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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica (Parte I), de José Chasin

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-146-8

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 256

Sinopse: Em Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica, J. Chasin, um dos grandes filósofos brasileiros, faz uma reflexão apurada sobre as conexões entre forma e conteúdo. A partir do legado marxiano, o autor busca reproduzir – pelo seu próprio interior – o trançado determinativo desses escritos, ao modo como o próprio Karl Marx os concebeu e expressou.

A obra surgiu originalmente como um posfácio ao livro de Francisco José Soares Teixeira, Pensando com Marx, mas ganhou autonomia enquanto uma apurada e inovadora tentativa de apontar para a insuficiência das interpretações usuais do tecido teórico em Marx e também, como consequência inexorável, em Georg Lukács, a quem Chasin dedica todo um capítulo na obra. O livro busca desnudar o aspecto constitutivo desses autores para vislumbrar seu legado e as perspectivas transformadoras inerentes às suas teorias. Para Chasin, a ontologia marxiana não é um sistema de verdades absolutas e abstratas, mas, antes de tudo, um estatuto teórico. É a aplicação da dialética materialista ao próprio Marx.

Nas palavras de Ester Vaisman e Antônio José Lopes Alves, que assinam a apresentação da obra, ‘Chasin dedicou sua vida ao programa de renascimento do marxismo e, assim, como no caso do filósofo húngaro [Georg Lukács], não se tratou nunca de um projeto intelectual como um fim em si mesmo, encerrado em seus limites hoje tão estreitos! Tratava-se, acima de tudo, de fazer a obra de Marx objeto de estudo rigoroso, com miras reais bem estabelecidas: compreender o mundo e visualizar as possíveis vias de sua transformação’.

 

“A unilateralidade do entendimento político está vinculada à posição de conferir prioridade à subjetividade, quando do processo do entendimento das relações da sociedade civil. Não há como negar: o entendimento político é fortemente vinculado à subjetividade – à vontade, vale dizer, é o entendimento unilateralizado pela vontade, o olhar cego do interesse particular, e nessa unilateralidade base de todo oportunismo, desde o “espiritualismo” dos bem alimentados à voracidade de qualquer arrivismo. É, em suma, e de modo direto, promessa de realização do céu na terra pelo encantamento da manada de desvalidos. Base suposta dos grandes valores, é, em verdade, a plataforma do cinismo do desvalor, da esperteza egóica mascarada de generosidade ideológica. A hipóstase da subjetividade é a sagração do indivíduo isolado, reduzido à mesquinhez de seus próprios limites, incapaz de ver o outro a não ser como meio de realização de sua própria pequenez, incapaz de reconhecer os outros como forças sociais a integrar a si mesmos como forças pessoais, aos quais, reciprocamente, são disponibilizadas as forças pessoais a serem tomadas por eles, do mesmo modo, como forças igualmente sociais.

De outra parte, na posição ontológica, o vínculo do entendimento é a objetividade, que se orienta e objetiva pela escavação do objeto real. Nessa posição o Estado deixa de ser o lugar e o meio de realização da vontade – tudo isso meramente um suposto da vontade, mesmo que racional – para se revelar como expressão das contradições do conjunto da sociabilidade, da contradição configurada entre sociedade política e sociedade civil, e assim porque a própria sociedade civil é a pletora das contradições entre os interesses particulares. O Estado é, pois, a expressão da miséria humano-societária na verdade de sua impotência, isto é, expressão de sua incapacidade de autorregulação.”

(Ester Vaisman e Antônio José Lopes Alves)

 

_____________________

 

 

