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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

1968: O ano que não terminou (Parte III), de Zuenir Ventura

Editora: Planeta

ISBN: 978-85-7665-361-5

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 286

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Sinopse: Ver Parte I



“Pela movimentação da véspera, podia-se esperar uma sexta-feira, 13, cheia de desassossego. Mas nem a superstição podia adivinhar que aquele dia iria durar mais de uma década. Costa e Silva, segundo seus exegetas, acreditava que o AI-5 acabaria em oito ou nove meses. Costa e Silva acabou antes.

Naquele dia 13, o marechal seria protagonista de um espetáculo em que 22 dos 23 figurantes pareciam dirigidos pela estética de José Celso Martinez Corrêa, que era capaz de dar a uma tragédia a forma de farsa, misturando chanchada, teatro de revista, circo e Chacrinha. Em apenas um ato, os atores que comandavam o país representaram todas as alegorias que o Tropicalismo havia posto na moda: o Cinismo, a Hipocrisia, o Servilismo, a Pusilanimidade, a Lisonja, a Subserviência. Mas isso foi mais tarde.

Às 9h30min da manhã, como estava programado, o presidente compareceu à Escola Naval para presidir as solenidades de formatura de cadetes e a entrega da Ordem do Mérito Naval. Acompanhado dos seus oficiais de gabinete, Costa e Silva foi recebido pelo ministro Augusto Rademaker, pelo comandante da Escola e por outros oficiais.

Antes da cerimônia de declaração dos novos guardas marinha, haveria a entrega das condecorações no pátio externo da Escola Naval.

Enquanto a comitiva presidencial passava por entre as 111 personalidades a serem agraciadas – militares, senadores, deputados, embaixadores – o discreto secretário de imprensa, a alguns metros de distância ia observando a reação dos diversos militares presentes – do exército, da Aeronáutica e da Marinha. Heráclio viu, por exemplo, quando um coronel do Exército encontrou-se com o general César Montagna e perguntou:

– Olá chefe. Como que está o senhor?

– Como é que posso estar rapaz? Estou com meu clube, quero o AI-5.

Como membro da comitiva, o major D’Aguiar pôde perceber o mal-estar do ambiente:

O lugar estava engalanado, muito bonito, mas nós fomos mal-recebidos; as fisionomias estavam fechadas, carrancudas, não havia aquela espontaneidade, alegria de outras solenidades. O presidente foi recebido quase friamente. Estava todo mundo desconfiado de todo mundo.

Talvez por isso, o general Portella tenha tido que repetir tantas vezes o que dissera a noite toda, sem trair o segredo, mas como uma senha: “Não sei qual é a decisão, mas é pra valer”.

Da solenidade na Escola Naval, o presidente foi direto para a reunião com seu alto comando, às onze horas no Laranjeiras, onde pediu a cada um dos presentes que desse a sua opinião sobre a medida que iria adotar. Ao chegar atrasado, o ministro da justiça provocou os dois únicos momentos de riso daquele encontro de tenebrosas intenções: o primeiro, quando o presidente resolveu gozar o atraso de Gama e Silva; o segundo, quando esse fez a sua exposição, começando por ler um manifesto à nação, para em seguida propor um ato adicional tão radical que o próprio Lira Tavares interrompeu-o, arrancando risos gerais:

– Assim, não, Gama; assim você desarruma a casa toda.

Gama e Silva propunha o recesso do Supremo Tribunal Federal e um fechamento definitivo do Congresso, das Assembleias e das câmaras de vereadores. Não era aquilo que o presidente queria. Gaminha não se abalou: tirou rapidamente da pasta o rascunho de outro texto menos drástico.

A reunião não ofereceu surpresas. Costa e Silva levara anotações das medidas a serem tomadas e, no final, pediu ao ministro da justiça e ao deputado Rondon Pacheco que transformasse o esboço no que viria a ser o Ato Institucional nº 5. Mas antes, por sugestão de Rondon, mandou chamar os ministros do Planejamento e da Fazenda para saber se a medida provocaria repercussões negativas na política econômico-financeira do governo. Jayme Portella, o emissário da convocação, relata: “Os ministros Hélio Beltrão e Delfím Neto declararam que nada a afetava, podendo ser o ato editado tranquilamente”.

Logo depois da reunião preliminar, às 13 horas, o presidente autorizou que as decisões ali tomadas fossem comunicadas, em “caráter sigiloso”, aos escalões subordinados.

