Editora: Imago
ISBN: 978-85-3120-974-1
Tradução: Órizon Carneiro Muniz
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 278
“O
Herói da tragédia deve sofrer; até hoje isso continua sendo a essência da
tragédia. Tem de conduzir o fardo daquilo que era conhecido como ‘culpa
trágica’; o fundamento dessa culpa é fácil de descobrir, porque, à luz de nossa
vida cotidiana, muitas vezes não há culpa alguma. Via de regra, reside na
rebelião contra alguma autoridade divina ou humana e o Coro acompanhava o Herói
com sentimentos de comiseração, procurava retê-lo, adverti-lo e moderá-lo,
pranteando-o quando encontrara o que se sentia ser a punição merecida por seu
ousado empreendimento.
Mas
por que tinha de sofrer o Herói da tragédia? E qual era o significado de sua
‘culpa trágica’? Tinha de sofrer porque era o pai primevo, o Herói da grande
tragédia primitiva que estava sendo reencenada com uma distorção tendenciosa, e
a culpa trágica era a que tinha sobre si próprio, a fim de aliviar da sua o
Coro. A cena no palco provinha da cena histórica através de um processo de
deformação sistemática – um produto de refinada hipocrisia, poder-se-ia mesmo
dizer. Na realidade remota, haviam sido verdadeiramente os membros do Coro que
tinham causado o sofrimento do Herói; agora, entretanto, desmanchavam-se em
comiseração e lamentações e era o próprio Herói o responsável por seus próprios
sofrimentos. O crime que fora jogado sobre seus ombros, a presunção e a
rebeldia contra uma grande autoridade era precisamente o crime pelo qual os
membros do Coro, o conjunto de irmãos, eram responsáveis. E assim o Herói
trágico tornou-se, ainda que talvez contra a sua vontade, o redentor do Coro.
Na
tragédia grega, o tema especial da representação eram os sofrimentos do bode
divino, Dionísio, e a lamentação dos bodes seus seguidores, que se
identificavam com ele. Assim, sendo fácil compreender como o drama, que tinha
se extinguido, voltou a brilhar com nova vida na Idade Média, em torno da
Paixão de Cristo.
Ao
concluir, então, esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de
insistir em que o resultado dela mostra que os começos da religião, da moral,
da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo. Isso entra em
completo acordo com a descoberta psicanalítica de que o mesmo complexo
constitui o núcleo de todas as neuroses, pelo menos até onde vai nosso
conhecimento atual. Parece-me ser uma descoberta muito surpreendente que também
os problemas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto
concreto: a relação do homem com o pai. (...)
Os
preceitos e restrições morais mais antigos da sociedade primitiva foram por nós
explicados como reações a um ato que deu àqueles que o cometeram o conceito de
‘crime’. Sentiram remorso por ele e decidiram que não se deveria repetir e que
sua execução não traria vantagens. Este sentimento de culpa criativo ainda
persiste entre nós. Encontramo-lo operando de uma maneira não social nos
neuróticos e produzindo novos preceitos morais e restrições persistentes, como
expiação por crimes que foram cometidos e precaução contra a prática de novos.
Se, contudo, pesquisarmos entre esses neuróticos para descobrir quais foram os
atos que provocaram tais reações, ficaremos desapontados. Não encontraremos
atos, mas apenas impulsos e emoções, pretendendo fins malignos, mas impedidos
de realizar-se. O que jaz por trás do sentimento de culpa dos neuróticos são
sempre realidades psíquicas, nunca realidades concretas. O que
caracteriza os neuróticos é preferirem a realidade psíquica à concreta,
reagindo tão seriamente a pensamentos como as pessoas normais às realidades.
Não
poderá o mesmo ser verdade quanto aos homens primitivos? Temos justificativas
para acreditar que, como um dos fenômenos de sua organização narcisista, eles
supervalorizam seus atos psíquicos a um grau extraordinário. Consequentemente,
o simples impulso hostil contra o pai, a mera existência de uma fantasia
– plena de desejo de matá-lo e devorá-lo, teriam sido suficientes para produzir
a reação moral que criou o totemismo e o tabu. Desta maneira, evitaríamos a
necessidade de atribuir a origem de nosso legado cultural, de que com justiça
nos orgulhamos, a um crime odioso, revoltante para todos os nossos sentimentos.
