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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Do Terror à Esperança: auge e declínio do neoliberalismo (Parte IV) – Theotonio dos Santos

Editora: Ideias & Letras

ISBN: 978-85-9823-910-1

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 538

Sinopse: Ver Parte I

 

 

“Após três décadas de hegemonia do pensamento único na economia mundial, notamos o aparecimento de um novo conceito que é cada vez mais usado. Trata-se da ideia de “volatilidade”. São fundados na intuição e não na ciência. Na verdade, estes anos de desregulamentações, privatizações e chamados ao livre mercado somente conseguiram ampliar a margem de desequilíbrio e “volatilidade” das economias nacionais no ambiente de uma economia mundial cada vez mais desequilibrada.

Talvez o exemplo mais evidente deste fenômeno seja a participação cada vez mais intensa do Fundo Monetário Internacional no “monitoramento” das economias nacionais. Na realidade, o FMI foi criado depois da Segunda Guerra Mundial para apoiar situações de desequilíbrio cambial, que no princípio acreditava-se que seriam raras. Contudo, em nossos dias, o FMI está metido em quase todas as economias nacionais dependentes e periféricas, onde mantém missões mais ou menos permanentes.

É evidente que nenhum país desenvolvido recorre ao apoio do FMI. Muito menos se submetem ao seu controle. No ano passado o governo japonês lhe passou um pito muito duro por se atrever a recomendar políticas para este país.

Isto não acontece porque estes países não apresentam desequilíbrios cambiais e fiscais colossais. Eles são campeões em déficits cambiais e fiscais. Qualquer pessoa mais ou menos informada sabe que estes chamados problemas “técnicos” na economia não passam de questões de poder político.

Por sinal, sob o ponto de vista “técnico”, o FMI é campeão de previsões equivocadas e recomendações desastrosas. Os que têm dúvidas a respeito podem ler o relatório da comissão encarregada pelo próprio banco de revisar suas políticas nos últimos anos. Nenhum ministro de economia de países desenvolvidos se submeteria às recomendações destes “técnicos”.

Se querem um exemplo, podemos citar o caso das taxas de juros administradas pelos Bancos Centrais. Nos Estados Unidos, no Japão e na Europa as taxas de juros foram baixadas drasticamente recentemente para deter a ameaça de recessão. A questão inflacionária foi decididamente colocada em segundo plano. Para desmentir uma vez mais os conhecimentos “técnicos” destes senhores, a inflação vem baixando na medida em que baixa a taxa de juros e estamos diante de uma situação de deflação.

Estes fatos não significam nada para os “técnicos” do FMI. Eles continuam obrigando os presidentes dos Bancos Centrais do mundo periférico a concentrar suas decisões única e exclusivamente nas metas de inflação. Metas inventadas e corrigidas cada ano, pois nunca conseguem acertar uma.

Como podem ver os leitores (e gostaria que os políticos de esquerda que chegam ao poder o observassem também) nenhum governo sério segue as recomendações do FMI. No momento atual, todos se preocupam em primeiro lugar com a recessão e somente secundariamente com a inflação. Na verdade, a relação entre taxa de juros e inflação parece ser exatamente o oposto do que a “teoria” econômica de origem ultraliberal pretende.

A verdade é que a intromissão do FMI nas economias dependentes somente fez aprofundar as suas dificuldades, agregando às limitações estruturais destes países, os desequilíbrios impostos pelo sistema financeiro internacional. (...)

Na realidade não há nenhuma “volatilidade”. O que há é uma captação brutal dos excedentes econômicos gerados em nossos países através dos mecanismos manejados pelo sistema financeiro internacional. Mecanismos que se somam aos procedimentos tradicionais de captação de nossos excedentes, desenvolvidos desde a época colonial até hoje e que contam com a cumplicidade de nossas classes dominantes locais, sempre interessadas em retirar seus excedentes para os países centrais que são mais livres deste tipo de “volatilidade”.”

 

 

“Foi no Chile de Pinochet que os ultraliberais, derrotados durante a Segunda Guerra Mundial, encontraram um abrigo. O grupo dos economistas de Chicago, centro do enfoque ultraliberal desenvolvido nos encontros de Mont Péllerin, foi chamado para pôr em prática suas ideias nas condições ideais criadas pela ditadura de Pinochet.