“Segundo Kautsky, cada um dos três pensamentos que integram o amálgama é uma formação parcial, quando no interior da malha nacional de positividades e negatividades que o origina. Enquanto produtos isolados – a matéria econômica inglesa, o conteúdo político francês e o método alemão – são carentes uns dos outros, como que destinados a um ménage à trois que os liberaria da hipertrofia originária. De fato, só perdem a unilateralidade graças às suas mútuas junções, pretendidamente operadas por Marx, cujo mérito intelectual, altamente enfatizado, então não passaria da habilidade para aglutinar ideias e procedimentos preexistentes. Ainda mais estranha é a via kautskysta de perfilamento do “método”, dito dialético. Mencionando aleatoriamente Schiller, Goethe, Kant, Fichte e Hegel, sem nada dizer a respeito de suas contribuições, de repente, falando também de passagem sobre a benéfica “influência do espírito francês” na Alemanha, Kautsky surpreende, de vez, ao anunciar que “Heinrich Heine e Ferdinand Lassale uniram o pensamento francês revolucionário ao método filosófico alemão”22, ressalvando, no entanto, que “o resultado foi mais importante ainda quando esta união se completou com a ciência econômica inglesa. É esta síntese que devemos aos trabalhos de Engels e de Marx”23. É fantástico e acabrunhante, o tríplice amálgama originário do pensamento marxiano não é sequer de sua inteira responsabilidade – já encontra pronta a união do material político francês com o nervo metódico alemão.

Não fosse o século XX, em suas brilhantes conquistas materiais, simultaneamente uma usina multifacética de produção da falsidade ideal socialmente necessária, o amálgama kautskysta teria se esgotado no perímetro acanhado de um erro teórico pessoal. Mas, engrenado ao desconhecimento generalizado da obra marxiana e impelido por outras urgências, o núcleo da fórmula pôde subsistir, propagado por muitos, e sob o prestígio do aval de Lenin. (...)

De fato, o tríplice amálgama é, a rigor, impensável, a não ser como vaga alusão metafórica às doutrinas mais notáveis do universo intelectual ao qual Marx pertencia, e às quais ele teve o discernimento de se voltar, preferencialmente, a partir de certo instante de seu próprio desenvolvimento. Como as faceou, de que modo lidou com elas e de que maneira foram proveitosas na instauração de seu próprio pensamento são, estas sim, questões válidas, que só a direta interrogação de seus escritos – necessariamente de seus escritos – pode legitimamente dirimir.”

22 Karl Kautsky, As três fontes do marxismo (São Paulo, Centauro, 2004), p. 43.

23 Idem.

 

 

“No mesmo diapasão, já nas partes mais adiantadas do escrito, ao denunciar Strauss e Bauer por subsunção à lógica hegeliana, Marx garante que Feuerbach demoliu “tanto em suas Teses, nos Anecdotis, quanto, pormenorizadamente, na Filosofia do futuro [...] o embrião da velha dialética e da velha filosofia”. Defende ainda que “Feuerbach é o único que tem para com a dialética hegeliana um comportamento sério, crítico, e [o único] que fez verdadeiras descobertas nesse domínio, [ele é] em geral o verdadeiro triunfador [Überwinder] da velha filosofia”53.

A declaração, enfática e cristalina, tributa a Feuerbach o mérito da ruptura com o pensamento hegeliano, numa extensão que implica o reconhecimento dos contornos de uma nova posição filosófica. Aliás, Marx faz isso explicitamente, na sequência do mesmo texto, ao resumir “o grande feito” de Feuerbach em três pontos:

• denúncia e condenação da filosofia especulativa como forma ou modo de existência do estranhamento do ser humano;

• fundação do verdadeiro materialismo e da ciência real, ao tornar “a relação social de ‘homem a homem’ o princípio fundamental da teoria”;

• resgate e reconhecimento do positivo que repousa sobre si mesmo, que se funda positivamente em si, que é ponto de partida da certeza sensível, em oposição ao roteiro hegeliano da negação da negação, criticamente evidenciada tão somente como “a expressão abstrata, lógica, especulativa para o movimento da história, a história ainda não efetiva do homem enquanto um sujeito pressuposto”54.

 

A adesão aos novos referenciais, nítida e franca, abrange igualmente três dimensões: descarte da especulação, ou seja, do logicismo e da abstratividade próprios aos volteios da razão autossustentada; reconhecimento do caráter fundante da positividade ou objetividade autopostas, determinação ontológica mais geral que subjaz ao perfilamento, igualmente ontológico, do homem em sua autoefetividade material; identificação da sociabilidade como base da inteligibilidade (não importa, aqui, o equívoco de Marx, pouco depois ultrapassado, em conferir caráter social à relação feuerbachiana de “homem a homem”). (...)

