Editora: Companhia de Freud
ISBN: 978-85-8571-793-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 216
Sinopse: Depois
do inferno do nazismo e do terror do comunismo, é possível que uma nova
catástrofe se perfile no horizonte. Desta vez, é o neoliberalismo que quer, por
sua vez, fabricar um “homem novo”. Todas as mudanças em curso, tanto na
economia de mercado quanto na economia política, na economia simbólica ou na
economia política são testemunhos disso.
O sujeito critico de Kant e o sujeito neurótico de Freud
nos tinham fornecido, ambos, a matriz do sujeito da modernidade. A morte desse
sujeito já está programada pela grande mutação do capitalismo contemporâneo.
Decaído de sua faculdade de juízo, impelido a gozar sem entrave e não mais se
referindo a nenhum valor absoluto ou transcendente, o novo “homem novo” começa
a aparecer à medida que se entra na era do “capitalismo total” no planeta.
Essa verdadeira mutação antropológica e suas implicações
no mínimo problemáticas para a vida dos homens, isto é, o que o autor chama de
“a arte de reduzir cabeças”, são o que esta obra analisa. O autor trata, assim
como filósofo, das questões práticas com as quais são confrontados hoje
sociólogos, os psicanalistas ou os especialistas da educação, interrogando-se
muito concretamente sobre o futuro das jovens gerações que está às voltas com
novas formas de consumir, de se informar, de se educar, de trabalhar, ou
simplesmente, de viver com os outros.
“De que vale ainda esse sujeito crítico
quando se trata apenas de vender e comprar mercadoria? Com efeito, para Kant
nem tudo é negociável. Tudo tem ou bem
um preço, ou bem uma dignidade.
Podemos substituir o que tem um preço por seu equivalente; em contrapartida, o
que não tem preço e, pois, não tem equivalente é que o possui uma dignidade.
Não se pode dizer mais claramente: a dignidade não pode ser substituída, ela
não tem preço e não tem equivalente, ela tem como referência apenas a autonomia
da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço. É por isso que o sujeito
crítico não convém à troca mercadológica, é até completamente o contrário do
que é requerido na prospecção de mercado, no marketing e na promoção (naturalmente mentirosa) da mercadoria.”
“É claro que não sou o primeiro a pôr em
relevo os sinais dessa transformação que afeta as formas de ser-si e de
estar-junto na modernidade. A emergência desse novo sujeito corresponde de fato
a uma fratura na modernidade que vários filósofos observaram, cada um à sua
maneira. Entramos, há algum tempo, numa época naturalmente dita “pós-moderna” –
J.-F. Lyotard, um dos primeiros a apontar esse fenômeno, entendia com isso
evocar uma época caracterizada pelo esgotamento e pelo desaparecimento das
grandes narrativas de legitimação, notadamente a narrativa religiosa e a
narrativa política3. Não quero aqui discutir a pertinência dessa
expressão; aliás, outras são propostas: o supermoderno, o hipercontemporâneo...
Apenas gostaria de observar que efetivamente chegamos a uma época que viu a
dissolução, até mesmo o desaparecimento das forças nas quais a “modernidade
clássica” se apoiava. A esse primeiro traço do fim das grandes ideologias
dominantes e das grandes narrativas soteriológicas acrescentaram-se
paralelamente, para completar o quadro, a desaparição das vanguardas, depois,
de outros elementos significativos tais como: os progressos da democracia e,
com ela, o desenvolvimento do individualismo, a diminuição do papel do Estado,
a supremacia progressiva da mercadoria em relação a qualquer outra
consideração, o reinado do dinheiro, a sucessiva transformação da cultura, a
massificação dos modos de vida combinando com a individualização e a exibição
das aparências, o achatamento da história na imediatez dos acontecimentos e na
instantaneidade informacional, o importante lugar ocupado pelas tecnologias
muito poderosas e com frequência incontroladas, a ampliação da duração de vida
e a demanda insaciável de plena saúde perpétua, a desinstitucionalização da
família, as interrogações múltiplas sobre a identidade sexual, as interrogações
sobre a identidade humana (fala-se, por exemplo, hoje, de uma “personalidade
animal”), a evitação do conflito e a desafetação progressiva em relação ao
político, a transformação do direito em um juridismo procedimental, a
publicização do espaço privado (que se pense na onda dos webcams), a privatização do domínio público... Todos esses traços
devem ser tomados como sintomas significativos dessa mutação atual na
modernidade. Eles tendem a indicar que o advento da pós-modernidade não deixa
de ter relação com o advento do que hoje evocamos com o nome de
neoliberalismo.”