Alguns ex-assessores do presidente Costa e Silva alimentam até hoje a ilusão de que, se o ato proposto tivesse encontrado uma razoável oposição, alguma fórmula menos radical teria sido encontrada.

“Estou convencido”, diz D’Aguiar, “que se houvesse uma divisão grande – Pedro Aleixo, por exemplo, e mais oito ou nove de um lado – o presidente procuraria outra solução que não o AI-5”.

Como é uma hipótese, vale a pena introduzir outra: se, antes mesmo da oficialização, os principais escalões das Forças Armadas iam tomar conhecimento da decisão, que exigiam impacientemente há pelo menos 24 horas, seria possível admitir outro desfecho para a reunião das 17 horas?

Por uma razão ou por outra, Costa e Silva resolveu realizá-la com toda a liturgia de uma reunião histórica, decisiva, embora na prática ela só tivesse valor simbólico, já que o Conselho de Segurança Nacional, sem poder deliberativo, iria apenas sancionar uma decisão já tomada.

O presidente apresentava naquela tarde a disposição de quem se preparara para não perder nada do espetáculo que ia dirigir; nem a excitação em que se encontrava ele queria diminuir. Quando, às 16 horas, o seu médico, Dr. Élcio Simões, tirou-lhe a pressão e, assustado quis medicá-lo imediatamente,– segundo D’Aguiar, ela atingira 20 por 13, Costa e Silva retrucou:

– Não, hoje preciso dela bem alta.

Com a pressão mantida, o presidente Costa e Silva abriu uma hora depois, a 43ª sessão do Conselho de Segurança Nacional, no salão de despachos no segundo andar do palácio das Laranjeiras.

Quando era conduzido do seu gabinete pelo general Portella, o presidente encontrou o seu vice, a quem fez o carinho de segurá-lo pelo braço e levá-lo a um canto para uma conversa a dois. Segundo várias testemunhas, inclusive familiares, um tinha pelo outro muito apreço e respeito. “Dificilmente” – escreveria mais tarde José Carlos Brandi Aleixo num livro sobre o pai, “se encontrará na história republicana, um relacionamento tão correto e cordial entre um presidente e um vice como no caso de Costa e Silva e Pedro Aleixo”. Aleixo era tido como um conselheiro que pesava nas decisões do presidente, embora naquele dia isso não fosse ocorrer.

Observadores da cena, como Portella e D’Aguiar, calculam que os dois tenham conversado ali na porta do salão uma meia hora. Para quem estava ansioso em começar a reunião, olhando o relógio a cada instante e chamando a atenção do chefe do gabinete militar para o horário, o tempo gasto na conversa dava a medida da importância do interlocutor.

Aleixo que não participara da reunião das onze horas – vindo de Belo Horizonte, ele chegou depois, acompanhado do ministro Passarinho – expunha a sua desaprovação à medida a ser adotada. O vice procurava convencer o presidente de que o Estado de Sítio era o instrumento constitucional indicado para resolver a crise. A conversa foi interrompida quando os membros do conselho já estavam entrando no salão para ocupar seus lugares, em frente aos quais havia uma pasta com algumas folhas de papel datilografadas.

Na cabeceira, dois gravadores iriam funcionar como incômodos instrumentos da História.

Em volta da mesa e do presidente estavam sentados, os ministros e chefes do Estado Maior, isto é, as 24 autoridades mais poderosas do país. Costa e Silva abriu a reunião anunciando que o momento era crítico e por isso teria que tomar “uma decisão optativa”: ou a revolução continuava ou se desagregava.

Ele acreditava que todos ali, além do povo, eram testemunhas do seu empenho em promover a união da área política e da área militar.

Demonstrando ressentimento pelo que classificava de falta de apoio político, o presidente não se conformava com a recusa do Congresso. As “considerações” que o seu governo dispensara aos políticos já lhe tinham criado inclusive problemas na área militar e revolucionária.

O presidente declarava não ter apego ao cargo e desejava chegar rapidamente ao fim do governo para passá-lo a quem pudesse promover a “harmonia entre a área política e a área militar, porque sem ela o Brasil irá à desagregação”.

Em seguida, comunicou que se retiraria por uns 15 minutos para que os conselheiros pudessem ler mais à vontade o documento que estava nas pastas, o AI-5.

Vinte minutos depois, Costa e Silva voltava ao salão, conduzido pelo general Portella, e dava a palavra a Pedro Aleixo, “a maior autoridade deste conselho”.

