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quarta-feira, 27 de março de 2019

A ilusão neoliberal (Parte IV), de René Passet

Editora: Record

ISBN: 978-85-0106-107-2

Tradução: Clóvis Marques

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 370

Sinopse: Ver Parte I


 

Uma primeira lição da destruição criadora é que não devemos confundir a durabilidade das coisas com a das funções. O que precisa ser preservado são as funções. Só o que evolui pode manter-se: ao nível do corpo, a renovação das células garante a preservação das funções vitais. Em última análise, a própria morte representa um truque da vida, pois assegura o movimento de rejuvenescimento permanente graças ao qual esta pode manter-se, conservando seu dinamismo. Pretender estabilizar as coisas em todos os níveis – do planeta durável a meu bairro e a minha casa duráveis – é fazer com que nada o seja. Congelar tudo num mundo que se movimenta permanentemente é a melhor maneira de fazer com que tudo soçobre. É pela transformação das coisas que podemos assegurar a perenidade das funções.

Uma segunda lição da destruição criadora reside numa exigência de memória. Se só o que muda pode ser preservado, devemos acrescentar que só o que comporta um mínimo de invariantes pode mudar. Essas invariantes, transmitidas através do tempo, constituem a memória das coisas, ou seja, sua identidade. Na sua ausência, não é de mudança dos sistemas que devemos falar, mas de seu desmoronamento e de seu desaparecimento. A cidade, por exemplo, está enraizada no tempo, e as marcas do tempo escrevem sua história construindo algo que não devemos hesitar em chamar – pois se trata de uma estrutura viva – de seu caráter e sua personalidade. Está aí toda a diferença entre a verdadeira cidade humana e a fria acumulação de casas habitáveis. Não é possível entender o presente sem fazer reviver o passado. É pela memória que as gerações de ontem e as de hoje continuam a formar uma mesma comunidade. Harmonizar a mudança e a permanência vem a ser toda a arte de uma política de desenvolvimento durável.”

 

 

“A globalização, como fato concreto, não pode ser questionada, mas sim a política de desregulamentação e liberalização a toda prova aplicada a partir dos anos sob o impulso da dupla Reagan-Thatcher.

Não se trata de contestar a existência do mercado, instrumento insubstituível de criatividade individual e espaço de múltiplos centros de decisão cuja pluralidade condiciona a capacidade de adaptação e a estabilidade dos sistemas, mas de pôr fim ao reinado da economia mercantil sobre o conjunto da sociedade; no próprio ideário dos grandes autores liberais, nenhum mercado pode existir sem um enquadramento institucional e regulamentar – um direito dos contratos, por exemplo; a questão diz respeito à natureza do enquadramento jurídico que preserva as virtudes do mercado ao mesmo tempo em que reprime seus defeitos.

O liberalismo de que se paramentam os defensores do sistema não tem muito a ver no caso; ele camufla uma tentativa de apropriação da renda produzida pelo conjunto da nação.

Pareceu-nos que o nó górdio de nossos problemas reside na ascendência de uma finança que impõe sua lógica às empresas e aos Estados, deslocando o poder de decisão da esfera política para a dos grandes interesses privados mundiais e invertendo a lógica social a ponto de fazer dela surgir exatamente o inverso do que se poderia esperar.

Sob este ângulo, o problema é, portanto, triplo: trata-se de controlar os abusos da finança, reconquistar em proveito da esfera pública – vale dizer, dos cidadãos – o poder confiscado por aqueles que o próprio CNUCED chama de “novos senhores do mundo” e explorar da melhor maneira possível a dimensão positiva do movimento de destruição criadora que conduz as economias.”

 

 

“O que está em causa é a especulação sob todas as suas formas, a corrida produtivista desencadeada pela esfera financeira e estimulada pelas modalidades de taxação pública, a lavagem do dinheiro sujo que não seria possível sem a cumplicidade da esfera econômica “limpa”. Não existe portanto uma panaceia neste terreno: o controle da finança não é apenas um problema de finanças, mas também de sociedade.

 

Para controlar os abusos especulativos, a taxa Tobin é uma medida emblemática, mas parcial. Nem toda especulação, como vimos, é perversa, mas logo desemboca em puros “jogos de cassino”, alimentando um exército de parasitas que nada produzem, nada criam e permitem apenas o acúmulo de direitos à partilha do PIB em favor dos detentores de capitais e em detrimento dos outros atores da economia.

Contra tais abusos, o mínimo que se pode exigir dos defensores do sistema seria que se mostrassem fiéis a si mesmos, aplicando os princípios elementares da economia liberal: transparência, enrijecimento das regras de prudência (como a obrigação de depositar uma parte importante dos valores empenhados numa operação especulativa26), reforço das taxas bancárias (taxa Cooke27), desenvolvimento da avaliação de riscos (modelos do tipo Morgan28), reforço da vigilância dos mercados financeiros e bancários, acordos e cooperação internacionais, como na época dos acordos do Plazza (1985) e do Louvre (1987) e tal como se aplica empiricamente ao nível do G7 ou do G8. Quem deixaria de apoiar tais medidas?... Talvez unicamente alguns eminentes defensores da economia de mercado, na qual, no entanto, elas se inspiram. Mas tais medidas não seriam suficientes.

A “taxa Tobin”29 tem como objetivo contrariar o jogo especulativo de curta duração sem travar os movimentos da economia real. O princípio é conhecido. Trata-se da cobrança de uma taxa extremamente modesta

– da ordem de 0,1 a 0,5% (1 a 5 por mil) – a ser efetuada sobre toda transação envolvendo divisas. Seu objetivo seria reduzir a volatilidade das taxas de câmbio, contrariando certas formas de especulação, sem afetar os investimentos ou as trocas reais. É preciso lembrar que os “jogos de cassino” antecipam diferenciais de cotações de alguns milésimos de ponto e envolvem massas de capitais consideráveis trocadas várias vezes em prazos muito exíguos: 80% dessas trocas são idas-e-voltas essencialmente especulativas, de duração inferior a uma semana e às vezes a vinte e quatro horas. Tomando-se como base 240 dias úteis por ano, uma taxa de 0,1% cobrada toda vez que for feita uma dessas transações representa um índice anual de 48% em caso de ida-e-volta diária, de 10% tratando-se de movimentação semanal e de 2,4% se for mensal.

Em compensação, uma transação comercial pagará a taxa uma única vez. No caso dos capitais, o encargo anual representará em caso de aplicação por um ano e cairá em função da duração até 0,02% em caso de aplicação por cinco anos. Como as taxas variam em função inversa da duração das operações, as transações comerciais internacionais ou os investimentos produtivos não seriam afetados. (...)

Como escreve Bernard Cassen, a adoção de uma taxa desta natureza “sancionaria o retorno do político. [...] O fato de os dirigentes eleitos e os governos tratarem de taxar a especulação sobre as moedas significaria que voltam a se firmar e julgar ter sua palavra a dar na esfera financeira. Um perigoso precedente. [...] É efetivamente seu caráter emblemático que deixa em transe os liberais”.”

26: “A gigantesca especulação que constatamos”, afirma Maurice Allais, “só é possível porque se pode comprar sem pagar e vender sem deter”, in “La mondialisation, le chômage...”, art. cit.

27: A taxa Cooke obriga os estabelecimentos bancários a respeitar uma certa proporção entre seus fundos próprios e seus compromissos.

28: Trata-se de um modelo de avaliação de riscos que J. -P Morgan pôs gratuitamente à disposição de seus pares, para sensibilizá-los para os riscos reais dos produtos derivados.

29: François Chesnais, Tobin or not Tobin, L’Esprit frappeur, Paris, 1999.

 

 

“Temos então o acionista exercendo o poder supremo. Não se trata, naturalmente, do pequeno poupador que ao fim de toda uma vida de trabalho extrai alguns rendimentos do capital modesto que conseguiu juntar. No momento em que a empresa assume mais que nunca uma dimensão social, tanto pela natureza dos fatores que determinam seu desempenho quanto pelas consequências de suas atividades, é precisamente seu componente mais acanhado, mais obtuso, mais distante das coisas da vida e mais ignorante do que significa o ato de produção que assume o seu controle. Os diretores-presidentes mais pomposos são incumbidos de prestar contas aos representantes dos fundos de pensão, explicar, justificar sua estratégia... E se não são capazes de convencer, são dispensados sem contemplação, como ocorreu com o presidente da IBM em 1993, o da Kodak em 1995, o da Compaq em 1999 e muitos outros... Não é preciso muito mais para entender a consideração devida pelo poder do dinheiro àqueles de que se serve. Por experiência, o empresário tradicional – que tampouco deve ser idealizado – sabia que para produzir é necessário combinar realidades diversas, materiais, humanas, financeiras... Tinha isto em comum com os trabalhadores que empregava. Pois hoje ele se apaga diante dos homens da contabilidade, que só conhecem a realidade dos números.”

 

 

“O espaço mundial, entendido como um simples espaço de livre-troca, revelou-se o lugar de todos os dumpings e todas as dominações. A liberdade das trocas só tem sentido entre nações com nível de desenvolvimento econômico e social comparável. Caso contrário, permite as distorções de concorrência ligadas à não-integração dos custos sociais ou ambientais aos preços praticados pelos menos desenvolvidos (dumping social e dumping ecológico), enquanto se exercem em sentido inverso os efeitos de dominação e os “controles de estruturas” dos poderosos sobre os fracos, evidenciados nos anos do pós-guerra pelo economista francês François Perroux.”