3: J.-F. Lyotard, La
Condition postmoderne, Paris, Minuit, 1979.
“É precisamente essa mutação que me
esforçarei por pensar, na medida em que ela corresponde ao que poderíamos
chamar de uma afirmação do processo de individuação há muito tempo iniciado em
nossas sociedades. Afirmação que, ao lado dos aspectos positivos, inclusive de
gozos novos autorizados pelos progressos da autonomização do indivíduo, não
deixa de engendrar sofrimentos inéditos. Se, com efeito, a autonomia do sujeito
comporta uma autêntica visada emancipadora, nada indica que essa autonomia seja
uma exigência à qual todos os sujeitos podem responder de imediato. Toda a
filosofia tenderia a indicar que a autonomia é a coisa mais difícil do mundo de
construir e só pode ser obra de toda uma vida. Nada de espantoso em que jovens,
que por natureza estão em situação de dependência, sejam expostos diretamente a
essa exigência de modo muito problemático, o que cria um contexto novo e
difícil para todos os projetos educativos. Com frequência falamos de “perda de
referências nos jovens”, mas, nessas condições, o contrário é que seria
espantoso. Decerto eles estão perdidos, já que experimentam uma nova condição
subjetiva cuja chave ninguém, menos ainda os diretores de Escola, possui.
Portanto, de nada serve invocar a perda das referências se com isso se indicar
que algumas lições de moral à antiga poderiam bastar para impedir os danos. O
que não anda mais é justamente a moral, porque ela só pode ser feita “em nome
de...”, enquanto, no contexto de autonomização contínua do indivíduo,
justamente não sabemos mais em nome de quem ou de que fazê-la. E, quando não se
sabe mais em nome de quem ou de que falar aos jovens, isso é problemático tanto
para os que lhes devem falar todos os dias quanto para aqueles a quem se fala.
Essa situação nova, a ausência de enunciador coletivo que tenha crédito, cria
dificuldades inéditas para o acesso à condição subjetiva e pesa sobre todos, e
particularmente sobre os jovens.”
“O homem é uma substância que não tira sua
existência de si mesma, mas de um outro ser. As ontologias, múltiplas, que se
constituíram relativamente a essa questão propuseram vários nomes possíveis
para esse ser: Natureza, as ideias, Deus, a Razão ou... o Ser. Poderíamos
inclusive dizer que toda a filosofia é apenas uma sequência de proposições
sobre esse princípio primeiro, o ser.”
“Se o “sujeito” é o subjectus*, o que é submetido,
então poderíamos dizer que a história aparece como uma sequência de
assujeitamentos a grandes figuras instaladas no centro de configurações
simbólicas cuja lista podemos bastante facilmente fazer: o sujeito foi
submetido às forças da Physis no
mundo grego, ao Cosmos ou aos Espíritos em outros mundos, ao Deus nos
monoteísmos, ao Rei na monarquia, ao Povo na República, à Raça no nazismo e
algumas outras ideologias raciais, à Nação nos nacionalismos, ao Proletariado
no comunismo... Ou seja, ficções diferentes que foi preciso a cada vez edificar
com grande reforço de construções, de realizações, até mesmo de colocações em
cena muito exigentes.
