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domingo, 17 de maio de 2020

Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx (Parte I) – Moishe Postone

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-398-1
Tradução: Amilton Reis e Paulo Cézar Castanheira
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 486
Sinopse: Em Tempo, trabalho e dominação social, Moishe Postone, professor de história moderna da Universidade de Chicago, propõe uma reinterpretação fundamental da teoria crítica de Marx. Fortemente influenciado pela Escola de Frankfurt e inserido em uma das tradições mais radicais e contemporâneas do marxismo, Postone analisa o capitalismo, antes de tudo, como uma forma de vida. Escrito na década de 1990, esse livro inaugurou uma nova frente nos estudos marxistas, tão polêmica quanto necessária. As teses de Postone relacionam a forma do crescimento econômico e a estrutura do trabalho social na sociedade moderna com a alienação e a dominação presentes no coração do capitalismo.
Suas análises abriram caminhos para a renovação dos debates no interior do marxismo, o que torna esse livro leitura obrigatória, inclusive para os que defendem uma perspectiva diferente sobre a dinâmica capitalista. Em 1996, Tempo, trabalho e dominação social recebeu o prêmio de melhor obra teórica da American Sociological Association e, desde então, tem sido lançado em diversos países, como Alemanha, França, Espanha e Japão, entre outros. A edição brasileira conta com um prefácio inédito do autor.
Elaborando conceitos destinados a apreender o caráter essencial e o desenvolvimento histórico da sociedade moderna e a superar a conhecida divisão entre estrutura e ação, significado e vida material, o autor questiona muitos dos pressupostos marxistas tradicionais e oferece novas interpretações dos argumentos centrais de Marx. Esses conceitos o levaram a uma análise original da natureza e dos problemas do capitalismo e fornecem a base para uma crítica do “socialismo realmente existente”.
De acordo com Postone, Marx identifica o núcleo do sistema capitalista com uma forma impessoal de dominação social gerada pelo próprio trabalho e não simplesmente com mecanismos de mercado e propriedade privada. O trabalho proletário e o processo de produção industrial são caracterizados como expressões de dominação, e não como meios de emancipação humana. Essa reinterpretação gera uma análise crítica do caráter historicamente dinâmico da vida social moderna. “Nessa óptica, a mera substituição da propriedade privada dos meios de produção pela estatal não podia produzir a superação do capitalismo. Para superá-lo, na perspectiva trazida à luz por Postone, é preciso superar o próprio valor-trabalho como regulador social ou, o que é o mesmo, abolir o trabalho alienado. Nessa leitura o advento do socialismo sempre exigiu, segundo o próprio Marx, a eliminação da forma mercadoria e, portanto, da forma dinheiro”, afirma Eleutério Prado, no texto de orelha.

Capitalismo, trabalho e dominação
A teoria social de Marx – por oposição a uma posição marxista tradicional – sugere uma análise crítica da forma de produção desenvolvida sob o capitalismo e da possibilidade da sua transformação radical. Ela claramente não envolve a glorificação produtivista dessa forma. O fato de Marx tratar o valor como uma categoria historicamente determinada de um modo de produção específico, e não como apenas um modo de distribuição, sugere — e isso é crucial – que o trabalho que constitui o valor não deve ser identificado com o trabalho que existe trans-historicamente. Pelo contrário, trata-se de uma forma historicamente específica que seria abolida, e não realizada, com a superação do capitalismo. A concepção da especificidade histórica do trabalho no capitalismo exige uma reinterpretação fundamental da sua compreensão das relações sociais que caracterizam aquela sociedade. Essas relações são, de acordo com Marx, constituídas pelo próprio trabalho e, consequentemente, tem um caráter peculiar quase objetivo; não podem ser completamente entendidas em termos de relações de classe.