A ausência de uma oposição ativa, uma economia de grande presença internacional através de um produto chave, o cobre, nacionalizado por Allende e colocado a serviço de uma experiência de desenvolvimento econômico, com uma reforma agrária que criara as melhores condições possíveis para a modernização da produção agrícola e uma classe dominante coesa pelo medo da revolução socialista foram as bases para iniciar a experiência neoliberal que logo se estendeu para a Inglaterra de Thatcher e os Estados Unidos de Reagan.

Nos anos seguintes a perspectiva neoliberal tentou impor-se no mundo todo, mas teve uma difusão especial na América Latina, pressionada por seu endividamento internacional e por outras aventuras econômicas inspiradas pelas ditaduras militares e pelo domínio do pensamento reacionário.

Este se instaurou nas organizações internacionais e em várias universidades até chegar ao controle dos comentaristas econômicos da grande imprensa e estender-se por todos os poros da sociedade, particularmente entre as elites empresariais, políticas, profissionais e burocráticas.

Mas as marcas da modernização neoliberal tiveram seu lado perverso claramente exposto na medida em que avançava a aplicação de seus preceitos à vida econômica das pessoas. O fortalecimento da concentração da receita, o aumento das populações pobres e miseráveis, o crescimento do desemprego e da economia informal, o aumento da dependência econômica, social, política e sobretudo cultural, a intensificação da violência e da desintegração das instituições básicas da sociedade foram minando o discurso neoliberal até que as crises econômicas e a volatilidade dos movimentos financeiros produziram seu questionamento radical.

Esta é a situação que vemos hoje na região, os enormes aparatos culturais manejados pelas mídias não conseguem convencer as pessoas das bondades das políticas neoliberais. O avanço democrático, que os líderes da proposta pensavam manejar sem problemas através do marketing eleitoral, começa a minar o projeto neoliberal de ponta a cabo do continente.

É claro que este rechaço popular não comove em nada os neoliberais. Para eles as políticas econômicas são meras aplicações dos princípios abstratos que manejam. O voto somente tem sentido como um mecanismo para atender a necessidade de participação das pessoas, aumentando a legitimidade do regime e das políticas que cabe aos entendidos definir.

Suas gestões foram baseadas no esmagamento e na total insensibilidade para com os protestos populares. Assim como Pinochet entrou no governo sobre os cadáveres dos trabalhadores chilenos, a Sra. Thatcher reprimiu com fúria excepcional os mineiros de carvão na Grã-Bretanha, e Reagan deu uma lição radical nos trabalhadores aeroviários nos Estados Unidos. Este método intimidante, junto às medidas de choque, passou a caracterizar a metodologia das experiências neoliberais.

Em nenhuma parte desta doutrina a força da representação popular ocupa algum espaço. É, pois, natural, que não respeitem a vontade popular expressa nas urnas. Não foram poucos os governos que se elegeram contra a política do FMI e se entregaram a seus princípios “científicos” logo que chegaram ao poder.

É interessante ver, por exemplo, como um governo (FHC) rechaçado por 70% da população brasileira tenta impor a seu provável sucessor as condições para deixar de ser demagógico e “populista”. Quer dizer, os derrotados que levaram o país ao caos e que recebem o repúdio da grande maioria “exigem” do novo governo que abandone as políticas que o levaram ao poder.

Esta visão tecnocrata do Estado e de suas funções é outra característica essencial do neoliberalismo. Trata-se de um programa político profundamente antidemocrático. Isto explica a dimensão do caos que provocam na vida das pessoas que desprezam radicalmente. Isto explica também a profundidade da crise em que nos afundamos.”

 

 

“É lamentável constatar a dificuldade dos presidentes dos Estados da América Latina de apresentar caminhos sólidos de superação das chagas que nos conduzem à barbárie, à fome e à violência. É relevante assinalar a presença de organizações internacionais como a FAO, a CEPAL, o BID para reforçar, com os dados existentes, a evidência da extensão da tragédia que recai sobre o subcontinente.

Independentemente de alguns dados positivos encontrados por estes organismos, devido sobretudo às mudanças de critérios de medição, os diagnósticos são sempre os mesmos: ampliam-se a miséria, a fome, a deficiência educacional, a distribuição negativa da renda, a concentração da mesma, a violência generalizada, a rebeldia social e política, sem encontrar um canal de realização de suas críticas e tantos outros diagnósticos tremendamente negativos.

