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sábado, 25 de novembro de 2017

História Natural da Religião (Parte II) – David Hume

Editora: Unesp
ISBN: 978-85-7139-604-3
Tradução, Apresentação e Notas: Jaimir Conte
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
Sinopse: Ver Parte I


“Os homens não param de se olhar, e não há meio nenhum de lhes fazer entrar na cabeça que o turbante de um africano não é uma moda nem melhor nem pior que a do capuz de um europeu. “É um homem honesto”, dizia o príncipe de Salé, ao falar de Ruyter. “É uma lástima que ele seja cristão”.
Suponhamos que um professor da Sorbonne pergunte a um eclesiástico de Saís: “Como podeis adorar alhos e cebolas?”. “Se nós os adoramos”, responde este último, “pelo menos não os comemos ao mesmo tempo (como a hóstia). Mas que estranhos objetos de adoração são os gatos e os macacos!”, diz o erudito doutor. “Eles são pelo menos tão bons quanto as relíquias ou os ossos podres dos mártires”, responde nosso antagonista, que não é menos sábio. “Não sois louco”, insiste o católico, “a ponto de preferir cortar a garganta de alguém em vez de cortar um repolho ou um pepino?” “Sim”, responde o pagão, “reconheço, se confessásseis que são ainda mais loucos os que disputam sobre a preferência dentre livros de sofismas, que todos reunidos não valem um repolho ou um pepino”.
Todo observador imparcial (embora, infelizmente, existam poucos observadores imparciais) julgará facilmente que, se para estabelecer um sistema popular bastaria mostrar os absurdos de outros sistemas, todo adepto de qualquer superstição poderia justificar seu apego cego e fanático aos princípios nos quais foi educado. Mas na falta de um conhecimento tão amplo sobre o qual fundar essa confiança (e talvez seja melhor não tê-lo), não falta zelo religioso e fé suficientes entre os homens. Diodoro De Sicília oferece a esse respeito um exemplo notável, do qual ele mesmo foi testemunha ocular. No tempo em que o nome romano inspirava o máximo terror no Egito, todo o povo levantou-se com a máxima fúria contra um soldado legionário que, sem querer, se tornou culpado de cometer o sacrilégio ímpio de matar um gato; e todos os esforços do príncipe foram incapazes de salvá-lo. O senado e o povo de Roma, estou persuadido, não teriam se mostrado, nessa época, tão suscetíveis em relação às suas divindades nacionais. Pouco tempo depois, eles votaram abertamente em Augusto para um lugar nas casas celestiais; e teriam destronado todas as divindades do céu por sua causa, caso ele tivesse dado a impressão de querer isso. “Presens divus habebitur Augustus”, diz Horácio. Isso é muito importante. E a mesma circunstância não foi considerada completamente indiferente em outras nações e em outras épocas.
Apesar da santidade de nossa religião sagrada, diz Cícero, nenhum crime é mais comum entre nós do que o sacrilégio. Mas nunca se ouviu dizer que um egípcio violou o templo de um gato, de um íbis ou de um crocodilo? Não existe tortura nenhuma, diz o mesmo autor em outra parte, à qual um egípcio não se submeteria em vez de ferir um íbis, uma serpente, um gato, um cão ou um crocodilo. Assim, é estritamente verdadeiro o que Dryden observa:
Qualquer que seja a descendência de sua divindade, de um tronco, de uma pedra, ou de outro objeto familiar, seus servos são tão apaixonados na sua defesa, como se ela tivesse nascido do ouro fundido.”


“Podemos observar que, apesar do caráter dogmático e imperioso de toda superstição, a convicção dos homens religiosos é, em todas as épocas, mais fingida que real, e apenas raramente e em certa medida se aproxima a firme crença e a firme convicção que nos governa nos assuntos comuns da vida. Os homens não ousam confessar, nem mesmo no seu íntimo, as dúvidas que os assaltam sobre essas questões: ostentam uma fé sem reservas e dissimulam ante si mesmos sua real incredulidade, por meio das mais categóricas afirmações e do mais absoluto fanatismo. Mas a natureza é mais forte que seus esforços e não permite que a luz obscura e pálida, surgida nessas sombrias regiões, iguale-se às impressões vívidas produzidas pelo senso comum e pela experiência. A habitual conduta dos homens contradiz suas próprias palavras e mostra que seu assentimento nessas questões é uma operação inexplicável da mente, situada entre a incredulidade e a convicção, mas que está muito mais próxima da primeira que da segunda.”