Nenhum dano seria assim feito à cadeia causal que se estende desde os começos
aos dias atuais, pois a realidade psíquica seria suficientemente forte para
suportar o peso dessas consequências. A isto se poderá objetar que realmente
efetuou-se uma alteração na forma da sociedade, de uma horda patriarcal para um
clã fraterno. Trata-se de um argumento poderoso, mas não conclusivo. A
alteração poderia ter sido efetuada de uma maneira menos violenta e, não
obstante, capaz de determinar o aparecimento da reação moral. Enquanto a
pressão exercida pelo pai primevo podia ser sentida, os sentimentos hostis para
com ele eram justificados e o remorso por sua causa teria de esperar por seu
dia. E se se argumentar ainda que tudo que tem sua origem na relação
ambivalente com o pai – o tabu e a ordenação sacrificatória – se caracteriza
pela mais profunda seriedade e a mais completa realidade, essa nova objeção tem
tão pouco peso quanto a outra, porque os cerimoniais e as inibições dos
neuróticos obsessivos apresentam essas mesmas características e, não obstante,
têm sua origem apenas na realidade psíquica – provêm de intenções e não da
execução delas. Temos de evitar transplantar para o mundo dos homens primitivos
e dos neuróticos, cuja riqueza reside apenas no interior deles próprios, o
desprezo de nosso mundo corriqueiro – com sua riqueza de valores materiais –
pelo que é simplesmente pensado ou desejado. (...)
Examinemos,
então, mais de perto o caso da neurose – a comparação com a qual nos conduziu à
nossa presente incerteza. Não é exato dizer que os neuróticos obsessivos,
curvados sob o peso de uma moralidade excessiva, estão se defendendo apenas da
realidade psíquica e se punindo através de impulsos que foram
simplesmente sentidos. A realidade histórica também tem a sua
parte na questão. Na infância, eles tiveram esses impulsos malignos de modo
puro e simples e transformaram-nos em atos até onde a impotência da infância
permitia. Cada um desses indivíduos excessivamente virtuosos passou por um
período de maldade na infância – uma fase de perversão que foi precursora e
pré-condição do período posterior de moralidade excessiva. A analogia entre os
homens primitivos e os neuróticos será estabelecida assim de modo muito mais
completo, se supusermos que também no primeiro caso a realidade psíquica – a
respeito da qual não temos dúvida quanto à forma que tomou – coincidiu no
princípio com a realidade concreta, ou seja, que os homens primitivos realmente
fizeram aquilo que todas as provas mostram que pretendiam fazer.
Tampouco
devemos deixar-nos influenciar demais em nosso julgamento dos homens primitivos
pela analogia com os neuróticos. Há distinções, também, que devem ser levadas
em conta. Sem dúvida alguma, é verdade que o contraste nítido que nós
traçamos entre o pensar e o fazer acha-se ausente em ambos. Mas os neuróticos
são, acima de tudo, inibidos em suas ações: neles, o pensamento
constitui um substituto completo do ato.”
“Entendo por parapraxias a ocorrência
em pessoas sadias e normais de fatos como esquecimento de palavras e nomes que
nos são normalmente familiares; esquecimento do que pretendíamos fazer;
incursão em lapsos de linguagem e escrita; erros de leitura, colocação de
coisas em lugares errados e incapacidade de encontrá-las; perda de objetos;
enganos em assuntos que conhecemos muito bem e certos gestos e movimentos
habituais. (...)
O
motivo mais comum para reprimir uma intenção, que daí em diante tem de
contentar-se em encontrar expressão numa parapraxia, resulta ser a necessidade
de evitar o desprazer. Assim, esquecemos obstinadamente um nome próprio se nutrimos
um rancor secreto contra o seu possuidor; esquecemos de levar adiante uma
intenção se, na realidade, formulamo-la contra a vontade – apenas pressionados
por alguma convenção, para dar um exemplo; perdemos um objeto se ele faz
lembrar alguém com quem tivemos uma briga – a pessoa que nos deu o objeto, por
exemplo; tomamos o trem errado se estivermos fazendo uma viagem contra a
vontade e preferíssemos estar noutro lugar. Esta necessidade de evitar o
desprazer é percebida mais claramente no que se refere ao esquecimento de
impressões e experiências – fato que já fora observado por muitos escritores
antes que a psicanálise existisse. A memória revela sua parcialidade
mostrando-se pronta a impedir a reprodução de impressões comprometidas com uma
emoção angustiante, se bem que este propósito não possa ser alcançado em todos
os casos.