São consideráveis as diferenças entre a interpretação “categorial” e a “centrada em classe” das relações sociais fundamentais do capitalismo. A primeira é uma crítica do trabalho no capitalismo, a segunda uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho; elas implicam concepções muito diferentes do modo determinante de dominação no capitalismo e, portanto, da natureza da sua superação. As consequências dessas diferenças ficarão mais claras quando eu analisar mais detalhadamente a discussão de Marx sobre como o caráter específico do trabalho no capitalismo constitui suas relações sociais básicas, e sobre como ele se oculta atrás da especificidade do valor como forma de riqueza e do modo industrial de produção. O caráter específico do trabalho – para dar um salto a frente por um momento — também constitui a base de uma forma historicamente específica, abstrata e impessoal de dominação social.
Na análise de Marx, a dominação social no capitalismo, no seu nível mais fundamental, não consiste na dominação das pessoas por outras pessoas, mas na dominação das pessoas por estruturas sociais abstratas constituídas pelas próprias pessoas. Marx tentou apreender essa forma de dominação abstrata e estrutural – que abrange e se estende além da dominação de classe — com as suas categorias de mercadoria e capital. Essa dominação abstrata não apenas determina o objetivo da produção no capitalismo, de acordo com Marx, mas é também a sua forma material. Na estrutura da análise de Marx, a forma de dominação social que caracteriza o capitalismo não é uma função da propriedade privada, da propriedade pelos capitalistas do produto excedente e dos meios de produção; pelo contrário, ela se baseia na forma de valor da riqueza em si, uma forma de riqueza social contrária ao trabalho vivo (os trabalhadores) como um poder estruturalmente hostil e dominante37. Tentarei mostrar como, para Marx, essa oposição entre riqueza social e pessoas se baseia no caráter único do trabalho na sociedade capitalista.
De acordo com Marx, o processo pelo qual o trabalho no capitalismo constitui estruturas sociais abstratas que dominam as pessoas é o que induz um rápido desenvolvimento histórico das forças produtivas e do conhecimento da humanidade. Ainda assim, isso é feito pela fragmentação do trabalho social — ou seja, à custa do estreitamento e esvaziamento do indivíduo particular38. Marx argumenta que a produção baseada no valor cria enormes possibilidades de riqueza, mas apenas “por todo o tempo do indivíduo como tempo de trabalho, [o que resulta em] degradação do indivíduo a mero trabalhador”39. Sob o capitalismo aumentam enormemente o poder e conhecimento da humanidade, mas de uma forma alienada que oprime as pessoas e tende a destruir a natureza40.
Uma marca central do capitalismo, é que as pessoas não controlam sua própria atividade produtiva ou o que produzem, mas são, em última análise, dominadas pelos resultados dessa atividade. Essa forma de dominação é expressa como oposição entre indivíduos e sociedade, constituída como uma estrutura abstrata. A análise de Marx dessa forma de dominação é uma tentativa de basear e explicar o que, nos seus primeiros textos, ele chamou de alienação. Sem entrar numa discussão extensa da relação entre os primeiros textos de Marx e sua teoria crítica posterior, tentarei mostrar que ele não abandonou todos os temas centrais das suas primeiras obras, mas que alguns – por exemplo, a alienação – continuam centrais na sua teoria. De fato, foi somente nas suas obras tardias que Marx fundamentou rigorosamente a posição que apresenta em Manuscritos econômico-filosóficosa saber, que a propriedade privada não é a causa social, mas a consequência do trabalho alienado e que, portanto, a superação do capitalismo não deve ser concebida apenas em termos da abolição da propriedade privada, mas deve resultar na superação desse trabalho41. Na sua obra tardia ele apoia essa posição com a análise do caráter específico do trabalho no capitalismo. Ainda assim, essa análise traz também uma modificação da noção anterior de alienação. A teoria da alienação, sugerida pela teoria crítica madura de Marx, não se refere ao estranhamento do que existia antes como uma propriedade dos trabalhadores (e que, portanto, devia ser reclamado por eles); pelo contrário, ela se refere a um processo de constituição histórica dos poderes e conhecimento sociais que não pode ser entendido com referência aos poderes e habilidades do proletariado. Com a sua categoria do capital, Marx analisou como são constituídos esses poderes e conhecimento sociais em formas objetivadas que se tornam quase independentes dos indivíduos que as constituem, e que sobre eles exercem uma forma de dominação social abstrata.