“Mas a fim de mostrar mais claramente que é possível que uma religião represente a divindade sob aspectos ainda mais imorais e desagradáveis do que aqueles sob os quais os antigos pintavam seus deuses, citaremos uma longa passagem* de um autor de gosto e imaginação, que sem dúvida não foi um inimigo do cristianismo. Trata-se do cavalheiro Ramsay, escritor que tinha uma tendência bastante louvável para a ortodoxia. Sua razão não via nenhum problema mesmo nas doutrinas que, segundo os livres pensadores, mais levantam dificuldades: a trindade, a encarnação, a redenção; somente os sentimentos de humanidade desse autor, os quais ele parece ter tido de sobra, revoltavam-se contra as doutrinas da punição eterna e da predestinação. Ele se exprime assim: “Que estranhas ideias” diz ele, “um filósofo indiano ou chinês teria de nossa santa religião se julgasse a partir das exposições que dela nos dão os livres pensadores modernos e os doutores fariseus de todas as seitas!”. Segundo o sistema odioso e muito vulgar desses zombadores incrédulos e desses escrevinhadores crédulos, “o Deus dos judeus é um ser muito cruel, injusto, parcial e extravagante. Ele criou, há cerca de seis mil anos, um homem e uma mulher, e os colocou num belo jardim da Ásia, do qual nada resta. Esse jardim era repleto de todas as espécies de árvores, de fontes e de flores. Ele permitiu que eles comessem todos os tipos de frutos desse belo jardim, exceto os de uma árvore plantada no meio dele e que tinha a virtude secreta de mantê-los numa saúde e vigor corporal e espiritual eternos, de desenvolver seus poderes naturais e de torná-los sábios. O diabo assumiu a forma de uma serpente e tentou a primeira mulher a comer desse fruto proibido; ela seduziu seu marido a fazer o mesmo. Para punir essa pequena curiosidade e esse desejo natural de vida e de conhecimento, Deus não somente expulsou nossos primeiros pais do paraíso terrestre, mas condenou também toda a posteridade aos sofrimentos temporais, e a maioria de seus descendentes ao mal eterno, ainda que as almas dessas crianças inocentes não tenham mais relação nenhuma com a de Adão do que com as de Nero e de Maomé, já que, segundo os tolos escolásticos, os autores de fábulas e os mitólogos, todas as almas são criadas puras e são insufladas imediatamente no corpo mortal a partir do momento em que o feto é formado. Para aplicar esse decreto bárbaro e parcial da predestinação e da danação, Deus abandonou todas as nações às trevas, à idolatria e à superstição, sem qualquer conhecimento redentor ou graças salutares, exceto uma nação que ele escolheu como sua nação particular. Essa nação eleita era, entretanto, a mais estúpida, a mais ingrata, rebelde e pérfida de todas. Após ter guardado, durante mais de quatro mil anos, a maior parte da espécie num estado de reprovação, Deus mudou de repente de opinião, e teve afeição por outras nações além da nação judaica. Ele enviou então ao mundo seu filho único, sob forma humana, para que ele aplacasse sua ira, satisfizesse sua justiça vingativa e morresse pelo perdão dos pecados. Poucas dessas nações, entretanto, ouviram falar desse evangelho – e todas as demais, ainda que colocadas numa insuperável ignorância, são condenadas sem exceção e remissão possíveis. A maioria dos que ouviram falar a seu respeito mudou apenas algumas noções especulativas acerca de Deus, bem como algumas formas visíveis de culto, pois, em outros aspectos, o conjunto dos cristãos continuou tão corrompido quanto o resto dos homens em seu comportamento moral; sim, muito mais perverso e criminoso, uma vez que suas luzes eram maiores. À parte um pequeno número eleito, todos os demais cristãos, como todos os pagãos, serão condenados para sempre; o grande sacrifício oferecido a sua saúde permanecerá sem objeto e sem efeito; Deus encontrará sempre suas delícias em seus tormentos e em suas blasfêmias; e ainda que possa por um fiat mudar seu coração, jamais, entretanto, eles se converterão nem poderão se converter, porque nunca poderão apaziguá-lo nem se reconciliar com ele. É verdade que tudo isso torna Deus odioso, na verdade um ser que detesta as almas mais que as ama, um tirano cruel, sedento de vingança, um demônio impotente e colérico, em vez de um pai todo-poderoso e benevolente dos espíritos. Entretanto, tudo isso é um mistério. Há razões secretas para agir assim, razões que nos são impenetráveis, e, ainda que pareça injusto e bárbaro, devemos, no entanto, acreditar no contrário, pois o que para nós é uma injustiça, um crime, uma crueldade e a maldade mais negra, para Ele é uma justiça, uma misericórdia e bondade soberanas”. Foi assim que os livres pensadores incrédulos, os cristãos judaizantes e os doutores fatalistas desfiguraram e desonraram os mistérios sublimes de nossa santa fé; foi assim que confundiram a natureza do bem e do mal, transformaram as paixões mais monstruosas em atributos divinos, e superaram os pagãos em suas blasfêmias, atribuindo à natureza eterna, como perfeições, o que constitui entre os homens os crimes mais odiosos. Os pagãos, mais grosseiros, contentaram-se em divinizar a luxúria, o incesto e o adultério, mas os doutores da predestinação divinizaram a crueldade, a cólera, o furor, a vingança e todos os vícios mais negros.”
*: Princípios filosóficos da religião natural e revelada do Cavalheiro Ramsay, Parte II, p.401.