O tom sereno do discurso do vice-presidente, a segurança da argumentação e a coragem de enfrentar uma plateia contrária, iriam impressionar até quem dele discordava, como o então major D'Agiar, que ainda se comove com a lembrança: “Ele parecia tocado pelo Divino Espírito Santo: fez uma corajosa, emocionante, brilhantíssima exposição”.

O orador começou sustentando que o caso Márcio Alves deveria ser encaminhado mais na área política do que propriamente na área jurídica, porque não seria legítimo esperar da Câmara um processo contra um dos seus membros por palavras proferidas durante os discursos, em debates ou em votos e pareceres. Ele não considerava “aconselhável”, do ponto de vista jurídico, a representação ao Supremo Tribunal Federal. Como o ato praticado implicaria o máximo, segundo Aleixo, crime de injúria, difamação e calúnia, as possíveis sanções ao deputado não poderiam ter o alcance da perda de mandato. O vice-presidente reconhecia o impacto do discurso nas Forças Armadas e admitia ser aquele “um dos momentos mais graves e mais difíceis para a vida nacional”.

Nesta oportunidade, pois, o que me parece aconselhável seria, antes do exame, de um ato institucional, a adoção de uma medida de ordem constitucional que viesse a permitir um melhor exame do caso em todas as suas consequências. A medida seria a suspensão da constituição por intermédio do recurso do estado de sitio, acrescento senhor presidente, que da leitura que fiz do ato Institucional cheguei a sincera conclusão de que o que menos se faz nele, é resguardar a Constituição (...) Da constituição, que é, antes de tudo, um instrumento de uma garantia dos direitos da pessoa humana e da garantia dos direitos políticos, não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente parecido com uma caracterização do regime democrático (...) Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado este caminho, é que estaremos com uma aparente ressalva da existência de vestígios dos poderes constitucionais decorrentes da Constituição de 24-1-67, e instituindo o processo equivalente a uma própria ditadura.

Enfim, a palavra que dava nome real aos verdadeiros objetivos daquela solene encenação: ditadura. Aleixo admitia que pudesse haver necessidade de adotá-la, mas nesse caso, do ponto de vista jurídico, não havia dúvida: “O Ato Institucional elimina a própria Constituição”. Ele não entendia nenhum ato institucional que não significasse “uma nova revolução”, que não era, para ele, como “a de 31 de março de 1964”.

“Um dos estudiosos do período, o jornalista Elio Gaspari – quem talvez mais se tenha debruçado sobre os documentos dessa época – acha que Pedro Aleixo cometeu o monumental equívoco de fixar-se numa argumentação jurídica aceitando a possibilidade da ditadura, desde que, ela não se pretendesse constitucional”. Gaspari baseia-se, principalmente, no trecho em que o vice-presidente afirma: “Caso se torne necessário se fazer essa Revolução, é uma matéria que pode ser debatida e acredito até que se possa demonstrar que essa necessidade existe”. Segundo o jornalista, que está escrevendo um livro sobre os governos militares, a linha de argumentação de Aleixo desabou à medida em que ele estava numa mesa de senhores interessados em proclamar uma ditadura, e não em discutir a legalidade do ato”.

Mesmo assim, há indícios evidentes de que o discurso de Pedro Aleixo desagradou a maioria dos presentes, não só pela impaciência com que alguns o ouviram– a ponto de obrigar o presidente, a certa altura, a pedir silêncio – como pelos votos que se seguiram, todos os 22 a favor da edição do AI-5.

Quanto à reação do presidente, há um mistério. Observadores da reunião, como Heráclio Sales e Hernani D’Aguiar, um, assessor de Imprensa, e outro, de Relações Públicas, o primeiro contra o AI-5 e o segundo a favor, mas tendo em comum a mesma vontade de isenção., afirmam que Costa e Silva ficou tão impressionado com a fala de Aleixo que pediu ao sargento que cuidava dos gravadores que voltasse a fita. O pretexto era dar oportunidade aos que, sentados do outro lado da mesa, não perdessem nada do que fora dito. Na verdade, conforme aquelas testemunhas, Costa e Silva teria usado um hábil estratagema para, quem sabe, abalar algumas das convicções presentes e até reverter opiniões.

“Ele tinha esperança de que o Conselho de Segurança Nacional votasse contra”, garante Heráclio que reconstituiu o episódio:

Ficou aquele silêncio constrangedor e a voz de Pedro Aleixo massacrando novamente aquele colegiado todo favorável ao AI-5. Os argumentos jurídicos, políticos, éticos, morais e de conveniência apresentados com aquela lucidez, aquela articulação verbal, um negócio extraordinário.