 

 

“Todo atraso tecnológico condena à dependência.”

 

 

“Seria necessário atacar os problemas “no coração”. Enquanto uma lógica de eficácia monetária e rendimento financeiro a curto prazo continuar a impor sua lei às sociedades, enquanto a cooperação entre as nações, o controle dos desvios mercantis e a organização institucional do espaço internacional não permitirem o restabelecimento da hierarquia legítima das finalidades e meios, nada de decisivo poderá sair de qualquer das acumulações de medidas específicas que costumam ser adotadas. Portanto, é aí que se encontram as prioridades; mas isto não nos dispensa de atacar diretamente cada uma das formas do que já definimos como “perversão da promessa”. Realizar esta promessa significa, portanto:

– restabelecer a caminhada para a reaproximação dos povos;

– devolver ao progresso técnico seu sentido de libertação dos homens;

– favorecer o acesso de todos à partilha do produto comum.

Quanto ao respeito dos organismos vivos, já deixamos, claro que o consideramos uma prioridade.”

 

 

“Entretanto, a ajuda internacional, ainda que insuficiente, pode dar origem a dívida cujo aumento constante – pelo jogo dos juros que se somam automaticamente ao capital – cria um círculo vicioso que os obriga a estar permanentemente galgando o eterno rochedo de Sísifo. Deste ponto de vista, Eric Toussaint8, presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), chama a atenção para o absurdo da situação atual, na qual todo ano os países do terceiro mundo reembolsam 200 bilhões de dólares às instituições internacionais e aos países ricos, recebendo apenas 48 bilhões, no total das ajudas públicas.

Temos uma grande parte de responsabilidade nesta situação. Se as instituições internacionais, os países industrializados e os bancos privados favoreceram até o fim dos anos 70 uma política de empréstimos a juros baixos e às vezes negativos, incitando os países do Sul a se endividarem, foi para estimular as exportações do mundo industrializado. A crise do endividamento do terceiro mundo a partir de 1982 foi gerada pela alta das taxas de juros decidida pelo banco federal dos Estados Unidos, assim como pela queda das rendas de exportação e a suspensão dos empréstimos bancários, como se se quisesse quebrar a propulsão de seu desenvolvimento industrial.

Somos nós que perpetuamos o problema. Os “planos de ajuste estrutural” que o FMI, o Banco Mundial, os governos do Norte (reunidos no Clube de paris) e os bancos privados (Clube de Londres) atrelam a seus empréstimos traduzem-se na aceleração das privatizações, na redução dos gastos sociais, na desregulamentação do mercado de trabalho, produzindo desemprego (23 milhões de empregos sacrificados no Sudeste asiático desde o início da crise de 1997) e pobreza crescente. Esses países são obrigados a sacrificar ao serviço e ao pagamento da dívida a formação de um capital produtivo e de infraestrutura (transportes, energia, educação, saúde...) que constituem a base essencial de qualquer desenvolvimento. E quando o Banco Mundial passou a preocupar-se com estruturas, foi, até agora, para obrigar os países em desenvolvimento a sacrificar suas culturas de produção de víveres em nome das culturas de exportacão, ou ainda para apoiar projetos de grandes represas (Inga no antigo Zaire, Narvada na Índia) e vias de comunicação (Transamazônica no Brasil) que se revelaram catástrofes ecológicas e econômicas.

O pagamento da dívida e dos juros repousa na exportação de matérias-primas (petróleo, gás, minerais sólidos, borracha, açúcar...) cujas taxas de troca se degradam (entre 15 e 45% em 1998) e no recurso a novos empréstimos cujas taxas (10 a 15% no Brasil, no México, na Argentina, na Tailândia) são muito superiores às cobradas nos países industrializados (3 a 5%) – exigências da lógica financeira. De tal modo que entre 1982 e 1998 os países do terceiro mundo pagaram quatro vezes o montante de sua dívida externa, que no entanto era multiplicada por quatro no mesmo período. Em 1997, ela chegava a 1,950 trilhões de dólares, excetuados os países do Leste. Já não é assistência, mas estrangulamento.

A anulação geral desta dívida se impõe, começando imediatamente pelos 300 bilhões de dólares que correspondem aos atrasados impossíveis de pagar dos países pobres mais endividados, e o desenvolvimento de uma política de ajuda pública internacional orientada particularmente para o financiamento dos investimentos em infraestrutura econômica e social não imediatamente rentáveis.”

8: Eric Toussaint’ “Briser la spirale infernale de la dette”, Le Monde diplomatique, setembro de 1999. Nosso raciocínio a este respeito deve muito a este artigo. Ver também seu livro La Bourse ou la vie. La finance contre les peuples – Luc Pire (Bruxelas) – Syllepse (Paris) – Cétim (Genebra), 1998.

 

 

“O mais belo resultado da política neoliberal foi incontestavelmente a Inglaterra de Margaret Thatcher. (...)

O balanço de dezesseis anos de flexibilidade conservadora não poderia ser mais eloquente (Thatcher e John Major):

– uma taxa de crescimento anual média de 1,6% desde 1979, a menor dos sete grandes países industrializados, apesar dos rendimentos extraídos do petróleo do Mar do Norte;

– o índice de criação de empregos mais lento de todos os países da União Europeia; os êxitos ostentados depois de 1993 serviram apenas para compensar a perda de 1.600.000 postos provocada entre 1990 e 1993 por esta mesma política, chegando em 1995 a um nível (25.500.000) pouco superior ao de 1979 (25.000.000);

– uma política favorável aos mais favorecidos, cuja carga fiscal é aliviada, e dura com os mais destituídos; empregos pouco qualificados, mal remunerados, multiplicação dos working poor, proteção social enfraquecida e uma sociedade em decomposição na qual um terço das crianças vivem em famílias nas quais nenhum adulto tem um emprego; um milhão de pessoas – entre as quais 800.000 mulheres – ganhando menos de 2,5 libras (23 francos) por hora em trabalhos frequentemente de tempo parcial; desigualdades que se agravam, portanto;

– um aparelho produtivo arruinado: um capital que envelhece, o de idade mais elevada do G7 (doze anos em média, contra sete nos Estados Unidos e cinco no Japão), assalariados pouco qualificados, investimentos insuficientes, uma produtividade medíocre, uma aparência de competitividade mantida apenas através de salários baixos associados a uma duração do trabalho mais longa que na maioria dos países concorrentes28; alguns dos maiores orgulhos da indústria – Rover (automóveis), GEC-Plessey (equipamentos de telecomunicações), ICL (informática) – e dos bancos de investimentos (Níorgan Grenfeld, SG Warburg, Barings) vendidos a grupos estrangeiros; apenas sete empresas britânicas entre as quinhentas maiores do mundo segundo a Fortune.

A flexibilidade traduz, antes de mais nada, a inversão da relação de forças em proveito dos empregadores, questionando a sociedade de bem-estar derivada dos “Trinta Gloriosos”, substituindo-a por uma sociedade de precariedade que será difícil fazer com que aceitemos como modelo. Ela é exercida sob pressão das remunerações praticadas nos países menos desenvolvidos, mas também – e talvez sobretudo – sob o efeito da competição entre países ricos: as empresas japonesas encontram cada vez maior dificuldade para manter a tradição do emprego vitalício, tendo de enfrentar a concorrência de suas equivalentes americanas que praticam a flexibilidade do emprego e dos salários. Em todos os casos, naturalmente, o ajuste é feito para baixo. A ênfase exclusiva no custo dos recursos humanos tem como efeito reduzir cada um dos elementos que interferem na partilha do excedente de produtividade – volume de trabalho, salário, financiamento social – em concorrência com a parte do capital financeiro. É este, com efeito, como já vimos, o resultado obtido, e é esta, sem qualquer dúvida, a finalidade inconfessada desta política.”

28: Sobre todos estes pontos, ver Richard Farnetti, Le Royaume désuni, Syros, col. “Alternatives économiques”, Paris, 1995.

 

 

A questão da idade da aposentadoria enquadra-se nesta mesma lógica. Indo ainda mais longe que as recomendações do relatório Charpin34, segundo o qual o equilíbrio financeiro do sistema exigiria elevar a duração da contribuição de 37,5 para 42,5 anos, certos dirigentes patronais – que nunca se fazem de rogados quando se trata de um “avanço” social – sugerem uma duração de 45 anos; uma aura de pudor é que certamente os impede de ir até o fim de sua lógica, que consistiria em esperar a data da declaração de óbito do beneficiário. É invocada a demografia: o fim do baby-boom, conjugado ao aumento da expectativa de vida, provocaria um grave desequilíbrio na relação dos aposentados com as “pessoas de idade ativa”, a qual, “numa ótica de viabilidade financeira, é determinante”; de 1995 a 2040, o peso relativo daqueles sobre estas se elevaria de 4 a 7 por 10 (ou + 75%); conclusão: “A situação financeira da maioria dos regimes encontra-se ameaçada [...] só um deslocamento da idade de fim de atividade” permitirá manter a atual relação de 4/10.