A
perda de objetos preciosos com frequência mostra ser um ato de sacrifício
destinado a impedir algum mal esperado; muitas outras superstições também
sobrevivem sob a forma de parapraxias em pessoas instruídas. A colocação de
objetos em lugares errados via de regra significa a intenção de livrar-se
deles; os estragos que uma pessoa causa aos seus próprios objetos
(ostensivamente por acidentes) podem ter o sentido de tornar necessário a
aquisição de algo melhor – e assim por diante.
Não
obstante, a despeito da aparente trivialidade destes fenômenos, a explicação
psicanalítica das parapraxias implica algumas ligeiras modificações em nossa
visão do mundo. Descobrimos que mesmo pessoas normais são movidas por motivos
contraditórios com muito mais frequência do que era de se esperar. O número de
ocorrências que podem ser descritas como ‘acidentais’ é consideravelmente
pequeno. É quase uma consolação poder excluir a perda de objetos dos acontecimentos
fortuitos da vida; nossos enganos com frequência resultam ser um disfarce para
nossas intenções secretas. Mas – o que é mais importante muitos – acidentes
sérios que de outro modo teríamos atribuído inteiramente ao acaso revelam,
quando analisados, a participação da própria volição do sujeito, embora sem ser
claramente admitida por ele. A distinção entre um acidente casual e
autodestruição deliberada, que na prática muitas vezes é tão difícil de
precisar, torna-se ainda mais dúbia quando examinada de um ponto de vista
psicanalítico.
A
explicação das parapraxias deve o seu valor teórico à facilidade com que podem
ser solucionadas e à sua frequência nas pessoas normais. Entretanto, o sucesso
da psicanálise em explicá-las é ultrapassado de muito, em importância, por
outra conquista realizada pela própria psicanálise relacionada com outro
fenômeno da vida mental normal. Trata-se de interpretação de sonhos, que
causou o primeiro conflito da psicanálise com a ciência oficial, o que passou a
ser seu destino. A pesquisa médica explica os sonhos como sendo fenômenos
puramente somáticos, sem sentido ou significação, e considera-os como a reação
de um órgão mental, mergulhado em estado de sono, aos estímulos físicos que o
mantêm parcialmente desperto. A psicanálise eleva a condição dos sonhos à de
atos psíquicos possuidores de sentido e intenção e com um lugar na vida mental
do indivíduo, apesar de sua estranheza, incoerência e absurdo. Segundo esse
ponto de vista, os estímulos somáticos simplesmente desempenham o papel de
material que é elaborado no decurso da construção do sonho. Não existe um meio
termo entre essas duas opiniões sobre os sonhos. O argumento usado contra a
hipótese fisiológica é a sua esterilidade, e o que pode ser argumentado em
favor da hipótese psicanalítica é o fato de ter traduzido e dado um sentido a
milhares de sonhos, usando esse sentido para iluminar os pormenores mais
íntimos da mente humana.”
“A
psicanálise, portanto, demonstrou os fatos que se seguem. Todos os sonhos têm
um significado. Sua estranheza é devida a distorções que foram feitas na
expressão desse significado. Sua aparência absurda é deliberada e exprime
zombaria, ridículo e contradição. Sua incoerência é uma questão de indiferença
para com a interpretação. O sonho, tal como o recordamos depois de acordar, é
descrito por nós através de seu ‘conteúdo manifesto’. No processo de
interpretação deste, somos conduzidos aos ‘pensamentos oníricos latentes’, que
jazem ocultos por trás do conteúdo manifesto, e são por este representados.
