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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Uma Teoria da Justiça (Parte II) – John Rawls

Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-3361-630-1
Tradução: Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 736
Sinopse: Ver Parte I

“Podemos observar que o princípio da diferença dá algum peso às considerações preferidas pelo princípio da reparação. De acordo com este último princípio, desigualdades imerecidas exigem reparação; e como desigualdades de nascimento e de dotes naturais são imerecidas, elas devem ser de alguma forma compensadas. Assim, o princípio determina que a fim de tratar as pessoas igualitariamente, de proporcionar uma genuína igualdade de oportunidades, a sociedade deve dar mais atenção àqueles com menos dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A ideia é de reparar o desvio das contingências na direção da igualdade. Na aplicação desse princípio, maiores recursos devem ser gastos com a educação dos menos inteligentes, e não o contrário, pelo menos durante um certo tempo da vida, digamos, os primeiros anos de escola.
Ora, o princípio da reparação não foi, que eu saiba, proposto como o único critério de justiça, como único objetivo da ordem social. Ele é, tanto quanto os outros, plausível como um princípio prima facie, que deve ser colocado na balança juntamente com os outros. Por exemplo, devemos ponderá-lo em relação ao princípio da melhoria do padrão médio de vida, ou da promoção do bem comum. Mas quaisquer que sejam os outros princípios adotados, as reivindicações de reparação devem ser levadas em conta. Considera-se que esse princípio representa um dos elementos de nossa concepção da justiça. Mas o princípio da diferença certamente não é o princípio da reparação. Ele não exige que a sociedade tente contrabalançar as desvantagens como se fosse esperado de todos que competissem numa base equitativa em uma mesa corrida. Mas o princípio da diferença alocaria recursos na educação, por exemplo, a fim de melhorar as expectativas a longo prazo dos menos favorecidos. Se esse objetivo é atingido quando se dá mais atenção aos mais bem-dotados, é permissível fazê-lo; caso contrário, não. E, nessa tomada de decisão, o valor da educação não deveria ser avaliado apenas em termos de eficiência econômica e bem-estar social. O papel da educação é igualmente importante, se não mais importante ainda, no sentido de proporcionar a uma pessoa a possibilidade de apreciar a cultura de sua sociedade e de tomar parte em suas atividades, e desse modo proporcionar a cada indivíduo um sentimento de confiança seguro de seu valor próprio.
Assim, embora o princípio da justiça não seja igual ao princípio da reparação, ele de fato realiza pelo menos uma parte dos intentos deste último. Ele transforma os objetivos da estrutura básica de modo que o esquema global das instituições deixa de enfatizar a eficiência social e os valores tecnocráticos. O princípio da diferença representa, com efeito, um consenso em se considerar, em certos aspectos, a distribuição de talentos naturais como um bem comum, e em partilhar os maiores benefícios sociais e econômicos possibilitados pela complementaridade dessa distribuição. Os que foram favorecidos pela natureza, sejam eles quem forem, podem beneficiar-se de sua boa sorte apenas em termos que melhorem a situação dos menos felizes. Os naturalmente favorecidos não se devem beneficiar simplesmente porque são mais bem-dotados, mas apenas para cobrir os custos de treinamento e educação e para usar os seus dotes de maneiras que ajudem também os menos favorecidos. Ninguém merece a maior capacidade natural que tem, nem um ponto de partida mais favorável na sociedade. Mas, é claro, isso não é motivo para ignorar essas distinções, muito menos para eliminá-las. Em vez disso, a estrutura básica pode ser ordenada de modo que as contingências trabalhem para o bem dos menos favorecidos. Assim somos levados ao princípio da diferença se desejamos montar o sistema social de modo que ninguém ganhe ou perca devido ao seu lugar arbitrário na distribuição de dotes naturais ou à sua posição inicial na sociedade sem dar ou receber benefícios compensatórias em troca.