É também no “Prefácio“ de 1859 que se encontra a súmula, muito conhecida, da resultante proporcionada pela revisão da filosofia política de Hegel:

Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais da vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de “sociedade civil”, seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; a anatomia da bürgerliche Gesellschaft [sociedade civil ou burguesa] deve ser procurada na economia política.55

Esse testemunho de Marx é decisivo, dado que aponta o caráter e o momento preciso da inflexão intelectual a partir da qual passa a elaborar seu próprio pensamento. Trata-se de uma viragem ontológica que a leitura de Crítica da filosofia direito de Hegel comprova indubitavelmente, se dela o leitor se aproximar sem preconceitos gnosiológicos, não importa quanto o texto seja inacabado e lacunar, por vezes impreciso e até mesmo obscuro, visto não ter jamais ultrapassado a condição de glosas para o autoesclarecimento do autor. É o início do traçado de uma nova posição ontológica que os textos subsequentes – de Sobre a questão judaica (1843) às “Glosas marginais ao ‘Tratado de economia política’ de Adolf Wagner” (1880) – confirmam, reiteram e desenvolvem num largo e complexo processo de elaboração.

Importa, aqui, a feição precisa do passo inicial da caminhada: em contraste radical com a concepção do Estado como demiurgo racional da sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que transpassa a tese doutoral e os artigos da Gazeta Renana, irrompe e domina agora, para não mais ceder lugar, a “sociedade civil” – o campo da interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do metabolismo social – como demiurgo real que alinha o Estado e as relações jurídicas. Inverte-se, portanto, a relação determinativa: os complexos reais envolvidos aparecem diametralmente reposicionados um em face do outro. Mostram-se invertidos na ordem da determinação pela força e peso da lógica imanente a seus próprios nexos, não em consequência formal e linear de algum pretensioso volteio especial nos arranjos metodológicos, isto é, não como resultante de uma simples e mera reorganização da subjetividade do pesquisador, mas por efeito de uma trama reflexiva muito mais complexa, que refunde o próprio caráter da análise, elevando o procedimento cognitivo à analítica do reconhecimento do ser-precisamente-assim. Nesta, o direito unilateral da razão especulativa interrogar o mundo é superado pela via de mão dupla de um patamar de racionalidade em que o mundo também interroga a razão, e o faz na condição de raiz, de condição de possibilidade da própria inteligibilidade, como foi visto há pouco a respeito da apropriação marxiana dos indicativos feuerbachianos.

Essa reflexibilidade fundante do mundo sobre a ideação promove a crítica de natureza ontológica, organiza a subjetividade teórica e assim faculta operar respaldado em critérios objetivos de verdade, uma vez que, sob tal influxo da objetividade, o ser é chamado a parametrar o conhecer, ou, dito a partir do sujeito: sob a consistente modalidade do rigor ontológico, a consciência ativa procura exercer os atos cognitivos na deliberada subsunção, criticamente modulada, aos complexos efetivos, às coisas reais e ideais da mundaneidade. É o trânsito da especulação à reflexão, a transmigração do âmbito rarefeito e adstringente, porque genérico, de uma razão tautológica, pois autossustentada – e nisso se esgota a impostação imperial da mesma, para a potência múltipla de uma racionalidade flexionante, que pulsa e ondula, se expande ou se diferencia no esforço de reproduzir seus alvos, empenho que ao mesmo tempo entifica e reentifica a ela própria, no contato dinâmico com as “coisas” do mundo. Racionalidade, não mais como simples rotação sobre si mesma de uma faculdade abstrata em sua autonomia e rígida em sua conaturalidade absoluta, porém, como produto efetivo da relação, reciprocamente determinante, entre a força abstrativa da consciência e o multiverso sobre o qual incide a atividade, sensível e ideal, dos sujeitos concretos.