Estes pensamentos oníricos latentes já não são estranhos, incoerentes ou
absurdos, são constituintes completamente válidos de nosso pensamento quando
despertos. Damos o nome de ‘elaboração onírica’ ao processo que transforma os
pensamentos oníricos latentes no conteúdo manifesto do sonho; é essa elaboração
a responsável pela deformação que torna os pensamentos oníricos irreconhecíveis
no conteúdo manifesto do sonho.
A
elaboração onírica é um processo psicológico que até hoje não encontrou similar
na psicologia, reclamando o nosso interesse em dois sentidos principais. Em
primeiro lugar, traz ao nosso conhecimento processos novos como a ‘condensação’
(de ideias) e o ‘deslocamento’ (da ênfase psíquica de uma ideia para outra),
processos com os quais nunca, de forma nenhuma, nos deparamos em nossa vida
desperta, a não ser como base daquilo que é conhecido como ‘erros de
pensamento’. Em segundo lugar, nos permite detectar no funcionamento da mente
um jogo de forças que estava escondido de nossa percepção consciente.
Descobrimos que há uma ‘censura’, um órgão de verificação a funcionar em nós,
que decide se uma ideia que surge na mente deve ter ou não permissão de chegar
à consciência e que, até onde está em seu poder, exclui implacavelmente
qualquer coisa que possa produzir ou reviver um desprazer. Aqui lembramos que
na análise das parapraxias encontramos traços dessa mesma intenção de evitar
desprazer na recordação de coisas, e de conflitos similares entre os impulsos
mentais.”
“O
que já foi descoberto sobre a formação dos sonhos funciona – onde quer que seja
– no conflito psíquico; na repressão de certos impulsos instintivos enviados de
volta para o inconsciente por outras forças mentais, nas formações reativas
estabelecidas pelas forças repressoras, e nos substitutos construídos pelos
instintos reprimidos, mas não despojados de toda a sua energia. Os processos
acessórios de condensação e de deslocamento, tão familiares a nós nos sonhos,
podem também ser encontrados em toda parte. A multiplicidade de quadros
clínicos observada pelos psiquiatras depende de duas outras coisas: da
multiplicidade dos mecanismos psíquicos à disposição dos processos repressivos
e da multiplicidade de disposições desenvolvimentais, que dão aos impulsos
reprimidos oportunidade de irromperem através de estruturas substitutivas.
(...)
Quando
interpretamos um sonho estamos apenas traduzindo um determinado conteúdo de
pensamento (os pensamentos oníricos latentes) da ‘linguagem de sonhos’ para a
nossa fala de vigília. À medida que fazemos isso, aprendemos as peculiaridades
dessa linguagem onírica e nos convencemos de quem ela faz parte de um sistema
altamente arcaico de expressão.”
“Se
examinarmos a sexualidade do adulto com o auxílio da psicanálise e
considerarmos a vida das crianças à luz dos conhecimentos que assim obtivermos,
perceberemos que a sexualidade não é simplesmente uma função que serve aos fins
da reprodução, no mesmo nível que a digestão, a respiração etc. Trata-se de
algo muito mais independente, que se coloca em contraste com todas as outras
atividades do indivíduo e só é forçado a uma aliança com a economia individual
após um complicado curso de desenvolvimento que envolve a imposição de
numerosas restrições. Casos – em teoria inteiramente concebíveis – em que os
interesses desses impulsos sexuais deixam de coincidir com a autopreservação do
indivíduo parecem realmente ser apresentados pelo grupo das doenças neuróticas,
porque a fórmula final a que a psicanálise chegou quanto à natureza das
neuroses é a seguinte: o conflito primário que leva às neuroses é um conflito
entre os instintos sexuais e os instintos que sustentam o ego. As neuroses
representam uma dominação mais ou menos parcial do ego pela sexualidade, depois
de terem falhado os esforços do ego para reprimi-la. (...)
O
contraste entre os instintos do ego e o instinto sexual, ao qual fomos
obrigados a atribuir a origem das neuroses, é transposto para a esfera da
biologia pelo contraste entre os instintos que servem à preservação do
indivíduo e os que servem à sobrevivência da espécie. Na biologia encontramos a
mais abrangente concepção de um plasma germinal imoral ao qual os diferentes
indivíduos transitórios se ligam como órgãos que se desenvolvem sucessivamente.