“Eis aqui uma espécie de contradição entre os diferentes princípios da natureza humana que intervêm na religião. Nossos terrores naturais produzem a noção de uma divindade diabólica e maligna, mas nossa tendência para a adulação nos leva a reconhecer um ser perfeito e divino. E a influência desses princípios opostos varia de acordo com as diferentes situações do entendimento humano.
As nações bárbaras e ignorantes, como as africanas e as indianas, e inclusive a japonesa, são incapazes de formar uma ideia mais ampla do poder e do conhecimento, por isso cultuam um ser que eles confessam ser perverso e detestável – ainda que mostrem, talvez, uma prudência ao pronunciar esse julgamento em público ou no templo, onde, supõem, suas censuras podem ser ouvidas.
Ideias tão rudes e tão imperfeitas sobre a divindade são abraçadas por longo tempo por todos os idólatras; e podemos afirmar, com segurança, que os próprios gregos nunca se libertaram totalmente delas. Xenofonte observa, para a glória de Sócrates, que este filósofo não apoiava a opinião vulgar que supunha que os deuses sabiam algumas coisas e ignoravam outras. Ele sustentava que eles sabiam tudo o que era feito, dito, ou mesmo pensado. Mas como esse era um ensinamento filosófico muito acima da capacidade de seus contemporâneos, não devemos nos surpreender quando Xenofonte, em seus livros e diálogos, censura muito abertamente as divindades que eles adoravam em seus templos. Podemos observar que Heródoto, particularmente, não tem nenhum escrúpulo em atribuir, em muitas passagens, inveja aos deuses, um sentimento, dentre todos, mais adequado a uma natureza perversa e diabólica. Os hinos pagãos, entretanto, cantados em cultos públicos, nada mais continham que epítetos de louvor, ainda quando atribuíam aos deuses as mais bárbaras e detestáveis ações. Quando o poeta Timóteo cantou um hino em louvor a Diana, no qual enumerou, com os mais altos elogios, todas as ações e todos os atributos dessa deusa cruel e caprichosa, um ouvinte lhe disse: “Que tua filha se torne igual à divindade que tu celebras”.
Mas quanto mais os homens exaltam a ideia que têm da divindade, mais aumenta a noção que eles têm de seu poder e conhecimento, não a de sua bondade. Ao contrário, à medida que aumenta a suposta extensão de sua ciência e de sua autoridade, o medo que naturalmente sentem cresce, enquanto acreditam que nenhum segredo pode escondê-los de seu exame minucioso, e que mesmo os recônditos mais íntimos de seus corações ficam expostos à divindade. Eles devem, então, tomar cuidado para não formar expressamente nenhum sentimento de censura ou de desaprovação. Não deve haver senão aplausos, arrebatamentos, êxtases. E enquanto suas apreensões sombrias os fazem atribuir à divindade modelos de conduta que entre as criaturas humanas seriam vivamente censurados, devem ainda fingir louvar e admirar tal conduta no objeto de suas orações religiosas. Assim, podemos afirmar com segurança que as religiões populares são, na realidade, quando se considera as concepções de seus adeptos mais ordinários, espécies de demonismo, e que, quanto mais ela é exaltada em poder e conhecimento, menos é, evidentemente, rebaixada em sua bondade e benevolência, sejam quais forem os epítetos de louvor que possam ser aplicados à divindade por seus adoradores maravilhados. Entre os idólatras, as palavras podem ser falsas e desmentir uma opinião secreta, mas, entre os fanáticos mais exaltados, a própria opinião adquire uma espécie de falsidade e desmente o sentimento interior. O coração detesta secretamente tais medidas, de uma vingança cruel e implacável, mas o juízo não ousa senão pronunciá-las perfeitas e adoráveis. E o sofrimento adicional desse conflito interior aumenta todos os outros terrores, que assombram eternamente essas vítimas infelizes da superstição.”