O depoimento do assessor de Relações Públicas é semelhante.

Ouvida a mesa, determinou o presidente que se repetisse a gravação de toda a exposição de Pedro Aleixo. Talvez movido pelo seu subconsciente, recomendou que todos meditassem sobre as palavras do “ilustre brasileiro Pedro Aleixo”. No mais profundo e respeitoso silêncio, a gravação foi escutada por inteiro. Depois disso o presidente perguntou a cada um dos presentes se mantinham o voto anterior, ou se modificava em face da argumentação repetida.

D’Aguiar não entende porque o seu amigo Jayme Portella não registrou a cena – logo ele, um arguto repórter moderno, nunca desprezou detalhes de hora, clima, gestos, inclusive pequenos flagrantes do presidente fazendo palavras cruzadas em momentos críticos –, enfim tudo aquilo que faz do seu livro, ainda que mal escrito, imprescindível documento para a reconstituição da época.

O único registro oficial da 43ª reunião do Conselho de Segurança Nacional, porém, não se refere ao incidente. Nem a gravação feita por dois gravadores, nem a consequente ata da histórica sessão, arquivadas sigilosamente na Secretaria-Geral do CSN, fornecem sequer vestígios da cena. Sensível, a fita era, porque em uma hora de gravação captou inclusive ruídos de sirene vindos do exterior.

Também a cópia do discurso do vice-presidente, que o general Golbery do Couto e Silva ofereceu à família Aleixo, não contém qualquer registro do gesto de Costa e Silva.

Toda essa controvérsia, no entanto – se a cena de fato ocorreu, se o trecho foi apagado –, tudo isso poderia ser facilmente esclarecido, assim como o verdadeiro desempenho dos personagens. Talvez por efeito do tempo, o que eles disseram na histórica sessão do CSN tem sido oferecido à opinião pública em versões que, ou foram maquiladas pela imaginação, ou sofreram reparações cosméticas operadas pela vergonha retrospectiva de cada um. Neste ano de 88, quando a edição do AI-5 completa duas décadas e a Constituinte extinguiu o CSN, criando o Conselho de Defesa Nacional, alguns dos signatários – como Passarinho, Beltrão, Delfim, por exemplo – prestariam um grande serviço a suas biografias e à História tentando liberar o acesso à fita e à ata, se é que não têm nada a temer.

De mais a mais, a não ser por um suspeito sigilo, não existe razão para manter secreto o registro de uma reunião que foi ostensivamente gravada para a posteridade e da qual participaram duas dúzias de personalidades, além da assistência de uma dezena de observadores: assessores, ajudantes-de-ordens e oficiais de gabinete.

A rigor, o único que deveria temer pela divulgação da fita seria José Celso Martinez Corrêa, porque ela permite descobrir que na verdade a mais autêntica encenação tropicalista do ano não saiu de sua cabeça.

Mas de qualquer maneira, com ou sem reprise, o memorável discurso de Pedro Aleixo não mudou a opinião de qualquer dos outros 22 conselheiros.

Para votar a proposta presidencial, estavam ali dez oficiais-generais (Augusto Haman Rademaker Grunewald, ministro da Marinha; Aurélio de Lira Tavares, ministro do Exército; Márcio de Souza Mello, ministro da Aeronáutica; Afonso Albuquerque Lima, ministro do Interior; Emílio Garrastazu Médici, chefe do SNI; almirante Adalberto de Barros Nunes, chefe do Estado-Maior da Armada; general Adalberto Pereira dos Santos, chefe do Estado-Maior do Exército; general Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; tenente-brigadeiro Carlos Alberto Huet Sampaio, chefe do Estado-Maior da Aeronáutica; e general Jayme Portella, chefe da Casa Militar, três oficiais da Reserva (Mário David Andreazza, ministro dos Transportes; Jarbas G. Passarinho, ministro do Trabalho e Previdência Social; e José Costa Cavalcanti, ministro das Minas e Energias) e dez civis (Pedro Aleixo, vice-presidente da República; José de Magalhães Pinto, ministro das Relações Exteriores; Antônio Delfim Netto, ministro da Fazenda; Ivo Arzua Pereira, ministro da Agricultura; Leonel Miranda, ministro da Saúde; Tarso Dutra, ministro da educação, Hélio Beltrão, ministro do Planejamento; Carlos F. de Simas, ministro das Comunicações; Rondon Pacheco, chefe da Casa Civil; e Luís Antônio Gama e Silva, ministro da Justiça).