O dramático não é que os diagnósticos se repitam senão que se reforce, ao mesmo tempo, a defesa dos princípios de política econômica que conduzem ao aprofundamento dos mesmos problemas. A apresentação dos fatos é acompanhada das análises reacionárias que ocultam em vez de revelar os dramas de nossos povos.

Continua-se acreditando que temos baixa capacidade de poupança e necessitamos de capital internacional para apoiar nossa deficiência em investimentos. Contudo, os dados mostram claramente que se extraem de nossos países quantidades cada vez maiores de recursos sob a forma de fuga de capitais, pagamento de juros, remessas de lucro, pagamento de serviços muito duvidosos e outros necessários, mas que poderíamos substituir por produção interna.

Está absolutamente claro que a submissão aos princípios monetaristas e recessivos do Fundo Monetário Internacional tem aumentado de maneira dramática os impasses das políticas econômicas dos países da região. É totalmente falso afirmar que a região não tem possibilidades de resolver seus problemas fundamentais por falta de recursos materiais e humanos.

Pelo contrário, toda a região se caracteriza por dispor de amplos recursos minerais, agrícolas e humanos. O que falta é a vontade política organizada para romper os termos de intercâmbio desfavoráveis no cenário mundial. Ao mesmo tempo, falta uma vontade política unificada para orientar as políticas econômicas para a defesa e para o bom aproveitamento destas riquezas, para o desenvolvimento tecnológico consistente e para a elevação da qualidade de nossos recursos humanos.

Claro que para re-orientar tão drasticamente séculos de dependência, concentração da riqueza, sobre-exploração do trabalhador, marginalização e exclusão das grandes massas subempregadas ou abertamente desempregadas é necessária uma mudança da correlação entre as forças sociais. E é aí onde o diagnóstico se perde ao darmos a entender que estas situações tão negativas são uma consequência de nossa pobreza e não as criadoras da mesma.

Na realidade, vivemos numa etapa de desenvolvimento da humanidade na qual existem os meios materiais, técnicos e humanos para eliminar definitivamente a pobreza, a fome, o analfabetismo, a alta taxa de mortalidade infantil, as pestes e as grandes enfermidades. Estes problemas são coisas do passado que somente se perpetuam e se agravam em consequência da manutenção de relações sociais e políticas arcaicas baseadas na dependência, no desprezo das massas, no autoritarismo como método de governo e outras tristes expressões de nossa história colonial, oligárquica e escravista.

É verdade que não podemos esperar de governantes comprometidos, com os poderosos interesses que dominam nossas sociedades, uma disposição para uma mudança social profunda. Mas sim se poderia esperar alguma disposição para reformas mínimas, capazes de mover para frente a roda da história através de uma valorização dos fatores de progresso. O crescimento econômico, uma reorientação da distribuição da renda, uma defesa mínima da soberania nacional, de seu próprio mercado interno, do pleno emprego, da utilização do Estado como fator de equilíbrio social e defesa dos interesses nacionais.

O grave da situação latino-americana é o abandono destes valores básicos pelas classes dominantes locais e até por setores importantes das classes médias. A adoção do pensamento neoliberal como referência dogmática, importada dos centros fundamentais do poder desde uma perspectiva totalmente acrítica, se converteu num instrumento de bloqueio mental e político que afastou radicalmente de seus próprios povos um setor muito significativo desta oligarquia.

Se quisermos um exemplo desta alienação intelectual devemos analisar com um pouco de atenção as propostas que se reforçam, nesta cúpula (Ibero-Americana, que reúne os presidentes e chefes de Estado da América Latina, Espanha e Portugal) no sentido de exigir dos países centrais do sistema econômico mundial, o chamado primeiro mundo, que abandonem suas políticas protecionistas para permitir o aumento das exportações de produtos agrícolas ou semi-industrializados dos países dependentes.

A primeira conclusão evidente é constatar o caráter infantil de uma demanda típica dos discípulos que pedem coerência aos seus mestres. Estes senhores acreditaram no conto do livre comércio que nenhum país soberano leva à prática.

É simplesmente ridículo pretender obrigar os Estados Unidos à prática do livre comércio. Isto seria pedir-lhe que negue os fundamentos de seu Estado nacional. Desde a independência com Hamilton até a guerra civil com Lincoln, ou ao imperialismo com Theodore Roosevelt até os nossos dias com Bush, a burguesia norte-americana lutou pelo protecionismo e, para impor o mesmo, recorreu às armas levando à morte milhões cidadãos.