O argumento é rigorosamente idêntico ao que poderia ser sustentado no imediato pós-guerra, com respeito à tragédia alimentar que certamente teria ocorrido na França antes do fim do século: ao passo que em cinquenta anos a população do país passaria de 41 a 58 milhões de habitantes, as superfícies cultivadas diminuiriam em 20%, dois terços dos empreendimentos agrícolas desapareceriam e a população ativa agrícola cairia de 7,5 a 1,2 milhão de indivíduos, de modo que cada um deles teria de alimentar não mais 5,3, mas 48,3 pessoas. Um drama alimentar sem precedentes se abateria sobre nosso país. O argumento – evidente e límpido – estaria simplesmente esquecendo de levar em conta a multiplicação por vinte e oito, em um século, da produtividade horária do trabalhador agrícola.

A mesma omissão basta para aniquilar a demonstração que nos é impingida sobre a idade de aposentadoria. Se, segundo as estimativas da própria comissão, a produtividade do trabalho deve aumentar ao ritmo anual de 1,7% observado há vinte e cinco anos, a produção dos 10 ativos – permanecendo iguais as demais condições – terá dobrado entre 1995 e 2040, de modo que os 7 inativos de fim de período representarão, em relação ao ano inicial, o peso de 3,5 inativos; em vez de aumentar, a carga relativa terá diminuído 12,5%. Mas há ainda melhor: se este conceito de carga tem algum sentido, só a população efetivamente ocupada (e não a população “de idade ativa”) pode ser considerada produtiva, e o fardo a ser carregado estende-se ao conjunto da população desocupada: aposentados, naturalmente, mas também crianças, doentes, pessoas no lar. Neste caso, o aumento relativo de uma categoria da população é necessariamente compensado pelo recuo relativo de uma ou várias outras categorias; desse modo, o peso total da população desocupada em relação à população ocupada, passando de 1,63 em 1995 para 1,73 em 2040, aumentará apenas 6%, em vez de 75%. Melhor ainda, e sempre de acordo com os números do relatório – que não tira qualquer conclusão a respeito –, esta “carga” diminui até 2010 (- 14%), para voltar ao nível atual somente em 2030 – trinta anos de segurança! – e alcançar 106% de seu nível inicial apenas em 2040, o que, levando-se em conta o aumento da produtividade, situa o total real da carga em 53% de seu peso inicial.35

O único resultado – e certamente a única motivação – do relatório sobre a idade de aposentadoria seria, portanto, reduzir o montante das contribuições pagas aos beneficiários, para maior vantagem dos detentores do capital. Não resta dúvida de que há quem sinta saudades dessa época bendita e – que não está tão distante assim – em que, tendo contribuído durante toda a vida, o trabalhador tinha o bom gosto de desaparecer antes de ter abusado de seu direito de receber uma pensão: “Naquela época, meu senhor, as pessoas sabiam viver... e sobretudo morrer em tempo hábil.”

34: Projet de rapport sur les retraites, elaborado pela comissão presidida por Jean-Michel Charpin, comissário geral do Planejamento, 25 de março de 1999; salvo indicação em contrário, as citações que se seguem são extraídas desse texto.

35: Todos estes números foram extraídos do relatório ou estabelecidos com base em seus dados.

A ilusão neoliberal (Parte III), de René Passet

Editora: Record

ISBN: 978-85-0106-107-2

Tradução: Clóvis Marques

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 370

Sinopse: Ver Parte I


 

““Deem-me o moinho de vento e eu lhes darei a sociedade feudal”, dizia Marx. Pois hoje diríamos: “Deem-me o computador, a desregulamentação e a empresa financeira, e eu transformarei a aproximação dos povos em fratura, o alívio dos homens pela máquina em exclusão social e a gestão da natureza em destruição.”

 

 

“Onde quer que sejam reduzidas ou eliminadas as proteções, a situação do fraco se degrada em benefício do mais poderoso.”

 

 

“Individualmente, as 200 pessoas mais ricas do mundo viram seu patrimônio mais que duplicar entre 1995 e 1998, chegando nesse ano a 1 trilhão de dólares; e só para visualizar a situação, em 1993 o presidente da Walt Disney ganhava 203 milhões de dólares, o equivalente a 325.000 vezes o salário de um operário haitiano que trabalhava para sua empresa; em 1998, as três maiores fortunas do mundo superavam o PIB dos 600 milhões de habitantes vivendo nos 48 países mais pobres; os 15 maiores patrimônios eram mais elevados que os PIBs acumulados de toda a África subsaariana, enquanto as 84 pessoas mais ricas acumulavam riquezas superiores à produção anual de 1,2 bilhão de chineses. Será necessário comentar?

O atendimento das necessidades afasta-se dos objetivos do PNUD, segundo os quais todo homem deve poder atender a suas exigências mais elementares, definidas como acesso ao ensino primário, à saúde, alimentação com água potável, higiene pública, a vacinação de todas as crianças, a divisão por dois da mortalidade infantil, o livre acesso ao planejamento familiar e a eliminação dos casos graves de desnutrição. Em 1998, no entanto, 1,3 bilhão de indivíduos viviam com menos de 1 dólar por dia, 1 bilhão não conseguiam atender a suas necessidades elementares e 840 milhões sofriam de desnutrição. Segundo os especialistas, entretanto, o custo do programa acima mencionado representaria apenas 30 a 40 bilhões por ano, ou um terço das despesas militares dos países em desenvolvimento e 5% das despesas mundiais com armas, ou ainda 4% das riquezas acumuladas pelas 225 maiores fortunas do mundo.”

 

 

““Não se pode ter ao mesmo tempo o dinheiro do salário e a manteiga do pleno emprego”, é o que nos dizem. É preciso escolher:

– ou o salário é considerado irredutível, e neste caso é o volume do emprego que se adapta; seria este o caso da Europa continental;

– ou então o que se privilegia é o emprego, e o salário deve ceder; seria o caso dos países anglo-saxônicos.

Salário, proteção social, desemprego, por um lado, ou então, por outro, queda dos salários, empregos precários, biscates mas pleno emprego; duas modalidades de empobrecimento – seja por privação de trabalho, seja pelo próprio trabalho –, seria esta a escolha; como são bonzinhos de pelo menos nos darem a escolha!...”

 

 

Por toda parte, o sacrifício dos homens torna-se a maneira de assegurar o bom funcionamento da máquina econômica. A mudança das atitudes em relação às demissões é significativa.

Numa primeira etapa, estas são encaradas como sinal de fracasso das empresas, ou na melhor das hipóteses um sacrifício necessário para seu saneamento, devendo ser seguido de uma recuperação do dinamismo e do retorno ao pleno emprego: basta lembrar, até o início dos anos 80, dos estaleiros, da siderurgia...

Depois vemos surgir na indústria automobilística o anúncio simultâneo de bons resultados financeiros e de novas demissões para consolidar esses resultados. A prática se banaliza: no dia 8 de setembro de 1999, a Michelin anuncia simultaneamente um lucro líquido semestral em alta de 17,3% em relação ao semestre anterior e a eliminação de 7.500 postos de trabalho na Europa em três anos; no dia seguinte, a Bolsa comemora o feito com uma alta de 12,5% das ações do fabricante de pneus.

O desemprego torna-se, portanto, um meio de gestão. Entra para a lógica de um sistema que se torna sua própria finalidade e cujos resultados são avaliados em relação a “fundamentos” nos quais o recurso humano não tem lugar: “O direito ao trabalho e a proteção do meio ambiente tornaram-se excessivos na maioria dos países desenvolvidos. A livre troca vai reprimir alguns desses excessos, obrigando todos a se manterem competitivos”, declara o Prêmio Nobel Gary Becker, pai de uma “economia generalizada” segundo a qual toda lógica social é redutível a uma pura racionalidade econômica;39 “Temos vantagens demais”, confirma Didier Pineau-Valencienne (este “nós” é maravilhoso: nós temos vantagens demais, vocês precisam fazer sacrifícios); em nome do mesmo princípio, um corajoso capitão de indústria que qualquer um poderá identificar resiste às reivindicações de seus assalariados (1,5% de aumento teria bastado para acalmá-los) ao mesmo tempo em que dava discretamente a si mesmo um aumento de 49,5%; o vice-presidente da CNPF (hoje presidente do MEDEF) confirma no Figaro de 5 de maio de 1993 que “se não mudarmos os fundamentos sociais deste país, não conseguiremos operar a retomada da máquina”; fiel a si mesma, a OCDE demonstra que, para moderar as reivindicações salariais, “seria necessário um nível mais elevado de desemprego conjuntural”.40 Como se vê, acaba de nascer a teoria das demissões de competitividade.”

39: Para uma avaliação humorística das consequências de semelhante abordagem, permito-me remeter o leitor a meu livrinho Une économie de rêve, Calmann-Lévy, Paris, 1995.

40: A maioria dessas citações provêm de Régis Nérnoz, Le Vrai Visage du libéralisme, Trérna, La Sarraz, 1997.