De modo algum digo que todos esses conjuntos
são equivalentes, muito pelo contrário: segundo a figura do Outro eleita como
centro dos sistemas político-simbólicos, toda a vida econômica, política,
intelectual, artística, técnica muda. Todas as coerções, as relações sociais e
o estar-junto mudam, mas o que permanece constante é a relação comum com a
submissão.”
*: A palavra sujet (assim como “sujeito”
em português) permite tanto as
construções como “sujeito de” e “sujeito a”; nos dois casos pode-se interpretar
a “sujeição a”. (NT)
“Se o Outro efetivamente se apresenta sob
diferentes figuras, então haveria formas diferentes do inconsciente.
Admitindo-se que eu saiba o que é o inconsciente hoje, tenho razão, em suma, de
me perguntar o que ele era antes da modernidade, no que se convencionou-se de
sociedades tradicionais. Marcel Gauchet fez, nesse sentido, uma proposição
forte: “o mundo da personalidade tradicional é um mundo sem inconsciente na
medida em que se trata de um mundo no qual o simbólico reina de maneira
explicitamente organizadora”21. De fato, essas sociedades são
constituídas pela hegemonia exclusiva de um grande Sujeito, que determina por
si só todas as maneiras de viver (falar, contar, trabalhar, comer, amar,
morrer...) em vigor nessa sociedade. Com efeito, a grande característica desses
mundos tradicionais é que a submissão ao Outro é maciça. Mas trata-se, por
isso, de sociedades sem inconsciente?
Para responder a essa pergunta, parece-me que
devemos distinguir dois tipos de sociedades tradicionais, muito diferentes: aquele
em que existe um Outro monolítico, como nas sociedades monoteístas, e aquele em
que existe um Outro múltiplo, como nas sociedades politeístas. (...) O segundo
caso introduz uma nuance importante: o indivíduo das sociedades arcaicas se
encontra igualmente dominado por um jogo de forças superiores que o ultrapassam
absolutamente, mas a dependência com relação a esse poder se encontra
transformada por sua multiplicidade. O indivíduo das sociedades politeístas
apresenta, assim, a particularidade de se revelar, através de suas narrativas,
como estando constantemente às voltas com um Outro múltiplo, mal apreensível.
Em última instância, como mostram as grandes narrativas gregas A ilíada e A odisseia, é preciso ao sujeito
nada menos que o recurso incessante aos adivinhos e pitonistas para interpretar
por oráculos os sinais divinos e para se orientar num mundo regido por forças
múltiplas e eventualmente contraditórias.
Essas forças, que podem ser, como diz
Vernant, “agrupadas, associadas, opostas, diferenciadas”22, intervêm
diretamente nos negócios humanos seja por manifestações exteriores
(desencadeamento de elementos naturais, tempestades, ventos, tremores de terra,
aparições de animais, doenças...), seja por manifestações interiores (ideias
que assaltam o espírito, sonhos premonitórios, elãs amorosos, ardores
guerreiros, pânico, vergonha...). O trágico
decorre precisamente dessa concepção religiosa de um mundo dilacerado por
forças em conflito: “o destino”, como diz Vernant a propósito do homem grego,
“é ambíguo e opaco”. Nenhum plano recobre o outro, de modo que o sujeito é
sempre dilacerado e ultrapassado por forças contraditórias a ponto de não poder
mais nem agir, nem não agir. Em caso nenhum ele pode escapar ao destino
incessantemente lido e interpretado, mas sempre cifrado e encriptado, que o
espera. Como Édipo fugindo para Corinto após o oráculo de Delfos lhe revelar
que ele mataria seu pai e esposaria sua mãe, é ao tentar escapar de sua funesta
sorte que ele encontra seu destino.