Marx ao revisitar a filosofia política hegeliana, sob a pressão da dúvida e a influência das mais recentes conquistas feuerbachianas, percorre exatamente as vias da interrogação recíproca entre teoria e mundo, o que lhe proporcionou identificar a conexão efetiva entre sociabilidade e politicidade, que fez emergir, polemicamente, como o inverso do formato hegeliano, implicando com isso a virtualidade de um novo universo ontológico.”

55 Karl Marx, “Prefácio para contribuição da crítica à economia política“ (1859), em Karl Marx (São Paulo, Abril Cultural, 1974, Coleção Os Pensadores, v. 35), p. 135.

 

 

“Texto primígeno, a “Introdução“ também já sustenta, em plena concordância com a determinação ontológica que desvelara o Estado pela lógica da sociedade civil, que “a relação da indústria, do mundo da riqueza em geral, com o mundo político, é um dos problemas fundamentais dos tempos modernos”64. Mundo político, intrinsecamente imperfeito e carente de solidez, que é configurado como patamar inferior no evolver histórico, resumo do “nível oficial das nações modernas”, ao qual é contraposto o patamar superior do “nível humano”, altitude apontada como o “futuro imediato”65 a ser atingido pelos povos que já alcançaram a modernidade política. Esse texto, portanto, erige uma escala que inferioriza o território político, ou nos termos de Marx, “as fases intermediárias da emancipação política”, em face da altitude do humano, pois, “o homem é o ser supremo para o homem”, o que desloca a politicidade para os contornos de uma entificação transitória a ser ultrapassada; Marx alude mesmo à necessidade de “demolir as barreiras gerais da política atual”66. É nítido, pois, desde o instante em que Marx passa a elaborar o seu próprio pensamento, que a esfera política perde a altura e a centralidade que ostenta ao longo de quase toda a história do pensamento ocidental, cedendo lugar ao complexo da “emancipação humana geral”, vinculada no texto à noção de “revolução radical”, que “organiza melhor todas as condições da existência humana sob o pressuposto da liberdade social”, em contraste com “revolução parcial”, identificada à “meramente política, que deixa de pé os pilares do edifício”67. Em determinação confluente, resguardada sua importância como grau transitório de liberdade limitada ou, mais precisamente, de iliberdade, a revolução política, por natureza, é apenas uma função mediadora, encarregada simplesmente das tarefas destrutivas, enquanto a “revolução radical, a emancipação humana universal”68 compreende o teor do grande e verdadeiro objetivo – é o télos permanente, onímodo e, como tal, último em sua infinitude, por isso mesmo demanda sempre reiterada, que não se esgota em qualquer instância conclusiva ou momento final, pois cada ponto de chegada é também de partida, perfazendo no conjunto a universalidade da sucessão contraditória e sem termo de todos os patamares de afirmação e construção do ser humano-societário.

Em verdade, esse télos, nunca como centro temático de uma antropologia, positiva ou negativa, pois do caráter desse tipo de abordagem redundaria de qualquer modo o defeito capital do isolamento e autonomização da individualidade, nem como o dever ser de um humanismo ético qualquer, que não deixaria de soçobrar na navegação idealista entre fato e utopia – mas como possibilidade objetiva identificada no tratamento ontológico da mundaneidade social, constitui o núcleo propulsor das inquietações teóricas e práticas de Marx desde o advento de seu pensamento marxiano, e daí em diante irradiadas por toda sua obra. Ponto crucial que recebe tratamento vibrante nas últimas páginas da “Introdução”, com o qual ultrapassa o que havia sido sua fórmula mais avançada aos tempos da Gazeta Renana, a revolução política pelo Estado racional a partir da “humanidade sofredora que pensa”. Por certo, agora, a pedra angular é a “revolução radical”, consubstanciada na “emancipação humana geral”, e seu agente passa a ser, igualmente, uma categoria social de “cadeias radicais”, uma vez que “uma classe da sociedade civil que não é uma classe civil”, que é a dissolução de todas as configurações societárias, que só é universal pela universalidade de seus sofrimentos, que não padece injustiças parciais, mas “a injustiça pura e simples”, que, em suma, “já não pode reclamar um título histórico, mas simplesmente o título humano”, “que é, em suma, a perda total da humanidade, portanto, só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem”69. Não há expressão mais precisa e eloquente do que essa para pôr em evidência que a revolução radical ou emancipação global passa a ser, desde a emergência do pensamento marxiano, o complexo entificador da universalidade e da racionalidade humanas, da efetiva e autêntica realização do homem, e não mais uma forma qualquer de Estado ou de prática política, por mais perfeitas que estas possam ser, pragmática ou piedosamente, imaginadas. Ou seja, a emancipação humana compreende resolubilidade real e global, enquanto virtualidade engendrada pelas “determinações existentes” na concreta esfera humano-societária, passível de reconhecimento pelo entendimento a partir do instante em que nas Glosas de 1843, segundo os corretos e incisivos termos de Maximilien Rubel, “Marx rompe definitivamente com a ideia de Estado como instituição racional”70.