Entre eles, seis eram parlamentares: Aleixo, Passarinho, Magalhães, Tarso, Rondon e Costa Cavalcanti.

No papel de memorando em que fazia questão de anotar os votos, o presidente Costa e Silva pôde colocar sim em todos os nomes, com exceção de Pedro Aleixo, à frente do qual escreveu “estado de sítio”, sublinhado várias vezes.

Os 22 eleitores do sim não apresentaram objeções nas suas justificativas de voto. Ressalte-se, ao contrário, o cuidado deles em não deixar dúvidas quanto à disposição de se colocarem intransigentemente a favor. Se Costa e Silva estava de fato esperando resistências, ele não chegou a encontrar nem hesitações. Uns, por inato desapego à dignidade, outros abrindo mão de suas histórias pessoais e muitos, por não tê-las, renunciando à oportunidade de começar a construí-las, aqueles 22 atores preferiam desempenhar o papel que o medo e a covardia lhes impunham. Era, como se disse, uma peça tropicalista: não havia lugar para a ética.

Os tropicalistas achavam que o absurdo brasileiro só poderia ser devolvido artisticamente pelo choque de elementos dramáticos antagônicos – o moderno e o arcaico, o rural e o urbano, a tecnologia e o artesanato, Ipanema e Iracema, banda e Carmem Miranda – encenados sob a forma de paródia. O resultado, hipertrofiado, revelava a realidade como o realismo era incapaz de fazê-lo. O problema é que às vezes a realidade permanecia mais absurda do que sua paródia, deixando o surreal aquém do real. Naquele palco, por exemplo, José Celso teria pouco a acrescentar. Os personagens reais eram suas próprias caricaturas, e o choque entre o que se propunha e as razões pelas quais se dizia aceitar o proposto era um jogo de cinismo que nenhuma transposição dramática conseguiria superar. Além disso, uma retórica de elipses e eufemismos produzia subversões semânticas capazes de colocar a palavra democracia que estava sendo expulsa daquela mesa e do país em quase todos os discursos, enquanto a ditadura, que se instaurava, era tratada como uma ausente distante. Houve até quem usasse o artifício de condená-la no passado para melhor aderir à do presente. Outros, considerando-a inevitável, aproveitaram para seguir o cínico conselho de reação ao estupro: experimentaram um forçado prazer.

Melhor do que ler a sinopse, porém, é assistir a peça. Era, como nenhum dos atores desconhecia, uma farsa. Eles estavam reunidos para celebrar um ritual, uma espécie de missa negra. Podia-se fingir ali qualquer reação, menos ingenuidade. Todos sabiam que aquele ato significava o início de uma ditadura explícita e declarada cujos efeitos eram óbvios.

Como anunciava o texto que todos foram obrigados a ler, ia-se fechar o Congresso por tempo indeterminado, interrompiam-se as garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, podia-se cassar, demitir, transferir, reformar funcionários civis e militares a vontade e suspendia-se o habeas corpus, o que – com o reforço da posterior Lei de Segurança Nacional – permitia manter qualquer preso acusado de delito político em regime de incomunicabilidade por dez dias – cinco a mais do que o Alvará de 1705, usado para extorquir as confissões dos Inconfidentes.

Para encenar esse rito de celebração, que inaugurava o reino do Arbítrio e da Tortura, o elenco se apresentava completo.”

 

 

“A palavra ditadura só foi usada, depois de Aleixo, por três conselheiros: Magalhães Pinto, Passarinho e Hélio Beltrão. O primeiro admitia, citando o vice-presidente, que realmente aquele ato estava instituindo uma ditadura, mas “se ela é necessária, devemos tomar as responsabilidades de fazê-la”.

Passarinho não tinha dúvida de que era “uma ordem ditatorial” o que se estava instalando ali. “Repugna enveredar pelo caminho da ditadura”, confessava, para ressalvar: “É esta que está diante de nós”. Se era inevitável, propunha, então o ministro do Trabalho: “Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.”

 

 

“Sobre Pedro Aleixo, Costa e Silva disse: “Peço a Deus que não me venha convencer amanhã de que ele é que estava certo, porque ele admitiu mesmo a hipótese do Ato final, porque entendo, como entende o Conselho na sua sabedoria de maioria, de quase unanimidade, que nesta escalada o degrau proposto se torna evidentemente desnecessário”.