O traço dessas sociedades tradicionais com
respeito ao inconsciente me parece poder ser caracterizado assim: se esse mundo
parece sem inconsciente, como sugere Marcel Gauchet, é porque o inconsciente
não é constituído por recalques internalizados por um sujeito: ao contrário, é
constituído como inteiramente dado a ver pelos oráculos e pelas narrativas das
pitonistas, dos rapsodos, dos aedos e dos poetas inspirados, testemunhando os
planos do Outro.”
21: M. Gauchet La Démocratie
contre elle-même, Gallimard, Paris, 2002, cf. “Essai de psychologie contemporaine I”, p. 251.
22: J.-P. Vernant, Mythe et société en Grèce ancienne. Paris, Maspero, 1974, “La société des dieux”.
23: Numa notação capital, Vernant marca assim
que “o mito põe em jogo uma forma lógica [...] do ambíguo [...] que não seria a
da binaridade, do sim e do não”. J.-P. Vernant, Mythe et société en
Grèce ancienne, Maspero, Paris, 1974, cf. Conclusions.
“Após a definição das sociedades
tradicionais, caracterizadas pela hegemonia exclusiva de um grande Sujeito,
simples ou múltiplo, a definição das sociedades modernas é mais fácil: a
modernidade é um espaço coletivo no qual o sujeito é definido por várias dessas
ocorrências do Outro. Nesse ponto, minha tipologia seria, portanto, a seguinte:
existem sociedades com Outro múltiplo (como nos politeísmos), sociedades com
Outro único (como nos monoteísmos), sociedades com vários Outros. Estas últimas
correspondem ao advento da época moderna. A partir de então, não estamos mais
regidos por um grande Sujeito, mas por vários. A modernidade corresponderia,
pois, ao fim da unidade dos espíritos reunidos em torno de um único grande
Sujeito.
Seria isso a “modernidade”: a coexistência,
não necessariamente pacífica, de vários grandes Sujeitos.
Quando fixar a entrada de nosso mundo na
modernidade? Braudel responde, não sem humor: “em algum lugar entre 1400 e
1800”. Se fosse verdadeiramente preciso fixar um marco, eu faria a modernidade
remontar ao momento em que começaram as trocas de toda natureza (culturais,
comerciais, mas também guerreiras, colonizadoras) entre a Europa e a América,
por um lado, ou seja, 1492, data da conquista da América por Colombo, e entre a
Europa e o Oriente, ou seja, 1517, data da chegada dos portugueses à China, no
Cantão. Poderíamos então dizer que a virada do século XV para o século XVI na
Europa corresponde ao início da modernidade, que remete, no caso, ao início da
mundialização das trocas e do contato, frequentemente violento, das diferentes
populações do mundo. (...)
A modernidade é um espaço no qual, não
parando de mudar o referente universal, todo o espaço simbólico se torna
complexo. Há, pois, grande Sujeito na modernidade, Outro e até muitos Outros,
ou, pelo menos, muitas figuras do Outro.
Com a modernidade, o espaço e o tempo do
pensamento saíram de suas determinações locais: não estamos mais no tempo
imemorial do mito, no tempo referencial da manifestação de Deus aos homens, no
tempo crônico e rural dos trabalhos e dos dias, no tempo histórico da sucessão
dos reinados ou em algum outro tempo possível, estamos em todos os tempos ao
mesmo tempo.”
“A modernidade consagrou o desenvolvimento de
modalidades de dominação novas extremamente violentas (como a colonização e a
escravidão) colocadas em operação pela Europa contrariamente a outras
civilizações. Essas modalidades são caracterizadas por esse traço que J.-F.
Lyotard chama de diferendo. O diferendo
não vem do assujeitamento imposto por tal ou qual grande Sujeito, mas de um
terror de exceção, sem contestação, porque vindo de alhures, de um mundo
diferente determinado por um grande Sujeito diferente, que porta um julgamento
e uma sanção indiscutíveis e prévios, sempre sumariamente executáveis, que
quebram o princípio de encadeamento discursivo.