“É certo que, em toda religião, por mais sublime que seja a definição verbal que ela ofereça de sua divindade, muitos adeptos, talvez a maioria, procurarão, não obstante, obter o favor divino, não por suas virtudes nem por seus bons costumes, únicas coisas que podem ser agradáveis a um ser perfeito, senão por práticas frívolas, por um zelo imoderado, por êxtases violentos ou pela crença em opiniões misteriosas e absurdas.”


“Além disso, suponhamos, o que nunca acontece, que se encontre uma religião popular que declare expressamente que só a moralidade pode obter o favor divino; suponhamos também que uma ordem de eclesiásticos seja instituída para inculcar essa opinião nos homens por meio dos sermões diários, com toda a arte da persuasão; apesar disso, os preconceitos das pessoas estão tão profundamente arraigados que, por necessidade de alguma outra superstição, eles tornariam o comparecimento das pessoas a esses sermões a parte essencial da religião, em vez de colocá-las no caminho da virtude e dos bens morais.”


“Não é suficiente observar que em todos os lugares as pessoas rebaixam suas divindades até torná-las semelhantes a si mesmas, e que as consideram simplesmente uma espécie de criaturas humanas de algum modo mais poderosas e inteligentes. Isso não eliminará a dificuldade, pois não existe homem nenhum tão estúpido que não estime, a julgar por sua razão natural, que a virtude e a honestidade são as qualidades mais valiosas que uma pessoa pode possuir. Por que não atribuir o mesmo sentimento à divindade? Por que não fazer com que toda religião, ou sua parte principal, consista nessa realização?
Não é satisfatório dizer que a prática da moralidade é mais difícil que a da superstição – e é, portanto, rejeitada. (...) Toda virtude, quando nos reconciliamos com ela sem muito esforço, é agradável. Toda superstição é quase sempre odiosa e opressiva.”


