigoso quanto as cruzadas e os expurgos conduzidos em nome da religião. (...)

O Holocausto (também) mostrou, no mínimo, que uma ideologia secularista podia ser tão mortífera quanto uma cruzada religiosa.”

 

 

“(...) e o ódio geralmente acompanha um amor não admitido.”

 

 

“Mas todo movimento que começa matando em nome de Deus toma um rumo niilista que nega os valores religiosos mais fundamentais.”

 

 

“O programa do xá Reza Shah era inevitavelmente superficial. Simplesmente sobrepunha instituições modernas a velhas estruturas agrárias – uma estratégia que falhara no Egito e falharia aqui também. Os noventa por cento da população que viviam da agricultura foram ignorados e continuavam utilizando métodos tradicionais e improdutivos. A sociedade não passou por nenhuma reforma fundamental. Reza não tinha o menor interesse pelos sofrimentos dos pobres, e, enquanto o Exército abocanhava cinquenta por cento do orçamento, a educação, que continuava sendo privilégio dos ricos, ficava com apenas quatro por cento. Como no Egito, duas nações estavam surgindo no Irã e entendendo-se cada vez menos. Uma “nação” compreendia a pequena elite ocidentalizada das classes alta e média, que se beneficiara com o programa de modernização; a outra consistia na vasta massa dos pobres, que, confusos com o novo nacionalismo secular do regime, dependiam como nunca da orientação dos ulemás. (...)

No início da década de 1970 o Irã parecia florescer. Investidores americanos e a elite iraniana ganharam fortunas com os novos negócios criados pela Revolução Branca. Longe de ser um centro de espionagem (como diriam os revolucionários), a embaixada dos Estados Unidos em Teerã era um centro de corretagem que colocava americanos ricos em contato com iranianos ricos. No entanto – mais uma vez – só a elite se beneficiava. O Estado prosperava, a população empobrecia. Havia um consumismo desenfreado nas camadas mais altas da sociedade e corrupção e privação entre os pequeno-burgueses e os pobres dos centros urbanos. À alta do preço do petróleo, em 1973-74, seguiu-se uma terrível inflação, devida à falta de oportunidade de investimentos para todos, exceto para os muito ricos. Um milhão de trabalhadores estavam desempregados, muitos comerciantes se arruinaram com o influxo de produtos estrangeiros, e em 1977 a inflação começou a afetar os ricos. Nesse clima de descontentamento e desespero, as duas principais organizações guerrilheiras entraram em ação, assassinando militares e consultores americanos. Havia muito ressentimento contra os americanos sediados no Irã, que pareciam lucrar com o caos. Nessa época o regime do xá se tornou mais tirânico e autocrático que nunca. (...)

Os americanos se escandalizaram ao ver sua nação qualificada de satânica durante e após a Revolução iraniana. Mesmo os que sabiam da aversão que muitos iranianos sentiam pelos Estados Unidos desde o golpe da CIA, em 1953, repudiaram essa imagem demoníaca. Por mais equivocada que fosse, a política americana não merecia ser condenada dessa maneira. Tal condenação apenas confirmava o que geralmente se pensava dos revolucionários iranianos: que eram todos fanáticos, histéricos e desequilibrados. Entretanto a maioria dos ocidentais não entendeu a imagem do Grande Satã. No cristianismo Satã representa o mal esmagador, porém no islamismo é uma figura muito mais controlável. O Alcorão até sugere que ele acabará sendo esquecido no fim dos tempos, tamanha é sua confiança na infinita bondade divina. Os iranianos que chamavam os Estados Unidos de “Grande Satã” não estavam classificando-os de diabolicamente malvados, e sim dizendo algo mais preciso. No xiismo popular Shaitan, o Tentador, é uma criatura ridícula, cronicamente incapaz de apreciar os valores espirituais do mundo invisível. Uma história o mostra reclamando dos privilégios que Deus conferiu aos humanos e dos dons inferiores que lhe couberam. Shaitan não tem profetas, contenta-se com adivinhos, faz do bazar sua mesquita, sente-se mais à vontade nos banhos públicos e, em vez de buscar Deus, procura vinho e mulheres. É irremediavelmente trivial, está preso para sempre no mundo exterior (zahir*) e não compreende que a existência possui uma dimensão mais profunda e mais importante. Para muitos iranianos os Estados Unidos, o Grande Shaitan, eram “o Grande Trivializador”. Os bares, os cassinos e o etos secularista da ocidentoxicada zona norte de Teerã representavam o etos americano, que parecia ignorar deliberadamente as realidades ocultas (batin**) que dão sentido à vida. Ademais, o Grande Shaitan tentara o xá até afastá-lo dos verdadeiros valores islâmicos e levá-lo a um superficial secularismo.