Paralelamente à generalização do diferendo no
exterior da Europa, a modernidade presenciou a criação de um novo espaço
discursivo caracterizado pela crítica
no interior. Tal é o paradoxo da modernidade: ter engendrado formas discursivas
tão radicalmente opostas. Essa antinomia já havia retido a atenção de J. M. G.
Le Clézio, em seu belo livro sobre a conquista do Novo Mundo: no instante em
que o Ocidente [...] inventava as bases de uma nova república, ele iniciava a
era de uma nova barbárie37. O desdobramento sem precedente do espaço
discursivo crítico no Ocidente é assim correlato a um silêncio ensurdecedor: o
silêncio do mundo indígena sem nenhuma dúvida é um dos maiores dramas da
humanidade.”
37: J.
M. G. Le Clézio, Le rêve mexicain ou lapenséc
interrompue, Gallimard, Paris, 1988, pp. 228.
“Com efeito, o sujeito moderno é crítico na medida em que não pode ser
mais que um sujeito que lida com várias referências que incessantemente entram
em concorrência, até mesmo em conflito.”
“Que descontinuidade, que mudança fundamental
poderíamos identificar entre o espaço moderno e o espaço dito pós-moderno?
Por que essa definição dupla do sujeito
moderno como neurótico e crítico se estilhaçou? Muito simplesmente porque mais
nenhuma figura do Outro, mais nenhum grande Sujeito vale verdadeiramente na
nossa pós-modernidade. Que grande Sujeito se imporia hoje às jovens gerações?
Que Outros? Que figuras do Outro haveria hoje, na pós-modernidade? Parece que
todos os antigos grandes Sujeitos, todos os da modernidade, estão ainda
disponíveis, mas que mais nenhum dispõe do prestígio necessário para se impor.
Com efeito, todos parecem atingidos pelo mesmo sintoma de decadência. Não se
parou de registrar o declínio da figura do Pai na modernidade ocidental – o
próprio Lacan, já em seu primeiro trabalho publicado, sobre os complexos
familiares, falava do declínio da imago paterna, isto é, do Pai em sua dimensão
simbólica, certamente, mas também de todas as figuras do Pai tal como se
apresentam com o Pai Celeste, com a Pátria e com todas as outras formas de
celebração do Pai. (...)
O diferendo,
o que quebra o princípio de encadeamento discursivo, outrora característico das
situações de colonização, se instalou, com Auschwitz, no coração da cultura
europeia. Mais nenhuma forma de grandes Sujeitos é possível. A civilização que
produziu esses grandes Sujeitos sucessivos, presumidos como nossos salvadores,
se autodevorou. Auschwitz desfez qualquer lei possível – fracasso ontológico
cuja fórmula mais mordaz e mais concisa possível foi dada pelo poeta Ghérassim
Luca: Como condenar em nome da lei / o crime cometido em nome da lei?51.
Enquanto o crime cometido em nome da lei (o genocídio dos índios, por exemplo,
ou o tráfico dos negros) permaneceu exterior ao território europeu, ele não
feria em nada a autoridade dos grandes Sujeitos do Ocidente, muito pelo
contrário; mas, quando o crime foi cometido no interior e conduziu à
autodestruição da civilização europeia, esses grandes Sujeitos se encontraram
deslegitimados em bloco. Todos de repente apareceram apenas como terríveis
ilusões sabiamente construídas que por fim nos conduziam apenas à mais
desconcertante das antinomias, a que transforma inverte, poderíamos dizer a lei
em crime e o crime em lei. Desde então estamos irremediavelmente entregues a
nós mesmos, todavia sem poder verdadeiramente assumi-lo.
Em suma, na pós-modernidade não há mais Outro
no sentido do Outro simbólico: um conjunto incompleto no qual o sujeito possa
verdadeiramente enganchar uma demanda, formular uma pergunta ou apresentar uma
objeção. Nesse sentido, é idêntico dizer que a pós-modernidade é um regime sem
Outros ou que a pós-modernidade é repleta de semblantes de Outros, que
imediatamente mostram o que são: tão cheios de presunção quanto as tripas.