Tendo em vista essas observações, podemos rejeitar o argumento de que a ordenação das instituições é sempre defeituosa porque a distribuição de talentos naturais e as contingências das circunstâncias sociais são injustas, e essa injustiça deve inevitavelmente transferir-se para as organizações humanas. Ocasionalmente, essa reflexão é apresentada como uma desculpa para se ignorar a injustiça, como se a recusa a concordar com a injustiça fosse o mesmo que a incapacidade de aceitar a morte. A distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esses fatos. As sociedades aristocráticas e de castas são injustas porque fazem dessas contingências a base de referência para o confinamento em classes sociais mais ou menos fechadas ou privilegiadas. A estrutura básica dessas sociedades incorpora a arbitrariedade encontrada na natureza. Mas não é necessário que os homens se resignem a essas contingências. O sistema social não é uma ordem imutável acima do controle humano, mas um padrão de ação humana. Na justiça como equidade os homens concordam em se valer dos acidentes da natureza ou das circunstâncias sociais, apenas quando disso resulta no benefício comum. Os dois princípios são um modo equitativo de se enfrentar a arbitrariedade da fortuna; e embora sem dúvida sejam imperfeitas em outros aspectos, as instituições que satisfazem esses princípios são justas. (...)
Dessa forma, não é correto que indivíduos com maiores dotes naturais, e com o caráter superior que tornou possível o seu desenvolvimento, tenham o direito a um esquema cooperativo que lhes possibilite obter ainda mais benefícios de maneiras que não contribuem para as vantagens dos outros. Não merecemos nosso lugar na distribuição de dotes inatos, assim como não merecemos nosso lugar inicial de partida na sociedade. Também é problemática a questão de saber se merecemos o caráter superior que nos possibilita fazer o esforço de cultivar nossas habilidades; pois esse caráter depende em grande parte de circunstâncias familiares e sociais felizes no início da vida, às quais não podemos alegar que temos direito. A noção de mérito não se aplica aqui. (...)
Um outro mérito do princípio da diferença é que ele fornece uma interpretação do princípio da fraternidade. Em comparação com a liberdade e a igualdade, a fraternidade tem ocupado um lugar menos importante na teoria democrática. Considera-se que ela é um conceito menos especificamente político, que não define em si mesmo nenhum dos direitos democráticos, mas que em vez disso expressa certas atitudes mentais e formas de conduta sem as quais perderíamos de vista os valores expressos por esses direitos. Ou então, o que está intimamente relacionado a isso, considera-se que a fraternidade representa uma certa igualdade de estima social manifesta em várias convenções sociais e na ausência de atitudes de deferência e subserviência. Não há dúvidas de que a fraternidade implica tais coisas, assim como um senso de amizade cívica e solidariedade social, mas, entendida desse modo, ela não expressa nenhuma exigência definida. Ainda temos de encontrar um princípio de justiça que se combine com a ideia subjacente. O princípio da diferença, entretanto, parece corresponder a um significado natural de fraternidade: ou seja, à ideia de não querer ter maiores vantagens, exceto quando isso traz benefícios para os outros que estão em pior situação. A família, em sua concepção ideal e muitas vezes na prática, é um lugar em que o princípio de maximização da soma de vantagens é rejeitado. Os membros de uma família geralmente não desejam ganhar a não ser que possam fazer isso de modos que promovam os interesses dos outros. Ora, querer agir segundo o princípio da diferença traz precisamente esse resultado. Aqueles que estão em melhor situação estão dispostos a receber seus objetivos mais elevados apenas dentro de um esquema no qual isso resulte em benefícios para os menos afortunados.
Algumas vezes se considera que o ideal de fraternidade envolve laços sentimentais que, entre membros da sociedade mais ampla, não seria realista esperar. E essa é certamente mais uma razão para que ele seja relativamente negligenciado na doutrina democrática. Muitos sentiram que esse ideal não tem um lugar próprio nas questões políticas. Mas se for interpretado como um princípio que incorpora as exigências do princípio da diferença, ele não é uma concepção impraticável. Parece de fato que as instituições e as políticas que com a maior segurança consideramos justas satisfazem as suas exigências, pelo menos no sentido de que as desigualdades permitidas por elas contribuem para o bem-estar dos menos favorecidos. Nessa interpretação, portanto, o princípio da fraternidade é um padrão perfeitamente factível. Uma vez que o aceitarmos, podemos associar as ideias tradicionais de liberdade, igualdade e fraternidade com a interpretação democrática dos dois princípios da justiça da seguinte maneira: a liberdade corresponde ao primeiro princípio, a igualdade à ideia de igualdade no primeiro princípio juntamente com a igualdade equitativa de oportunidades, e a fraternidade corresponde ao princípio da diferença. Desse modo encontramos um lugar para a concepção da fraternidade na interpretação democrática dos dois princípios, e percebemos que ela impõe uma exigência definida sobre a estrutura básica da sociedade. Os outros aspectos da fraternidade não devem ser esquecidos, mas o princípio da diferença expressa o seu significado fundamental do ponto de vista de justiça social.”