O processo de dominação estrutural autogerada não pode ser completamente entendido em termos de exploração e dominação de classe nem em termos estáticos, não direcionais e “sincrônicos”. A forma fundamental de dominação social que caracteriza a sociedade moderna, aquela que Marx analisou em termos de valor e capital, é a que gera uma dinâmica histórica além do controle dos indivíduos que a constituem. Um objetivo central da análise de Marx da especificidade do trabalho na sociedade capitalista é explicar essa dinâmica; não apenas uma teoria da exploração, ou do funcionamento da economia restritivamente entendida, a teoria crítica do capital de Marx é uma teoria da natureza da história da sociedade moderna. Ela trata essa história como socialmente constituída e, ainda assim, como tendo uma lógica quase autônoma de desenvolvimento.
Essa discussão preliminar implica uma compreensão da superação da alienação muito diferente daquela postulada pelo marxismo tradicional. Ela sugere que Marx considerava o modo industrial de produção desenvolvido sob o capitalismo e a dinâmica histórica intrínseca dessa sociedade como características da formação social capitalista. A negação histórica dessa formação social resultaria na abolição do sistema historicamente dinâmico de dominação abstrata, e do modo capitalista de produção industrial. Da mesma forma, a teoria desenvolvida sobre a alienação implica que Marx via a negação do núcleo estrutural do capitalismo como aquilo que permite a apropriação pelo povo dos poderes e conhecimento historicamente constituídos de forma alienada. Essa apropriação resultaria na transcendência material da separação anterior entre o indivíduo diminuído e empobrecido e o conhecimento produtivo geral alienado da sociedade pela incorporação do último no primeiro. Isso permitiria que o “mero trabalhador”42 se tornasse o “indivíduo social”43 – aquele que incorpora conhecimento e potencial humanos inicialmente desenvolvidos em forma alienada.
A noção do indivíduo social expressa a ideia de Marx de que a superação do capitalismo resulta na superação da oposição entre indivíduo e sociedade. Conforme essa análise, tanto o indivíduo burguês quanto a sociedade como um todo abstrato que confronta os indivíduos foram constituídos quando o capitalismo suplantou as formas anteriores de vida social. Mas, para Marx, superar essa oposição não resulta na subsunção do indivíduo sob a sociedade nem na sua unidade não mediada. A crítica marxiana da relação entre indivíduo e sociedade não é, como geralmente se admitiu, limitada a uma crítica do indivíduo burguês isolado e fragmentado. Assim como Marx não criticou o capitalismo do ponto de vista da produção industrial, ele não avaliou positivamente a coletividade, de que todas as pessoas são parte, como o ponto de vista do qual criticar o indivíduo atomizado. além de relacionar a constituição do indivíduo monadário com a esfera de circulação de mercadorias, Marx também analisa o meta-aparato em que as pessoas são meras engrenagens como característico da esfera da produção determinada pelo capital44. Essa coletividade não representa a superação do capitalismo. Então, a oposição entre o indivíduo atomizado e a coletividade (como uma espécie de “supersujeito”) não representa a oposição entre o modo de vida social no capitalismo e na sociedade pós-capitalista; pelo contrário, é uma oposição entre duas determinações unilaterais da relação entre indivíduo e sociedade que, juntas, constituem mais uma antinomia da formação social capitalista.
Para Marx, o indivíduo social representa a superação dessa oposição. Essa noção não se refere apenas a uma pessoa que trabalha comunal e altruisticamente com outras pessoas; pelo contrário, ela expressa a possibilidade de todas as pessoas existirem como seres plenos e amplamente desenvolvidos. Uma condição necessária para a realização dessa possibilidade é ser o trabalho de cada um completa e positivamente autoconstituinte de formas que correspondam a riqueza, diversidade, poder e conhecimento gerais da sociedade como um todo; o trabalho individual não seria mais a base fragmentada da riqueza da sociedade. Superar a alienação resulta não na reapropriação de uma essência que existiu antes, mas na apropriação do que foi constituído de forma alienada.