Nada mais virá nos salvar, não há mais, na
pós-modernidade, narrativas soteriológicas, enquanto a modernidade delas era
farta.
51: G. Luca, Herós-Limite, Gallimard, 2001, cf. “Cedipe Sphinx” [1976], p. 206.
“Soçobramos numa autonomia toda ilusória,
apenas livres no caso de querer o que a mercadoria não para de oferecer. (...)
Nós nos encontramos num espaço que não é nem “autonômico” nem crítico, nem
mesmo neurótico, mas num espaço anômico sem referências e sem limite no qual
tudo se inverte, isto é, um espaço no qual nem todos os indivíduos se tornam
necessariamente psicóticos, mas no qual as solicitações para se o tornar são
abundantes.”
“Os amanhãs, sabemos, rápido desencantaram,
na medida em que as sociedades de construção da felicidade comunista
rapidamente se transformaram em vastas sociedades carcerárias. Nas suas duas
versões, russa e chinesa, essa narrativa está hoje muito desvalorizada depois
da queda do Muro e da passagem da China para uma economia de mercado
desenfreada. O colapso bastante brutal ocorreu após um período de um século de
grande explosão (Comuna de Paris, revolução russa, revolução chinesa,
movimentos de jovens dos anos 1960 em todos os países, guerrilhas, lutas no
terceiro mundo). Em certos países, restam, entretanto, pequenos núcleos, por
vezes folclorizados, que continuam a sustentar essa narrativa.
Entretanto, aquilo em que esses grupos
esbarram não é a morte política do proletariado. Ele sempre poderia voltar: a
história nunca foi avara de aparecimentos e reaparecimentos súbitos (não
esqueçamos que se governou um quarto da humanidade, a China, em nome de um
proletariado que praticamente nunca existiu!). O verdadeiro problema do
proletariado é sua possível morte teórica. Com efeito, na economia dita
neoliberal o trabalho não é mais aquilo em que repousa essencialmente a
produção do valor. O Capital não é mais constituído pela mais-valia (Mehrwert, em Marx) saída do excesso de
produção apropriado no processo de exploração do Proletário. O capital aposta
cada vez mais em atividades de alto valor agregado (pesquisa, engenharia
genérica, Internet, informação, comunicação), nas quais a parte do trabalho
assalariado pouco ou moderadamente qualificado é por vezes extremamente pouco
considerável. Mas, sobretudo, o Capital doravante faz vigorar plenamente a
gestão das finanças em movimentos especulativos de grande amplitude. Assim, a parte
da economia real decresce à medida da financeirização da economia que se
desenvolveu consideravelmente durante os últimos vinte e cinco anos a partir do
desenvolvimento de novos mecanismos financeiros e ferramentas de gestão do
capitalismo.”
“Antes o sujeito era sujeito como referido a
tal Deus, a tal terra ou a tal sangue. Era um Ser exterior que conferia seu ser
ao sujeito. Com a democracia, essa hétero-referência se transformou em autorreferência.
O sujeito de algum modo se transformou em sua própria origem. Entretanto, esse
referenciamento levanta muitos problemas. Talvez mais que os que resolva!
Talvez fosse doloroso para o homem descobrir que ele só podia ser sujeito sendo
sujeito de uma ficção, mas é mais penoso ainda se encontrar sem ficção: o risco
é de não mais ser sujeito. Entretanto, essa mutação não levanta apenas
problemas ontológicos, ela levanta, também e sobretudo, temíveis problemas
políticos – no sentido amplo de governo em geral e de governo de si em
particular.”