“Volto-me agora para um dos princípios que se aplicam aos indivíduos, o princípio de equidade. Tentarei usar esse princípio para explicar todas as exigências que são obrigações, e não deveres naturais. Esse princípio afirma que uma pessoa deve fazer a sua parte conforme definem as regras de uma instituição, quando duas condições são observadas: primeiro, que a instituição seja justa (ou equitativa), isto é, que ela satisfaça os dois princípios da justiça; e, segundo, que a pessoa tenha voluntariamente aceitado os benefícios da organização ou tenha aproveitado a vantagem das oportunidades que ela oferece para promover os seus interesses próprios. A ideia principal é a de que quando algumas pessoas se comprometem em uma empresa de cooperação mutuamente vantajosa de acordo com certas regras, e assim restringem sua liberdade do modo necessário a fim de produzir vantagens para todos, os que se submeteram a essas restrições têm o direito a uma atitude semelhante da parte dos que se beneficiaram com a sua submissão. Não devemos lucrar com os trabalhos cooperativos dos outros sem que tenhamos contribuído com nossa quota justa. Os dois princípios da justiça definem o que é uma quota justa no caso de instituições pertencentes à estrutura básica. Portanto, se essas organizações são justas, cada pessoa recebe uma quota justa quando todos (inclusive ela) fazem a sua parte.”


“As circunstâncias da justiça se verificam sempre que pessoas apresentam reivindicações conflitantes em relação à divisão das vantagens sociais em condições de escassez moderada. A não ser que essas circunstâncias existam, não há oportunidade para a virtude da justiça, exatamente como não haveria, na falta de ameaças de agressão à vida ou à integridade corporal, oportunidade para a coragem física.”


“Consideremos então o ponto de vista de uma pessoa qualquer na posição original. Essa pessoa não tem meios de obter vantagens especiais para si própria. Por outro lado, também não há fundamentos para que ela concorde com desvantagens especiais. Como não é razoável que ela espere mais do que uma parte igual na divisão dos bens sociais primários, e como também não é racional que ela concorde em obter menos, o sensato é reconhecer, como o primeiro passo, um princípio que exija uma distribuição igual. De fato, esse princípio é tão óbvio em vista da simetria das partes, que ocorreria imediatamente a qualquer pessoa. Assim, as partes começam com um princípio que exige liberdades básicas iguais para todos, bem como uma igualdade equitativa de oportunidades e uma divisão igual da renda e da riqueza.
Mas, mesmo que defendamos a prioridade das liberdades básicas e da igualdade equitativa de oportunidades, não há motivos para que esse reconhecimento inicial seja definitivo. A sociedade deve levar em consideração a eficiência econômica e as exigências organizacionais e tecnológicas. Se existem desigualdades na renda e na riqueza, assim como diferenças na autoridade e nos graus de responsabilidade que atuam para melhorar a condição de todos, em relação ao ponto de referência da igualdade, por que não permiti-las? Podemos pensar que, ideal- mente, os indivíduos gostariam de servir uns aos outros. Mas, como se supõe que as partes são mutuamente desinteressadas, a sua aceitação dessas desigualdades econômicas e institucionais é apenas o reconhecimento das relações de oposição em que os homens se colocam dentro das circunstâncias da justiça. Eles não têm fundamentos para se queixar dos motivos uns dos outros. Assim, as partes discordariam da existência dessas diferenças apenas se ficassem frustradas simplesmente porque percebem ou sabem que os outros estão em melhor situação; mas suponho que elas decidem como quem não é motivado pela inveja. Assim, a estrutura básica permite essas desigualdades contanto que elas melhorem a situação de todos, inclusive a dos menos favorecidos, desde que elas sejam consistentes com a liberdade igual e com a igualdade equitativa de oportunidades. Devido ao fato de as partes começarem a partir de uma divisão igual de todos os bens sociais primários, aqueles que se beneficiam menos têm, por assim dizer, um poder de veto. Chegamos assim ao princípio da diferença. Tomando a igualdade como a base de comparação, aqueles que ganharam mais devem tê-lo feito em termos que são justificáveis aos olhos daqueles que ganharam o mínimo.”