 

 

“A prática francesa das stock-options mostra a que ponto pode chegar a aberração: 45,4 bilhões de francos de capital acionário concentrados em 28,000 executivos vinculados às 40 maiores empresas; os adeptos mais ardorosos da compressão dos custos salariais colocam-se acima de sua própria lei. Reproduziremos um comentário de um dos articulistas do Monde: “Será que o trabalho de um homem, patrão ou executivo, vale, por competência e especialização, treze mil vezes mais que o trabalho de outro homem?... O dinheiro enlouquece... Eis então que o capitalismo empresarial ficou completamente maluco, construindo a fortaleza dos abastados sobre o excesso, a indecência, a falta de consciência e o cinismo... e cavando no próprio interior das empresas uma sociedade de duas velocidades, de dois universos, os acionistas e o resto, os especuladores e os assalariados de base.” 60

60: Pierre Georges, “Golden cadres”, Le Monde, 10 de setembro de 1999.

 

 

“Nos Estados Unidos, a parcela do PIB destinada aos 5% mais favorecidos da população passou de 16,5% em 1974 para 21% em 1994, enquanto a dos mais pobres caía de 4,3 para 3,6%,62 desestimulando os menos motivados e orientando-os para a delinquência; a própria OCDE63 assinalava em 1996 que “desde o fim dos anos 60 cada um dos quatro quintos mais baixos [80% das famílias] na realidade contraiu-se em proveito dos 5% superiores do leque de rendas”. No Fórum de Davos de 1997, Lawrence Summers, o nº 2 do Tesouro americano – que dificilmente passaria, portanto, por um detrator sistemático do sistema –, declarou que uma criança negra que nasce hoje no Harlem tem uma expectativa de vida inferior à de uma criança nascida em Bangladesh, menos chances de ser escolarizada antes dos cinco anos que um bebê de Xangai e passará em média mais tempo na prisão que na universidade. (...)

Por toda a parte, registra o relatório 1997 da CNUCED, “os ricos tornam-se cada vez mais ricos” e – podemos acrescentar – a defasagem em relação aos mais pobres, cada vez mais considerável. Nos países mais ricos do mundo, uma pessoa em cada oito é afetada por pelo menos um dos critérios pelos quais se define a pobreza humana.65 Precariedade, desigualdade, pauperização... temos de reconhecer que o “bom andamento” do sistema repousa na infelicidade dos homens.”

62: Philippe Lemaitre, “La pauvreté en Europe comme aux États-Unis”, Le Monde, 18-19 de maio de 1997.

63: OCDE, Études économiques de l’OCDE, États-Unis, Paris, 1996.

65: “Ou seja: desemprego de longa duração, expectativa de vida inferior a sessenta anos, renda inferior ao limiar de pobreza do país em questão, insuficiência de conhecimentos que permitiriam sair desta situação.

 

 

“O culto dos meios, promovidos à condição de fins, provoca uma neutralização dos valores e utopias mobilizadoras, com temíveis consequências.

Quando o salário é baixo demais, muitos consideram que o ganho não merece o esforço requerido e se voltam para a viração ou a delinquência. Nos Estados Unidos, diz Rifkin, 2% dos homens em idade de trabalhar estão na cadeia68, em dez anos a população carcerária passou de 750.000 a 1.700.000, proporcionalmente sete vezes mais que na França; segundo o mesmo autor – que acompanhamos aqui com extrema prudência, dado o caráter quase mecânico da relação que estabelece –, um aumento de 1% do desemprego aumentaria os assassinatos em 6%, os crimes violentos em 3,4% e os assaltos a residências em 2,4%. Isto explica em parte, diz ele, os baixos índices de desemprego constatados nos Estados Unidos: os desempregados estão na prisão. “A prisão”, comenta o Prêmio Nobel de economia Robert Solow, “é o seguro-desemprego americano.”

A exclusão leva à revolta uma juventude sem futuro que não suporta mais a provocação permanente de uma publicidade que convida e incita a desfrutar de artigos de consumo dos quais muitos se veem afastados, por falta de formação, de emprego e de renda. Que exemplo, que apoio moral, que acompanhamento podem oferecer-lhes pais sem emprego, sem horário, deixando que tudo corra ao deus-dará? Em nome de que os marginalizados do crescimento haveriam de respeitar isto? Em nome do exemplo dado pelas “elites”? Em nome da “grana”, novo valor supremo? Mas se os valores unem e aproximam, a “grana”, de que cada um se apropria em detrimento do outro, divide e opõe os homens. (...)

Não bastará pintar as fachadas de rosa, mobilizar os jovens em campeonatos de futebol ou mandá-los tomar ar fresco no campo. Devolver a cada um a noção de sua própria dignidade e a esperança no amanhã é naturalmente uma conversa muito diferente.

Nos mais fracos, o sentimento de impotência ante um fenômeno que ultrapassa as iniciativas individuais provoca desânimo, fuga na droga em direção a paraísos artificiais; como enfiar a cabeça na areia... Por um lado, a lei do mercado arruína os agricultores dos países em desenvolvimento em nome da liberdade das cotações internacionais, condenando-os à reconversão: na mesma área, o cultivo da cocaína proporciona ao agricultor colombiano, com menos esforço, renda sete a dez vezes superior à que extrairia de colheitas tradicionais. Miséria dando duro ou riqueza fácil: quantos professores de virtude resistiriam à tentação? O cultivo de plantas ilegais surge onde quer que as rendas sejam baixas demais. No outro extremo, o desespero dos homens garante o recrutamento dos consumidores.

O culto aos meios, enfim, não pode satisfazer a necessidade de sentido que é própria da natureza humana. Esta necessidade às vezes exprime-se simplesmente na busca religiosa, perfeitamente respeitável quando por sua vez respeita a busca dos outros. A ressurgência do fenômeno é evidente em escala mundial, abrangendo todas as confissões. Mas a fórmula dos anos 60 – “modernizar o cristianismo, o islamismo ou o judaísmo” – assume às vezes a forma mais ambígua de “cristianizar, islamizar ou judaizar a modernidade”.

A busca de valores descamba também para o delírio, o sectarismo e a violência: integrismos, fanatismos e seitas. Já não há aqui reino de Deus e reino de César: este já não passa de instrumento da vontade atribuída àquele por militantes de olhar febril; já não há demarcação entre as consciências, onde as convicções individuais desabrocham livremente, e o Estado, cuja neutralidade garante esta liberdade: a força pública não passa do braço secular através do qual a instituição religiosa tritura consciências e corpos. Pela salvação das almas, naturalmente.”

68: Jeremy Rifkin, The End of Work, Tarcher/Putnam Books, Nova 1995.

 

 

“Dizem-nos – por falta de consciência ou desprezo – que de um aumento de liberalismo futuro surgirá a solução espontânea para os problemas gerados pelo liberalismo existente: a melhoria do nível de vida, o desenvolvimento, o emprego, o respeito às normas de trabalho, a preservação do ambiental; como se a questão do nível de vida não se colocasse hoje em termos de distribuição, mais que de produção; como se os menos desenvolvidos sofressem mais as consequências de uma carência de capitais privados do que do excesso de sua volatilidade; como se não lhes fizessem falta, sobretudo, capitais públicos e ajuda internacional, únicos capazes de assumir os investimentos de infraestrutura não imediatamente rentáveis; como se o problema do emprego não estivesse ligado ao confisco da renda pelos capitais privados, mais que a sua própria penúria; como se não fosse a busca prioritária do lucro que destruísse o meio ambiente. E quem vai acreditar, enfim, que é a liberação total dos apetites e não a lei, que garantirá o respeito às normas de trabalho?

“Liberalizem! Do resto cuidamos nós!” Nosso problema é exatamente inverso. Hoje são o homem, a natureza, a vida que se veem ameaçados pelos excessos do liberalismo. É preciso então inverter o procedimento e estabelecer como prioridade o respeito às normas fundamentais. Teremos assim delimitado, de um só golpe, o campo no qual o jogo dos interesses individuais poderá acontecer livremente. (...)

A primeira norma não é o capital, nem o lucro, nem a liberdade reduzida à do mercador, mas a pessoa, a solidariedade dos povos e das gerações, a vida, a biosfera, a liberdade pura e simples. Os valores socioculturais que fundamentam estes objetivos têm como corolário a supremacia da esfera política – expressão da escolha de sociedade livremente expressa pelos cidadãos – sobre o instrumento econômico.

Não se trata de filosofia, mas de teoria dos sistemas. Um sistema – vivo, por exemplo –constituído de níveis específicos só funciona corretamente se:

– estiver submetido aos imperativos de uma finalidade comum que transcenda as dos diferentes níveis (supremacia do político e da democracia);

– todos os níveis participarem da definição dessa finalidade e do funcionamento do conjunto, no respeito a especificidade de cada um, do elemento aos subsistemas e ao sistema como um todo (economia e sociedade “plurais”).”

 

 

“O bom funcionamento de um sistema pressupõe que todos os níveis participem da definição da finalidade comum e do controle do bom funcionamento do conjunto.

Como ninguém pode demonstrar a superioridade de seu sistema de referência, e como todos devem viver juntos, é necessário que cada um aceite a diferença do outro. O que em nada altera a força das paixões nem o ardor das convicções. Pluralidade das lógicas defrontadas, impossibilidade de reduzir o sistema a uma delas, necessidade de levar todas em conta em sua diversidade: temos aí os fundamentos do pluralismo e da democracia. Ao contrário do que pretendem os arautos do sistema estabelecido, é portanto a democracia, e não o mercado, que segue a natureza das coisas.