Embora soubessem que muitos americanos eram religiosos, não viam sentido em sua fé. O “interior” e o “exterior” de Jimmy Carter não eram “idênticos”. Os iranianos não compreendiam como o presidente podia continuar apoiando um governante que em 1978 começara a matar seu próprio povo. “Não esperávamos que Carter defendesse o xá, pois ele é um homem religioso, que empunha a bandeira dos direitos humanos”, declarou o aiatolá Husain Montazeri a um entrevistador depois da Revolução. “Como Carter, o cristão devoto, pode defender o xá?”.”

Zahir*: (árabe). “Manifesto”; as manifestações exteriores de Deus e o mundo exterior; também o significado literal das escrituras, em oposição a batin.

Batin**: (árabe) A dimensão “oculta” da existência e da religião, percebida pelas disciplinas místicas e intuitivas, não pelos sentidos e pelo pensamento racional.

 

 

“Em janeiro de 1982 cristãos de St. David's, no Arizona, conseguiram banir de suas escolas obras de William Golding, John Steinbeck, Joseph Conrad e Mark Twain. Em 1981 Mel e Norma Gabler (também membros da direita cristã) deram início a uma campanha semelhante para “reintroduzir Deus nas escolas” do Texas. Reprovavam a “postura liberal” evidente em

questões abertas que levam os alunos a tirar conclusões próprias; declarações sobre outras religiões, que não o cristianismo; declarações concebidas para desabonar o sistema de livre empresa; declarações concebidas para refletir aspectos positivos dos países socialistas ou comunistas (por exemplo, que a União Soviética é o maior produtor mundial de determinados cereais); qualquer aspecto da educação sexual que não o incentivo à abstinência; declarações que enfatizam contribuições feitas por negros, índios, americanos-mexicanos ou feministas; declarações favoráveis aos escravos americanos e desfavoráveis a seus senhores; e declarações favoráveis à teoria da evolução, a menos que se conceda o mesmo espaço à teoria da criação.”

 

 

“O movimento Reconstrução, fundado pelo economista texano Cary North e por seu genro, Rousas John Rushdoony, também trava uma guerra contra o humanismo secular, porém é mais radical que a Maioria Moral. Os reconstrucionistas trocaram o velho pessimismo pré-milenarista por uma ideologia mais empolgante. Como os muçulmanos fundamentalistas, North e Rushdoony se preocupam basicamente com a soberania divina. É preciso implantar uma civilização cristã que derrote o diabo e inaugure o Reino de mil anos. O conceito-chave do movimento é domínio. Deus confiou a Adão e depois a Noé a missão de dominar o mundo. Os cristãos herdaram essa missão e cabe-lhes a responsabilidade de instituir o reinado de Jesus antes de sua Segunda Vinda. No entanto não terão de fazer nada nesse sentido, pois o próprio Deus destruirá o Estado moderno numa terrível catástrofe. Os cristãos apenas colherão os louros da vitória divina.

Entrementes, os reconstrucionistas se preparam para assumir o poder, quando o Estado secular humanista deixar de existir. Seu abandono do etos da compaixão constitui uma distorção total do cristianismo. Quando o Reino vier, não haverá mais separação entre Igreja e Estado; a moderna heresia da democracia desaparecerá, e a sociedade será reorganizada em termos estritamente bíblicos. Em outras palavras, todas as leis da Bíblia passarão a vigorar literalmente. Ocorrerão o restabelecimento da escravidão, o fim do controle da natalidade (pois os crentes devem “crescer e multiplicar-se”), a execução de adúlteros, homossexuais, blasfemos, astrólogos e bruxos. Os filhos desobedientes serão apedrejados, como ordena a Bíblia. Implantar-se-á uma economia rigorosamente capitalista; os socialistas e os esquerdistas em geral são pecadores. Deus não está do lado dos pobres. Na verdade, diz North, existe uma “estreita relação entre maldade e pobreza”. Não se empregarão verbas de impostos em programas de bem-estar social, pois “sustentar vagabundos é sustentar o mal”. O mesmo princípio vale para o Terceiro Mundo, que provocou os próprios problemas econômicos com seu gosto pela perversidade moral, pelo paganismo e pela demonologia. A Bíblia proíbe a ajuda estrangeira. Enquanto aguardam a vitória – que talvez demore, admite North –, os cristãos devem preparar-se para reconstruir a sociedade em conformidade com o plano divino e apoiar as políticas governamentais que se aproximem dessas normas bíblicas.