A maior parte da Europa (exceto a Grã-Bretanha iniciadora da revolução industrial) tem vivido entre guerras, o que a levou a fundar a sua identidade cultural numa agricultura familiar cuja destruição, em nome do livre mercado, representaria não somente uma perda dramática de identidade, mas também de condições de segurança alimentar que dificilmente estaria disposta a aceitar. E o que dizer do Japão que iniciou e perdeu uma guerra para assegurar sua independência das importações de bens essenciais como o petróleo e os alimentos básicos?

Nenhum povo solidamente implantado está disposto a entregar ao mercado a definição de seus valores fundamentais. O delírio neoliberal que pretende atribuir ao mercado a direção e a orientação das mais profundas atitudes humanas não encontra raízes em nenhum povo civilizado. Podem adotar em seu discurso para consumo externo, mas jamais se disporão a praticá-lo em seus países.

Mas há razões mais profundas para questionar esta estratégia de “exigir” dos países centrais que se abram para permitir-nos aumentar nossas exportações de produtos primários que só aprofundarão nossa posição dependente na economia mundial. A atual oligarquia latino-americana renunciou ao sonho de uma geração de empresários que pretendiam transformar as bases de nossas economias e assegurar a industrialização, a inovação tecnológica e a competência de ponta na economia mundial. A oligarquia dependente insiste em competir na economia mundial através de nossas chamadas “vantagens comparativas”: os bens naturais e a mão-de-obra barata.

Depois da Segunda Guerra Mundial, sob a ocupação norte-americana, os dirigentes do Japão se propuseram a competir na ponta da tecnologia mundial e não aceitar as teorias ocidentais das vantagens comparativas. Mas o leitor dirá: a classe dominante do Japão nunca havia sido uma classe dominante dominada e não conhecia a condição colonial. Pois sim: esta é uma boa razão para explicar a diferença.

Mas os acontecimentos são irredutíveis. Quando uma classe dominante se mostra inferior às oportunidades históricas de que dispõe para atender à maioria de sua população, se coloca no caminho do abismo.”

 

 

“Várias notícias apresentam um conjunto de manifestações no sentido do fim da ortodoxia neoliberal. Elas provêm de várias origens e indicam realmente um descenso da ortodoxia do pensamento único que se impôs a partir da década de 80. (...)

Entre neokeynesianos, transformados em estruturalistas na América Latina (devido à sua interpretação da inflação, vista como resultado da dificuldade da oferta em atender à demanda da região, em consequência das debilidades estruturais que limitavam a produção local) e monetaristas (num período, adaptado à ortodoxia neokeynesiana, ao aceitar a importância do crescimento econômico como meta, mas sempre reafirmando a necessidade de controlar a oferta de moeda e crédito como fator de estabilidade) havia uma polêmica na qual se radicalizavam os instrumentos de interpretação do fenômeno inflacionário, considerado inimigo absoluto pelos monetaristas e possível aliado pelos estruturalistas.

A prática é o critério da verdade para as lutas sociais. E a prática neokeynesiana estava ligada ao êxito de suas recomendações, na medida em que avançava a industrialização da região e sua capacidade de gerar emprego para a sociedade, lucros para os capitalistas nacionais e sobretudo para os internacionais, que aqui instalavam suas empresas multinacionais aproveitando-se dos mercados nacionais em expansão.

Nesta época as multinacionais estavam contentes com as altas restrições tarifárias impostas pelos governos locais para garantir suas vantagens em monopolizar os mercados nacionais. A literatura econômica sempre se esquece da importância do livre câmbio quando as classes dominantes necessitam de mercados nacionais protegidos. Era a época das teorias do desenvolvimento econômico social e o debate se concentrava na maior ou menor capacidade de lográ-lo.

As dificuldades geradas por um crescimento econômico baseado na importação de capitais que visavam e visam sobretudo captar todos os recursos disponíveis nos mercados nacionais protegidos, começaram a aparecer na metade dos anos 60. O golpe de Estado de 1964 no Brasil entregou o poder aos monetaristas com o objetivo de assegurar a estabilidade monetária contra a proposta estruturalista de ampliar os mercados nacionais pela via da reforma agrária e de outras reformas capazes de distribuir a renda e ampliar o consumo.