Até aqui, essa discussão implica que Marx via o trabalho proletário como expressão materializada do trabalho alienado. Essa posição sugere que, na melhor das hipóteses, se o trabalho concreto de cada um continua o mesmo que era sob o capitalismo, seria ideológico afirmar que a emancipação do trabalho se realiza quando se abole a propriedade privada e as pessoas têm uma atitude coletiva e socialmente responsável com relação ao seu trabalho. Pelo contrário, a emancipação do trabalho pressupõe uma nova estrutura de trabalho social; na estrutura da análise de Marx, o trabalho só pode ser constitutivo do indivíduo social quando o potencial das forças produtivas de uma forma que revolucione completamente a organização do próprio processo de trabalho. As pessoas devem ser capazes de se retirar do processo de trabalho imediato em que antes atuavam como pecas, e controlá-lo de cima. O controle do “processo natural, que ele converte em um processo industrial”45, tem de estar disponível não somente para a sociedade como um todo, mas também a todos os seus membros. Uma condição material necessária para o completo desenvolvimento de todos os indivíduos é que “deixou de existir [...] o trabalho no qual o ser humano faz o que pode deixar as coisas fazerem por ele”46.
A noção de Marx da apropriação pela “massa de trabalhadores [...] de seu próprio trabalho excedente”47 resulta em um processo de autoabolição como um processo de autotransformação material. Longe de levar a realização do proletariado, a superação do capitalismo envolve a abolição material do trabalho proletário. A emancipação do trabalho exige a emancipação em relação ao trabalho (alienado).
No curso das nossas investigações, veremos que o capitalismo, na análise de Marx, é uma formação social em que a produção social se faz em nome da produção, enquanto o indivíduo trabalha para consumir. Minha discussão, até aqui, imaginou sua negação como uma formação social em que a produção social é para o consumo, ao passo que o trabalho do indivíduo é feito em nome dele mesmo48.”
37 Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política (trad. Mario Duayer e Nelio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 705.
38 Karl Marx, O capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), Livro I, p. 412-3, 423, 434 -5 ,438-41 ,494.
39 Idem, Grundrisse, cit., p. 591.
40 Idem, O capital, cit., Livro I, p. 338, 574.
41 Idem, Manuscritos econômico-filosóficos (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 85. Uma discussão mais abrangente sobre a relação entre os primeiros manuscritos de Marx e suas obras posteriores mostrará que muitos outros temas dos primeiros (por exemplo, as relações entre pessoas e natureza, entre mulheres e homens, entre trabalho e diversão) continuam implicitamente centrais nos últimos, ainda que transformados pela sua análise do caráter historicamente específico do trabalho no capitalismo.
42 Idem, Grundrisse, cit., p. 591.
43 Ibidem, p. 705.
44 Idem, O capital, cit., Livro I, p. 428-30, 493-4, 554-5.
45 Idem, Grundrisse, cit., p. 588.
46 Ibidem, p. 255.
47 Ibidem, p. 590-1.
48 Como discutirei no Capítulo 9, é importante distinguir duas formas de necessidade e liberdade na análise de Marx do trabalho social. Ele ter pensado que o trabalho social numa sociedade futura pudesse ser estruturado de forma a ser satisfatório e agradável não significa, como já vimos, que ele considerasse que esse trabalho pudesse ser divertimento. A noção de Marx sobre o trabalho não alienado é ele ser livre de relações de dominação social direta ou abstrata; ele pode tornar-se uma atividade de autorrealização, portanto, mais semelhante a uma diversão. Ainda assim, essa liberdade da dominação não implica liberdade de todas as restrições, pois para sobreviver toda sociedade humana exige alguma forma de trabalho. Que o trabalho nunca será uma esfera de liberdade absoluta, não significa que o trabalho não alienado seja tão sem liberdade da mesma forma e no mesmo grau que o trabalho restringido pelas formas de dominação social. Em outras palavras, ao negar que a liberdade absoluta possa existir no reino do trabalho, Marx não estava revertendo a oposição indiferenciada do trabalho a liberdade e felicidade, conforme Adam Smith (ver Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 509-10).