É natural que se confrontem e defrontem os pontos de vista divergentes dos grupos humanos que formam a sociedade. O unanimismo é que constitui a verdadeira perversão: onde quer que se instale – na Alemanha hitlerista ou na URSS stalinista – reina a opressão.

O problema central de um sistema social não está no conflito, mas na maneira como é arbitrado.

A arbitragem pode estar a cargo de um dos componentes do sistema, conseguindo impor sua regra e apresentar seus interesses particulares como interesse social: assim é que modernamente o respeito absoluto à propriedade individual não tem muito a ver com os deveres que estavam associados a esta instituição na Europa cristã da Idade Média; estamos então diante de um caso de regulação de um sistema por uma de suas partes constituintes (reducionismo por baixo): é o que acontece com a sociedade burguesa no século XIX ou o controle da lógica financeira sobre a sociedade contemporânea; por trás do brinquedinho democrático formal dissimula-se a dominação de uma fração social sobre todas as outras; esta democracia é que se tornou majoritária no mundo a partir do momento em que passou a atender aos interesses do capitalismo em vez de refreá-los.

Se a arbitragem é de um centro ou de uma cúpula, sufocando a expressão dos componentes para impor sua lógica global do “todo” (reducionismo pelo alto), estamos diante de um “totalitarismo” no sentido próprio da palavra; esses sistemas, que só funcionam graças a mecanismos muito fortes de coação que paralisam a iniciativa individual, invariavelmente revelam-se ineficazes a longo prazo, pela ausência de capacidade de adaptação, e nunca sobrevivem por muito tempo aos déspotas megalomaníacos que os criaram: foi o caso da Alemanha nazista “criada para mil anos”, da URSS que detinha os direitos sobre o futuro do mundo, de todos os impérios.11

A única forma de arbitragem que corresponde à lógica dos sistemas é aquela na qual o debate democrático permite às diferentes concepções da utilidade social se defrontarem, ao conjunto da coletividade arbitrar e à alternância democrática oferecer periodicamente a cada um desses componentes a oportunidade de fazer valer seu ponto de vista no exercício do poder. É a democracia que se mantém de acordo com a “natureza das coisas”, e o reducionismo mercantil que a violenta.”

11: “Desde que la cosa dure”, dizia madame Letizia, a mãe de Napoleão, que não era destituída de bom senso...

 

 

“Reencontramos aqui a necessidade sistêmica de fazer com que coabitem todos os níveis de organização, do individual ao coletivo, respeitando a especificidade de cada um.

Desde os anos 80, em nome do reducionismo mercantil, a ofensiva contra os serviços públicos vai a mil. Depois da investida contra a economia do bem-estar (o Welfare State), ataca-se a própria existência do Estado16, que teria de ser “desinventado”: “deinventing the State”, escreve The Economist de 20 de maio de 1995. E como há necessidade de objetivos nobres, acusa-se a centralização burocrática e a baixa eficácia dos serviços públicos, que seriam em última análise a perda do bem-estar dos cidadãos. Liberar, liberalizar, privatizar; abaixo o setor público, refúgio de todos os passadismos.

Colocar a questão dos serviços públicos e do Estado significa antes de mais nada colocar a questão da lógica social e do modo de controle: se em todos os níveis a economia obedece exclusivamente à lógica individual mercantil, o único regulador só pode ser o mercado. Esta convicção exprime-se na própria incapacidade em que se encontra a economia mercantil de definir a economia pública senão de maneira residual, em relação a si própria: “Todo serviço que não seja fornecido nem em bases comerciais nem em concorrência com um ou vários fornecedores de serviços”, dizem os acordos de Marraquech de 1994, na fundação da OMC. A partir do momento em que uma parcela das atividades de um setor passa pelo mercado, todo o setor passa a ser passível de liberalização: assim é que a saúde e a educação entram “naturalmente” na esfera da privatização. E, portanto, exclusivamente em relação à realidade mercantil reconhecida que se avalia o desempenho do setor público, e como seus produtos não são vendidos no mercado, a consequência é evidente: eles não têm valor e o serviço público só comporta custos. (...)

Existe uma racionalidade individual e uma racionalidade coletiva, interdependentes, mas irredutíveis uma à outra. Uma refere-se aos interesses individuais; a outra, ao interesse geral.17 Esta incumbe-se, portanto, dos bens coletivos (o farol, a barragem, a infraestrutura...), da utilidade social (saúde, educação...) e dos direitos fundamentais dos indivíduos (liberdade, segurança, igualdade perante a lei e no acesso aos bens comuns...). Cada um desses campos define-se, portanto, segundo suas funções.

É ao nível do interesse individual que se manifestam, da forma mais motivada e mais bem informada, as aspirações da multidão de seres conscientes que formam a sociedade. Nenhum sistema pode ignorá-lo, sob pena de ineficácia, de coerções inúteis e finalmente de autodestruição. Foi desta ignorância que morreu a economia hipercentralizada do Leste. Este interesse individual exprime-se no mercado, cujo prêmio é o lucro. Mas o mercado não pode garantir as duas funções para as quais não foi concebido: a reprodução dos recursos humanos18 e do meio ambiente.

O interesse coletivo também existe, irredutível ao anterior. A necessidade coletiva não decorre da necessidade individual; é, como vimos, de natureza diferente. O bem coletivo não preenche qualquer das condições da formação de um preço no mercado. Do ponto de vista da demanda, seu serviço é ao mesmo tempo indivisível e simultaneamente consumível por cada um, sem que nada seja retirado aos outros: o navegador que se orienta pela luz do farol a utiliza inteiramente (e não em maior ou menor quantidade, em função de um preço), mas deixando-a inteiramente disponível para os outros; ao contrário do que acontece com o bem individual, que só pode pertencer a uma ou outra pessoa, não existe competição pela posse do bem coletivo, e nada obriga o consumidor a revelar suas preferências oferecendo um preço, pois nenhuma concorrência pode privá-lo dele. Do ponto de vista da oferta, o bem coletivo não tem custo marginal: a construção de um pedaço de farol não tem sentido, ele deve ser construído por inteiro ou de nada serve; François Perroux qualificava esse tipo de investimento como “apostas em estruturas novas”. Na ausência de revelação de preferências e de custo marginal, o bem coletivo não faz parte da lógica mercantil.

Sua rentabilidade não se revela ao nível de sua conta de exploração, mas na das empresas que o cercam, e a longo prazo. A verdadeira eficácia econômica das ferrovias, na história, não é medida por seus lucros ou perdas, mas por sua contribuição para o crescimento do produto nacional. É inclusive o déficit que pode ser racional aqui, na medida – e no limite – em que estimula a criação de riquezas que lhe são superiores.19 Que dizer, a fortiori, da saúde ou da educação? Consideremo-las por um momento como simples bens intermediários valorados à luz da rentabilidade mercantil. Avaliando-as exclusivamente pelo ângulo do custo, o pensamento dominante apressou-se a declarar improdutivas as instituições públicas que as assumem. A formação dos espíritos e o estado de saúde dos homens não significariam nada? Tomemos ao pé da letra os cavalheiros do Medefe transponhamos, pensando neles, a célebre parábola de Saint-Simon (1810): que aconteceria com a eficácia de suas empresas, aparentemente as únicas criadoras de riqueza, se amanhã deixassem de existir esses monumentos de suposta improdutividade que são o sistema educativo, o sistema de saúde, a infraestrutura pública de transportes e comunicações, todos os serviços públicos? “A nação tornar-se-ia um corpo sem alma no momento em que os perdesse”, e os detratores do serviço público veriam o que aconteceria com a magnífica produtividade de que se vangloriam; dar-se-iam conta de quanto de seu desempenho devia-se à coletividade, assim como dos encargos financeiros de formação e manutenção do “material humano” (que é como o enxergam), dos quais se viam até então dispensados. E que aconteceria, em compensação, se – que Deus nos livre – todo o seu estado-maior, o califa, seu braço direito, seu braço esquerdo, seus vizires grandes ou pequenos que de bom gado se veriam como califas no lugar do califa, se todos eles decidissem voltar à sombra? Isto “certamente afligiria os franceses, pois eles são bons [...]. Mas esta perda só os magoaria de um ponto de vista puramente sentimental, pois nenhum problema político dela resultaria para o Estado”.”

16: Riccardo Petrella, “Mondialisation, services publics et Europe: se battre pour la citoyenneté”, Transversales Science/Culture, nº 37, janeiro-fevereiro de 1996.

17: Em muitos países se fala de “serviços públicos”, mas de atividades ou serviços de “interesse geral”. Esta expressão encaixa-se perfeitamente no que acabamos de dizer.

18: Ver mais na página 113.

19: Cabe acrescentar que faz parte da lógica do bem coletivo mobilizar um potencial excedentário em relação às necessidades que deve satisfazer; a ponte e a barragem são construídas visando a longa duração; seu objetivo é, antes, permitir o surgimento de novas atividades geradoras de novas necessidades do que satisfazer as imediatamente existentes; a irracionalidade estaria no fato de serem plenamente utilizadas que inauguradas; o capital que mobilizam não pode, assim, ser imediatamente rentabilizada, mas apenas nesse mesmo longo prazo que não interessa aos capitais privados.