“É por isso que o maior dos crimes tem sido considerado, em muitos casos, compatível com uma piedade e devoção supersticiosas. É por isso, justamente, que se considera arriscado fazer qualquer inferência a favor da moralidade de um homem, a partir do fervor ou do rigor de sua prática religiosa, ainda que ele mesmo acredite na sinceridade desta. Mais ainda: observou-se que as atrocidades mais negras têm sido mais apropriadas para produzir terrores supersticiosos e para aumentar a paixão religiosa. Bomilcar, tendo formado uma conspiração para assassinar de uma só vez todo o senado de Cartago e violar as liberdades de seu país, perdeu a oportunidade por causa de uma preocupação contínua com os presságios e com as profecias. “Os que empreendem as ações mais criminosas e mais perigosas são em geral os mais supersticiosos”, como oportunamente observa o historiador da antiguidade Diodoro de Sicília.
A isso podemos acrescentar que, depois da execução do crime, surgem remorsos e terrores secretos que não deixam nenhum repouso ao espírito, mas o fazem recorrer a ritos e a cerimônias religiosas como expiação de suas faltas. Tudo o que enfraquece ou perturba as disposições interiores do homem favorece os interesses da superstição; e nada os destrói mais do que uma virtude viril e constante, que nos preserva dos acidentes desastrosos e melancólicos ou que nos ensina a suportá-los. Quando resplandece essa serenidade de espírito, a divindade jamais aparece sob falsas aparências. Porém, quando nos abandonamos às sugestões naturais e indisciplinadas de nossos corações tímidos e ansiosos, atribuímos ao ser supremo, em virtude dos terrores que nos agitam, toda espécie de barbárie; e, em razão dos métodos que adotamos a fim de apaziguá-lo, todas as formas de arbitrariedade. Barbárie e arbitrariedade: essas são as qualidades, ainda que dissimuladas com outros nomes, que formam, como podemos observar universalmente, o caráter dominante da divindade nas religiões populares. E até os sacerdotes, em vez de corrigir essas ideias perversas dos homens, têm-se mostrado dispostos a alimentá-las e a encorajá-las. Quanto mais monstruosa é a imagem da divindade, mais os homens se tornam seus servidores dóceis e submissos, e quanto mais extravagantes são as provas que ela exige para nos conceder sua graça, mais necessário se faz que abandonemos nossa razão natural e nos entreguemos à condução e direção espiritual dos sacerdotes. Pode-se admitir, assim, que os artifícios dos homens agravam nossas enfermidades naturais e as loucuras desse tipo, mas que na origem nunca as engendram. Elas se enraízam mais profundamente no espírito e nascem das propriedades essenciais e universais da natureza humana.”