Está claro, evidentemente, que todo trabalho unilateral e fragmentado não poderá ser abolido imediatamente com a superação do capitalismo. Ademais, é concebível que uma parte desse trabalho nunca poderá ser completamente abolido (embora o tempo necessário possa ser drasticamente reduzido, e essas tarefas alternadas entre a população).


“Então, com relação a estrutura do trabalho social, a contradição marxiana deve ser entendida como contradição crescente entre o tipo de trabalho que as pessoas executam sob o capitalismo e o tipo de trabalho que poderiam executar se o valor fosse abolido e o potencial produtivo desenvolvido sob o capitalismo fosse usado reflexivamente para libertar as pessoas do domínio das estruturas alienadas constituídas por seu próprio trabalho.”


“Essa exposição preliminar da noção marxiana de alienação e da contradição do capitalismo indica que sua análise busca apreender o curso do desenvolvimento do capitalismo como possuidor de duas faces de enriquecimento e empobrecimento. Ela implica que esse desenvolvimento não pode ser entendido adequadamente de modo unidimensional, seja como o progresso do conhecimento e felicidade, seja como o “progresso” da dominação e destruição. De acordo com a sua análise, apesar da emergência da possibilidade histórica de que o modo de trabalho social possa ser enriquecedor para a maioria, o trabalho social se tornou efetivamente empobrecedor para a maioria. Portanto, o rápido crescimento do conhecimento científico e tecnológico sob o capitalismo não significa o progresso linear em direção a emancipação. De acordo com a análise de Marx de mercadoria e capital, esse conhecimento aumentado, socialmente constituído, levou a fragmentação e ao esvaziamento do trabalho individual e ao controle crescente da humanidade pelos resultados da atividade objetivante; apesar disso, ele também aumentou a possibilidade de o trabalho ser individualmente enriquecedor e de a humanidade exercer um controle maior sobre o seu destino. Esse desenvolvimento bipolar está enraizado nas estruturas alienadas da sociedade capitalista e pode ser superado. A análise dialética de Marx não deve ser de forma alguma identificada com a fé positivista no progresso científico linear e no progresso social, ou na correlação dos dois.
Assim, a análise de Marx implica uma noção da superação do capitalismo que não resulte na afirmação acrítica da produção industrial como a condição do progresso humano nem na rejeição romântica do progresso tecnológico per se. Ao indicar que o potencial do sistema de produção desenvolvido sob o capitalismo poderia ser usado para transformar o próprio sistema, a análise de Marx supera a oposição entre essas duas posturas e mostra que cada uma delas toma como a totalidade o que é apenas um momento de um desenvolvimento histórico mais complexo. Ou seja, a abordagem de Marx capta a oposição entre a fé no progresso linear e a rejeição romântica como expressão de uma antinomia que, nos seus dois termos, é característica da época capitalista52.
De modo mais geral, sua teoria crítica não se coloca a favor de simplesmente reter tampouco a favor de abolir o que foi constituído historicamente no capitalismo. Pelo contrário, sua teoria ressalta a possibilidade de que aquilo que foi constituído de forma alienada seja apropriado, e assim transformado fundamentalmente.”
50 O argumento de que a contradição primaria do capitalismo é, para Marx, estrutural e não se refere simplesmente ao antagonismo social foi proposto também por Anthony Giddens. Mas ele a localiza entre a apropriação privada e produção socializada, ou seja, entre as relações burguesas de distribuição e a produção industrial: ver Anthony Giddens, Central Problems in Social Theory (Berkeley, University of California Press, 1979), p. 135-41. Minha leitura dos Grundrisse justifica uma interpretação muito diferente.