A ilusão neoliberal (Parte II), de René Passet

Editora: Record

ISBN: 978-85-0106-107-2

Tradução: Clóvis Marques

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 370

Sinopse: Ver Parte I



“““Nunca somos completamente contemporâneos de nosso presente”, frisa Régis Debray, “a história avança mascarada, entra em cena com a máscara da cena anterior e nós já não entendemos mais nada na peça”.”

 

 

““Uma economia global”, diz com elegância Manuel Castells, “é uma economia capaz de funcionar como unidade, em tempo real, em escala planetária.22” Todos os produtos estão no mundo: em qualquer época do ano, as produções agrícolas e industriais são encontradas no conjunto dos mercados; e o mundo está em todos os produtos: o Ford Escort montado na Europa é constituído de peças provenientes de quinze países diferentes;23 os Ford Probe fabricados pela empresa japonesa Mazda em sua fábrica de Michigan são parcialmente vendidos no Japão com a marca Ford, enquanto um veículo utilitário Mazda fabricado na fábrica Ford de Kentucky é em seguida vendido nas lojas Mazda nos Estados Unidos, ao passo que a Nissan lança um novo caminhão leve na Califórnia, montado numa fábrica Ford de Ohio com peças fabricadas no Tennessee, para ser em seguida comercializado pela Ford e a Nissan nos Estados Unidos e no Japão.24 E o mais modesto tomate doméstico foi produzido com pesticidas, adubos e equipamentos vindos do mundo inteiro.

A eliminação das fronteiras aduaneiras, o reforço das interdependências, a mobilidade dos indivíduos, dos capitais, dos conhecimentos e das mercadorias, a informação em tempo real parecem efetivamente indícios de uma unificação. E se a fluidez da mão-de-obra continua sendo inferior à dos outros fatores, as empresas é que vão ao seu encontro, transferindo internacionalmente suas unidades de produção ou terceirizando suas atividades.”

22: Manuel Castells, La Société em réseaux, op. cit-

23: Michel Beaud, L’Éonomie mondiale dans les années 80, La Découverte, Paris, 1989.

24: Este exemplo é de Robert Reich, secretário do Trabalho no primeiro governo Clinton, citado por Ignacio Ramonet, Géopolitique du chaos, Galilée, Paris, 1997.

 

 

“O investimento intelectual33, que desempenha um papel determinante nos sistemas produtivos da era da informática, é fruto de um patrimônio universal nascido do esforço de gerações passadas e presentes: “O saber”, dizia Louis Pasteur, “é um patrimônio da humanidade.” Este saber apresenta uma característica que o torna um autêntico bem coletivo: todo indivíduo pode desfrutar dele sem dele privar os outros; melhor ainda, ele se multiplica através das trocas: se a troca de uma pêra por uma maçã traduz-se numa simples mudança de proprietários, deixando inalterada a quantidade de peras e maçãs em circulação no planeta, a troca de informações entre dois indivíduos permite que cada um detenha uma informação nova sem ver-se privado daquela que possuía inicialmente; a troca teve um efeito multiplicador. Quanto mais a informação circula, mais se transforma num bem comum.”

33: Cabe consultar, de Patrick Épingard, L’Investissement immatériel, coeur d’une économie fondée sur le savoir, prefácio de Jacques de Bandt, CNRS Éditions, Paris, 1999.

 

 

“Mas os mercadores de fórmulas pré-fabricadas ainda não entenderam: “A partir do momento”, diz-nos um deles, “em que aceitamos modificar o que resulta das atividades individuais, estamos atentando contra o que é sua própria fonte, ou seja, os direitos individuais. Uma política de transferências forçadas, a pretexto de equalizar os resultados da atividade humana, consiste em tomar recursos pela força aos que os criaram para dá-los aos que não os criaram [...] e para tomar um exemplo simples, quem ousaria sustentar que é moralmente justificado tomar a um homem que trabalha corajosamente para dar a um preguiçoso? [...] Numa sociedade baseada na livre troca, o que possui é o que criou mais valor para outrem.” Pretendendo reformar esta ordem idílica das coisas, estaríamos entrando “numa sociedade baseada na violência” que “desembocaria naturalmente no totalitarismo”.35 A opção, portanto é simples: de um lado, uma sociedade em que cada um só recebe o que criou... “para outrem”, naturalmente, uma sociedade na qual a renda não passa da justa retribuição daquele “que trabalha corajosamente” e o pobre é necessariamente “um preguiçoso”; do outro, a tirania da violência. Escolham.

Se efetivamente é assim, devemos concluir que entre as grandes fortunas do mundo, anualmente compiladas por Fortune, e o trabalhador que ganha salário mínimo, é a livre iniciativa que realiza a igualdade de direitos e a intervenção que falseia as regras (em detrimento dos mais “merecedores”, é claro); que cada um, herdeiro rico ou filho de pobre, aborda a vida com igualdade de oportunidades; que quando um homem, como frisa o CNUCED, ganha treze mil vezes o salário médio de um operário, é porque é treze mil vezes mais produtivo (por que não trabalha sozinho, por si mesmo e para si mesmo?); que os lucros especulativos têm como contrapartida a criação de riquezas reais, e que todos os pobres são inúteis e ociosos. Pois não é fato que cada um tem o destino que merece? George Gilder, um dos gurus americanos da escola da oferta, não hesita em diagnosticar: “Os pobres sabem [...] que em grande medida escolheram sua situação, e só podem responsabilizar a si mesmos.”36 Em que planeta vivem essas pessoas?”

35: Pascal Salin, “Vive l’inégalité!”, Le Monde, 10 de julho de 1990.

36: George Gilder, Richesse et pauvreté, op. cit.

 

 

“Para dizer a verdade, o mercado tem duas virtudes essenciais de que nenhuma sociedade pode privar-se impunemente.

Liberador e catalisador extraordinário de iniciativas individuais, de inovação e energias, ele confere à economia um dinamismo e uma inventividade de que nenhuma outra forma de organização jamais se aproximou; assim se explica o notável desempenho do sistema capitalista em matéria de inovação e produção; em sentido inverso, embora o sistema centralizado soviético tenha conseguido resultados espetaculares (a conquista espacial...) concentrando seus esforços em alguns setores-chave (em geral submetidos a uma organização de tipo militar), passou totalmente à margem da revolução da informática38, e sua lentidão burocrática e seu peso acabaram por levar a melhor.

Favorecendo a infinita proliferação dos centros decisórios, ele confere ao sistema uma flexibilidade e uma capacidade de adaptação às quais deve sua longa sobrevivência: sem voltarmos às origens, o capitalismo do início do século XIX – empreendedores capitalistas individuais, concorrência entre microunidades – ... não tem muita coisa a ver com o sistema concentrado do último quarto do século, tal como descrito por Marx, e menos ainda com o capitalismo financeiro, mundializado e em rede de hoje; ao longo das mudanças tecnológicas e das crises, o sistema adaptou-se, transformou-se, já não é o mesmo, e no entanto, em sua essência – a busca do lucro, a acumulação... –, continua a ser ele mesmo; a razão disto é evidente: quando se manifestam a mudança, a crise ou o obstáculo, inúmeros centros de decisão reagem, cada um por sua conta; o obstáculo é contornado, superado, digerido... O sistema sai – às vezes a altíssimo custo – modificado, mas adaptado, vivo e definitivamente enriquecido; o que é preciso entender é que este sistema não se desenvolve “apesar dos obstáculos”, mas “pelos obstáculos”, que vive deles e deles tira a substância de seu dinamismo; em sentido inverso, os sistemas monolíticos centralizados, como o gigante, progridem derrubando tudo a sua passagem; só sabem esmagar os obstáculos, mas quando se veem defrontados com uma dificuldade mais grave não encontram neles próprios qualquer capacidade de adaptação e desmoronam maciçamente, de um só golpe; a teoria do caos ilustra bem este fenômeno: um sistema policêntrico compensa as defasagens; um sistema monocêntrico as agrava e revela-se muito mais “sensível a suas condições iniciais”; é aparentemente esta a razão profunda pela qual o sistema capitalista decididamente triunfou sobre seu adversário centralizado.

Este dinamismo, esta capacidade de adaptação são armas preciosas das quais seria absurdo privar-se.”

38: Por motivos essencialmente doutrinários, pois, segundo a evolução descrita por Marx no século XIX, imbecilmente transformada em dogma por seus “herdeiros”, o desenvolvimento deveria efetuar-se prioritariamente nas indústrias pesadas.

 

 

“É preciso muito fôlego para invocar a própria liberdade para justificar uma política de absorções e fusões que destrói o próprio princípio dessa liberdade, no momento em que algumas empresas transnacionais exercem sobre a economia mundial uma pressão que verga os mercados e os Estados. A tal ponto, por exemplo, que cinco empresas de biotecnologia controlam 95% das patentes no mundo. Numa situação como esta, os propagandistas de carteirinha do sistema continuam a nos oferecer o refrão de um capitalismo que teria preservado suas virtudes originais, das quais a primeira metade do século XIX talvez se tenha aproximado um pouco – a grande custo humano –, mas que nada mais tem a ver com as realidades de hoje. Que é feito das vantagens coletivas da “liberdade dada a cada um”, glorificada pelo nosso caro Hayek41, quando ela permite a alguns sufocar a dos outros?”