“Apesar de a estupidez dos homens bárbaros e incultos ser tão grande que eles não conseguem ver um autor soberano nas mais evidentes obras da natureza, obras que lhes são muito familiares, parece, entretanto, que é quase impossível que alguém de bom entendimento rejeite tal ideia, quando esta lhe é sugerida. Em cada coisa é evidente um propósito, uma intenção, um desígnio; e quando ampliamos nossa compreensão a ponto de contemplar os primeiros princípios desse sistema visível, devemos adotar, com a mais forte convicção, a ideia de uma causa ou autor inteligente. As máximas uniformes que vigoram em toda a estrutura do universo também nos levam, naturalmente, se não necessariamente, a conceber essa inteligência como única e indivisível, quando os preconceitos da educação não se opõem a uma teoria tão razoável. Até as contradições da natureza, ao se revelarem em toda parte, tornam-se provas de um plano coerente e estabelecem um projeto ou uma intenção única, ainda que inexplicável e incompreensível.
O bem e o mal se misturam e se confundem universalmente, da mesma forma que a felicidade e a miséria, a sabedoria e a loucura, a virtude e o vício. Nada é puro nem inteiramente uniforme. Todas as vantagens são acompanhadas de desvantagens. Uma compensação universal se impõe em todas as condições do ser e da existência. E não nos é possível, por meio de nossos mais quiméricos desejos, formar a ideia de um estado ou de uma situação perfeitamente desejável. O elixir da vida, segundo a ficção do poeta, é sempre uma mistura tirada das jarras que Júpiter tem em suas duas mãos, e, se um cálice perfeitamente puro nos é apresentado, como nos diz ainda o poeta, ele é vertido apenas da jarra colocada na mão esquerda.
Quanto mais excelente é um bem, do qual temos uma pequena amostra, mais agudo é o mal que o acompanha; e encontramos poucas exceções a essa lei uniforme da natureza. O espírito mais brilhante beira à loucura; as mais altas efusões de alegria engendram a melancolia mais profunda; os prazeres mais arrebatadores são seguidos da mais cruel lassidão e de desgosto; as esperanças mais promissoras abrem caminho para as decepções mais duras. E, em geral, nenhuma existência oferece tanta segurança (pois não é preciso sonhar com a felicidade) quanto a existência temperada e moderada que se atém, tanto quanto possível, a uma mediocridade e a uma espécie de insensibilidade em todas as coisas.
Como o bem, o grande, o sublime, o encantador encontram-se no mais alto grau nos princípios puros do monoteísmo, podemos esperar, por analogia com a natureza, que o baixo, o absurdo, o mesquinho, o terrificante sejam igualmente explorados nas ficções e quimeras religiosas.
A tendência universal para acreditar num poder invisível e inteligente, se não é um instinto original, é pelo menos uma coisa que geralmente acompanha a natureza humana e pode ser considerada uma espécie de sinal ou marca que o artífice divino colocou sobre sua obra; e nada, com certeza, pode elevar mais o homem do que ser assim eleito, entre todas as outras partes da criação, para exibir a imagem ou a impressão do criador universal. Mas levemos em consideração essa imagem como ela aparece nas religiões populares do mundo. Como nossas representações desfiguram a divindade! Como ela é rebaixada a um nível mais baixo do caráter que naturalmente atribuiríamos na vida comum a um homem de senso e de virtude!
É um nobre privilégio da razão humana alcançar o conhecimento do ser supremo e poder inferir, a partir das obras visíveis da natureza, um princípio tão sublime como seu criador supremo. Mas vejamos o reverso da medalha. Observemos a maioria das nações e épocas. Examinemos os princípios religiosos que têm, de fato, vigorado no mundo. Dificilmente nos persuadiremos de que eles são mais do que devaneios dos homens. Ou talvez os consideraremos mais uma brincadeira de macacos com a forma humana do que afirmações sérias, positivas e dogmáticas de um ser que se vangloria com o nome de racional.
Ouçamos os protestos verbais de todos os homens. Nada é tão certo quanto seus dogmas religiosos. Examinemos suas vidas. Dificilmente pensaremos que eles têm a menor confiança a seu respeito.
O máximo e mais sincero zelo não nos dá qualquer garantia contra a hipocrisia. A mais notória impiedade é acompanhada de um temor e arrependimento secretos.
Não existe um absurdo teológico tão evidente que não tenha sido adotado, um dia ou outro, por homens dotados do mais vasto e mais refinado entendimento. Nenhum preceito religioso é tão rigoroso que não tenha sido adotado pelo mais libidinoso e mais dissoluto dos homens.
A ignorância é a mãe da devoção. Essa é uma máxima proverbial, confirmada pela experiência geral. Procuremos uma pessoa inteiramente destituída de religião. Se a encontrarmos estaremos certos de que ela está a poucos graus de distância dos animais.
O que há de mais puro do que certo grau de moral incluído em certos sistemas teológicos? O que há de tão corrupto quanto certas práticas às quais esses sistemas dão origem?
A crença na vida futura abre perspectivas confortáveis que são arrebatadoras e agradáveis. Mas como esta desaparece rapidamente quando surge o medo que a acompanha e que possui uma influência mais firme e duradoura sobre o espírito humano!
É tudo uma incógnita, um enigma, um mistério inexplicável. O único resultado de nossas investigações mais meticulosas sobre esse assunto parece ser a dúvida, a incerteza e a suspensão do juízo. Mas tal é a fraqueza da razão humana e tal é o irresistível contágio da opinião que dificilmente poderíamos manter essa dúvida deliberada, se não ampliássemos nossa visão e, opondo uma espécie de superstição à outra, as colocássemos em disputa, enquanto de nossa parte, durante essa fúria e controvérsia, felizmente escapássemos para as regiões calmas, ainda que obscuras, da filosofia.”

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