O domínio imaginado por North e Rushdoony é totalitário. Não deixa margem a outras opiniões ou políticas, à tolerância democrática, à liberdade individual. Naturalmente a possibilidade de essa teologia se popularizar nos Estados Unidos é remota; mas já se aventou a hipótese de, no caso de uma catástrofe ambiental ou econômica, um Estado eclesiástico autoritário substituir o regime liberal do Iluminismo. Afinal, o cristianismo conseguiu adaptar-se ao capitalismo, que contraria muitos dos ensinamentos de Cristo. Também poderia ser usado para sustentar uma ideologia fascista, que, em circunstâncias drasticamente modificadas, talvez se tornasse necessária à manutenção da ordem pública.”

 

 

“A religião não desapareceu, afinal, e em alguns círculos se tornou mais militante que nunca. Os fundamentalistas judeus, cristãos e muçulmanos têm reagido furiosamente às tentativas de privatizar ou suprimir a religião e acreditam que a resgataram do esquecimento. No decorrer de sua árdua luta muitas vezes distorceram a fé – o que representa uma derrota para a religião. Mas hoje o fundamentalismo faz parte do mundo moderno. Representa uma decepção, uma alienação, uma ansiedade, uma raiva generalizada, que nenhum governo pode ignorar sem correr risco. Até agora os esforços para lidar com o fundamentalismo não tiveram muito sucesso; que lições podemos tirar do passado que nos ajudem a enfrentar mais criativamente, no futuro, os medos que o fundamentalismo encerra?”

 

 

“É importante reconhecer que as teologias e ideologias fundamentalistas se baseiam no medo. O desejo de definir doutrinas, erguer barreiras, fixar limites e segregar os fiéis num enclave sagrado, onde haja rigorosa observância da lei, deve-se ao pavor da extinção que, neste ou naquele momento, levou todos os fundamentalistas a crer que os secularistas estavam prestes a exterminá-los. Um liberal acha o mundo moderno empolgante; um fundamentalista acha-o ímpio, sem sentido e até satânico. O terapeuta sem dúvida qualificaria de perturbado o paciente que lhe apresentasse essas fantasias paranoicas de conspiração e vingança. A visão pré-milenarista, que considera diabólicas algumas das instituições modernas mais positivas, acalenta sonhos genocidas e acredita que a humanidade caminha rapidamente para um fim horrendo, demonstra nitidamente o terror e a frustração que a modernidade provoca em muitos fundamentalistas protestantes. Vimos o niilismo que pode inspirar o programa fundamentalista. É impossível dissipar esse medo através da razão ou de medidas coercivas. Uma solução mais criativa consistiria em procurar avaliar a profundidade de tal neurose, ainda que o liberal ou secularista não consiga partilhar a mesma perspectiva determinada pelo pavor.”

 

 

“Por ser tão combativa, essa campanha pela ressacralização da sociedade se tornou agressiva e distorcida. Não tinha a compaixão que, para todas as crenças, é essencial à vida religiosa e à experiência do divino. Ao contrário, pregava uma ideologia de exclusão, de ódio e até de violência. Mas os fundamentalistas não detinham o monopólio da fúria. Seus movimentos com frequência se desenvolveram numa relação dialética com um secularismo agressivo que demonstrava pouco respeito pela religião e pelos devotos. Às vezes parece que os secularistas e fundamentalistas estão presos numa espiral de hostilidade e recriminações. Se os fundamentalistas precisam avaliar seus inimigos mais compassivamente, para manterem-se fiéis as suas tradições religiosas, os secularistas também precisam cultivar mais a benevolência, a tolerância e o respeito pela humanidade que caracteriza a cultura moderna no que tem de melhor, e analisar com maior empatia os medos, ansiedades e necessidades que muitos de seus semelhantes fundamentalistas sentem, mas que nenhuma sociedade pode ignorar sem correr riscos.”

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