“Embora em geral uma teoria ética possa certamente invocar fatos naturais, pode haver no entanto boas razões para incorporarmos convicções da justiça aos princípios básicos de um modo mais direto do que realmente possa ser exigido pela compreensão teoricamente plena das contingências do mundo.”


“Anteriormente, afirmei que um ponto forte a favor da uma concepção da justiça é que ela gera a sua própria sustentação. Quando se reconhece publicamente que a estrutura básica da sociedade satisfaz os seus princípios por um longo período de tempo, as pessoas sujeitas a essas ordenações tendem a desenvolver um desejo de agir de acordo com esses princípios e fazer a sua parte em instituições que lhes servem de modelo. Uma concepção da justiça é estável quando o reconhecimento geral de sua realização por parte do sistema social tende a fomentar o senso de justiça correspondente. Se isso de fato ocorre ou não depende, sem dúvida, das leis da psicologia moral e da disponibilidade dos motivos humanos. Podemos observar que o princípio da utilidade parece exigir uma identificação maior com os interesses dos outros do que os dois princípios da justiça. Assim, estes últimos serão uma concepção mais estável, na medida em que essa identificação é difícil de obter. Quando os dois princípios são satisfeitos, as liberdades básicas de cada pessoa são asseguradas, e há um senso definido pelo princípio da diferença, no qual todos se beneficiam da cooperação social. Portanto, podemos explicar a aceitação do sistema social e dos princípios que ele satisfaz pela lei psicológica segundo a qual as pessoas tendem a amar, defender e apoiar qualquer coisa que assegure o seu próprio bem. Uma vez que o bem de todos é defendido, todos adquirem tendência a apoiar o sistema.
Quando o princípio da utilidade é satisfeito, entretanto, não existe essa garantia de que todos se beneficiem. A obediência ao sistema social pode exigir que alguns, em especial os menos favorecidos, renunciem a benefícios em favor de um bem maior para todos. Assim, o sistema não será estável, a não ser que os que devem fazer sacrifícios tenham uma forte identificação com interesses mais amplos que os seus próprios. Mas não é fácil criar essa situação. Os sacrifícios em questão não são aqueles que se exigem em épocas de emergência social, quando todos ou alguns são obrigados a trabalhar pelo bem comum. Os princípios da justiça se aplicam à estrutura básica do sistema social e à determinação das expectativas de vida. O que o princípio da utilidade exige é justamente um sacrifício dessas expectativas. Mesmo quando somos menos afortunados, temos de aceitar as maiores vantagens dos outros como uma razão suficiente para termos expectativas mais baixas ao longo de toda a nossa vida. De fato, quando a sociedade é concebida como um sistema de cooperação destinado a promover bem de seus membros, parece inviável esperar que alguns cidadãos aceitem, com base em princípios políticos, perspectivas de vida ainda menores para que os outros se beneficiem. Fica evidente, então, o motivo que leva os utilitaristas a enfatizarem papel da compreensão no aperfeiçoamento moral e o lugar central da benevolência entre as virtudes morais. A sua concepção da justiça é ameaçada pela instabilidade, a não ser que a compreensão e a benevolência sejam ampla e intensamente cultivadas.”


“Além do mais, o reconhecimento público dos dois princípios da justiça confere uma sustentação mais forte à autoestima das pessoas, e esta, por sua vez, aumenta a eficácia da cooperação social. Os dois efeitos são motivos para que se concorde com a adoção desses princípios. É claramente racional que os homens assegurem sua autoestima. O senso de seu próprio valor é necessário para que eles persigam a sua concepção do bem com satisfação e tenham prazer em sua realização. A autoestima não é tanto uma parte de algum plano racional de vida, mas é o senso de que vale a pena realizar esse plano. Mas nossa autoestima geralmente depende do respeito dos outros. A não ser que sintamos que nossos esforços são respeitados por eles, nos é difícil, talvez impossível, manter a convicção de que vale a pena promover nossos objetivos. Assim, por esse motivo, as partes aceitariam o dever natural do respeito mútuo, que exige que as pessoas tratem umas as outras com civilidade e estejam dispostas a explicar os motivos de suas ações, especialmente quando as pretensões dos outros são rejeitadas. Além disso, podemos supor que aqueles que respeitam a si próprios têm muito mais probabilidades de respeitarem uns aos outros, e vice-versa. O desprezo por si próprio conduz ao desprezo pelos outros e ameaça o bem desses outros tanto quanto a inveja. A autoestima se autossustenta reciprocamente.