41: Friedrich von Hayek, “The Use of Knowledge in Society”, op. cit.

 

 

“O jogo da economia desenrola-se num teatro mundial cujos atores encarnam os grandes interesses privados. As instituições políticas nacionais reduzidas à função de agentes executores incumbidos de garantir a rentabilidade do capital internacional e de cobrir-lhe os riscos – é bem este o sonho das potências financeiras. É este sonho que elas realizam ao se tornarem hoje os novos árbitros cuja lógica determina os ajustes em todos os níveis do sistema econômico.”

 

 

““Desta oposição entre a esfera da economia e a da finança”, acrescentava Jean Peyrelevade em 1987, “surge uma instabilidade fundamental, que, se não lhe dermos atenção, pode arrastar a todos nós.” O que se seguiria prova que ele não estava errado.

A lógica que inspira esses movimentos nada tem a ver com o que Friedman denomina as “bases sólidas” da economia.

Não se trata de uma lógica do real. “A política da França”, dizia o general de Gaulle, “não se decide no pregão.” Durante os “Trinta Gloriosos”, com efeito, o Planejamento determinava os objetivos prioritários da economia real, e o setor monetário é que se adaptava: o nível dos preços decorria do confronto entre a oferta e a procura de bens; a taxa de juros exprimia a distância entre a poupança disponível e a necessidade de investimentos. Já agora a situação inverte-se: é a estabilidade da moeda que é prioritária, e a realidade que se adapte: o equilíbrio do orçamento tem primazia sobre o crescimento; a estabilidade dos preços é assegurada, em detrimento deste; as taxas de juros não decorrem de dados reais, mas de previsões do mercado monetário e dos imperativos de estabilidade dos bancos centrais; é, então, o investimento que reage às flutuações dos juros a longo prazo. E quando estes são por demais elevados, vemos às vezes os governos implorando – não raro sem sucesso – que os bancos centrais se disponham a abaixá-los, para tornar menos onerosos os empréstimos necessários aos investimentos das empresas.

Por trás da “criação de valor” pela qual as empresas gigantescas – cuja gestão, como veremos, está amplamente submetida ao império da finança – tentam justificar a corrida planetária às fusões-aquisições dissimula-se na realidade uma dupla operação:

– de “confisco exclusivo pelos acionistas do valor criado por outros: nas próprias empresas, pelas diferentes categorias de assalariados, e, fora da empresa, pelo conjunto do meio socioeconômico e pelos serviços públicos, particularmente no serviço público e nos dispositivos de pesquisa”;52

– de destruição de riquezas reais: quatro quintos do trilhão de dólares de IDE (investimentos diretos no exterior) realizados em 1995, 1996 e 1997 destinaram-se a fusões e compras de empresas existentes, levando à destruição de empresas locais por concentração do mercado e à destruição de riquezas humanas pela supressão de empregos.

Não se trata de uma lógica de crescimento. Em relação a esta, a desconexão é espetacular: de 1961 a 1983-1984, as oscilações da Bolsa nos Estados Unidos vão no mesmo sentido que a evolução do PIB, mas em seguida a Bolsa dispara, sem que o crescimento tenha mudado de ritmo; em outubro-novembro de 1994, é inclusive o crescimento que perturba a especulação, que teme as tensões inflacionárias que poderiam levar à elevação das taxas de juros; exatamente o mesmo temor é expresso mais uma vez, da mesma forma, em janeiro de 2000; melhor que qualquer discurso, esta aversão era simbolizada pelo homenzinho do caricaturista Plantu que se atirava do alto do telhado da Bolsa ante o anúncio – destinado a tranquilizá-lo – da retomada do crescimento americano; em 1993, as cotações de bolsa sabem 45% na Alemanha e 22% na França, embora estes dois países estivessem mergulhados na recessão mais grave por que haviam passado desde a Segunda Guerra Mundial; desde a disseminação da crise surgida no Sudeste asiático, as cotações oscilam ao sabor dos ventos – e das travessuras “lewinskianas” de um presidente americano – sem que isto tenha alguma coisa a ver com o crescimento.

Não se trata de uma lógica de valorização dos territórios. Sempre que considera do seu interesse, a empresa Hoover não hesita em transferir um de seus estabelecimentos de Dijon para Cambusland, na Escócia, sem se preocupar com as consequências humanas e regionais de sua decisão; quando a Renault fecha sua fábrica de Vilvorde, a Bolsa já no dia seguinte saúda o fato valorizando em 13% suas ações; quando a Moulinex fecha duas fábricas na França e elimina 1.800 empregos na Normandia, suas ações instantaneamente valorizam-se 21%; quando a Michelin anuncia em setembro de 1999 ao mesmo tempo lucros substanciais e a aplicação de um plano de enxugamento, a Bolsa saúda o feito.

Não se trata de uma lógica do homem. André Orléan mostra como o surgimento de uma economia de mercado financeiro é acompanhada da emergência de um novo pacto social baseado numa concepção completamente financeira dos direitos individuais: “Nela o indivíduo é definido como uma carteira de direitos de crédito cujo valor deve ser defendido. “53 Tudo que se opõe aos rendimentos dessa carteira é portanto questionado: a proteção social, os impostos (logo, a função política do Estado); em suas formas tradicionais, a moeda vem a ser contestada na medida em que “apreende o indivíduo e sua integração à comunidade mercante na globalidade de suas determinações, ou seja, sob o duplo registro de suas dívidas econômicas, na medida em que ele é um agente econômico inserido na divisão mercantil do trabalho, e de suas dívidas sociais, na medida em que é um cidadão, detentor de direitos sociais constituídos historicamente”.54 Não é para a consagração da pessoa que caminhamos, mas para um fortalecimento do reducionismo que já estava contido no conceito de indivíduo caro ao pensamento liberal.

Trata-se de uma lógica de frutificação rápida de um patrimônio financeiro. O acionista médio, teoricamente coproprietário da empresa, é na realidade alguém que vive de suas rendas e administra seu patrimônio, aplica-o – e o desaplica – segundo considerações de rendimento a curto prazo; a fortiori, o financista institucional cuja atividade consiste em fazer frutificar seu capital. É preciso reagir com a máxima rapidez, à menor diferenciação das cotações: a rigor, os computadores são programados para isto, e é sob o efeito de seu automatismo que em 1987 o mundo fica à beira do abismo. “O meu longo prazo”, costumava dizer um operador citado pelo Prêmio Nobel de Economia James Tobin, “são os próximos dez minutos.”55 Nos principais países industrializados – a França, os Estados Unidos, a Alemanha, o Reino Unido ou o Japão –, o mercado de ações “primário” dedicado ao financiamento de atividades novas, criadoras de riquezas, envolve uma proporção menor (da ordem de 5 a 10%) do volume das trocas de títulos; o mercado especulativo “de ocasião” representa portanto 90 a 95% dessas trocas. A “teoria da carteira”, consagrada em 1990 pelo Prêmio Nobel dado a Harry Markowitz, afirma que a escolha de um título deve depender menos da análise fundamental das empresas que o emitem do que da composição da carteira do eventual comprador. Só depois de ter sido previamente resolvida a questão da diversificação destinada a reduzir o risco é que entram em cena as considerações propriamente relativas ao título: a finança se basta.

Como na comparação de Keynes sobre um “concurso de beleza” no qual os leitores de uma revista têm de adivinhar qual a beldade que a maioria escolherá, o que cada um pensa em matéria de aplicações financeiras é menos importante do que o que pensa que os outros pensam. Pois é a avaliação comum que determina em termos imediatos o valor das coisas. Encontramo-nos então numa situação dita “caótica”, exposta às reações irrefletidas das multidões. O terreno financeiro nos é apresentado como o vigia que anuncia o futuro, mas não passa do macaquinho de imitação.56 Assim como os investimentos no exterior, os movimentos especulativos funcionam em ondas que crescem e esvaziam por si mesmas. Como o afluxo parece confirmar a oportunidade dos investimentos, os capitais atraem os capitais. A bolha aumenta, até o dia em que a saturação produz as inevitáveis quedas de rendimento. Quando as primeiras dúvidas provocam os primeiros repatriamentos, sucedendo-se o pânico à euforia, o movimento inverte-se e os vampiros fogem com a mesma rapidez com que haviam chegado. Desse modo, entre o início de 1986 e o fim de 1989, o índice Nikkei da Bolsa de Tóquio elevava-se de 12.000 a 40.000 pontos (+ 233%); todos continuavam a investir – simplesmente porque era o que os outros faziam – no setor imobiliário, que todos sabiam (exceto aqueles cuja profissão era saber) estar em crise. Bastava ler os jornais. Na década de 1990, no México, na América Latina, na Rússia, no Sudeste asiático “milagre” dos países emergentes os investimentos afluem para em seguida fugir da mesma forma, provocando de 1994 a 1998 uma cascata de crises graves: na Indonésia, na Coréia, na Malásia, na Tailândia, nas Filipinas, o afluxo de capitais passa de 40,5 bilhões de dólares em 1994 para 93 bilhões em 1996; e de repente, em 1997, o fluxo se inverte e 12,1 bilhões de dólares vão embora, representando, em relação ao fluxo de entrada do ano anterior, uma diferença brutal de 105 bilhões, equivalente a 11% do PIB da região; e no entanto, situando-se os índices de crescimento desses países entre 5 e 6%, nada em suas economias reais justificava esta situação. Em que transformações rápidas da distribuição internacional de recursos baseiam-se tais movimentos?... No início de 2000, a moda é das empresas do setor eletrônico, cujo valor acionário – autêntica aposta no futuro – incha desmedidamente, embora todas sejam deficitárias e algumas sequer tenham resolvido seus problemas concretos de instalação. Nem é necessário continuar dando exemplos: “Longe de serem incidentes isolados”, constata o relatório do PNUD em 1999, “as crises financeiras tornam-se cada vez mais frequentes, à medida que os fluxos de capitais disseminam-se e aumentam em escala planetária.” Onde ficaram os princípios “fundamentais” de Milton Friedman?”