Os monetaristas de então não deixavam de preocupar-se com o desenvolvimento e terminaram por servir aos militares ao atender suas ambições de crescimento sem distribuição da renda e sem rompimento com as multinacionais. Como demonstramos na época, este modelo de desenvolvimento conduziria ao endividamento internacional, à concentração econômica e à centralização do capital, à dependência, à concentração da renda e à exclusão social. Apontávamos também para a implantação do capital financeiro na região, o que levaria ao triunfo do enfoque monetarista. Em seu primeiro momento, este enfoque se demonstrava capaz de enxaguar o aparelho produtivo deixado pelo protecionismo “à outrance”, gerado pela prática estruturalista, e seus artífices foram capazes de provocar um novo período de crescimento como o demonstramos na época (1964) apesar da quase unanimidade da opinião contrária dentro das forças progressistas.

Este caminho de um desenvolvimento autoritário e concentrador se explicava também pelas dificuldades do capital multinacional de superar as tensões geradas no centro do sistema mundial devido aos limites que se impunham ao processo de acumulação do capital. Os mercados externos tendiam a esgotar-se como o indicamos. Apostar em sua expansão tinha altos custos políticos que as grandes metrópoles não queriam pagar. Daí a ideia de mudar para estes países de desenvolvimento médio grande parte da atividade industrial de menor valor agregado. Estava-se criando o modelo de desenvolvimento secundário exportador que a literatura econômica crítica da região tão bem estudou.

Mas na década de oitenta o projeto do capital multinacional se viu cada vez mais atropelado pelas dificuldades da acumulação internacional de capital e pela ascensão do capital financeiro, no qual se concentravam os excedentes econômicos bloqueados pela dificuldade de ampliar os investimentos produtivos. A crise obrigou o grande capital a se apoiar cada vez mais no Estado para dirimir suas dificuldades.

Foi assim que a sra. Thatcher na Inglaterra e o sr. Reagan nos Estados Unidos iniciaram um período da economia mundial baseado nos mais espetaculares déficits fiscal e cambial da história humana. Em 1973, os Estados Unidos abandonaram a convertibilidade do dólar em ouro, estabelecida em Bretton Woods, realizando a maior quebra de contratos conhecida na história. Este ato de aventura econômica foi realizado por um conservador, que teve de admitir que “todos somos keynesianos”. Tratava-se de salvar os Estados Unidos dos efeitos negativos de sua política de déficit fiscal (levada ao extremo durante a guerra do Vietnã) e de seu déficit comercial (ampliado pela especialização da economia norte-americana na tecnologia de ponta de signo militar). Era necessário que o resto do mundo pagasse o devido custo desta política vendo seus dólares se desvalorizarem maciçamente (do valor oficial de 35,00 US$ por onça ouro para o valor de mercado de aproximadamente 350 US$ por onça ouro).

A derrota no Vietnã pôs em crise a política aventureira de déficit fiscal, enquanto os Estados Nacionais do chamado Terceiro Mundo se fortaleciam, sobretudo os países petroleiros, que formavam um cartel — a OPEP lhes permitiu elevar o preço do petróleo mais ou menos na mesma proporção que a desvalorização do dólar em relação ao ouro. Os exportadores de matérias-primas buscavam mudar as regras das relações internacionais através do estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Mundial, em aliança com os países socialistas. Ao mesmo tempo, os aliados dos Estados Unidos, como o Japão e a Alemanha, se mantinham em crescimento, alterando a correlação de forças entre os países centrais do sistema mundial.

O restabelecimento do poder hegemônico norte-americano, ameaçado nestas novas condições, baseou-se numa retomada do valor do dólar e de sua capacidade de atrair capitais do resto do mundo para os Estados Unidos, abrindo o mercado norte-americano para o exterior, através de um gigantesco déficit comercial, enquanto se ampliava a demanda deste país enormemente através de um extraordinário déficit público, coberto pela compra de títulos da dívida estatal norte-americana.

É incrível constatar como a maior intervenção monetária da história humana se realizou em nome do equilíbrio fiscal e cambial gerando o maior desequilíbrio fiscal e cambial da história. As taxas de juros passaram a ser o principal instrumento de política econômica, provocando uma transferência colossal de recursos do resto do mundo para os Estados Unidos e do setor produtivo para o financeiro.

É incrível constatar como se produziu, então, um verdadeiro assalto aos Estados Nacionais para salvar as taxas de lucro do capital privado, custe o que custar. Como foi possível recorrer aos neoliberais para justificar o maior movimento de endividamento estatal da história?