Em síntese, a redefinição teórica de Marx, naquela oportunidade, é de tal envergadura que só pode ser facultada e ter explicação por uma cabal revolução ontológica. O salto extremo, que vai da sustentação ardorosa do Estado racional como demiurgo da universalidade humana à negação radical de sua possibilidade, consubstanciado pela emergência de um complexo determinativo que se lastreia como reprodução ideal do efetivamente real, transcende as condicionantes mais próximas – dúvidas e influências – e dá início à instauração de uma nova posição filosófico-científica e à sua correlata postura prática.”

62 Idem.

63 Idem.

64 Ibidem, p. 149.

65 Ibidem, p. 151.

66 Ibidem, p. 153.

67 Ibidem, p. 154.

68 Idem.

69 Ibidem, p. 156.

70 Maximilien Rubel, Crônica de Marx (São Paulo, Ensaio, 1991), p. 25.

 

 

“Para evitar objeções indolentes, velhos mal-entendidos ou precipitações irrefletidas, que, desatentas à complexa problemática da teoria marxiana da determinação ontonegativa da politicidade, cedam à cavilosa tentação reducionista de a emparelhar ao mero lema anarquista da extinção do Estado, uma sinalização de alerta.

Tratando-se de uma configuração de natureza ontológica, o propósito essencial dessa teoria é identificar o caráter da política, esclarecer sua origem e configurar sua peculiaridade na constelação dos predicados do ser social. Donde, é ontonegativa, precisamente, porque exclui o atributo da política da essência do ser social, só o admitindo como extrínseco e contingente ao mesmo, isto é, na condição de historicamente circunstancial; numa expressão mais enfática, enquanto predicado típico do ser social, apenas e justamente, na particularidade do longo curso de sua pré-história. É no interior da intrincada trajetória dessa pré-história que a politicidade adquire sua fisionomia plena e perfeita, sob a forma de poder político centralizado, ou seja, do Estado moderno:

A máquina que por meio de órgãos complexos e ubíquos enreda, como uma jiboia, a sociedade civil viva [trata-se, pois, do] poder de Estado ordenado e dotado de uma divisão do trabalho sistemática e hierarquizada, que expande seu raio de ação e independência em relação à sociedade real e o controle sobrenatural sobre ela [de modo que é uma] excrescência parasitária sobre a sociedade civil, fingindo ser sua contrapartida ideal.71

Esse traçado marxiano é o oposto, sem dúvida, de qualquer expressão própria ao âmbito secularmente predominante da determinação ontopositiva da política, para a qual o atributo da politicidade não só integra o que há de mais fundamental do ser humano-societário – é intrínseco a ele – mas tende a ser considerado como sua propriedade por excelência, a mais elevada, espiritualmente, ou a mais indispensável, pragmaticamente; tanto que conduz à indissolubilidade entre política e sociedade, a ponto de tornar quase impossível, até mesmo para a simples imaginação, um formato social que independa de qualquer forma de poder político.