Assim, uma característica desejável de uma concepção da justiça é que ela expresse publicamente o respeito mútuo entre os homens. Desse modo, eles asseguram um senso de seu próprio valor. Ora, os dois princípios da justiça atingem esse objetivo. Pois, quando a sociedade segue esses princípios, o bem de todos é incluído em um sistema de benefício mútuo e essa afirmação pública, nas instituições, dos esforços de cada homem sustenta a autoestima de todos os homens. O estabelecimento da liberdade igual e a operação do princípio da diferença tendem a produzir esse efeito. Os dois princípios são equivalentes, como já observei, a um compromisso de se considerar a distribuição das habilidades naturais, sob certos aspectos, como um dom coletivo, de modo que os mais afortunados se possam beneficiar apenas de formas que ajudem os menos beneficiados. Organizando-se as desigualdades de modo que haja vantagens mútuas e abstendo-se da exploração das contingências do acaso natural e social dentro de uma estrutura de liberdades iguais, as pessoas expressam sua obrigação com o respeito umas pelas outras na própria constituição de sua sociedade. Desse modo, asseguram seu respeito a si próprios, como é racional que façam.
Um outro modo de colocar a questão é dizer que os princípios da justiça manifestam, na estrutura básica da sociedade, o desejo dos homens de tratar uns aos outros não apenas como meios, mas como finalidades em si mesmos. (...)
Considerar as pessoas como fins em si próprias na concepção básica da sociedade é concordar em abdicar dos ganhos que não contribuem para as expectativas de todos. Em contraste com isso, considerar as pessoas como meios é estar disposto a impor àqueles já menos favorecidos perspectivas ainda mais baixas de vida, em favor das expectativas mais altas de outros.”


“Sempre que uma sociedade decide maximizar a soma dos valores intrínsecos ou o saldo líquido de satisfação dos interesses, corre-se o risco de descobrir que a negação da liberdade para alguns se justifica em nome desse objetivo único. As liberdades de cidadania igual estão inseguras quando fundadas em princípios teleológicos. A argumentação a favor delas se apoia em cálculos tão precários quanto controversos, e em premissas incertas.
Além disso, nada se ganha dizendo que as pessoas têm um valor intrínseco igual, a menos que isso seja simplesmente uma maneira de usar os pressupostos clássicos como se fizessem parte do princípio de utilidade. Isto é, alguém aplica esse princípio como se essas hipóteses fossem verdadeiras. Tal procedimento tem certamente o mérito de reconhecer que depositamos mais confiança no princípio da liberdade igual do que na veracidade das premissas das quais uma visão perfeccionista ou utilitarista derivaria esse princípio. As razões para essa confiança, segundo o entendimento contratualista, estão no fato de que as liberdades têm um fundamento completamente diferente. Elas não são uma maneira de maximizar a soma dos valores intrínsecos ou de se atingir o maior saldo líquido de satisfação. A ideia de maximizar a soma de valores ajustando os direitos dos indivíduos não se apresenta. Em vez disso, esses direitos são atribuídos para satisfazer os princípios de cooperação que os cidadãos reconheceriam quando cada um estivesse representado de forma justa como uma pessoa ética. A concepção definida por esses princípios não é a de maximizar o que quer que seja, exceto no sentido vago de, tudo considerado, melhor satisfazer as exigências da justiça.