É somente essa concepção que nos permite compreender corretamente o papel
desempenhado pelas forças instintivas sexuais na filosofia e na psicologia.
Apesar
de todos os nossos esforços para que a terminologia e as considerações
biológicas não dominassem o trabalho psicanalítico, não pudemos evitar o seu
emprego mesmo na descrição dos fenômenos que estudamos. Não podemos deixar de
considerar o termo ‘instinto’ como um conceito fronteiriço entre as esferas da
psicologia e da biologia.”
“A
psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida
das crianças e teve de levar a sério o velho ditado que diz que a criança é o
pai do homem. Delineou a continuidade entre a mente infantil e a mente adulta e
observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo.
Na maioria de nós existe, em nossas lembranças, uma lacuna que abrange os
primeiros anos da infância dos quais apenas algumas recordações fragmentárias
sobrevivem. Pode-se dizer que a psicanálise preencheu essa lacuna e aboliu a
amnésia infantil do homem.
Algumas
descobertas notáveis foram efetuadas no curso dessa investigação da mente
infantil. Assim foi possível confirmar – o que já fora muitas vezes suspeitado
– a influência extraordinariamente importante exercida pelas impressões da
infância (e particularmente pelos seus primeiros anos) sobre todo o curso da
evolução posterior. Isso nos conduz ao paradoxo psicológico – que somente para
a psicanálise não é paradoxo – de serem precisamente estas, as mais importantes
de todas as impressões, as que não são recordadas em anos posteriores. A
psicanálise pôde estabelecer o caráter decisivo e indestrutível dessas
primeiras experiências da maneira mais clara possível, no caso da vida sexual. ‘On
revient toujours à ses premiers amours‘* é pura
verdade. Os muitos
enigmas da vida sexual dos adultos só podem ser solucionados se forem
ressaltados os fatores infantis existentes no amor. Uma luz teórica é lançada
sobre a influência deles depois de considerarmos que as primeiras experiências
de um indivíduo na infância não ocorrem somente por acaso, mas correspondem
também às primeiras atividades de suas disposições instintivas inatas ou
constitucionais.
Outra
descoberta muito mais surpreendente foi que, a despeito de toda a evolução
posterior que ocorre no adulto, nenhuma das formações mentais infantis perece.
Todos os desejos, impulsos instintivos, modalidades de reação e atitudes da
infância acham-se ainda demonstravelmente presentes na maturidade e, em
circunstância apropriada, podem mais uma vez surgir. Elas não são destruídas,
mas simplesmente se sobrepõem.”
*: Sempre voltamos ao nosso primeiro amor.
“A
psicanálise estabeleceu uma estreita conexão entre essas realizações psíquicas
de indivíduos, por um lado, e de sociedades, por outro, postulando uma mesma e
única fonte dinâmica para ambas. Ela parte da ideia básica de que a principal
função do mecanismo mental é aliviar o indivíduo das tensões nele criadas por
suas necessidades. Uma parte desta tarefa pode ser realizada extraindo-se
satisfação do mundo externo e, para esse fim, é essencial possuir controle
sobre o mundo real. Mas a satisfação de outra parte dessas necessidades – entre
elas, certos impulsos afetivos – é regularmente frustrada pela realidade. Isto
conduz a uma nova tarefa de encontrar algum outro meio de manejar os impulsos
insatisfeitos. Todo o curso da história da civilização nada mais é que um
relato dos diversos métodos adotados pela humanidade para ‘sujeitar’ seus desejos
insatisfeitos, que, de acordo com as condições cambiantes (modificadas,
ademais, pelos progressos tecnológicos) defrontaram-se com a realidade, às
vezes favoravelmente e outras com frustração.”