“Da mesma maneira, vemos tomar forma, em
todos os campos, pequenas narrativas de uso local e circunstaciadas (pagãs,
dizia Lyotard) que permitem a pequenas redes ternárias (com narrado, narrador e
narratário) se constituírem. Assim, vemos muitas tribos aparecerem68:
os que lidam com informática, os budistas, os motoqueiros, os internautas, os
amantes de ópera, os iniciados do piercing, os adeptos da tatuagem, os músicos
de rock ou punk ou rap ou tecno, os navegantes solitários, os esportistas das
grandes emoções, os que saltam no elástico... O laço social se dispersa assim
em uma multidão de socialidades, cada uma possuindo suas próprias fixações
referenciais. Cada confraria dispõe de seu código de honra, seus saberes, suas
obrigações contratuais, suas liturgias locais, suas palavras de passe, seus
ritos de iniciação, seus rituais, seus totens, seus signos de pertença
(vestimenta, penteado, tatuagem, paramentos). Mas o que constitui cada uma é
uma certa referência sacrificial em torno da qual o grupo se agrega.
Não sei se a grande narrativa (monoteísta,
por exemplo) era mais entusiasmadora, mas ao menos tinha uma vantagem em
relação a essas pequenas narrativas atuais: ela havia fixado o sacrifício em
uma figura central, o que impedia sua proliferação no corpo social. O sacrifício
de Isaac no judaísmo (no qual, após o desvio do golpe, se funda a múltipla
transcendência), o sacrifício de Jesus no cristianismo (morto para a redenção
dos homens) eram sacrifícios realizados de uma vez por todas, inscritos na
Escritura. Eles acolhiam a abjeção humana, que consiste em dever viver para
morrer, invertendo-a: o horror assim compartilhado se tornava sagrado. Quando
esse grande sacrifício não funciona mais, nada mais resta que retornar a formas
locais de sacrifício. Se algo não corre bem na relação social, reunimo-nos
localmente, lançamos a prova durante a qual um vai morrer, tomando para si a
angústia, o que permitirá acalmar os espíritos até a próxima vez. Os
motoqueiros, por exemplo, rodarão até que um deles morra. A seguir eles
cantarão as virtudes do defunto, que ousou desafiar os perigos. Mesmo o bravo
telespectador que olha, durante horas, os carros de corrida nos circuitos no
domingo na televisão só pode esperar uma coisa: que um Ayrton Senna se
arrebente na pista! É em torno desses mortos gloriosos, que saíram do lugar
comum para escolher a hora ou o meio de sua morte, que a comunidade se reúne.
Por vezes, não é diretamente a morte que constitui o objetivo, mas alcançar um
ponto de ruptura para além do qual se está certo de estar em perigo. Passada
uma certa profundidade para o mergulhador, está-se sob o risco da loucura das
profundezas. Passado um certo tempo nos comandos diante da tela para o
cibernauta, está-se sob o risco ou de entrar em outros mundos, ou de sérios
cortes com esse mundo daqui. Passado um limiar de marcações corporais
(escarificações, piercing...), está-se sob o risco de desaparecer por trás de
suas tatuagens69.
Tantas formas de sacrifício, tantas
narrativas flutuando entre si...
Essas pequenas narrativas de valor local
evidentemente provocam um estranho sentimento de dejà vu: são grandes
narrativas estilhaçadas em situações marginais. Segundo a fórmula refletida
empregada por Gianni Vattimo, elas põem em jogo na pós-modernidade um “imenso
canteiro de sobrevivências” que testemunham perfeitamente a persistência “do
primitivo em nosso mundo”70.”
68 M.
Maffesoli, Le Temps des tribus,
Méridien Klincksieck, Paris, 1988. “Tempo de tribos”
no qual Maffesoli via, bem irrefletidamente, o declínio do individualismo nas
sociedades de massa (subtítulo da obra).
69: Ver o estudo clínico de J.-L. Chassaing,
“Élodie au corps peint”, em Le Discours
psychanalytique, n° 22, outubro de 1999.
70: G.
Vattimo, La fin de la modernité. Nihilisme et herméneutique
dans la culture post moderne, Seuil, Paris,
1987, p. 164.