Podemos observar neste caso uma analogia com o método de comparações interpessoais de bem-estar. Essas comparações se fundam na lista dos bens primários que alguém pode razoavelmente esperar, entendendo-se por bens primários aqueles que supostamente todos querem. Essa é uma base de comparação com a qual todas as partes podem concordar para os propósitos da justiça social. Não exige estimativas sutis da capacidade humana de felicidade, muito menos do valor relativo de seus planos de vida. Não precisamos questionar a natureza do significado dessas noções; elas, porém, são impróprias para projetar instituições justas. De modo semelhante, as partes consentem com critérios reconhecidos publicamente para determinar o que constitui evidência de que sua liberdade igual está sendo utilizada de maneiras que ofendem o interesse comum na ordem pública e na liberdade de outros. Essas convicções de evidência são adotadas para a busca da justiça; não são concebidas para aplicar-se a todas as questões de significado e verdade. A extensão de sua validade na filosofia e na ciência é uma questão à parte.
O traço característico desses argumentos a favor da liberdade de consciência é que eles se baseiam unicamente numa concepção da justiça. A tolerância não se origina de necessidades práticas ou razões de Estado. A liberdade religiosa e moral decorre do princípio da liberdade igual; e supondo-se a prioridade desse princípio, a única razão para negar as liberdades iguais é a de evitar uma injustiça ou uma perda de liberdade ainda maior. Além disso, a argumentação não se apoia em nenhuma doutrina filosófica ou metafísica específica. Não pressupõe que todas as verdades possam ser estabelecidas mediante opiniões aceitas pelo senso comum; nem sustenta que tudo seja, em algum sentido, uma construção lógica derivada do que se pode observar ou provar através da investigação científica racional. O apelo, na verdade, se dirige ao senso comum, mas está estruturado de tal maneira que pode tornar desnecessárias maiores presunções. Por outro lado, a defesa da liberdade também não implica ceticismo em relação à filosofia ou indiferença religiosa. Talvez se possam apresentar argumentos a favor da liberdade de consciência que tenham uma ou mais dessas doutrinas como premissas. Isso não é motivo de surpresa, já que argumentos diferentes podem levar à mesma conclusão. Mas não precisamos prosseguir nessa questão. A defesa da liberdade é no mínimo tão forte como o mais forte de seus argumentos; os fracos e falaciosos é melhor esquecê-los. Aqueles que gostariam de negar a liberdade de consciência não podem justificar sua posição pela condenação do ceticismo em relação à filosofia e da indiferença religiosa, nem pelo apelo aos interesses sociais e questões de Estado. A limitação da liberdade só se justifica quando for necessária para a própria liberdade, para impedir uma incursão contra a liberdade que seria ainda pior.”


“Podemos partir da convicção de que um regime democrático pressupõe liberdade de expressão e de assembleia, e liberdade de consciência e de pensamento. Essas instituições não são apenas exigidas pelo primeiro princípio da justiça mas, como argumentava Mill, elas são necessárias para que os negócios políticos sejam conduzidos de maneira racional. Embora a racionalidade não seja garantida por essas ordenações, parece que em sua ausência o curso de ação mais razoável será fatalmente rejeitado, em prol de políticas sugeridas por interesses particulares. Para que o fórum público seja livre e aberto a todos, e permaneça em sessão contínua, todos devem poder participar dele. Todos os cidadãos devem ter os meios de informar-se sobre questões políticas. Deveriam ter condições de avaliar como certas propostas afetam seu bem-estar e quais políticas promovem sua concepção do bem público. Além disso, deveriam ter uma oportunidade equitativa de acrescentar à pauta propostas alternativas para a discussão política. As liberdades protegidas pelo princípio da participação perdem muito de seu valor sempre que os detentores de maiores recursos privados têm permissão de usar suas vantagens para controlar o curso do debate público. Pois, no fim, essas desigualdades possibilitarão que aqueles que estão em melhores condições exerçam uma influência maior sobre a evolução da legislação. Com o tempo, eles tendem a conquistar um peso preponderante na decisão de questões sociais, pelo menos no que se refere àqueles assuntos sobre os quais normalmente concordam, isto é, em relação àquilo que favorece suas circunstâncias privilegiadas.