Ao identificar a natureza da força política como força social pervertida e usurpada, socialmente ativada como estranhamento por debilidades e carências intrínsecas às formações sociais contraditórias, pois ainda insuficientemente desenvolvidas e, por consequência, incapazes de autorregulação puramente social, nas quais, pela fieira dos sucessivos sistemas sociais, quanto mais o Estado se entifica real e verdadeiramente, tanto mais é contraditório em relação à sociedade civil e ao desenvolvimento das individualidades que a integram, Marx assinala, categoricamente, que a emancipação é na essência a reintegração ou recuperação humano-societária dessas forças sociais alienadas à política, ou seja, que ela só pode se realizar como reabsorção de energias próprias despidas da forma política, depuradas, exatamente, da crosta política sob a qual haviam se autoaprisionado e perdido. (...)

São mais do que taxativas as palavras de Marx a esse respeito. Ao fazer, por exemplo, uma avaliação de conjunto dos processos revolucionários do passado, critica: “as revoluções apenas aperfeiçoaram a máquina do Estado, em vez de se desfazerem dela, desse pesadelo asfixiante”. E, a propósito da Comuna de Paris, explica e aprova:

Todas as revoluções anteriores só haviam transferido o poder organizado – essa forma organizada da escravidão do trabalho – de uma mão para outra. A Comuna não foi uma revolução contra esta ou aquela forma de poder de Estado – legitimista, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o próprio Estado, esse aborto prodigioso da sociedade; foi a retomada pelo povo, para o povo, de sua própria vida social. Não transferiu essa máquina terrível de dominação de classe de uma fração das classes dominantes para outra, mas uma revolução que demoliu a própria máquina. [...] A Comuna foi a negação clara da usurpação estatal, por isso (foi) o início da revolução social do século XIX. [...] Só os trabalhadores, inflamados pelo cumprimento de uma tarefa social nova para toda a sociedade – acabar com todas as classes, com toda a dominação de classe – eram os homens que podiam quebrar o instrumento dessa dominação – o Estado, o poder governamental centralizado e organizado, que, usurpador, se pretende senhor e não servidor da sociedade. [...] A Comuna é a reabsorção do poder de Estado pela sociedade, que constitui suas próprias forças vivas, em lugar de forças que a controlem e subjuguem.73

71 Karl Marx, La guerre civile en France – 1871 (Paris, Éditions Sociales, 1972), p. 210. [Ed. port.: A guerra civil em França, Lisboa, Avante!, 1984. Disponível em <http://www.dorl.pcp.pt/images/classicos/ guerracivil. pdf>.

73 Ibidem, p. 211-2.

 

 

“Em síntese, para o Marx pré-marxiano, crítica era uma exercitação do intelecto que, nos fulcros básicos, acompanhava o criticismo neo-hegeliano, cuja trama operativa característica – avaliar pelo metro de essências especulativas as formas de existência – dissolvia objetos em consciência, no suposto de recusar e demolir o mundo estabelecido e deixar limpo o terreno para a edificação do Estado racional.

Para desenhar a feição da nova crítica, é preciso realudir a uma passagem conclusiva das Glosas de 1843, já enfatizada anteriormente, que faz parte de menções apresentadas por Lukács como “os momentos de maior destaque da argumentação” de Marx, quando este, “partindo do ponto central da metodologia hegeliana, trata desse conjunto de questões em termos de concreticidarle”81. Motivo pelo qual importa retracejar o contorno da nascente abordagem marxiana, no interior da qual se destaca a nova concepção de crítica. Logo nas primeiras páginas do manuscrito, ao comentar a tematização hegeliana das relações entre família, sociedade civil e Estado, pondo em evidência que “a assim chamada ‘ideia real’ (o espírito como espírito infinito, real) é representada como se agisse segundo um princípio determinado e por uma intenção determinada”, Marx objeta caracteristicamente: “Aqui aparece claramente o misticismo lógico, panteísta”81. Pouco mais adiante, tratando ainda das mesmas relações, explicita a objeção de modo mais geral e detalhado:

Mas a condição torna-se o condicionado, o determinante torna-se o determinado, o produtor é posto como o produto de seu produto. [...] A especulação enuncia esse fato como um ato da Ideia [...]. A realidade empírica é, portanto, tomada tal como é; ela é, também, enunciada como racional; porém, ela não é racional devido à sua própria razão, mas sim porque o fato empírico, em sua existência empírica, possui um outro significado diferente dele mesmo. O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico. O real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro conteúdo a não ser esse fenômeno. Também não possui a Ideia outra finalidade a não ser a finalidade lógica: “ser espírito real para si infinito”. Nesse parágrafo, encontra-se resumido todo o mistério da filosofia do direito e da filosofia hegeliana em geral.83