“Nunca se manifestará suficiente estupefação
diante de uma instância política (O Estado) que explica inocentemente que ela
deve desaparecer como tal, quando é justamente porque tem a pretensão de um
império absoluto que o Mercado deve ser constantemente vigiado. Os homens
políticos que pedem o desmantelamento do Estado se encontram assim quase que na
mesma posição do vigia de uma central nuclear que explicasse por que se deve
deixar o reator sem vigilância. Certamente que isso arrisca produzir mais
energia, mas também algumas Tchernobyl sociais. Quando o controle externo é
relaxado, nada, nenhuma forma social, nem cultura pode se opor ao domínio
exclusivo do Mercado. A ponto de uma sociedade idealmente submetida ao Mercado
só poder funcionar destruindo em grande parte seu tecido (industrial, social,
cultural) de modo a redistribuí-lo segundo as modalidades do fluxo tenso e da
organização de urgência. Já que é preciso poder receber capitais que sempre
podem ir embora tão rápido quanto chegam, e até ir embora mais rápido do que
chegam, em última instância torna-se necessário, em tempo de paz, reorganizar
amplos setores da sociedade segundo modalidades análogas às do campo de
refugiados.”
“Com efeito, numerosos indivíduos tomam hoje
regularmente, em nossas sociedades, antidepressivos, cujo emblema é o Prozac. O
fato de que esse medicamento tenha se tornado hoje um nome tão comum quanto a
“aspirina” ilustra bem a extensão do fenômeno. Entretanto, não devemos crer que
essa situação afeta, de alguma forma que seja, o curso democrático, muito pelo
contrário. Com efeito, hoje, tomar Prozac ou qualquer outro medicamento
pertencente a essa classe de antidepressivos ditos “confortáveis”, faz parte
dessas novas possibilidades “democráticas” que proporcionam ao pequeno sujeito
deprimido a capacidade de “trabalhar seu interior mental” para “se sentir
melhor”, até mesmo “melhor que si”. Uma das consequências é que a distinção entre
se cuidar e se drogar tende a se atenuar em nossas sociedades democráticas
pós-modernas. A outra consequência é que se torna difícil, nessas condições de
modificação artificial e permanente do humor, dizer o que vem de si mesmo ou da
fabricação artificial de si.”
“Quando pensamos num passado recente e nas
maneiras que cercavam então o sujeito moderno, só podemos ficar chocados com as
diferenças entre este e o sujeito pós-moderno. O sujeito moderno trazia nele
algo como a paixão de ser um outro, isto é, o desejo de se produzir como
sujeito do Outro. Quantas formas possíveis desse desejo de ser um outro a
modernidade inventou? Lembramo-nos dos resplandecentes sujeitos de uma
modernidade recente: era preciso tornar-se o sujeito visionário do Poema, o sujeito
do proletariado, o sujeito da pura intensidade do inconsciente, o sujeito de
culturas outras, longínquas, perdidas, esquecidas...? A esse desejo de ser um
outro, portado pela Kulturarbeit da
época moderna, o sujeito pós-moderno responde hoje que quer apenas ser ele
mesmo, nada mais que ele.”
Este foi um dos livros em que estive na dúvida ao longo de sua leitura sobre qual nota atribuir, bom ou muito bom. O que acabou decidindo foi o capítulo 3 (pp. 151-187), onde o livro muda totalmente de foco, se desvia da linha que seguia e se aprofunda na psicanálise de maneira tortuosa – comentando sobre algumas polêmicas de Freud em relação a outros autores.
ResponderExcluirO capítulo é totalmente deslocado deste livro, o autor forçou a barra para inseri-lo.
Outro ponto negativo foi a tradução, bastante infeliz.
De qualquer modo, fica o destaque, em várias passagens (como as aqui destacadas) o livro merecia qualificação melhor do que a que lhe foi dada.