Medidas compensatórias devem, portanto, ser tomadas a fim de se preservar o valor equitativo para todas as liberdades políticas iguais. Pode-se usar uma variedade de recursos. Por exemplo, numa sociedade que permite a propriedade privada dos meios de produção, a propriedade e a riqueza devem ser amplamente distribuídas e verbas públicas devem ser destinados regularmente a encorajar a livre discussão pública. Mais ainda, deve-se tornar os partidos políticos independentes dos interesses econômicos privados, destinando-lhes suficientes recursos provindos da arrecadação para desempenhar seu papel no sistema constitucional. (As subvenções partidárias podem, por exemplo, basear-se em alguma regra que leva em conta o número de votos recebidos em várias eleições recentes, ou em algo semelhante.) O que se requer é que os partidos políticos sejam autônomos no que diz respeito aos interesses privados, isto é, demandas não expressas no fórum público e não discutidas abertamente com referência a uma concepção do bem público. Se a sociedade não arcar com os custos de sua organização e se for necessário levantar fundos para os partidos entre os setores socioeconômicos mais favorecidos, as reivindicações desses grupos fatalmente receberão atenção excessiva. E a probabilidade de isso acontecer é ainda maior quando os membros menos favorecidos da sociedade, após serem efetivamente impedidos de exercer seu grau equitativo de influência devido à carência de bens, se fecham na apatia e no ressentimento.
Historicamente, um dos principais defeitos do governo constitucional tem sido a sua incapacidade de assegurar o valor equitativo da liberdade política. As medidas corretivas necessárias não têm sido tomadas; na verdade, parece que nunca foram consideradas seriamente. Disparidades na distribuição da propriedade e riqueza que em muito excedem o que é compatível com a liberdade política têm sido geralmente toleradas pelo sistema legal. Recursos públicos não têm sido empregados a fim de manter as instituições exigidas para garantir o valor equitativo da liberdade política. A falha reside essencialmente no fato de que o processo político democrático é, na melhor das hipóteses, uma rivalidade regulada; nem sequer teoricamente possui as propriedades desejáveis que a teoria dos preços atribui aos mercados realmente competitivos. Além disso, os efeitos das injustiças no âmbito do sistema político são mais graves e duradouros do que as imperfeições do mercado. O poder político rapidamente se acumula e se torna desigual; e, servindo-se do aparelho coercitivo do Estado e de suas leis, aqueles que conseguem a predominância podem muitas vezes garantir para si mesmos uma posição privilegiada. Assim, as desigualdades do sistema socioeconômico podem solapar qualquer igualdade política que possa ter existido em condições historicamente favoráveis. O sufrágio universal é um contrapeso insuficiente; pois, quando os partidos e as eleições são financiados não por fundos públicos mas por contribuições privadas, o fórum político fica tão condicionado pelos desejos dos interesses dominantes que as medidas básicas necessárias para estabelecer uma regra constitucional justa raramente são apresentadas de modo adequado.”


“Vemos então que, entendido corretamente, o desejo de agir com justiça deriva em parte do desejo de expressar, da maneira mais plena, o que somos ou podemos ser, isto é, seres racionais iguais e livres, com liberdade de escolha. É por essa razão, creio eu, que Kant fala da incapacidade de agir segundo a lei moral como sendo causa de vergonha e não de sentimentos de culpa. E isso é apropriado, uma vez que, para ele, agir injustamente é agir de uma maneira que não expressa a nossa natureza de seres racionais iguais e livres. Tais ações ferem, portanto, o nosso amor-próprio, o senso de nosso valor como pessoas, e a experiência dessa perda causa vergonha. Agimos como se pertencêssemos a uma categoria inferior, como se fôssemos criaturas cujos princípios básicos fossem determinados pelas contingências naturais. Aqueles que pensam na doutrina de Kant como uma doutrina da lei e da culpa fazem dele uma interpretação bastante equivocada. O principal objetivo de Kant é aprofundar e justificar a ideia de Rousseau de que liberdade é agir de acordo com a lei que nós estabelecemos para nós mesmos. E isso conduz não a uma moralidade de comando austero, mas sim a uma ética de autoestima e respeito mútuo.
A posição original pode, então, ser vista como uma interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia, e do imperativo categórico, dentro da estrutura de uma teoria empírica. Os princípios que regulam o domínio dos objetivos são os que seriam escolhidos nessa posição, e a descrição dessa posição nos possibilita explicar em que sentido agir com base nesses princípios expressa a nossa natureza de pessoas racionais iguais e livres. Essas noções já não são puramente transcendentes e desprovidas de conexões explicáveis com a conduta humana, pois a concepção procedimental da posição original nos permite estabelecer esses vínculos.”

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