Essa linha de raciocínio, parágrafos à frente, leva Marx a dizer, condenando a supressão das essências específicas das entificações:

É exatamente a mesma passagem que se realiza, na lógica, da esfera da Essência à esfera do Conceito. A mesma passagem é feita, na filosofia da natureza, da natureza inorgânica à vida. São sempre as mesmas categorias que animam ora essas, ora aquelas esferas. Trata-se apenas de encontrar, para determinações singulares concretas, as determinações abstratas correspondentes.84

São esses os contornos que levam à conclusão marxiana, já citada, que, para Hegel, “O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica”85.

O quadro e a natureza dessa refutação do método especulativo conduzem à nova concepção da crítica. Grife-se, apesar da obviedade, que o fundamental da recusa marxiana à especulação não é algo circunscrito à sua fisionomia técnica ou, menos ainda, restrito a defeitos ou insuficiências particulares da mesma, os quais, inadvertidos no seio originário, uma vez retificados, pudessem levar à retomada do paradigma a que pertencem. Ao inverso, trata-se de uma rejeição de fundo, porque de caráter ontológico. Em poucas palavras, o que Marx impugna, entendendo que seja o defeito capital da especulação, é o próprio fundamento das operações hegelianas: a ideia como origem ou princípio de entificação do multiverso sensível, ou, como foi estampado mais acima, “o fato como realização da ideia”, pois esse como tal é um mero “resultado místico”, um produto do “misticismo lógico” ao operar simplesmente no plano da “relação universal entre necessidade e liberdade86, que enforma a inversão entre determinante e determinado, desconsiderando as essências específicas das distintas entificações efetivamente existentes, constituindo uma ruptura ontológica com a especulação em nome e pelo resgate, precisamente, da “lógica da coisa”.

O perfil e a estrutura da nova concepção de crítica são organizados, é nítido, pelo propósito de desvendar os nexos imanentes aos “objetos reais”. A certa altura do parágrafo 304, ao consignar, a propósito da “antinomia entre Estado político e sociedade civil”, que “o erro principal de Hegel consiste em assumir a contradição do fenômeno como unidade no ser, na ideia, quando essa contradição tem sua razão de ser em algo mais profundo, isto é, em uma contradição substancial”, e distinguir o equívoco hegeliano do erro inverso, em que recai aquela que chama de “crítica vulgar”, Marx oferece os elementos constitutivos da “verdadeira crítica”. Convém transcrever a passagem por inteiro:

A crítica vulgar cai em um erro dogmático oposto. Assim ela critica, por exemplo, a constituição. Ela chama a atenção para a oposição entre os poderes etc. Ela encontra contradições por toda parte. Isso é, ainda, crítica dogmática, que luta contra seu objeto, do mesmo modo como, antigamente, o dogma da santíssima trindade era eliminado por meio da contradição entre um e três. A verdadeira crítica, em vez disso, mostra a gênese interna da santíssima trindade no cérebro humano. Descreve seu ato de nascimento. Com isso, a crítica verdadeiramente filosófica da atual constituição do Estado não indica somente contradições existentes; ela esclarece essas contradições, compreende sua gênese, sua necessidade. Ela as apreende em seu significado específico. Mas esse compreender não consiste, como pensa Hegel, em reconhecer por toda parte as determinações do Conceito lógico, mas em apreender a lógica específica do objeto específico.87

Vale aditar que, em verdade, a condenação da ideia, da ideia pura, da ideia abstrata, da ideia lógica, da ideia como sujeito, que, por mais sutis e elaborados que sejam os seus volteios, é incapaz de reproduzir a peculiaridade concreta dos objetos reais, bem como a exigência de que o conhecimento seja exatamente essa força reprodutora das entidades efetivas, é constante e taxativa por toda a “Crítica de Kreuznach”. A título de confirmação, leia-se um trecho de um dos primeiros parágrafos:

Mas uma explicação que não dá a differentia specifica não é uma explicação. O único interesse é, pura e simplesmente, reencontrar “a Ideia”, a “Ideia lógica” em cada elemento, seja o do Estado, seja o da natureza, e os sujeitos reais, como aqui a “constituição política”, convertem-se em seus simples nomes, de modo que há apenas a aparência de um conhecimento real, pois esses sujeitos reais permanecem incompreendidos, visto que não são determinações apreendidas em sua essência específica.88

O contraste entre as duas críticas é radical, e por seu formato a segunda ultrapassa, num só movimento, a especulação hegeliana e o criticismo neo-hegeliano: tanto a dogmática superior da razão autossustentada, como a dogmática vulgar da caça às contradições, propiciada pelo confronto entre uma suposta essência racional e a mísera existência eivada de irracionalismo. Aliás, é oportuno fazer menção de passagem ao parágrafo 279, em que tem lugar, a propósito da discussão sobre as diferenças entre monarquia e democracia, uma das primeiras demolições marxianas do padrão convencional de emprego das categorias de essência e existência e de suas relações. Basta deixar anotado um fragmento para assinalar que elas, desde o princípio da reflexão marxiana, perdem a rigidez e a polarização excludente dos mitos extrassensíveis da inteligibilidade especulativa em geral, adquirindo a plasticidade necessária que as capacita a ser veículos conceituais dúcteis, receptivos aos conteúdos próprios dos objetos investigados, na reprodução teórica dos complexos da mundaneidade, deixando para trás as velhas antinomias que embaraçavam seu emprego:

A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui, a constituição não é somente em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e posta como a obra própria deste último. A constituição aparece como o que ela é, o produto livre do homem.89

Abandonado o criticismo das essências abstratas contra o mundo irracional das contradições, a “crítica verdadeira” ascende à decifração da mundaneidade imperfeita em sua realidade, para esclarecê-la, compreendendo sua gênese e necessidade, ou seja, para capturá-la em seu significado próprio, por meio da determinação das lógicas específicas que atualizam os objetos de seu multiverso. É a extraordinária passagem da tópica negatividade absoluta do criticismo neo-hegeliano à crítica ontológica – investigação do ente autoposto em sua imanência, seja esse uma formação real ou ideal; procedimento teórico – “verdadeira crítica filosófica”, diz Marx – em que a tematização, isto é, a reprodução ideal das coisas é procedida a partir delas próprias, da malha ou do aglutinado de seus nexos constitutivos, processo analítico pelo qual são desvendadas e determinadas em sua gênese e necessidade próprias.”

81 Idem, “A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel”, em Ontologia do ser social (São Paulo, Ciências Humanas, 1979), p. 26.

82 Karl Marx, Crítica à filosofia do direito de Hegel, cit., p. 29. (§ 262.)

83 Ibidem, p. 30- 1.

84 Ibidem, p. 32. (§ 267.)

85 Ibidem, p. 39. (§ 270, d.)

86 Ibidem, p. 32. (§ 266.)

87 Ibidem, p. 108.

88 Ibidem, p. 34. (§ 269.)

89 Ibidem, p. 50.

Um comentário:

  1. Com efeito, como destacado na sinopse, este livro é oriundo de um posfácio desproporcionalmente longo. À época, o autor deveria não apenas ter abandonado a versão de prefácio e dado uma finalização adequada como livro, mas além disso, ainda deveria ter dividido este escrito em (pelo menos) duas outras obras. Uma, para a análise do tríplice amálgama (a suposta fusão da política francesa, da economia inglesa e da filosofia alemã) que, para Chasin, Marx não opera; bem como a questão do “corte epistemológico” operado por Althusser na obra marxiana.
    Um segundo livro poderia ser decorrente especialmente do capítulo “Da teoria das abstrações à crítica de Lukács” (talvez com as páginas a mais que na página 219 ele diz não poder agregar porque o posfácio já ia muito grande).
    Outros textos esparsos, além disso, poderiam ser mais bem aproveitados em outros lugares, possivelmente como artigos soltos.

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