O presidente terminou a sua exposição com um desabafo: “Eu confesso que é com verdadeira violência aos meus princípios e ideias que adoto uma atitude como esta. Adoto-as convencido de que elas são do interesse do país, do interesse nacional, que demos um basta à contrarrevolução”.”

 

 

“Às 22h30min, o ministro da Justiça e o locutor Alberto Cury, liam, em cadeia de TV, os seis considerandos e os 12 artigos que compunham o Ato Institucional nº 5, e mais o Ato Complementar n° 38, que decretava o recesso do Congresso. Foi uma leitura monótona e ameaçadora como uma sentença de morte: “O presidente da República poderá decretar...” repetiu incansavelmente o locutor.

A exemplo daquelas orações, todas regidas por um único sujeito, 90 milhões de brasileiros, a partir daquele momento, iriam ser comandados também por uma única vontade.”

 

 

“Em dez anos de vigência, o AI-5 já tivera tempo de punir 1607 cidadãos, dos quais 321 cassados: seis senadores, 110 deputados federais e 161 estaduais, 22 prefeitos, 22 vereadores – mais de seis milhões de votos anulados. Além da cassação, todos os senadores e 100 deputados federais tiveram seus direitos políticos suspensos por 10 anos. Entre as punições a funcionários públicos, estavam o afastamento de três ministros do Supremo Tribunal Federal – Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Vítor Nunes Leal – e de professores universitários como Caio Prado Júnior – condenado a quatro anos e meio de prisão por uma entrevista a um jornal estudantil – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Mário Schemberg, Vilanova Artigas, Hélio Lourenço de Oliveira e uma dezena de pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, entre outros, muitos outros.

Paralelamente a essa caçada aos criadores, o AI-5 desenvolveu um implacável expurgo nas obras criadas. Em dez anos, cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovela foram censurados. Só Plínio Marcos teve 18 peças vetadas. O índex reunia um elenco variado, que ia de Chico Buarque, um dos artistas mais censurados e perseguidos da época, a Dercy Gonçalves e Clóvis Bornay. A violência, que o marechal Costa e Silva confessou ter sentido ao editar o AI-5, ia deixar de ser uma figura de retórica. A partir do dia 13 de dezembro de 1968, ela se abateria de fato sobre a alma e a carne de toda uma geração.”

 

 

“O que se pretendia fazer com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o escritor Carlos Heitor Cony pôde sentir nessa mesma noite ao ser preso no Leme. Conduzido para o Batalhão de Guardas, em São Cristóvão, ele assustou-se com a tropa embarcada num camburão. Cony contaria mais tarde:

– Um oficial muito moço, levando-me para a cela, onde já estava o jornalista Joel Silveira, explicou-me: “Esse pessoal aí de fora vai ter hoje muito trabalho”.

– Que tipo de trabalho? – indagou o prisioneiro. - Vamos fuzilar o Juscelino e o Lacerda.

Não se sabe por que essa vontade não foi cumprida, mas em compensação Juscelino sofreu muito nesses dias em que esteve preso. Em janeiro, uma junta de quatro médicos – Drs. Aloysio Salles, Oswaldo Pinheiro Campos, Décio de Souza e Ruy Goyanna – assinou um laudo sobre o paciente: “Para seu adequado tratamento, julgamos absolutamente inconveniente a situação de reclusão em que se encontra”.

Fundamentando essa conclusão, os médicos forneciam o diagnóstico do doente:

a) arteriosclerose coronariana; b) hipertensão arterial; c) diabete; d) gota; e) infecção urinária recidivante pós-operatória; f) rotura traumática do tendão de Aquiles esquerdo (em período de imobilização, após tratamento cirúrgico); g) síndrome de depressão psíquica.

Aos 66 anos e mesmo nesse estado, o criador de Brasília não perdia o humor, o que fez dele o mais doce e amoroso presidente que o Brasil já teve. Logo depois de deixar a prisão, ele se encontrou com Vitório Cabral, que se surpreendeu com o gesso na perna do amigo. Rindo, JK explicou:

– Pois é, aqueles merdas me obrigavam a ficar horas e horas em pé respondendo a perguntas idiotas.

O atual secretário de Planejamento do Estado do Rio comove-se com a lembrança:

– Juscelino dizia isso sem ódio, quase brincando, com uma grandeza impressionante. Ele sabia que tudo aquilo ia sair na urina da História.

De fato, todos os majores, coronéis e generais que maltrataram Juscelino Kubitschek naqueles tempos seguintes saíram, ao contrário dele, na urina da História.”

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