52: Frédéric F. Clairmont, “Fusions d’entreprises, festins de prédateurs”, Le Monde diplomatique, setembro de 1999.

53: André Orléan, “La monnaie provatisée”, Alternatives économiques, nº 37, 3º trimestre de 1998; ver também, do mesmo autor, Le Pouvoir de la finance, Odile Jacob, Paris, 1999.

54: André Orléan, “La monnaie privatisée”, art. cit.

55: Ibrahim Warde, “Le projet de taxe Tobin, bête noire des spéculateurs”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 1997.

56: Cada um observa os outros, em busca de um comportamento que revele uma informação de que não dispõe. Quando o primeiro macaquinho pula a cerca, há sempre um segundo que pensa que ele deve ter bons motivos para isto e portanto dispõe-se a saltar atrás dele; logo um terceiro, vendo dois macaquinhos na água, conclui que está diante de um fato social do qual não pode ficar excluído, e logo um quarto... e o “fato social” se amplia... A isto se dá o nome de “profecias auto-realizadoras”.

 

 

“O Estado, cujas intervenções são tão atacadas quando se trata da proteção dos homens, recupera seu caráter “providencial” tão apreciado quando se trata dos interesses da finança. As grandes instituições “guardiãs do templo”, prontas a transformar o jogo da especulação em uma aposta sem risco, não hesitam em trair o próprio espírito do sistema em cujo nome afirmam agir. É com um enorme volume de capitais (180 bilhões de novos créditos) que a comunidade financeira internacional, impulsionada pelo FMI, intervém cinco vezes em dezoito meses na Tailândia, na Indonésia, na Coréia do Sul, na Rússia e no Brasil, para salvar as instituições capitalistas em má situação. Quando o rublo se vê em maus lençóis em 1998, o fundo especulativo americano LTCM (Long Term Capital Management) prevê que já em agosto o FMI irá socorrê-lo. Toma então emprestados dezenas de bilhões de dólares, para dotar-se maciçamente e a baixo preço de uma divisa cuja quotação espera ver em breve aumentada. A aposta dá errado. Vencido o prazo, a LTCM é incapaz de cumprir seus compromissos. Vê-se então ameaçada a solvência dos grandes bancos – sobretudo suíços e americanos – que favoreceram a operação. Para evitar a propagação em cadeia, 4 bilhões de dólares são reunidos por iniciativa do Federal Reserve americano, o FED, para salvar o fundo especulativo.

Em todas essas operações de salvamento, já não é o sistema bancário internacional que vem a ser convocado, mas o dinheiro público dos organismos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial, bancos regionais de desenvolvimento) ou dos Estados industrializados. A lógica liberal reza que, esgotando-se o “milagre” do país no qual se investiu e aumentando os seus preços mais rapidamente que os do exterior, a desvalorização restabelece a competitividade. Mas isto implicaria reduzir igualmente o valor internacional dos ativos, objetos de especulação, ou em arruinar os residentes que tomaram emprestado em moedas estrangeiras para investir. A ajuda que evita a desvalorização do câmbio constitui na verdade, para os especuladores, o indício de que chegou o momento de recuperar seus lucros e pagar suas dívidas em divisas. Ela introduz uma garantia pública de ganhos em mercados em princípio especulativos. À socialização das perdas que as populações locais suportam ao custo de muita austeridade monetária e orçamentária, de desemprego, responde já agora a privatização dos lucros especulativos. A coletividade paga. Mas um mercado que só funciona no sentido das vantagens e não da sanção perde seu caráter regulador. Será possível recomeçar, multiplicando audácias que deixaram de sê-lo, até o dia em que as catástrofes superarão a capacidade digestiva do sistema.

Com o projeto de Acordo Multilateral de Investimento (AMI), vimos delinear-se a imagem do mundo que o universo transnacional dos negócios pretende impor-nos: um mundo retalhado para saques espoliativos, totalmente voltado para a frutificação do capital financeiro, um planeta enfeixado na rede tentacular de interesses que só têm direitos, impondo sua lei aos Estados e exigindo-lhes que prestem contas, cobrando a indenização das perdas ligadas à proteção social, à defesa do meio ambiente, da cultura e de tudo que faz a identidade de uma nação. O dinheiro como valor supremo, e os homens para servi-lo.

 

Quando a atração do lucro se afirma como finalidade primeira, tudo se torna mercantilizável: “O dinheiro, as drogas, as armas, os seres humanos, as obras de arte, etc., tudo que se compra e se vende irá para quem oferecer mais e atravessará as fronteiras sem maior preocupação com controles”, escreve Jean de Maillard.72 Nos anos 90, a produção de ópio no mundo mais que triplicou, e a de cocaína mais que dobrou; em 1995, o tráfico de drogas representava 400 bilhões de dólares, o equivalente a 8% das trocas mundiais, comparável aos têxteis (7,6%) e ao petróleo e ao gás (8,6%). O volume de negócios bruto da criminalidade atingia 1,5 trilhão de dólares em 1995, poder de fogo comparável ao das multinacionais, afirma o PNUD. Não surpreende que as coisas acabem se tornando pouco nítidas, a começar pela distinção entre atividades legais e economia do crime. Da comissão suspeita à corrupção, à arte de “fechar os olhos” e à cumplicidade, a transição é progressiva. A lavagem de dinheiro sujo não pode ser feita sem a ajuda das estruturas legais: empresas de fachada sob controle mafioso, mas também empresas e instituições bem reais dirigidas por pessoas respeitadas, ainda que não respeitáveis. Os contatos políticos, os advogados e assessores jurídicos da economia oculta têm banca na praça, e se o banqueiro “honesto” não fechasse os olhos para a procedência dos fundos que lava, o traficante não poderia reciclar seu dinheiro: “Dos 400 bilhões de dólares do volume de negócios da droga, pode-se estimar que 180 bilhões se destinam a remunerar globalmente os traficantes e os profissionais de empresas legais que colaboram com as organizações criminosas; ‘somente’ 120 bilhões retornam diretamente às organizações criminosas e podem vir a ser lavados na economia legal.”73

Reciprocamente, só vamos encontrar no alto da hierarquia do crime personalidades altamente respeitadas, que precisam manter as aparências legais para promover o tráfico. E toda esta fauna converge para uma aspiração comum: “A finança moderna e a criminalidade organizada se fortalecem mutuamente. Ambas precisam, para desenvolver-se, da abolição das regulamentações e dos controles estatais.” Não vamos tapar o sol com a peneira: a criminalidade financeira é o filho “natural” do laisser-faire e da desregulamentação; ela sempre existiu, mas se não tomarmos cuidado passaremos progressivamente de uma economia com criminalidade a uma economia de criminalidade.

As próprias instituições internacionais – e ao mesmo tempo os governos nacionais nelas representados – se comportam como cúmplices, senão intencionais, objetivos, da canalha internacional: o relatório sobre a utilização de empréstimos do FMI a Moscou, feito pelo escritório internacional Pricewaterhouse Coopers e divulgado no dia 3 de agosto de 1999 pelo diário russo Kommersant, informava-nos que o dinheiro do FMI, teoricamente destinado a sustentar o rublo, servira apenas, graças a uma montagem jurídica engenhosa transitando pelo paraíso fiscal de Jersey, para engordar a nomenklatura mafiosa que loteia o país. O que não impediu o FMI, no exato momento em que vinha à tona o escândalo, de confirmar um novo empréstimo de 4,5 bilhões de dólares, que obviamente iria engordar as mesmas carteiras, e sem que qualquer governo protestasse. Quando então poderá o tribunal penal internacional – cuja criação foi decidida em 1998 por 120 países – julgar uns por desvio de fundos da comunidade mundial e outros por cumplicidade?

Assim é que uma lógica radicalmente alheia aos imperativos da economia real vem a perverter suas mais belas promessas...”

72: Sobre todas essas questões, recomenda-se a leitura do admirável livro do juiz Jean de Maillar, Um monde sans loi, Stock, Paris, 1998, do qual são extraídas as informações e citações que se seguem; ver também o levantamento sobre “Les paradis fiscaux” publicado por Christian Chavagneux em Alternatives économiques, no 169, abril de 1999.

73: Jean de Maillard, Un monde sans loi, op. cit.