Como se conseguiu elevar os desequilíbrios fiscais e cambiais aos níveis mais altos da história em nome de uma doutrina que se baseia na tese do equilíbrio geral como condição para o bem-estar social?

Como aumentaram dramaticamente a dívida e os gastos públicos sob o auge das teses neoliberais?

É a constatação destes fatos que fez o grande “teórico” neoliberal Milton Friedman, em seus 92 anos, autocriticar-se e dizer que hoje em dia não está mais seguro de sua defesa do controle da emissão monetária e do gasto público pois, nos anos de hegemonia de seu pensamento, o que mais aumentou no mundo foi o gasto público. Este só foi controlado na década de 90, através de uma administração democrática, para seu desencanto político e agora se encontra ameaçado novamente por um presidente republicano, “tão gastador como seu pai”. O neoliberalismo ainda seria uma piada, como seus teóricos eram tratados nos anos 50, quando ninguém lhes dava bola. Mas infelizmente ele se converteu numa realidade para servir a interesses econômicos muito concretos e poderosos. Apesar da crise que se expande no mundo em função de suas políticas aventureiras, eles procuram se disfarçar de sérios e austeros escondendo-se atrás de uma “teoria” que nada mais fez do que disfarçar a verdadeira realidade: a crise, o desequilíbrio, a concentração, a pobreza e a exclusão.”

 

 

“Para mim, a crise asiática refletia mudanças globais nas relações das economias do leste asiático com os Estados Unidos devido à reorientação da política econômica desse país. O governo Clinton abandonou a política de altas taxas de juros, déficit fiscal, valorização cambial e déficit comercial realizada durante os governos Reagan e Bush, para passar a uma política de baixas taxas de juros, equilíbrio fiscal, desvalorização monetária e diminuição de seu déficit comercial.

A nova política limitava drasticamente o mercado norte-americano no qual havia se apoiado a expansão comercial dos chamados “tigres” asiáticos, dos “gatos” que os seguiram e do próprio Japão. A valorização do yen (que valia de 136 Yens por dólar, no começo da década de 90, a 84 yens por dólar em 1996) levou a uma mudança das correntes comerciais da Ásia, particularmente do Pacífico Leste. Grande parte das exportações que se orientavam para os Estados Unidos se reorientaram para o Japão, cuja valorização monetária o transformava num grande importador, sem necessidade de nenhuma desvalorização cambial das demais economias exportadoras. Nesse período, a China Continental veio a ocupar o espaço deixado livre no mercado norte-americano. Sua moeda esteve profundamente desvalorizada durante todo o período. Aliados a uma política industrial, profundamente favorável à exportação, desenvolveram uma série de iniciativas voltadas para a participação ativa da China na economia mundial.

Essa situação mudou radicalmente com a desvalorização do yen conseguida por pressões japonesas no final de 1996 e começo de 1997. O yen, que havia alcançado o alto valor de 84 yens por dólar caiu em poucos meses para 130 e até 140 yens por dólar. Em consequência, o mercado japonês para os “tigres” e “gatos” asiáticos desabou.

Como voltar ao mercado norte-americano já ocupado pela China Popular? Haveria que desvalorizar drasticamente as moedas destes vários países (na mesma proporção da desvalorização japonesa) para recuperarem seu poder de venda, tanto para os Estados Unidos quanto para o Japão. Haveria que reestruturar a política industrial de complementaridade com o Japão para enfrentar-se ao mercado americano e ao competidor chinês.

Neste contexto, as economias do leste asiático, menos a China Continental, Hong Kong e Taiwan, se converteram em presas fáceis da especulação internacional. Os créditos fáceis de origem japonesa, as entradas de capitais especulativos de curto prazo para explorar a valorização bursátil e as oportunidades de investimento converteram-se em fatores de fragilidade. A desvalorização era o único caminho. Mas com ela vinham a fuga de capitais e o agravamento da crise cambial. E a intervenção estatal inexorável ao lado do capital financeiro.

Pois, sejamos claros, como vimos defendendo no transcorrer deste livro, no mundo sob inspiração neoliberal que ainda rege a ação das instituições financeiras internacionais, o dogma da não intervenção estatal desaparece imediatamente quando se trata de defender os interesses do setor financeiro. Juros altos, aumento da dívida pública, financiamento das instituições financeiras em quebra são formas brutais de intervenção estatal que não provocam nem uma só restrição dos neoliberais. Claro que todos sabemos a quem servem estas teorias.”

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