“O
objetivo primário do artista é libertar-se e, através da comunicação de sua
obra a outras pessoas que sofram dos mesmos desejos sofreados, oferecer-lhes a
mesma libertação. Ele representa suas fantasias mais pessoais plenas de desejo
como realizadas; mas elas só se tornam obra de arte quando passaram por uma transformação
que atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua origem pessoal e, obedecendo às
leis da beleza, seduz outras pessoas com uma gratificação prazerosa. A
psicanálise não tem dificuldade em ressaltar, juntamente com a parte manifesta
do prazer artístico, uma outra que é latente, embora muito mais poderosa,
derivada das fontes ocultas da libertação instintiva. A conexão entre as
impressões da infância do artista e a história de sua vida, por um lado, e suas
obras como reações a essas impressões, por outro, constitui um dos temas mais
atraentes de estudo analítico. (...)
A
arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão
artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais.
Assim, a arte constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os
desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação – uma região em que, por
assim dizer, os esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em
pleno vigor.”
“A
psicanálise nos mostrou que as atitudes emocionais dos indivíduos para com
outras pessoas que são de tão extrema importância para seu comportamento
posterior, já estão estabelecidas numa idade surpreendentemente precoce. A
natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio
sexo e do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de sua vida. Ela
pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções mas não
pode mais livrar-se delas. As pessoas a quem se acha assim ligada são os pais e
irmãos e irmãs. Todos que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras
substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos. (Deveríamos talvez
acrescentar aos pais algumas outras pessoas como babás, que dela cuidaram na infância.)
Essas figuras substitutas podem classificar-se, do ponto de vista da criança,
segundo provenham do que chamamos as ‘imagos’, do pai, da mãe, dos irmãos e das
irmãs, e assim por diante. Seus relacionamentos posteriores são assim obrigados
a arcar com uma espécie de herança emocional, defrontam-se com simpatias e
antipatias para cuja produção esses próprios relacionamentos pouco
contribuíram. Todas as escolhas posteriores de amizade e amor seguem a base das
lembranças deixadas por esses primeiros protótipos.
De
toda as imagens (imagos) de uma infância que, via de regra, não é mais
recordada, nenhuma é mais importante para um jovem ou um homem que a do pai. A
necessidade orgânica introduz na relação de um homem com o pai uma ambivalência
emocional que encontramos expressa de forma mais notável no mito grego do rei
Édipo. Um rapazinho está fadado a amar e a admirar o pai, que lhe parece ser a
mais poderosa, bondosa e sábia criatura do mundo. O próprio Deus, em última
análise, é apenas uma exaltação dessa imagem do pai, tal como é representado na
mente durante a mais tenra infância. Cedo, porém, surge o outro lado da relação
emocional. O pai é identificado como o perturbador máximo da nossa vida
instintiva; torna-se um modelo não apenas a ser imitado, mas também a ser
eliminado para que possamos tomar o seu lugar. Daí em diante, os impulsos
afetuosos e hostis para com ele persistem lado a lado, muitas vezes, até o fim
da vida, sem que nenhum deles seja capaz de anular o outro. É nessa existência
concomitante de sentimentos contrários que reside o caráter essencial daquilo
que chamamos de ambivalência emocional.
Na
segunda metade da infância, dá-se uma mudança na relação do menino com o pai –
mudança cuja importância não pode ser exagerada. De seu quarto de criança, o
menino começa a vislumbrar o mundo exterior e não pode deixar de fazer
descobertas que solapam a alta opinião original que tinha sobre o pai e que
apressam o desligamento de seu primeiro ideal. Descobre que o pai não é o mais
poderoso, sábio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a
criticá-lo, a avaliar o seu lugar na sociedade; e então, em regra, faz com que
ele pague pesadamente pelo desapontamento que lhe causou. Tudo que há de
admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento
do pai.
É
nessa fase do desenvolvimento de um jovem que ele entra em contato com os
professores, de maneira que agora podemos entender a nossa relação com eles.
Estes homens, nem todos pais na realidade, tornaram-se nossos pais substitutos.
Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-nos como tão
maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferimos para eles o respeito e as
expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a
tratá-los como tratávamos nossos pais em casa. Confrontamo-los com a
ambivalência que tínhamos adquirido em nossas próprias famílias, e, ajudados
por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com nossos pais em carne e
osso. A menos que levemos em consideração nossos quartos de crianças e nossos
lares, nosso comportamento para com os professores seria não apenas
incompreensível, mas também indesculpável.”