52 Karl Marx, O capital, cit., Livro I, p. 513-4, 719s.


“A diferença entre as duas formas de crítica também fica evidente nas maneiras como concebem a forma fundamental de dominação social característica do capitalismo. A crítica social do ponto de vista do “trabalho” entende aquela forma de dominação essencialmente em termos de dominação de classe, arraigada na propriedade privada dos meios de produção; entretanto, a crítica social do trabalho no capitalismo caracteriza a forma mais fundamental de dominação naquela sociedade como uma forma estrutural abstrata e impessoal de dominação ocultada sob a dinâmica histórica do capitalismo. Esta abordagem coloca a base daquela forma de dominação nas formas sociais historicamente específicas do valor e do trabalho que produz valor. Esta última leitura da teoria crítica do capitalismo de Marx fornece a base de uma crítica de longo alcance da dominação abstrata – da dominação das pessoas pelo seu trabalho — e, num significado associado, de uma teoria da constituição social de uma forma de vida social caracterizada por uma dinâmica direcional intrínseca. Mas, nas mãos do marxismo tradicional, a crítica é achatada e reduzida a uma crítica do mercado e da propriedade privada que projeta no socialismo a forma de trabalho e o modo de produção característicos do capitalismo. O desenvolvimento do “trabalho”, de acordo com a teoria tradicional, atingiu o seu ponto final histórico com a produção industrial; uma vez que o modo industrial de produção seja libertado dos grilhões do mercado e da propriedade privada, o “trabalho” se realizará como o princípio constitutivo quase natural da sociedade.
Como já observado, a crítica do marxismo tradicional e a da burguesia nascente compartilham uma noção de progresso histórico que, paradoxalmente, é um movimento em direção ao “naturalmente” humano, em direção a possibilidade de que o ontologicamente humano (por exemplo, Razão, “trabalho”) vá se realizar e prevalecer sobre a artificialidade existente. Sob este aspecto, a crítica baseada no “trabalho” está aberta a crítica de Marx dirigida ao pensamento iluminista em geral e a economia política clássica em particular:
Os economistas procedem de um modo curioso. Para eles, há apenas dois tipos de instituições, as artificiais e as naturais. As instituições do feudalismo seriam artificiais, ao passo que as da burguesia seriam naturais. [...] Desse modo, houve uma história, mas agora não há mais.82
O que é visto como instituição natural, evidentemente, não é a mesma coisa para “os economistas” e os marxistas tradicionais. Mas a forma do pensamento é: os dois naturalizam o que é socialmente constituído e historicamente específico e veem a história como um movimento em direção a realização do que consideram “naturalmente humano”.
Como já vimos, interpretações das relações determinantes do capitalismo em termos do mercado autorregulado e da propriedade privada dos meios de produção se baseiam numa interpretação do que seja a categoria marxista do valor que permanece presa à estrutura da economia política clássica. Consequentemente, essa forma de teoria social crítica — a crítica social do ponto de vista do “trabalho” – permanece presa a essa estrutura. Sob certos aspectos, ela é sem dúvida diferente da economia política: por exemplo, ela não aceita como final o modo burguês de distribuição e o coloca historicamente em discussão. Ainda assim, a esfera da distribuição continua sendo o toco do seu interesse crítico. Enquanto a forma do trabalho (portanto, da produção) é o objeto da crítica de Marx, um “trabalho” não estudado é, para o marxismo tradicional, a fonte trans-histórica da riqueza e a base da constituição social. O resultado não é uma crítica da economia política, mas uma economia política crítica, ou seja, uma crítica apenas do modo de distribuição. Trata-se de uma crítica que, em termos do seu tratamento do trabalho, merece o nome de “marxismo ricardiano”83. O marxismo tradicional substitui a crítica de Marx do modo de produção e distribuição por uma crítica apenas do modo de distribuição, e sua teoria da autoabolição do proletariado por uma teoria da realização do proletariado. A diferença entre as duas formas de crítica é profunda: o que na análise de Marx é o objeto central da crítica do capitalismo transforma-se para o marxismo tradicional na base social da libertação.”
81 Karl Marx, O capital, cit., Livro I, p. 574.
82 Ibidem, nota 33, p. 156.
83 Para uma crítica extensiva do que ele denomina de “ricardianismo de esquerda”, ver Hans Georg Backhaus, “Materialien zur Rekonstruktion der Marxschen Werttheorie”, Gesellschaft: Beiträge zur Marxschen Theorie, Frankfurt, Suhrkamp, n. 1 (1974), 3 (1975) e 11 (1978).

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